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O PASSADO E O PRESENTE EDITORIAL

Q uando o artista Hugo Pratt


revela no álbum Os Escorpiões
do Deserto que Corto Maltese
teria desaparecido na Guerra Civil de
Espanha, algures em 1936, após uma
temos o puro escapismo com super-
heróis que abraçaram o lado negro da
vida e são criações muito mais adultas
e turbulentas do que na altura em que
foram inicialmente criadas. Na área
E que tem tudo isto a ver com o
fantástico? Tem tudo a ver e nada
a ver. Sempre que me perguntam o
porquê do nome Saída de Emergência
como nome de uma editora, exponho
série de longas aventuras que se inicia- dos livros, as vagas “retro” e “punk” a minha própria versão romanceada.
ram na sua juventude no início do séc. tornaram-se nichos lucrativos e nunca É uma fuga para mundos imaginários,
XX, Pratt está, na verdade, a dizer-nos vimos tantas obras preocupadas em uma forma de quebrar a rotina e de
que os anos que antecedem a II Guer- recuperar uma certa aura romântica e nos sentirmos entretidos com a leitura.
ra Mundial são também os anos que idealista de outras épocas. Considerando o tipo de livros que a
marcam o fim de toda uma época. Diz Há a noção de que talvez toda esta SDE publica, acaba por ser um nome
ele, Corto Maltese desaparecerá porque, num intensa nostalgia possa exprimir um certeiro.
mundo onde tudo é electrónico, onde tudo é cal- desejo patente de escape da nossa Mas a escolha que enfrentamos hoje
culado e industrializado, não há lugar para realidade presente, seja em direção ao está entre correr na direção da saída de
uma criatura como Corto Maltese. passado, seja em direção ao futuro. emergência e escapar ou permanecer
Em The Grand Budapest Hotel de Wes Mas porque há este sentimento global corajosamente no presente e enfrentar
Anderson, a guerra também representa de que o nosso presente se tornou algo as criaturas da noite. Apenas nós
o estilhaçar de sonhos, de um passado tão digno de ser escapado? Podia lançar próprios nos podemos salvar desta
permeado de beleza e romantismo. uma tentativa de explicação política, assustadora negação da realidade em
Todo o imaginário exuberante criado, o económica e social, mas não é preciso que estamos imersos. Talvez tenha
tom de comédia e absurdo, a elegância e muito para descobrir a indiferença chegado altura de tomar o comprimido
cavalheirismo dos homens, é quebrada geral, o desinteresse, o gradual vermelho.
de modo abrupto e irremediável afastamento entre pessoas.
com o advento da guerra, restando à Pode uma sociedade inteira demitir-
personagem de F. Murray Abraham, se da sua responsabilidade para com
já velha, viver com as suas memórias e o presente? É como se as coisas
obcecar-se por um mundo que já não feias do nosso passado tivessem
existe. sido obliteradas da memória e só
Vivemos uma época muito marcada nos forçamos a lembrar as coisas de
por nostalgia do passado. Assistimos beleza. Filtramos o que nos incomoda
ao reavivar constante de bandas pop e retemos apenas o romantismo e os
ou rock famosas em outras décadas, “bons velhos tempos”.
os contínuos remakes dos filmes e Li há muitos anos uma frase num
séries da nossa infância, o sucesso de livro de Milan Kundera que captou a
séries televisivas que nos transportam minha atenção, embora ainda não a
para um passado remoto e imaginário compreendesse totalmente, A nostalgia
(A Guerra dos Tronos) ou um passado do Paraíso é o desejo que o homem tem de não
recente (Mad Men). Conseguirá Don ser homem. Talvez o autor tenha uma Safaa Dib é coordenadora editorial na Saída
Draper sobreviver para além dos interpretação diferente, mas leio esta de Emergência desde 2008. Já foi tradutora e
anos 60 e entrar nos anos 70 com frase e penso que, de facto, o homem revisora e, desde 2010, edita em Portugal e agora
a sua identidade firme e finalmente não tem vontade de ser homem a no Brasil, a revista Bang!. Vive em Lisboa onde
pacificada? Essa é a grande questão que maioria das vezes. Estamos cansados faz parte da organização da convenção anual do
atormenta os fãs da série Mad Men. Ou de ser humanos. Fórum Fantástico.

Venha descobrir a revista Bang! na internet


www.revistabang.com
BANG! /// 1
ilustradorconvidado
Miguel Coimbra

1. L’homme rune
© Bragelonne

2.Farlander
© Bragelonne

3. Crossing Over
© Bragelonne

4. La guerre du jour
© Bragelonne

5. Dark sorceress evolution


© Applibot

6. Dark Sorceress
© Applibot

7. La guerre de 14 n’a pas


eu lieu
© Flammarion

1 2 /// BANG!
meu nome é Miguel

O Coimbra. Sou um ar-


tista freelancer auto-
didacta de 36 anos e de ascen-
dência portuguesa. Cresci em
França e vivo perto da cidade de
Lyon. Já trabalho nesta indústria
há mais de dez anos, primeiro
como designer gráfico e depois
como artista conceptual de jo-
gos de vídeo (Eden Games).
Actualmente, trabalho a tempo
inteiro como artista freelancer
para a Role Playing Games, em
livros, jogos de cartas, capas de
livros e arte conceptual para jo-
gos de vídeo. 2 3
Trabalhei para vários clientes,
entre eles a Upperdeck/Bli-
zzard, Wizards of the Coast,
Sony/Lucasart, Rackham, Alde-
rac, Mattel, e já desenvolvi tra-
balhos para os universos World
of Worldcraft, Star Wars, Ever-
quest, Dungeons and Dragons,
Vampire, Warhammer, Legend
of the Five Rings.
Estou a tentar diversificar as
minhas áreas de trabalho, mas
neste momento a minha acti-
vidade principal centra-se nos
jogos de tabuleiro. Já ilustrei tí-
tulos premiados e mundialmente
conhecidos como “Smallworld”
ou “7Wonders”. Estou neste
momento a trabalhar em vários
projectos que espero que me
permitam mostrar o meu traba-
lho no mercado brasileiro. Ainda
não posso revelar muito, mas tive
a oportunidade de trabalhar num
título com um famoso artista
4 5
brasileiro de hu-
mor. O meu site
pode ser consul-
tado em www.
miguelcoimbra.
com

6 7 BANG! /// 3
13
25
42
49

60 68

77 84
29
Não Ficção 42 Visões de Utopia
Artur Coelho

02 Ilustrador convidado
Miguel Coimbra
dado
49 Brandon Sanderson: A Nova Estrela da Fantasia Épica
Safaa Dib

08 Enciclopédia da Estória Universal


Afonso Cruz 55 Entrevista a Brandon Sanderson
João Campos

10 Sonar Literário
Eric Novello 57 Making of capa O Império Final
Luis Melo

12 Metais Pesados
Fernando Ribeiro 65 Prémio Bang! 2014
Luis Corte Real

13 Sheridan Le Fanu: No Ano do Bicentenário


António Monteiro 68 As Cidades na Ficção Científica - Episódio 3: O Contexto
Norte-Americano

21 O Regresso do Transperceneige
João Lameiras
João Rosmaninho

25 Robert E. Howard: Feitiços e Terrores


António Monteiro Ficção

29 O Regresso a Westeros: As Aventuras de Dunk & Egg


Safaa Dib 17 Pensando no Relógio
Rui Rodrigues Alves

36 As Agruras da Colecção Argonauta - Parte 2: Em Busca do Velo


que Antevia o Futuro 60 Abiogenesis
Pedro G. P. Martins
Luís Filipe Silva
77 Imersão
Aliette de Bodard

84 A Guerra dos Pombos


Estevão Ribeiro

PARA MAIS INFORMAÇÕES SOBRE A COLECÇÃO BANG! OU A EDITORA SAÍDA DE EMERGÊNCIA VISITE-NOS EM: SAIDADEEMERGENCIA.COM
Revista Bang! 16 / Junho de 2014 Propriedade: Edições Saída de Emergência. Todos os direitos (e mais alguns) reservados. Director e escravo das galés: Luís Corte Real
Editora (procurada pela Interpol): Safaa Dib Direcção de arte e catering: Luís Corte Real, Luís Morcela, Maria do Mar Rodrigues Colaboradores explorados nesta edição: António Monteiro, Artur Coe-
lho, Inês Botelho, João Campos, João Lameiras, João Rosmaninho, Luís Filipe Silva, Luis Melo. Autores e outros convidados sem voto na matéria: Afonso Cruz, Aliette de Bodard, Brandon Sanderson,
Eric Novello, Estevão Ribeiro, Fernando Ribeiro, Miguel Coimbra, Pedro G. P. Martins, Rui Rodrigues Alves. Redacção e solário: Rua Adelino Mendes, nº152, Quinta do Choupal 2765-082 S. Pedro do
Estoril, Portugal Impressão (gralhas incluídas): Printer Portuguesa Tiragem de revirar os olhinhos: 8500 Copyright: Textos e imagens propriedade da editora e/ou dos respectivos autores, etc e tal.
Os artigos presentes nesta edição têm ou não as regras do novo Acordo Ortográfico consoante vontade dos seus autores, pelo que não se encontra uniformizada a sua aplicação.
Nota: os preços das lojas Fnac anunciados nesta revista consideram-se correctos salvo erro, gralha tipográfica ou intervenção alienígena.

4 /// BANG!
bang!
coleção

só literatura fantástica
[Resumo das novidades Por Luís Corte Real / editor]
Lançamentos da coleção Bang! de verão de 2014

O
livro é um produto com particularidades bastante
singulares, vive simultaneamente no universo cul-
tural (onde é um produto artístico) e no universo
económico (onde é uma mercadoria). No primeiro,
a sua recetividade é tremendamente subjetiva, será
certamente catalogado algures entre medíocre e obra-prima, mas
há centenas de variantes: pode estar à frente do seu tempo, ou
ultrapassado, pode ser leitura de nicho ou mainstream, pode ser
esquecido, virar obra de culto e até transformar-se num clássico.
Já no mundo económico, nada há de subjetivo: ou dá lucro ou dá
prejuízo. É com estas variantes em cima da mesa que uma edi-
tora tem de trabalhar e criar o seu catálogo. Para nos dificultar
a vida, ainda é preciso ainda ter em conta uma realidade mali-
ciosa: na esmagadora maioria das vezes, os livros arrojados, in-
teligentes, as obras-primas, são as mercadorias que dão prejuí-
zo. E os que dão lucros são precisamente os que catalogaríamos
como medíocres. Com esta realidade presente é fácil perceber
a dificuldade de uma editora em agradar aos leitores exigentes
que buscam qualidade e, ao mesmo tempo, ter vigor financeiro.
Acreditamos que a coleção Bang!, apesar dos esforços que tive-

BANG! /// 5
mos de fazer para enfrentar a atual crise, é um exemplo de su-
cesso a esse nível. Ajustámos a coleção mas não parámos de lan-
çar bons autores. A última grande aposta é Brandon Sanderson,
na minha opinião, o futuro melhor escritor de fantasia. Com
uma tremenda vantagem relativamente a George R. R. Martin:
é prolífico. Termino o meu texto com esse convite: mergulhem
no universo de Mistborn - Nascida nas Brumas. O Império Final
já é uma obra de culto e a escrita de Sanderson é inteligente e
arrojada. Só precisamos que os leitores abracem o projeto para
que, também no universo económico, tenhamos um sucesso.

