You are on page 1of 7
EDIGOES ANTERIORES SERIA O FEMINISMO O GRANDE INIMIGO DA LITERATURA HOJE? [ENSAIO} J DIEGO PEREZ 20 DE OUT. DE 2022 93), DG Share SERIA 0 FEMINISMO 0 GRANDE INIMIGO DA LITERATURA HOJE? TESE Em 2018 0 escritor peruano Mario Vargas Llosa — tinico latino-americano vivo e quigé o iltimo a ganhar o primeiro Nobel de Literatura — escreveria um polémico artigo chamado “Novas inquisigdes” para o periédico El pais no qual expunha a sua posicao sobre o movimento feminista e a atuacio direta deste na forma como lidamos com a literatura atualmente. Segundo Vargas Llosa, assim como a moralidade crista ou de regimes fascistas algum dia cercearam a literatura em favor de seus esptrios interesses, o feminismo estaria hoje numa cruzada contra a literatura a fim de “depuré-la do machismo, dos preconceitos muiltiplos e das imoralidades”, Essa depuracao se apresentaria, por exemplo, como a tentativa de se proibir a apresentacio de certos escritores em sala de aula — como os machistas Pablo, Javier Marias e Arturo Pérez-Reverte — ou mesmo de se censurar a republicacao de obras e autores com um passado problemitico - como foi o caso do projeto da Gallimard em republicar Louis Ferdinand Céline que, de fato, apés protestos, foi abandonado. “O feminismo é hoje o mais resoluto inimigo da literatura”, afirmaria assim Vargas Llosa em sua coluna de opiniao, mesmo que, inteligentemente, colocasse a culpa de tais atos sob a responsabilidade de facgdes radicais ao generalizar sua postulacio. Como esperado, o assunto nao se encerraria por ali. Em 2019, em tempo da abertura da “Bienal de Novela Mario Vargas Llosa” em Guadalajara, México, um manifesto assinado por mais de 100 escritoras e escritores chamado “Contra el machismo literario” circulou pela internet denunciado a disparidade de género nesse evento especifico e repudiando o comportamento sistémico nos eventos literdrios, em geral. Segundo os assinantes do manifesto, é “inadmissivel que no século XXI, em meio a demandas por igualdade, um evento como a Bienal de Romance Mario Vargas Llosa seja organizado sem uma perspectiva de género”. O escritor peruano, que dd nome ao evento, parece ter levado o assunto para o lado pessoal. Um tanto indignado, publicaria na sua coluna no El pats o texto “Novas inquisigées (II)”, que demonstra, em partes, a repercussio de sua diatribe: retificou alguns mimeros do evento, reafirmou a sua posicao de que a qualidade, mais do que a quantidade, é sempre o critério definidor quando se fala em literatura e que: feminismo corre o perigo de se perverter se adotar uma linha fandtica e intransigente da qual existem, infelizmente, muitas manifestagdes recentes, como a de querer rever a tradig&o cultural e literdria, corrigindo-a de maneira que se adapte ao novo cAnone, ou seja, censurando-a. E substituindo o desejo de justic¢a pelo ressentimento e a frustracio. No que me diz respeito, posso garantir que, enquanto a Bienal e o Prémio de Romance que levam meu nome existirem, nao haver4 quotas aritméticas de homens e mulheres ¢ 0 tinico critério com o qual se continuard convidando os participantes serd o da exceléncia literdria. Sobre todo 0 ocorrido, 0 que Vargas Llosa parece ter feito com seus dois textos ¢ 0 que pode ser chamado de iscagem: 1) a partir de atos radicais, se generaliza polemicamente uma opiniao sobre um grupo politico e; 2) assim que esse grupo reagir as opinides do proponente, o polemista se utiliza dessa mesma reacao para reafirmar o seu ponto inicial. No entanto, se observamos a questo sob uma perspectiva mais ampla do que os constantes afagos e acintes que orbitam 0 ego do escritor peruano, poderiamos, quigé, prosseguirmos com a polémica e nos indagarmos: teria Vargas Llosa algum tipo de razdo em dizer que o feminismo é o grande inimigo da literatura hoje? ANTITESE Em 28 de maio de 2021 0 escritor Luiz Ruffato publicaria no Jornal Rascunho a lista ds 35 melhores romances brasileiros”, Para tal feito, o mineiro