Por motivos de reestruturação interna da SDE, outros livros da coleção Bang! poderão ainda ser
publicados nos próximos meses, mas não estamos ainda em condições de divulgar as datas. Mais
informações poderão ser encontradas nas próximas semanas em www.revistabang.com

JUNHO vivente de nome Kelsier escapa do


mais terrível cativeiro graças à estranha
Nos últimos dias do reinado do Rei
Daeron, com os Sete Reinos em paz e a
magia dos metais – a Alomância – que dinastia real Targaryen no seu apogeu,
O Império Final o transforma num “nascido nas bru- conhecemos a história de um jovem es-
de Brandon Sanderson mas”, alguém capaz de invocar o poder cudeiro de nome Dunk que parte em
de todos os metais. busca de fama e glória num dos mais
Num mundo onde as cinzas caem do Kelsier foi outrora um famoso ladrão famosos torneios de Westeros.
céu e as brumas dominam a noite, o e um líder carismático no submundo.
povo dos Skaa vive escravizado e na A experiência agonizante que atraves-
absoluta miséria. Durante mais de mil sou tornou-o obcecado em derrubar o
anos, o Senhor Soberano governou Senhor Soberano com um plano auda-
com um poder divino inquestionável cioso. Após reunir um grupo de elite, é
e pela força do terror. Mas quando a então que descobre Vin, uma órfã skaa
esperança parecia perdida, um sobre- com talento para a magia dos metais e
que vive nas ruas.
Perante os incríveis poderes latentes
de Vin, Kelsier começa a acreditar que
talvez consiga cumprir os seus sonhos
de transformar para sempre o Império
Final…

JUlHO

Histórias dos Sete Reinos


de George R.R. Martin
Mas ele desconhecia que o destino
Cerca de cem anos antes de A Guerra pode pregar estranhas partidas e que
dos Tronos, um cavaleiro desafia as leis o caminho para a honra e nobreza em
dos Sete Reinos… Westeros está ladeado não só de peri-
gos, mas também de amizade e cora-

6 /// BANG!
gem. Quando conhece Egg, um rapaz como o Governador que mantém a paz de em três dos acidentes ter sido en-
misterioso e inteligente, mal sabe que na cidade, Lily começa a acreditar que contrada uma criança viva entre os
os laços estreitos que forma com ele ainda há esperança no mundo, até ao destroços. As crianças demonstram
irão mudar a sua vida para sempre. momento em que é confrontada com problemas de comportamento, causa-
Com Histórias dos Sete Reinos George R. as estranhas e brutais noções de justi- dos pelo horror que testemunharam e
R. Martin transportar-nos para o mun- ça e ordem do Governador. Um grupo toda a atenção mediática. Esses proble-
do fascinante e repleto de intrigas de de rebeldes decide então desafiar a sua mas só pioram quando o líder carismá-
Westeros, com a mesma mestria com autoridade, causando o caos e a destrui- tico de um culto insiste em proclamar
que escreveu a sua obra-prima: A Guer- ção… os três sobreviventes como sinal do
ra dos Tronos. Apocalipse iminente. As crianças são
forçadas a esconder-se, mas até os seus
guardiões começam a questionar a sua
sobrevivência milagrosa…
SETEMBRO
AGOSTO
As Primeiras Quinze Vidas
Walking Dead - A Estrada de Harry August
de Woodbury de Claire North
de Robert Kirkman e Jay Bonansinga
Claire North é um pseudónimo da au-
O segundo volume da trilogia de Ro- tora britânica Catherine Webb que nos
bert Kirkman é lançado este verão e dá conta a história de Harry August que
continuidade à história de Philip Blake não consegue morrer. Não importa o ÚLTIMOS LANÇAMENTOS DA COLECÇÃO BANG!
num mundo devastado por uma praga que faça ou as decisões que tome, Har-
que colocou os mortos contra os vivos. ry regressa sempre ao início da sua vida. 219. Tigana - A Lâmina na Alma, vol. 1
Lilly Caul é uma sobrevivente que en- É uma criança com o conhecimento da Guy Gavriel Kay
vida que já viveu e está condenado a 220. Mago – A Serva do Império – Vol. 2
Raymond E. Feist & Janny Wurts
vivê-la várias vezes. Nunca nada muda 221. Divina por Escolha – Vol. 2
até ao momento em que se aproxima P.C. Cast
da sua décima primeira vida. Esta é a 222. Sedução ao Luar
história de Harry e como ele tentou sal- Laurell K. Hamilton
var um passado que não podia alterar e 223. Cultos Inomináveis
um futuro que não podia permitir que Robert E. Howard
224. Tigana – A Voz da Vingança – Vol. 2
acontecesse…
Guy Gavriel Kay
225. A Esposa Minúscula
Andrew Kaufman
226. Revelada
P.C. Cast + Kristin Cast
OUTUBRO 227. Acácia – A União Sagrada
David Anthony Durham
228. Mistborn – Império Final
Brandon Sanderson
Os Três
de Sarah Lotz

Quando quatro aviões se despenham


em simultâneo em continentes diferen-
tes, o pânico alastra-se. A investigação
contra refúgio na cidade de Woodbury. não consegue descobrir nenhuma rela-
Dominada por um homem conhecido ção entre as tragédias, excepto o facto

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BANG! /// 7
enciclopédia
da estória
universal
por Afonso Cruz

Dois Verbetes à Volta do Mar


Fogueira para condenar a alma e salvar o corpo afinal isso acontecia naturalmente, tal como também somos
capazes de andar ao mesmo tempo que comemos, ouvimos
música e coçamos a cabeça.
Quando o Berenice naufragou, um dos seus passageiros,
Konrad Möller, foi parar a uma ilhota agarrado a um pedaço O monge Jesus Moreno e Mursalina viveram ambos na pri-
de madeira que o ajudou a manter-se à superfície. O mar le- meira metade do século XIX, muito antes das revelações
vou também para a praia, além de escombros sem qualquer recebidas por Möller, que aconteceram na década de 1940.
utilidade, uma arca que continha um volume de cadernos de As três consciências formavam um tapete, de linhas entrela-
actas, uns frascos de tinta e umas canetas. Konrad Möller foi çadas. Sonhavam os sonhos uns dos outros. Tentei coligir o
tendo, durante o período em que viveu na ilhota, revelações máximo de informação que pude sobre estas pessoas e, com
místicas, talvez devido à falta de alimento ou mesmo, a hipó- relativo sucesso, pude reconstituir uma boa parte da vida de
tese não deverá ser descurada, ao consumo inadvertido de Jesus Moreno, bem como de Mursalina. Porque estes dois
uma qualquer planta tóxica que lhe provocasse o estado alu- foram contemporâneos, chegaram a conhecer-se pessoal-
cinatório. Independentemente da causa, os cadernos de actas mente e, mais tarde, a casar. Moreno viajou para Singapura
foram sendo preenchidos com as suas visões do Céu e do em Setembro de 1823, numa viagem diplomática. Não sei
Inferno. Möller recebia as mensagens de duas entidades, que, em que circunstâncias conheceu Mursalina, mas abandonou
mais tarde viria a saber, tiveram existência real. O caso tem os votos e a Igreja, casando-se com ela dois anos depois,
estranhos contornos, começando pelos portadores das reve- em 1825. Os poucos documentos que possuo sobre este
lações, um monge mexicano chamado Jesus Moreno e uma casal limitam-se a uma dezena de cartas. Nesta troca de cor-
nativa de Singapura, filha do geógrafo do sultão, chamada respondência, ambos referem que sonhavam os mesmos
Mursalina. sonhos e que, para além disso, tinham consciência de uma
terceira voz que os habitava, de um homem no meio do
A descrição de Konrad Möller é elucidativa: No dia seguinte mar. Esta terceira voz é referida, nestas epístolas, como uma
ao naufrágio, acordei na areia com a estranha certeza de ser revelação, como se de um anjo se tratasse. Inversamente,
uma mulher e dois homens. A sensação era luminosa, apesar era às outras duas vozes, que Konrad Möller atribuía uma
de bizarra, pois eu julgava não ser possível viver a consciên- sabedoria celestial.
cia de três (a contar comigo) pessoas ao mesmo tempo. Mas

8 /// BANG!
Numa madrugada fria de 1947, depois de uma noite de tem-
pestade, Möller viu um barco ao largo da ilha onde naufra-
gara. Tentou fazer uma fogueira, mas a madeira estava com-
pletamente ensopada. No seu desespero percebeu uma coisa
muito simples: ou ficaria na ilha, com os seus cadernos de ac-
tas e com a remota possibilidade de um dia ser resgatado, ou
fazia uma fogueira queimando todas as revelações recebidas
ao longo de meses e que, para ele, significavam não apenas a
salvação da sua alma, mas também da própria humanidade,
podendo assim retornar à civilização e à vida que sempre co-
nhecera. A última hipótese, mais egoísta, foi a que prevaleceu.
O resto da sua vida foi passada a tentar recuperar tudo o que
ardera, mas a memória daqueles meses de actividade visioná-
ria tinha simplesmente desaparecido.
(Nicolas Marina, Sobre Náufragos)

Pérolas

Os devotos do pir Gola eram, depois de mortos, atirados ao


mar. Passado um tempo, puxavam os corpos do fundo do
Índico e verificavam as barbas, barbas essas que, por regra,
nunca cortavam. Alguns tinham ostras agarradas, presas no
meio dos pêlos. Esses eram separados dos outros. As ostras
eram abertas e comidas numa refeição ritual, comunitária,
uma celebração partilhada por devotos de todo o mundo que
se deslocavam ao sul do Irão para o evento. Se, em alguma
das ostras houvesse uma pérola, o dervixe que a recolhera
com as suas barbas passaria a ser considerado um verdadeiro
adepto e um justo. Quando as pérolas perfizessem, ao longo
dos séculos, o número dos nomes de Deus, ou seja noventa e
nove, o líder da tariqa faria com elas um colar para a vinda do
último Imã e o mundo encontraria a paz. Até à data, foram
recolhidas quatro pérolas.

É autor dos livros Enciclopédia da Estória Universal


(Quetzal, 2009), A Carne de Deus (Bertrand, 2008)
e Os Livros Que Devoraram o Meu Pai (Caminho, 2010
- Prémio Literário Maria Rosa Colaço). Recentemente
publicou A Boneca de Kokoschka (2010), O Pintor
Debaixo do Lava-Loiças (2011) e O Livro do Ano (2013).
Além de escrever, também é ilustrador, cineasta e
músico (compõe e toca na banda de blues/roots The
Soaked Lamb).
Vive no campo e tem dois filhos.
http://afonso-cruz.blogspot.com
http://soakedlamb.com

BANG! /// 9
sonar
literário
Começos inescapáveis
para leitores fugazes
por Eric Novello

V
ejo com frequência nas redes sociais um tipo (The Dresden Files está em seu 15º livro) têm um ponto de
específico que denomino o abandonador de partida. Um momento em que leitor e personagem ainda são
séries. Basta que alguém comente de algum se- desconhecidos indo para o seu encontro às escuras.
riado televisivo e lá está ele a dizer que não o Manuais de escrita costumam dedicar algumas páginas à es-
assiste desde a segunda temporada, visionário truturação dos inícios. Wonderbook, do Jeff Vandermeer, diz
que a abandonou primeiro. Caso goste da série e persista, ser importante que o leitor entenda o que virá pela frente a
geralmente pontua o momento em que tomou a decisão: só partir das páginas iniciais. Não necessariamente uma etiqueta
fui convencido no sexto episódio, aos vinte e sete minutos, de gênero literário, mas ao menos uma indicação dos elemen-
quando o roteiro ganhou mais ritmo. E outras coisas que tais. tos que formarão a história. Um policial com elementos de
É claro que nenhum de nós tem a obrigação de gostar de fantasia? Uma fantasia com viés de investigação? Uma his-
nada. Muito menos de acompanhar o que não gostamos. O tória de crimes em um mundo fantástico, mas que terá uma
desapego é um direito inato de todo espectador, e também de abordagem filosófica sobre a vida e a morte?
todo leitor, seja por questão de ego a ser acariciado, de déficit Particularmente, me atrai a possibilidade de ser surpreendido.
de atenção, concorrência pesada ou algo que vivemos a nos Gosto de ir a shows de artistas dos quais conheço poucas
esquecer: simples gosto pessoal. músicas, quiçá nenhuma. Gosto de ver filmes sem ler críticas
Curiosamente, nessa época de leitores fugazes, vemos séries e sinopses. Gosto de começar histórias sabendo o mínimo
de fantasia e ficção-científica ganharem fôlego diante de li- possível sobre elas. Contudo, como criador, entendo a pre-
vros únicos e autocontidos. A explicação, talvez, esteja no ocupação com os inícios, com o primeiro contato. Um livro
convencimento. Ao repetir a ambientação e parte dos per- largado é muito mais do que um leitor a menos.
sonagens de um livro anterior, não é Atento a esta questão dos começos, peguei na es-
preciso convencer novamente o leitor tante alguns livros que me agradam para relembrar
de que aquele mundo vale a pena. Es- seus parágrafos iniciais. Será que eles seriam capa-
tão ali nomes, dramas, temperamen- zes de fisgar esse leitor fugaz sempre disposto ao
tos já conhecidos, há a sensação de abandono?
familiaridade. No que diz respeito a Conheci a ficção de Haruki Murakami com
séries televisivas, um dos maiores mo- “Sputnik, Meu Amor”. Na época, não sabia o
tivos de abandono é justamente a que- que esperar dele como autor, menos ainda da
bra dessa familiaridade. Por questões história. O livro começa desta forma: “Na pri-
de audiência, mudança de chefe, de mavera de seu vigésimo segundo ano, Sumire
roteirista, de equipe, os personagens apaixonou-se pela primeira vez. Um amor intenso,
param de agir conforme esperávamos, um verdadeiro tornado...” Creio que é clara a in-
a história para de seguir o caminho tenção do autor em dizer: esta é uma história de
que nos dava segurança. Mesmo com amor. Mais adiante no parágrafo, novas camadas
surpresas e reviravoltas, mortes e san- são acrescentadas: “A pessoa por quem Sumire se
guinolência, existe uma lógica com a apaixonou era, por acaso, dezessete anos mais ve-
qual gostamos de nos acostumar. lha do que ela. E casada. E, devo acrescentar, uma
Contudo, inclusive as séries longevas mulher.” Nossa história de amor passa, da primei-

10 /// BANG!
ra à décima linha, a ser uma de desencaixes. O que resume bem a proposta de “existen-
história de amor um pouco cialismo bizarro” da obra do Santiago.
menos convencional. Estou, de propósito, ignorando a mensagem de capas e ba-
Esta prática, comum no danas, os estágios anteriores de disputa pela atenção do leitor
que chamo de escola de potencial. Na literatura de gênero, o mais comum é que as
best-sellers, a necessidade de capas gritem para o leitor “veja-me, um livro de fantasia”, ou
agarrar o leitor pela bada- seja lá qual for o gênero. Capas mais sutis, abstratas, artísticas,
na numa batalha de vida ou dependem da decisão do editor e do departamento de ma-
morte, não é tão frequente rketing, com alguma interferência do autor. Cada época, cada
em romances mais autorais. país, tem seu conjunto de códigos e referências visuais para
Mas há alguns bons exem- estabelecer um diálogo eficiente com o comprador. O texto,
plos a serem citados. porém, permanece.
Em O que deu para fazer em Encerrando a lista de exemplos, cito George R.R. Martin.
matéria de história de amor, de Econômico em seus momentos de fantasia, o autor abre o
Elvira Vigna, temos o se- primeiro livro da série Crónicas de Gelo e Fogo com garotos
guinte início: “Chega um fugindo de zumbis em uma terra congelada. Lá está o gêne-
cheiro de cigarro da mesa ro, declarado, mesmo que a fantasia venha a aparecer apenas
ao lado. Aspiro. Não fumo, nunca fumei. Se me pergunta- pontualmente no decorrer. Ao matar seu primeiro persona-
rem, não gosto de cigarro, não perguntam, já sabem. No gem importante, ele subverte a expectativa do leitor, e afirma
entanto, gosto. E podia parar por aqui. Porque é nisto que que ninguém estará seguro nas próximas páginas. É uma jo-
penso. Nessas histórias que parecem uma coisa e são outra.” gada de risco que talvez sacrifique alguns leitores. Mas os que
Deste trecho, sabemos que há uma ambientação contempo- comprarem o jogo, permanecerão fiéis até o fim. Ou até que
rânea, que nossa protagonista mente, e que nada é o que o autor, ainda dentro de sua lógica, explore novos limites de
parece, três elementos comuns da prosa da autora. E que violência e mortes inesperadas.
valem inclusive para o Se vivemos mesmo uma época de fugacidade, sermos since-
título, que tem mais a ros conosco e com nossos leitores é o mínimo que podemos
ver com a impossibi- oferecer. No fim das contas, Ubik também é uma história so-
lidade de se construir bre o modo como lidamos com o tempo. Sputnik, Meu Amor
uma narrativa sobre não se priva de momentos de fantasia em sua trama realista.
o amor do que de se O que deu para fazer em matéria de história de amor traz um flerte
viver uma história de intricado com estrutura narrativa, mas tem também um quê
amor em si. de mistério, de gênero, em seu final. O Prédio, o Tédio e o Menino
Philip K. Dick, um Cego acompanha adolescentes sobrevivendo aos estereótipos
dos meus autores fa- da idade, mas, quando quer, congela mares, evoca pinguins e
voritos, começa Ubik flerta com serial-killers.
também indo direto Todos esses autores tinham consciência de seu público. En-
ao ponto: “Às 3h30 tretanto, mesmo em um mercado voraz, não tiveram medo de
da madrugada de 5 firmar uma identidade e seguir seu próprio caminho.
de junho de 1992, o
maior telepata do Sis-
tema Sol sumiu do
mapa dos escritórios
da Runciter e Asso-
ciados em Nova York.
Os vidfones começaram a tocar. A organização Runciter
havia perdido demais a localização dos psis de Holli nos
últimos dois meses.” Antes de mais nada, sabemos que este
é um livro de ficção científica. Sobre a história, que ela é
ambientada em uma Nova York futurista, com personagens
de dons paranormais, e que alguém importante sumiu, o
que, quem sabe, será o motor da nossa história.
Em sua fase de romances juvenis, Santiago Nazarian lançou
O Prédio, o Tédio e o Menino Cego. Eu que estava acostumado
a seus livros voltados para o público adulto, por assim di-
zer, encontrei este primeiro parágrafo: “O menino emergiu Eric Novello é formado pelo Instituto Brasileiro de
do quarto como um inseto envenenado. Segurando-se nos Audiovisual. É autor, tradutor, compositor e copidesque.
móveis, nas paredes, apoiando-se no batente, chegou até a Já trabalhou com diversos nomes da nova geração da
sala tentando reconhecer o tempo e o espaço em que cami- literatura especulativa brasileira. Estreou na literatura
nhava, desequilibrava. O prédio estava inclinado.” Fora a re- em 2004, tendo publicado contos e romances. Seus
ferência pós-kafkiana, em que o inseto já vem envenenado, livros mais recentes são Neon Azul (2010), A Sombra
há a ideia de um protagonista jovem e de um mundo torto, no Sol (2012) e Exorcismos, Amores e Uma Dose de
inclinado aos desequilíbrios. Embora não saibamos nada da Blues (2014). O site do autor pode ser consultado em
história, sabemos do menino e da ambientação feita a partir http://ericnovello.com.br/