se utilizaria de apenas dois critérios: 1) que tais livros “conseguiram alcangar o grande objetivo da literatura, 0 equilibrio entre fundo e forma” e 2) que o inventério findaria na década de 1990, nao se estendendo pela literatura produzida jé no século XXI. A tarefa de Ruffato, a principio, parecia um tanto quanto banal. Inclusive, 0 que 0 autor se propunha era, de certa forma, apenas uma atualizacao de sua lista de 2014 publicada no jornal El pais. Mas sendo Rufatto um escritor to experiente como atento &s paixdes que envolvem listas, o mesmo tentaria, de alguma forma, se precaver as reagdes adversas: “Apds a leitura da minha relagdo, vocé poderd concordar ou discordar, no todo ou em parte, e € nisso que consiste o fascinio das listas: trata-se somente de provocagao intelectual e nao verdade a ser defendida”. O que o escritor mineiro, e também o jornal literdrio, talvez nao esperassem é que a lista seria muito mal recebida, principalmente pelas feministas que viram na auséncia significativa de mulheres — apenas 4 — no texto uma problematica bastante condendvel. Com efeito, apés eriticas nas redes sociais, o Rascunho abriu espago para uma espécie de “retratagao” (“Vamos procurar publicar uma lista realizada por uma escritora mulher futuramente”, diria 0 acuado Jornal em um post do Instagram) que ainda no se concretizou, mas que j no dia 08 de junho de 2021 veria a questdo ser enderecada no préprio veiculo de comunicagao pela escritora Ana Elisa Ribeiro com ‘0 seu texto “O problema das listas”. Em sua réplica ao texto de Ruffato, Ribeiro lembrou das listas paralelas que comegaram a se formar nas redes sociais e constatou que “Temos um problema de omissao historiografica e educacional muito mais grave do que a lista do Ruffato”, ainda que as farpas nao faltassem ao escritor cataguasens Se eu fosse instada a fazer uma lista de melhores romances que li (ew li, pessoalmente) ¢ precisasse parar nos anos 1990 (langados até a), muito provavelmente teria um conjunto menos masculino. .)Bom, minha lista nao é publica. E nem faz diferenga alguma que nao seja. Quem sou eu na fila do pao? Isso é outro ponto interessante nesta arena literdria, mas também politica e social: quem produz uma lista faz uma diferenga danada. E um bom jeito de verificar como anda af a corda das pessoas. Uma lista publicada pelo Luiz Ruffato faz tremer. A contralista da profa. Euridice fez tremer uma espécie de bolha ligada a esse tema, mas no sei se cutucou geral, como seria bom que acontecesse, do ponto de vista de um efeito mais amplo. Ana Elisa nao parece ter, de pronto, todas as respostas para esse debate, de modo que, j autoras [a escrever a lista para a Rascunho]? E que lista se concluindo o seu texto, se questiona belicosamente; “Quem se habilita, entre as esta, menos ou mais “espontdnea”? Vamos de vinganga ou de exame minucioso?”. Acredito que podemos pensar em outras perguntas que parecem escapar ao debate levantado por Ribeiro: Rufatto nao tem direito & opinido sobre suas préprias preferéncias pessoais ou deveria se limar antes de mandar 0 texto ao jornal? Deveria Rufatto se obrigar a ler mais mulheres para satisfazer a necessidade de uma lista mais igualitdria ou, pelo contrario, deveria Rufatto, uma pessoa progressista e contemporanea ao século XXI, jé estar, a essa altura, muito bem consciente de suas preferéncias? Deveria o periddico ter censurado parcial ou totalmente a lista na edigo? A qualidade é mais importante que a quantidade, como diria Vargas Llosa? Enfim, como resolver a desigualdade abismal que existe na literatura ontem e hoje? SiNTESE Em 14 de abril a revista cassandra publicaria a sua “Apresentacio” de forma bastante sucinta e direta: “cassandra surgiu da ideia de reunir mulheres artistas de diversos lugares e com diversas vozes para promover as artes ¢ a literatura feitas por, de e para mulheres”, Sob o signo do mito grego que dd nome ao projeto, o grupo diria ainda que “Uma mulher que nao se antecipa