BANG! /// 11
metais
pesados
Reconhecimento
por Fernando Ribeiro

P
ara um leitor de narra a visita de um gigante alienígena, se nunca com continuidade. Daí que
Ficção Científi- oriundo do planeta Sirius ao nosso pla- ler os clássicos que não eram do esti-
ca, no seu sentido neta. Este gigante sábio e colossal em- lo porque ele não existia é tudo menos
mais lato mas tam- preende uma investigação aos nossos algo de previsível ou inútil. Estas obras
bém nas obras que costumes, certezas e avanços humanís- são a cola que une todos os universos.
encontraram a sua ticos e científicos, que permite ao autor Mesmo aqueles que, para nosso gáu-
razão de ser em satirizar todas estas coisas, quase como dio, apenas existem nas nossas cabeças.
leitores mais espe- se as visse de um ponto de vista cósmi-
cíficos, uma das melhores recompensas co, alheio à desventura egoísta e igno-
é reconhecer nos clássicos da Literatu- rante da raça humana. Os comentado-
ra que, apesar do seu tema, se conse- res não hesitaram em lhe chamar uma
guiram expandir e cravar na pedra do novela filosófica e quando finalmente
Tempo e do Conhecimento a sua im- o género de FC foi instituído e confir-
portância do estilo que une tantos e di- mado na Literatura Moderna, a viagem
ferentes entusiastas. espacial, os outros mundos, a visita do
alienígena, a comunicação com os ter-

S ão várias as obras e os autores que


encaixam nesta consagração: Shel-
ley, Bradbury, Verne, Orwell e sabê-los
ráqueos e as conclusões metafísicas do
Iluminista, tornaram-no numa espécie
de pioneiro involuntário do estilo e um
lidos e reconhecidos por muita gente, nome e, pelo menos, uma obra a juntar
uma massa crítica muito considerável, aos autores e obras ilustres previamen-
sem idades ou distinções; que, numa te citados.
primeira aproximação, não gostaria de
ter nada a ver com o folclore geek que
é uma demonstração extrema (e na mi-
nha opinião muito curiosa e dedicada)
N esta descoberta e reconhecimen-
to se encontra depositada muita
da vitalidade e força actual do género.
Fernando Ribeiro é vocalista e letrista da banda
Moonspell, com a qual já lançou vários discos, e
em 2009 participou no projecto Amália. Tem três
das muitas vertentes dos apreciadores Encontrar estas obras pela primeira vez livros de poesia publicados e, no universo love-
de FC que, normalmente, são discretos. é muito válido e essencial numa época craftiano, traduziu para português a biografia em
A sua imaginação e apetite pelo inusual, onde toda a informação está disponível; banda desenhada intitulada “Lovecraft”, assinou
no entanto, são vorazes, alimentam-se onde existem micro-autores, trabalhan- as introduções das antologias “Os Melhores contos
de chama. do micro-universos, lidos por poucos de H. P. Lovecraft” e participou nas antologias
mas que depressa apanham a onda da “As Sombras Sobre Lisboa” e “Contos de Terror

U m desses clássicos é o Micromegas


de Voltaire. A história é simples e
velocidade dos dias, para se tornarem
virais. Nem sempre com mérito, qua-
do Homem-Peixe”. Em 2011, publicou ficção na
colecção Mitos Urbanos da editora Gailivro.

12 /// BANG!
“Ele [Joseph Sheridan Le Fanu] ocupa sem dúvida a primeira
linha como escritor de histórias de fantasmas. É esse o meu
veredicto definitivo após ler todos os contos sobrenaturais a
que consegui ter acesso. Ninguém define o ambiente melhor
que ele, ninguém é mais hábil a referir cada pormenor relevante.
Montague R. James
Prólogo de Madam Crowl’s Ghost (1923)

N
o dia 28 de Agosto de 1814 nascia em Dublin Joseph Tho-
mas Sheridan Le Fanu, que viria a tornar-se num dos mais
importantes – se não mesmo o mais importante – dos au-
tores da literatura gótica e sobrenatural da sua época, com
grande influência em sucessivas gerações de escritores do
género, a partir da era vitoriana. A um certo esquecimento no meio século
que se seguiu à sua morte, sucedeu um renovar da apreciação da sua obra,
principalmente a partir de 1923, ano em que Montague R. James reuniu a
colecção de contos Madam Crowl’s Ghost and Other Stories. No ano em que
se comemora o seu segundo centenário, é apropriado recordar a sua figura.

BANG! /// 13
Joseph Sheridan Le Fanu estu- zou-se fundamentalmente pelas
dou Direito no Trinity College, suas histórias de mistério e de
em Dublin, se bem que, ao abri- terror. O seu estilo caracteri-
go da legislação irlandesa do seu za-se pela construção meticu-
tempo, lhe fosse permitido es- losa dos textos – que por vezes
tudar por si, sem assistir a aulas, adaptava e desenvolvia a partir
apresentando-se na universidade de peças publicadas anterior-
apenas para a realização de pro- mente – e pela concentração no
vas de exame. No entanto, nunca tom e no ambiente geral de cada
chegou a exercer uma profissão narrativa, abstendo-se da des-
jurídica, dedicando-se, em vez crição de cenas explicitamente
disso, ao jornalismo. Em 1838 chocantes, ao ponto de deixar
publicou no Dublin University por vezes por explicar aspectos
Magazine a sua primeira história importantes do enredo. De um
de fantasmas, intitulada “The modo geral, nas suas obras prin-
Ghost and the Bone-Setter”. cipais o sobrenatural não é mais
Casou em 1844 com Su- que sugerido, deixando espaço a
sanna Bennett e o uma interpretação “natural” dos
casal teve qua- factos. Por exemplo, no conto
tro filhos, Elea- “Green Tea”, só o protagonista
nor (nascida em vê um macaco demoníaco, que
1845), Emma poderia por isso existir apenas
(1846), Thomas na sua imaginação, enquanto
(1847) e Geor- em “The Familiar” uma coruja
ge (1854). fantasmagórica pode não pas-
A vida de Joseph sar de uma ave verdadeira, não 1
Sheridan Le Fanu nunca havendo testemunhas da morte
foi fácil, não só pela aparentemente sobrenatural do
precariedade das suas Capitão Barton.
condições económicas, À sua história “The Watcher”
mas também pelos proble- (publicada em 1847 no Dublin
mas de saúde de Susanna, que University Magazine) foi Monta-
padecia de crises de ansiedade gue R. James buscar a sua co-
e diversos sintomas neuróticos, nhecida receita para a compo-

J
oseph, filho de Thomas Philip Le Fanu e Emma vindo a falecer em 1858, na se- sição de uma história de terror
Lucretia Dobbin, nasceu no seio de uma famí- quência de um “ataque de histe- eficaz:
lia de origem huguenote, ancestralmente pro- ria”, nunca cabalmente explica-
veniente da Normandia, ligada às letras: a sua do. “Sejamos apresen-
avó Alicia Sheridan Le Fanu e o seu tio-avô Richard O autor trabalhou em vários tados aos actores de
Brinsley Sheridan foram dramaturgos com algum va- géneros distintos, mas notabili- uma maneira tranqui-
lor e uma sobrinha, Rhoda Broughton (1840-1920) la; vejamo-los no seu
viria a notabilizar-se como romancista, vindo a escre- dia-a-dia, sem serem
ver também algumas histórias de fantasmas (publica- perturbados por
das em 1873 num volume intitulado Tales for Christmas pressentimentos som-
Eve). brios, satisfeitos com
Embora tendo nascido em Dublin, com apenas o mundo à sua volta;
um ano de idade a família mudou-se para Phoenix neste ambiente calmo,
Park, junto à povoação de Chapelizod, em virtude de permitamos então
Thomas Philip Le Fanu, um pastor protestante aus- que a coisa ominosa
tero, ter sido nomeado capelão da Royal Hibernian espreite, ao princípio
Military School; em 1826, nova mudança, desta vez discretamente, depois
para Abington, no Condado de Limerick, no Sul da de forma mais insis-
Irlanda. tente, até
Os tempos de juventude de Joseph Sheridan Le ocu-
Fanu foram agitados pelos conflitos que na Irlanda
opunham os muitos católicos aos poucos mas domi-
nantes protestantes, nomeadamente durante as de-
sordens da Guerra da Décima, no início da década de
1830. Toda essa situação atribulada determi-
nou que a família tivesse de enfrentar sérias
dificuldades financeiras, ao ponto de se ver
forçada a vender a biblioteca de Thomas para
pagar algumas dívidas, após a morte dele.

14 /// BANG!
par o centro da ac- depois da meia-noite” sendo propriamente de tema sobrenatural, é uma his-
ção” (Henry James, “The Liar”, tória do tipo do mistério policial, mais precisamente
(M. R. James, Introdução à 1888). um precursor do género do “mistério do quarto fe-
antologia Ghosts and Marvels, chado”. Inclui muitas referências ao ocultismo e às
1924). Na verdade, tanto a novela gó- ideias do filósofo sueco Emanuel Swedenborg.
tica Spalatro: from the notes of Fra Em 1872, Le Fanu publica uma colecção de cinco
A “explicação natural” utiliza- Giacomo, novela gótica muito ao contos, em que aparece a figura do detective do oculto
da por Le Fanu é também salien- estilo de Ann Radcliffe, publi- Dr. Hesselius (precursor de outros detectives seme-
tada por James, quando prosse- cada anonimamente em 1843, lhantes, incluindo o famoso John Silence, criado por
gue: que envolve episódios de vam- Algernon Blackwood). Sob o título genérico In a Glass
pirismo e necrofilia (não sendo Darkly, o volume inclui algumas das mais importan-
“Não é descabido provavelmente coincidência que tes histórias do autor: para além de “The Room in
deixar por vezes uma a sua redacção tenha sucedido ao the Dragon Volant”, que não é de tema sobrenatu-
abertura para uma ex- falecimento de Catherine, irmã ral embora inclua o
plicação natural; digo mais velha do autor), como três assunto do enterro
eu, porém, que essa romances históricos publicados prematuro, tão caro
abertura deve ser es- entre 1845 e 1863 e dez roman- a Edgar Allan Poe,
treita ao ponto de não ces sensacionalistas “ingleses” encontramos “Gre-
ser verdadeiramente que apareceram entre 1864 e en Tea”, “The Fa-
praticável” 1872, caíram no esquecimento, miliar”, “Mr. Justice
(M. R. James, Introdução à se bem que os temas góticos ali Harbottle” (uma
antologia Ghosts and Marvels, surjam por vezes. nova versão do
1924). Os doze contos curtos reuni- conto anterior “An
dos em 1880 (mas escritos qua- Account of Some
De 1864 em diante, por im- tro décadas antes) sob o título Strange Distur-
posição do seu editor inglês, Le The Purcell Papers, na sua maioria bances in Aungier
Fanu publicou diversos roman- passados na Irlanda, incluem já Street”) e, acima de
ces “de tema inglês e passados vários de temática gótica e so- tudo, “Carmilla”.
nos tempos modernos”. Viria a brenatural, sendo de destacar O conto “Green
falecer em Dublin, no dia 7 de “A Strange Event in the Life Tea” é especialmen-
Fevereiro de 1873. Contava ape- of Schalken the Painter” (refor- te notável: é a his-
nas 58 anos. Na fase final da sua mulada em 1851 com o título tória de um clérigo
vida, foi afligido por terríveis pe- “Schalken the Painter”) e “Pas- atormentado por um símio (que só ele vê, depois de
sadelos, sinais de uma persona- sage in the Secret History of an beber grandes quantidades de chá verde), que acaba
lidade algo neurótica, que terão Irish Countess”, que é uma ver- por levá-lo ao suicídio. Em “The Familiar”, um co-
porventura influenciado algumas são preliminar do seu famoso ro- mandante de marinha é perseguido por um estranho
das suas mais negras criações. mance Uncle Silas, de 1864. anão e ouve vozes que lhe trazem acusações, enquan-
Este romance, ainda bem co- to “Mr. Justice Harbottle” conta a história do severo
nhecido nos nossos dias, não juiz Elijah Harbottle, condenado em sonhos por um

C
omo se disse acima, Jo- ser monstruoso.
seph Sheridan Le Fanu Outras colecções de contos incluem Chronicles of
é hoje principalmente Golden Friars (1871, três histórias), The Watcher and
conhecido pelos seus Other Weird Stories (1894) e Madam Crowl’s Ghost and
contos de terror, embora em Other Tales of Mystery (1923), as duas últimas publica-
vida tenha sido um romancis- das postumamente.
ta de grande êxito, ao ponto de De todas as histórias de Le Fanu, a mais conhecida
Henry James o referir num dos hoje em dia é provavelmente “Carmilla” (publicada
seus contos: pela primeira vez
em 1872, ou seja,
“Lá estava o habitual um quarto de século
romance do Sr. Le antes de Dracula, de
Fanu na mesa-de-ca- Bram Stoker), que
beceira: a leitura ideal gira em torno da fi-
para uma casa no gura do vampiro do
campo, para as sexo feminino Car-
horas milla e da sua jovem
vítima Laura, num
ambiente de sedu-
ção lésbica mi-
nuciosamente
descrita, quer
nos seus as-
pectos psi-

BANG! /// 15
cológicos mais finos, quer até de um ponto de vista físico. de membros de classes mais elevadas e aparentemente menos
Carmilla acaba por ser desmascarada pelo general Spielsdorf questionáveis na interpretação dos factos descritos.
como sendo a mesma que uma certa Millarca, responsável A importância de Joseph Sheridan Le Fanu não pode por-
pela morte da sua sobrinha; finalmente, tanto “Carmilla” tanto ser posta em causa – apesar da opinião bastante negati-
como “Millarca” acabam por ser reconhecidos como ana- va que S. T. Joshi tem das suas obras, que considera palavrosas
gramas do primeiro nome da Condessa Mircalla Karnstein. e pouco imaginativas. Montague R. James considerou-o como
A intervenção do Barão Vordenburg acaba por conduzir à seu mestre e inspirador, e certamente influenciou a obras das
destruição do terrível monstro, cujo cadáver é exumado sob irmãs Brontë. As pormenorizadas descrições de insanidade
autorização imperial. mental saídas da pena de Le Fanu prefiguram as histórias mo-
A influência de “Carmilla” na literatura de vampiros tem dernas de terror psicológico; foi também o primeiro a utili-
sido abundantemente discutida por diversos autores, que lhe zar a imagem aterrorizadora de uma mão desencarnada e a
encontram eco em obras tão separadas como The Turn of
the Screw, de Henry James, e Dracula, de Bram Stoker; em
particular, as figuras femininas em “Carmilla” têm sido
comparadas com a de Lucy em Dracula, sendo inegáveis
muitas semelhanças, enquanto o Barão Vordenburg tem
sido visto como desempenhando um papel inteiramente
paralelo ao do Dr. Abraham Van Helsing.
Mas foi sem dúvida o cinema que mais contribuiu para
popularizar este magnífico conto, a começar com o fa-
moso e importante Vampyr (1932), de Carl Dreyer, e pas-
sando por Et Mourir de Plaisir (1960), de Roger Vadim e
principalmente por The Vampire Lovers (Hammer, 1970),
de Roy Ward Baker, com Ingrid Pitt e Peter Cushing,
que daria lugar a dois outros filmes de 1971, Lust for a
Vampire e Twins of Evil formando a chamada “trilogia
Karnstein”, caracterizada pela associação entre o vampi-
rismo e as relações lésbicas.
Os temas utilizados por Le Fanu nas suas histórias
de terror enraízam-se obviamente na tradição da literatura aperfeiçoar a estruturação das suas histórias, construindo um
gótica, praticamente nascida em meados do século XVIII e crescendo de tensão que culmina num clímax extremamente
tendo como principais marcos as obras de Horace Walpole eficaz, mecanismo que haveria de ser amplamente desenvol-
(1717-1797) e Ann Radcliffe (1764-1823). No entanto, Jacque- vido e utilizado por outros autores. De Joseph Sheridan Le
line Simpson observa com pertinência a utilização de histó- Fanu disse E. F. Benson que produzia “página, por página,
rias populares transmitidas oralmente pelas gentes humildes uma percentagem muito mais elevada de terror que Edgar
de Chapelizod, revestidas porém da credibilidade que lhes é Allan Poe, que no entanto é muito mais lido”.
conferida por supostos documentos e narrativas da iniciativa

Nascido em Lisboa em 1951, casado, com duas filhas


e três netos. É professor universitário de Matemática
e tem múltiplos interesses, entre os quais a Malaco-
logia, sendo editor da revista electrónica “The Cone
Referências bibliográficas:
Collector” (www.theconecollector.com).
Crawford, Gary William, Rockhill, Jim, & Showers, Brian J., Reflections in a
Na área da literatura fantástica, especialmente da
Glass Darkly – Essays on J. Sheridan Le Fanu, Hippocampus Press, New York,
literatura de terror, para além de pertencer a diver-
U.S.A., 2011
sos clubes, é autor de diversos contos publicados
James, M. R., A Pleasing Terror, Ash-Tree Press, Ashcroft, British Columbia,
em revistas.
Canada, 2001
Joshi, S. T., Unutterable Horror – A History of Supernatural Fiction, Volume 1: Ashcroft, British Columbia, Canada, 2003
From Gilgamesh to the End of the Nineteenth Century, PS Publishing, Hornsea, Le Fanu, Joseph Sheridan, Mr. Justice Harbottle and Others, Ash-Tree Press,
England, 2012 Ashcroft, British Columbia, Canada, 2005
Joshi, S. T. & Dziemianowicz, Stefan (eds.), Supernatural Literature of the Lovecraft, H. P., The Annotated Supernatural Horror in Literature, edited by
World – na Encyclopedia, Greenwood Press, London, England, 2005 S. T. Joshi, Hippocampus Press, New York, U.S.A., second edition, 2012
Le Fanu, Joseph Sheridan, The Illustrated J. S. Le Fanu – Ghost Stories and O’Briain, Helen Conrad & Stevens, Julie Anne (eds.), The Ghost Story from
Tales of Mystery by a Master Victorian Storyteller, selected and introduced by the Middle Ages to the Twentieth Century, Four Courts Press, Dublin, Ireland,
Michael Cox, Equation, Thorsons Publishing Group, Wellingborough, 2010
England, 1988 Penzoldt, Peter, The Supernatural in Fiction, Humanities Press, New York,
Le Fanu, Joseph Sheridan, Shalken the Painter and Others, Ash-Tree Press, U.S.A., 1965
Ashcroft, British Columbia, Canada, 2002 Simpson, Jacqueline, “The Charm of Old Women’s Tales: Le Fanu’s Use
Le Fanu, Joseph Sheridan, The Haunted Baronet and Others, Ash-Tree Press, of Oral Tradition”, in The Green Book, Issue 1, The Swain River Press

16 /// BANG!
Q
uando ela entrou no corria os canais televisivos após o traba-
quarto com o seu ar- lho escolar terminado, um descanso que
senal já devidamente pensei que merecia. Ele falou comigo e
preparado e a escorrer descartou todas as suas armas em detri-
da voz já eu tinha dado mento de um simples olá ou abraço ou
voltas infinitas a todos beijo de boas-vindas. Hirto, de mãos nos
os males que me espe- bolsos, disse-me que esperava de mim
ravam, fazendo-me an- grandes coisas, um futuro do qual se po-
siar, pela milésima vez, dia orgulhar e espalhar palavra entre os comportamento de há dois meses. De há
por algo melhor. Algo melhor…do que amigos, regozijando na vida premedita- um ano. De há dez. Já não me lembrava
isto que via rodear-me. Ela entrou e cha- da de um outro ser. Proibiu-me de sair do começo.
gou-me como bem devia na sua mente, ao fim-de-semana e de ver mais televi- Havia sonhado com o atraso do tem-
alertando-me para a tarefa do lixo, para o são. Pôs-me no quarto a trabalhar. Ele po e com o galopar rompante do relógio.
jantar que cedo me esperaria, para o uso sabia tudo. Todos os dias odiando a minha existên-
que ela denominava de “excessivo e no- Saindo uma semana depois do suce- cia com a minha família, com os meus
civo” do computador e da leitura recre- dido, eles aguardavam a minha vinda supostos “amigos” e com o meu trilho
ativa, e tudo isto num sopro. Eu respirei dentro do bar noturno que com luzes escolar. Sonhava com uma vida que pen-
e ouvi. Por momentos não me pareceu e fumo abundante distanciava o meu sava que merecia, que qualquer pessoa
ter respirado, havia ganho a sensação de apreço e conforto com grande afirma- merecia, de alguma felicidade evidente
que me tinha perdido no meio de um ção. Ao chegar perto da entrada, ainda que pudesse surgir no quotidiano das
outro mundo, nos meandros do meu de- antes de caminhar para o interior, desejei suas vidas. Na minha não era assim. Não
sejo sobre-humano de desligar-me. Mas pelo fim da noite. Ansiei por uma força o sentia. Percorria os dias sonhando e
estava vivo, ou posto de outra maneira, que impedisse o avanço do meu seguin- pensando e perdido noutras dimensões
sobrevivera. Respirara. Antes de fechar te passo. Tal como fizera antes, com o paralelas, em fantasias de criança, de
a porta e se ausentar por completo, a meu pai. Tal como antes, com a minha jovem escravizado e torturado pelas vi-
minha mãe virou-se em última instância mãe. Exatamente o cissitudes da sua existência que não lhe
para mim e disse-me que não fa- haviam apontado para lado nenhum,
zia nada durante o dia intei- apenas por um caminho que aparenta-
ro. Ela sabia tudo. va ter esquecido a sua conceção e
Antes de ele se dirigir perdido o seu rumo.
com o seu andar trôpego Jantava com os meus pais.
e confiante até à sala de Eles nunca sorriam entre si, e fa-
estar já tinha eu ponderado lavam exclusivamente para mim.
sobre as amarguras daquele As palavras eram diferentes mas
dia e de dias vindouros, de o seu conteúdo igual; todas as
problemas cada vez mais frases e entoações ladeadas com
próximos e de épocas melan- a constante amargura que perme-
cólicas a trincarem a esperança ava todas as nossas interações. Devia
frágil aos meus calcanhares. Eu per- passar mais tempo a ajudá-los nas lidas