é engolida” e que “Em tempos [obscuros| como esses, em que a arte é vista como inimiga e nés mulheres vemos nossos direitos ameagados, toda voz é uma resisténcia”. “Toda mulher é um grito”, encerram as editoras na apresentacao do projeto, “cassandra é um grito”. E o grito de cassandra, com efeito, nfo é o tinico a ulular pelo espaco literdrio contemporaneo: como diré Laura Redfern Navarro para a revista ano IT: ensaio em seu texto “A RECONSTITUIGAO DA FOFOCA — reflexes sobre literatura, mulheres ¢ internet” de 22 de junho de 202 “{mimeros movimentos e coletivos como, notadamente, o Leia Mulheres, o Mulherio das Letras e o Mulheres que Escrevem, focados em divulgar, estimular e unir a produgao feita por mulheres” tém se tornado uma forte tendéncia tanto no cendrio brasileiro como internacional a partir das novas formas de se expressar e militar, pois: Sabendo a presenga de um canone ainda fortemente masculino e dominado por uma isengao politica, que deixa de enxergar a literatura como vor social e critica, fendmenos como esse nao apenas so consequéncia de uma conquista de direitos pelas mulheres ao longo do tempo, mas revelam a importancia de um instrumento que os potencializa — a internet. “Seria o fe smo o grande ini 0 feminismo é 0 grande inimigo do que Vargas Llosa considera ser “literatura”, isto é, uma caixinha vedada As transformagdes da sociedade e com regras um tanto quanto arbitrarias do que significa ‘qualidade’. Quer dizer, o feminismo nao tem (e nao deve ter) o poder autoritério de decidir draconianamente o que se pode ou nao na literatura como assume a estapaftirdia tese de Vargas Llosa. Contudo, o mesmo vale para o préprio laureado de modo que 0s mesmos homens — brancos, héteros, cis, ricos, etc. — no podem continuar a decidir patriarcalmente o que é ou nio Literatura. E inegavel que os tempos so outros: “uma proporcio devastadora, em especial quando lida em 2021”, dird Ribeiro sobre Ruffato. “E inadmissivel que no século XI, em plena onda de reivindicagées por igualdade”, dirao as assinantes do manifesto contra Vargas Llosa. “Toda mulher é um grito” dird a revista cassandra. E precisamos todos aprender a lidar com essa nova realidade. Ainda nao é inscrito da [MAGAZINE]? Basta colocar seu email aqui. REFERENCIAS CASSANDRA. Apresentacio. revista cassandra, 14 de abril de 2021. Disponivel em: https://medium.com/revistacassandra/apresenta%C3%A7%C3%A 30-e451942f02e5. “CONTRA el machismo literario”, la carta que cuestiona la disparidad de género en los eventos culturales. Infobae, 19 de maio de 2019. Disponivel em: huspsil lwww.infobae.com/america/cultura-america/2019/05/27/contra-el-machismo- literario-la-carta-que-cuestiona-la-disparidad-de-genero-en-los-eventos-culturale: REDFERN NAVARRO, Laura. “A RECONSTITUIGAO DA FOFOCA — reflexdes sobre literatura, mulheres e internet”. ano II: ensaio, 28 de junho de 2021. Disponivel em: https://medium.com/revista-ensaio/a-reconstitui%C3%A7%C3%A 30-da-fofoca- db6141e410ae. RIBEIRO, Ana Elisa. O problema das listas. Jornal Rascunho, 08 de junho de 2021. Disponivel em: https://rascunho.com,br/liberado/o-problema-das-listas/. RUFFATO, Luiz. Os 35 melhores romances brasileiros. Jornal Rascunho, 28 de maio de 2021: Disponivel em: https://rascunho.com.br/liberado/os-35-melhores-romances- brasileiros/. . Meus romances brasileiros preferidos. El Pais, dezembro de elpais.com/brasil/2014/12/09/opinion/1418124717_153514.html, 2014. hteps://bras VARGAS LLOSA, Mario. Novas Inquisigdes. El Pais, marco de 2019. Disponivel em: ‘hetps://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/16/opinion/1521215265 029385.html. . Novas Inquisicées (Il). El Pais, junho de 2019. Disponivel em: hups [[brasil.elpais.com/brasil/2019/06/13/opinion/1560443841_951481.html. [DIEGO PEREZ] @ 3 Likes Comments Write a comment. © 2024 Diego Cardoso Perez, [MAGAZINE] ISSN 2965-582X : Privacy : Terms - Collection notice ‘Substack is the home for great writing

You might also like