BANG! /// 17
exagerada e detestável. De por vezes
abusos abertamente rece- chegando a
bidos e partilhados, expressar as
de drogas leves e suas próprias vi-
ilegais, de inú- sões do mun-
meras expres- do visto con-
sões sexuais, frontados
algumas até com per-
sendo con- guntas mais
cretizadas. complexas
Eu ouvi por parte
e per- dos profes-
maneci sores. Eles sa-
em silêncio. biam tudo. Os
Eles sabiam professores tam-
tudo. bém, transmitindo para
Com os olhos pos- nós as suas convicções e perce-
tos no meu calen- ções sociais. Eram os segundos
dário de quarto, pais em tempo extra. Tempo.
pensava no- Expandia-se vergonhosamente
vamente no quando saía da aula para o re-
tempo que os creio, onde continuava a ouvir
meus pais tão a azáfama de vozes ignorantes
preciosamente e egocêntricas. Pensei sistemati-
referiam como fa- camente nessa grande força no-
tor determinante na vamente, tentando manipulá-la, 1
minha formação geral. tentando cair nas suas boas gra-
Na transformação no ças e apelar à sua misericórdia.
modelo ideal. Teria que en- Mas não. Não avançava.
tregar um trabalho dali a três Dispondo o meu estado de es-
dias. Mais um que ia pregan- pírito dormente pelo sofá da sala
do fundo os pregos da mi- de estar a meio de uma melancó-
nha inércia. Eu olhava e per- lica tarde chuvosa, deambulava
manecia em silêncio, saben- pelos recantos subterrâneos da
do e esperando pela tal coisa minha mente longínqua procu-
da que ia destruir aquele momento rando refúgio, ou dito com mais
casa. em que pensava no tempo, em rigor e verosimilhança, hiber-
A es- que me esforçava com todas as nação. A mística impiedosa que
t u d a r. vontades do meu espírito para sempre encapsulava e prendia o
A largar fazer mexer os tais ponteiros ou foco das minhas neuroses per-
as saídas. a tal areia, mais depressa ou mais sistia com a sua ação. Desobe-
A esquecer os inusitados “li- devagar. decendo e desprezando todos os
vros de fantasia” que chamavam A minha disposição no seio do meus apelos. O meu pai alcan-
à ficção que lia. A ouvi-los eter- ambiente da minha turma, den- çou-me. Um homem de sucesso
namente e obedecer como bom tro da sala de aula, revelava-se empresarial, com todo o dinhei-
filho que deveria ser. Eu ouvia e cada vez mais ténue, ameaçando ro e tempo do mundo. Desper-
comia. Eles sabiam tudo. quebrar juntamente com as mi- tou-me para mais uma vez mer-
Dois amigos do bairro cami- nhas emoções até então equili- gulhar no que era o mundo para
nhavam comigo para as nos- bradas. Eu ouvia-os falar durante mim: um buraco negro que tudo
sas respetivas casas depois as aulas, sugava.
de uma noite, sorte ines- Tirado do conforto tempo-
perada e rara dada pelos rário da minha sala de estar, fui
meus pais depois de dois empurrado para a companhia
meses desde a última. descartável dos meus pais numa
Eles falavam-me de viagem até à casa de conhecidos,
divertimentos desco- adultos inseridos no círculo social
nhecidos, de mulhe- enojante ao qual os que cuidavam
res apetecíveis que de mim pertenciam. Um jantar
passaram por eles seguiu-se. Num silêncio quase
numa festa que, ensurdecedor, avistava-me cons-
ao ouvindo o seu tantemente no canto de qualquer
relato, me pare- divisão onde nos encontráva-
ceu claramente mos, intencionalmente cortando

18 /// BANG!
alguns segundos a sós
em casa, esqueci to-
das as infelicidades
futuras e olhei no-
vamente para o
relógio também
eletrónico da
sala. Olhei e
olhei, fixei
e fixei. Trin-
ta minutos
seguidos. Iria
obedecer. Te-
ria que obedecer.
o Eu queria mudan-
elo ça. Eu mataria
de ligação com todos os presen- por mudança.
tes. Os meus pais falavam. Os vi- Quando que-
zinhos falavam. No fim pergun- ria que abran-
taram por mim, inquirindo sobre dasse, ria-se
as minhas aptidões e aspirações de mim e cor-
futuras. Eles responderam por ria. Quando dese-
mim, estavam lá para isso. Nem java pelo contrário,
me havia esforçado. Contudo, virava-me as costas e
antes de darmos os últimos pas- andava sem qualquer
sos naquela casa de estranhos e mal em mente. Era isto
peculiares indivíduos, constatei que via como a única
que existiu um simples porme- escapatória. A transposi-
nor que me atraiu durante o se- ção de todos os meus
rão. Os marcadores do tempo sonhos para o mundo
do relógio eletrónico da sala de real. Olhei em silêncio e
estar. Os números expostos no continuei, ignorando toda a
pequeno visor. Não os larguei de comoção que se seguiu pela casa.
vista. A vontade ia-se tornando Todos os dias, contando com gua-
mais agressiva. Não conseguia aquele primeiro fim-de-semana, doras. O verda-
largar o tempo. Queria que me reservava alguns minutos para deiro mundo como deveria
obedecesse. Teria que me obede- olhar para o relógio. À noite, ser.
cer, não havia outra opção. pensava na sua figura e no tem- A minha mãe falava e gritava.
Cheguei a casa, depois do re- po. Em deuses do tempo, em O meu pai respondia e amea-
torno silencioso dentro do carro, universos paralelos sem obriga- çava deixar a casa. A constante
e olhei para o relógio que tínha- ções, sem restrições, sem com- euforia enraivecida embru-
mos na sala. Não sabendo todos panhias indesejadas ajustadas lhava cada dia num manto
os detalhes daquele súbito impul- a nós sem a nossa intervenção de negrura que levava à
so, conformei-me de qualquer na questão. Mundos nómadas, insanidade. As coisas
das maneiras. Neste caso, da ma- cheios de gente livre e que não pioravam. Na esco-
neira como queria que o tempo matava, nem magoava, nem la, desligava por
fizesse. Que me imitasse no meu ofendia, nem desprezava e nem completo. As
comportamento compulsivo. Os perturbava. O silêncio assumido notas des-
meus pais alertaram-me para as e propagado. Uma paz angélica e ciam. As
horas de dormir. Não tive muito eterna. Céus azuis e limpos. Sóis zangas
tempo; novamente troçava. Mas que abraçavam a alma. pro-
sabia que vinha aí o fim-de-se- Chuvas apazi- longa-
mana. Sabia que vinham aí mais
discórdias e desarmonias escola-
res e familiares. Mais turbulência
na minha vida. Sem qualquer
vestígio de felicidade, por mais
efémera que pudesse ser, à vista
no horizonte. Sabia. Sabia que
por muito que me custasse ex-
plicar a anomalia que sentia, iria
executá-la.
No dia seguinte, conseguindo

BANG! /// 19
vam-se. Já raramente saía, por Pessoas. Pessoas paradas, tal como os números no relógio.
ordens superiores embora não Olhei novamente para este. Nada mudava.
só. Também eu negligenciava o Tudo mudara. Deslocava-me agora pelas ruas do meu bair-
contacto com outros. A minha ro impossibilitado de descrever os acontecimentos e os factos
companhia era agora melhor que comprovava ao encontrar-me com os habitantes petri-
redirecionada para o tempo. ficados na calçada, à beira de prédios, no meio da estrada e
Tempo no seu conceito puro. A sentados em esplanadas. Todo o mundo congelado. Morri de
sala de estar. Os olhares fixos e terror. Quase tombei no chão. Procurei os meus pais mas de
concentrados, como nunca an- nada resultou. O meu pai estava bem longe, e a minha mãe
tes me concentrara na vida. O simplesmente não consegui localizá-la. Cheguei a encontrar
caos desenrolava-se a meu re- alguns “amigos” meus, dois juntos a andar pela rua. Um deles
dor, e na minha mente, criando tinha um pé no ar, flutuando, preparado para no próximo se-
imagens de milhares de bombas gundo cair no chão e resumir o andamento próprio e natural.
atómicas a dizimar cidades in- O outro ficara no meio de um sorriso, com uma expressão
teiras que simbolizavam a pe- facial que hesitei em inspecionar vagarosamente pois assusta-
quena e ínfima esperança que va-me de uma maneira peculiar. Corri pelas ruas. Vi pessoas
ainda sobrevivia nos escom- que conhecia de cara, com linhas de café coladas à atmosfera
bros do meu ser. Cedo iremos esperando mergulhar na chávena que lhes esperava na mesa
quebrar todos. Tudo irá ruir. O do bar, ou ficando com os braços infinitamente hirtos abrin-
tempo é a única coisa que me do o jornal do dia. Depois de um bom bocado reagindo sem
poderá salvar. O dia passou. A controlo ao meu primeiro contacto desenfreado e irracional
minha face acabou negra. Os ao que de facto era inexplicável, parei e pensei. Eu causara
meus pais dormiram juntos, e isto. O tempo por fim obedecera. Eu parei tudo. O mundo
ouvi gemidos deitado na minha parou por minha causa. Tudo, todos…parados. Menos eu.
cama, pensando nas impressões ele- Sozinho. Eu.
trónicas dos números no relógio da sala. Ao voltar para casa levei o meu corpo e espírito debilitados
Ao nascer do sol seguinte o impulso permanecia forte, e a pelo choque ao sofá em desistência. Olhei à minha volta e
minha perseverança e determinação iguais. Os meus pais não julguei novamente o novo mundo onde me encontrava. Es-
entravam nas minhas preocupações. Parecia que lentamente tava sozinho, e estaria em qualquer local do globo. O silêncio
me divorciava do mundo que odiava e que me odiava, obceca- gigantesco e eterno ficaria agora comigo. As preocupações e
do inteiramente no que interessava. O relógio. Os números a as amarguras. O ódio e a melancolia. A infelicidade. Peguei no
mudar, um a um. Precisava que mudasse. Que tudo mudasse. comando ao meu lado no sofá e acendi a televisão. A estática
Que o tempo mudasse. cobria o ecrã. Nada aparecia. Eu sorri, contente e satisfeito.
Senti um esticão no meu braço. Um tique nervoso, contudo
este, ao senti-lo, havia dado a sensação de ser mais espontâ-
neo e fulgurante. Um espasmo nervoso. Algo que me incutiu
de uma premonição terrível e assombrante. Foi apenas no
momento desse aparente espasmo que perdi o foco do reló-
gio, quase passadas três horas seguidas de concentração feroz.
Estava sozinho em casa, com o meu pai ainda a trabalhar e a
minha mãe momentaneamente ausente. Regressei ao relógio
com a determinação ainda de pé. Os números apagaram-se.
Achei demasiado insólito, levando-me a sair do sofá para exa-
minar o relógio que parecia ter-se desligado sozinho. Dei-lhe
um toque com a mão aberta para o acordar. Ele acordou. Os
números apareceram novamente. Ao vislumbrar o tempo
do dia algo petrificou por aqueles breves momentos o meu
olhar. As horas mostravam-se, contudo, efetuando o mes-
mo espasmo que antes havia sentido no meu braço durante
pouco mais de três segundos. O últi-
mo dígito correspondente aos se-
gundos no relógio reproduzia Rui Miguel Rodrigues Alves
espasmos constantes, avan- Mora em Bobadela, concelho de Loures.
çando e recuando, caindo Tem 18 anos e o 12º ano de escolaridade.
sempre no mesmo nú- É estudante no Instituto Politécnico de Setúbal e
mero. Os outros dígitos Escola Superior de Educação no curso de Comunicação
revelavam-se inalterados Social. Completou um curso de Escrita de Humor de
e parados. Recuei alguns quatro sessões na formadora Escrever Escrever, em
passos ainda debruçado Lisboa. Frequentou a escola de música Notas e Sons
perante a descoberta. em Sacavém durante três anos.
Vagueei pela sala. Olhei Ocupa os seus tempos livres tocando guitarra, lendo
pela janela para a rua. e escrevendo.
Nada. Não. Algures, no fundo.

20 /// BANG!
por
joão
lameiras

“Percorrendo
a branca imensidão
de um inverno eterno e gelado de uma
ponta à outra do planeta, roda um comboio que nunca
pára. É o trespassa-neve das mil e uma carruagens.
É o último bastião da civilização!”
ssim começa Le Transperceneige, nova revista, com uma história a preto ticipou escrevendo a meias com Gotlib

A a Banda-Desenhada de culto
de Jacques Lob e Jean-Marc
Rochette que, mais de 30 anos
após a sua publicação original,
conhece uma segunda vida graças ao
cineasta coreano Bong Joon-Ho que a
usou como ponto de partida do seu fil-
e branco, de grande fôlego, na linha do
conceito do romance em BD que a re-
vista ajudou a lançar.
Primeiro (e até agora, único) argumen-
tista a vencer o Grande Prémio de An-
goulême, Jacques Lob era um talentoso
e prolífico escritor, com colaborações
alguns episódios de Superdupont.
Infelizmente, a colaboração dos dois
autores em Le Transperceneige seria rapi-
damente interrompida pela morte de
Alexis, aos 31 anos, devido à ruptura de
um aneurisma, quando apenas tinha de-
senhado 16 páginas da história, páginas
me Snowpiercer. com alguns dos maiores desenhadores essas que nunca veriam a luz do dia.
Publicado originalmente em 1982 franco-belgas, como Pichard (Blanche Passado o choque causado pelo brutal
na revista (A Suivre) a partir do n.º 57, Epiphanie), Druillet (Delírius), Baudoin desaparecimento do jovem e talentoso
o percurso do Transperceneige ini- (Carla) e Jijé (Jerry Spring), entre outros, desenhador, tanto o argumentista como
ciou-se 5 anos antes, em 1977, quando no seu currículo e que para Le Transper- o editor acharam que a história de Le
Jean-Paul Mougin, o carismático che- ceneige decidiu trabalhar com Alexis, um Transperceneige não devia terminar aqui
fe de redacção, convidou Lob a estar dos principais desenhadores da revista e começaram as buscas para encontrar
presente desde o primeiro número da Fluide Glacial, na qual Lob também par- um novo desenhador. Entre os dese-

BANG! /// 21
nhadores convida- Gelo, a história de Le mente instalados nas carruagens
dos a realizar duas Transperceneige reflec- da frente e o povo amontoado
páginas de teste te as angústias com o sem quaisquer condições nas car-
estavam Michel futuro do planeta que ruagens da retaguarda.
Rouge (que haveria a Guerra Fria ajudou Gerindo o espaço fechado e
de substituir Her- a alimentar e que está claustrofóbico do comboio, em
mann em Comanche patente em muita fic- contraste com a imensidão gela-
e William Vance ção da época, seja em da que o envolve, Lob cria uma
em Marshall Blueber- BDs como Simon Du história de amor trágica entre
ry), Regis Loisel (o Fleuve, de Auclair, ou Je- Prolof e Adeline, dois passagei-
desenhador de La remiah de Hermann, ou ros de classes sociais diferentes,
Quête de L’Oiseau du em filmes como a série ambientada num futuro distó-
Temps e Peter Pan) e Mad Max, de Geor- pico, que esteticamente remete
François Schuiten, ge Miller. Há também para o regime soviético, sendo
então com apenas uma dimensão política provável que o Transiberiano,
20 anos. Curio- bem evidente, na es- onde a companheira de Lob via-
samente, apesar tratificação social que jou, tenha servido de inspiração
do extraordinário impera no comboio, para o Transperceneige. Conce-
talento gráfico de com os ricos luxuosa- bido como uma história fechada,
Schuiten e das suas
afinidades com os comboios, evidentes em livros
como Le Rail, ou no mais recente 12 La Douce, a
verdade é que as páginas apresentadas pelo cria-
dor da série As Cidades Obscuras não convenceram
Lob e os leitores perderam assim a oportunidade
de lerem essa história desenhada por Schuiten. 1
O desenhador escolhido para suceder a Alexis
seria finalmente Jean-Marc Rochette, um jovem
desenhador de 21 anos que começava a dar nas
vistas com a série Edmond Le Cochon, escrita por
Martin Veyron, que os leitores portugueses mais
atentos puderam ler nos finais dos anos 80 nas
páginas da saudosa revista brasileira Animal. Esta
série humorística, com animais antropomor-
fizados e influências de Robert Crumb, estava
longe de tornar evidente a escolha de Rochette
para ilustrar um drama sombrio e claustrofóbico
como Le Transperceneige, mas o futuro viria dar ra-
zão a Jacques Lob, e a colaboração entre os dois
criadores deu origem a uma das mais inesquecí-
veis séries publicadas na revista (A Suivre).
Ambientada num futuro pós-apocalíptico, em
que a Terra está assolada por uma nova Idade do

como era regra na revista (A Sui-


vre), o Transperceneige foi recolhido
em álbum em 1984, com grande
sucesso crítico e comercial. Ape-
sar desse sucesso, a continua-
ção da história nunca esteve em
equação, até porque Rochette
decidiu trocar a BD pela pintura
e Jacques Lob morreria em 1990,
vítima de cancro.
Só que Rochette, entretanto re-
gressado à BD, tinha vontade de
voltar ao universo do Transper-
ceneige e em 1998 convenceu o
escritor Benjamin Legrand, vin-
do do cinema, mas que já tinha
mostrado o seu talento para a BD
ao assinar o argumento de Tueur

22 /// BANG!
que fechasse este segundo ci- as filmagens de The Host e que, mal o leu,
clo. soube que estava ali o seu próximo projec-
to cinematográfico. A descoberta da BD
por Bong Joon-Ho foi ainda mais inespera-
o início do século XXI da, porque o livro oficialmente nem sequer

N parecia que esta série mí-


tica tinha caído finalmen-
te no esquecimento, até que,
tinha edição coreana (a editora coreana ti-
nha contactado a Casterman para adquirir
os direitos para a Coreia do Sul, mas como
já em 2005, curiosamente no a editora francesa nunca lhes respondeu,
mesmo dia em que recebeu decidiram publicar o livro mesmo assim...).
um mail da editora a avisar Embora tenha adquirido os direitos do
que as sobras dos livros iam livro em 2005, Bong Joon-Ho só começou
ser destruídas, Rochette rece- a trabalhar verdadeiramente no filme em
be também um telefonema do 2010, começando por se ocupar do argu-
editor a contar-lhe que havia mento. Um argumento que, mais do que
alguém na Coreia interessa- adaptar directamente os livros, retém o ce-
do em adquirir os direitos do nário e a ideia da personagem que atraves-
Transperceneige para o levar ao sa o comboio, para além de um ou outro
cinema. Esse alguém era o re- pormenor, como o engenheiro aprisionado
alizador Bon Joon-Ho, fã de numa gaveta como se estivesse na morgue,
Banda-Desenhada, que des- ou o passageiro de uma das últimas carrua-
cobriu o livro numa livraria de gens que, como prenda de anos, pede para
Seul, quando estava a preparar ser deixado sozinho na sua carruagem por
de Cafards, para Tardi, a acom-
panhá-lo nesta nova viagem. A
missão de Legrand não era fácil,
pois a história original não dava
azo a continuações, até que Le-
grand se lembrou de inventar um
segundo comboio, ainda maior,
que percorria os mesmos carris,
sem notícias sobre o destino do
Transperceneige original, com
quem se arriscava a chocar. Este
segundo ciclo deu origem a dois
álbuns, L’Arpenteur e La Traversée,
publicados em 1999 e 2000, cuja
carreira comercial acabou por ser
prejudicada pelo fim da revista
(A Suivre) e pela crise que à época
afectava a editora Casterman, in-
viabilizando a ideia de Rochette e
Legrand de um terceiro volume

alguns minutos. Esses elementos


das BDs são usados como pon-
to de partida para uma história
original, com novas personagens,
como Curtis, o protagonista do
filme, que inicia a revolta que lhe
permitirá percorrer o comboio e
confrontar Wilford, o inventor do
Snowpiercer, que vive recluso na
carruagem da frente. Um percurso
que não pode deixar de evocar o
do personagem de Martin Sheen
no filme Apocalipse Now, que sobe
o rio para enfrentar o Coronel
Kurtz, como Curtis percorre o
comboio para chegar a Wilford,
comparação que o próprio realiza-
dor não renega.
Produzido por Park Chan-Wook,

BANG! /// 23
o realizador de Oldboy, o filme com um orçamento considerável
(para os padrões coreanos) de 40 milhões de dólares, reúne um sur-
preendente elenco internacional, com destaque para Tilda Swinton,
John Hurt, Ed Harris, Jamie Bell e Chris Evans, o Capitão América
que, para grande espanto de Bong Joon-Ho apresentou-se no cas-
ting por sua própria iniciativa, decidido a lutar pelo papel principal,
que desempenha de forma muito convincente. Visualmente espec-
tacular, com cenas de acção viscerais, extraordinariamente core-
ografadas (pensem na célebre cena do martelo e do corredor em
Oldboy, elevada à quinta potência) e uma história cativante e muito
bem contada, Snowpiercer conheceu um êxito estrondoso na Coreia
do Sul e em França, onde estreou em 2013. Infelizmente, Har-
vey Weinstein, o produtor dos filmes de Quentin Tarantino, que
comprou os direitos de exibição de Snowpiercer para os mercados
de língua inglesa, pretendia impor cortes de mais de meia hora no
filme, contra a vontade do realizador, que sempre teve o “final cut”
das suas obras. Em consequência disso, a estreia de Snowpiercer no
mercado americano foi sendo sucessivamente adiada e, finalmente,
após muitas discussões, estreará nos Estados Unidos em Junho de
2014, sem cortes, mas numa distribuição limitada a um número
reduzido de salas de cinema.
Quanto a Portugal, ainda não há data de estreia conhecida, mas
existe uma excelente edição em DVD da Wild Side, pejada de
extras, que está disponível na Amazon francesa.
Para os autores da BD ainda vivos, para além da participação
no filme como figurantes e, no caso de Rochette, de emprestar as 1
mãos e o talento ao personagem que no filme desenha o dia-a-dia
do comboio, Snowpiercer permitiu a redescoberta do seu trabalho,
praticamente caído no esquecimento, por um público muito mais
alargado, até porque, graças ao filme, os livros tiveram finalmente
edição em língua inglesa.
Como refere Rochette: “O Transperceneige é neste momento a BD
francesa mais conhecida no mundo. O Tintin não é francês e o
Asterix vende sobretudo em França e na Alemanha, enquanto que
o Transperceneige está actualmente disponível em 167 países. É deli-
rante!”

João Lameiras é Mestre em História


da Arte pela Universidade de Coimbra.
Tem desenvolvido uma vasta actividade
no campo da Banda Desenhada,
como conselheiro editorial, tradutor,
argumentista e crítico para diversas
editoras e publicações e é sócio-gerente
da Livraria Dr. Kartoon. Escreve com
frequência no seu blogue
http://porumpunhadodeimagens.
blogspot.com

24 ///
24 /// BA
// BBANG!
ANGG!!
AN
No dia 22 de Janeiro de 1906 nascia,
na pequena localidade de Peaster,
no Norte do estado norte-americano
do Texas, aquele que muitos consideram
o pai das histórias de “espada e
feitiçaria”(1), que a partir
de meados do século XX se haveriam
de tornar extremamente populares,
continuando o género a merecer, ainda
nos nossos dias, a atenção de muitos
e conceituados autores.

F
ilho único do médico itinerante cresceu levou-o a aperceber-se, ainda de, a iniciar-se na escrita de histórias de
Dr. Isaac Mordecai Howard – em criança, da existência da maldade à aventuras, em que descrevia lutas e ba-
pioneiro da colonização do sudo- sua volta, com violência, o aumento da talhas envolvendo povos diversos como
este americano – e de Hester Jane criminalidade provocado pelo nascen- os Vikings ou os Árabes.
Ervin Howard, a criança recebeu te negócio do petróleo. Essa vivência A partir de 1919, a família mudou-se
o nome de baptismo de Robert: Robert com uma acentuada componente físi- para a localidade de Cross Plains, sem-
Ervin Howard. A sua obra literária foi ca trouxe-lhe, em particular um gosto pre no Texas, onde Robert Howard vi-
comentada nos termos mais elogiosos, pelos desportos, entre elas a luta livre, veria até ao fim dos seus dias. A cidade
entre muitos outros, por Howard P. Lo- a halterofilia e especialmente o boxe. haveria de desenvolver-se extraordina-
vecraft e por Stephen King. Acerca do Essa apetência pela actividade física riamente a partir do ano seguinte, de-
seu conto “Pigeons from Hell”, afirmou decerto terá contribuído para a criação vido à descoberta de petróleo nas suas
este último tratar-se de “uma das melho- de algumas das suas mais famosas per- imediações. Os efeitos deste súbito enri-
res histórias de terror do século”. sonagens, como o guerreiro bárbaro quecimento não se terão feito esperar e
Desde cedo o jovem Robert revelou Conan. impressionaram sobremaneira o jovem,
interesse pelos livros e por aprender, O gosto pela leitura e um talento inato o qual, anos mais tarde, numa carta es-
se bem que não apreciasse a disciplina para a escrita levaram o jovem Robert, crita a Howard P. Lovecraft, haveria de
da escola. O meio ambiente em que ainda antes de completar 10 anos de ida- recordar os jovens desse tempo que vira

BANG!
BBA ////
ANGG! //// 25
25
cair nas teias do crime, da droga, 1930, a sua experiên- conhecido por “sword and
da bebida e do jogo. cia nesse campo pode sorcery”. O protagonista de
Aos 16 anos, Robert foi com- encontrar-se nos seus “The Shadow Kingdom”
pletar os seus estudos secundários textos em prosa, que era o bárbaro Kull, ante-
na cidade vizinha de Brownwood, são vibrantes e utili- cessor de outras criações
onde continuou a desenvolver zam uma panóplia de mais famosas, como Co-
o seu gosto pela História e pela imagens poderosas. nan. A publicação desse
escrita e pela poesia, na compa- Ao mesmo tempo, conto representou um
nhia de colegas como Tevis Cly- um tanto frustrado momento de viragem na
de Smith e Truett Vinson. Foi pelos trabalhos que vida de Robert Howard,
precisamente no jornal do liceu conseguia encontrar que abandonou os empre-
de Brownwood, The Tattler, nesse e que lhe desagrada- gos que até aí tivera e os
ano de 1922, que Robert E. Ho- vam profundamente, cursos técnicos que fre-
ward publicou as suas primeiras envolveu-se mais no quentara, para se conver-
histórias, “Golden Hope’s Christ- mundo do boxe, ten- ter num escritor a tempo
mas” e “West is West”, ambas do combatido amiú- inteiro.
premiadas. Dois anos mais tarde, de. Anteriormente, em
em 1924, enquanto frequentava Em 1926, escreveu 1928, nascera outra das
em Brownwood um curso de es- a que viria a ser uma suas mais conhecidas per-
tenografia, vendeu a sua primeira das suas mais
história à famosa revista Weird Ta- importantes
les(2), que tinha sido fundada por J. histórias, “The
C. Henneberger no ano anterior. Shadow King-
Ao longo dos anos, Robert E. dom”, que viria
Howard haveria de converter-se a ser publicada
num dos mais importantes auto- na Weird Tales 1
res desta publicação. três anos mais
Entretanto, enquanto ganhava tarde. Nela o
algum dinheiro com diversas ocu- autor utilizou
pações menores, o jovem autor novos concei-
desenvolveu um grande interesse tos, juntando
pela poesia, escrevendo centenas elementos de
de poemas, muitos dos quais pu- fantasia e ter-
blicados também em Weird Tales, ror com ou-
outros em várias outras revistas tros oriundos
da especialidade. Esses poemas do romance de
tratavam da mesma temática que aventuras, da
os contos que escrevia, incluindo Mitologia e do
cenas de guerra e violência. Em- romance histó-
bora acabasse por se afastar da rico, criando assim o novo estilo sonagens, o espadachim puritano
poesia, sensivelmente a partir de que viria a ser universalmente Salomão Kane. Fazendo a sua

LIVROS DE ROBERT E. HOWARD

Conan Conan Conan


A Rainha da Costa Negra O Demónio de Ferro O Povo do Círculo Negro

266 ///
//// BBANG!
AANNG!
G!
primeira aparição em “Red Sha- de 1930, Robert E. universos ficcionais
dows”, conto publicado nesse Howard encetou uma de Lovecraft, incluin-
ano na Weird Tales, a personagem vasta correspondên- do “The Black Stone”
teve assinalável êxito, acabando cia com Howard P. (1931), “The Thing
por figurar em 7 histórias pu- Lovecraft, que haveria on the Roof ” (1932) e
blicadas na revista entre 1928 de se prolongar pelos “The Hoofed Thing”
e 1932. Curiosamente, como a últimos seis anos da (publicada em 1970).
publicação de “Red Shadows” sua curta vida, aca- Como é bem sabido,
acabou por preceder a de “The bando por integrar Lovecraft encorajava
Shadow Kingdom”, escrita an- o chamado “Círcu- frequentemente os
teriormente, acaba por ser aque- lo Lovecraft”. O já seus colegas e corres-
la a primeira história publicada veterano escritor de pondentes escritores a
no género “espada e feitiçaria”. Providence deu ao jo- utilizar e acrescentar a
Deve observar-se que se algumas vem Robert a alcunha mitologia que ele pró-
das aventuras de Salomão Kane de “Two-Gun Bob” prio ia construindo e
se passam na Europa (nomeada- e pô-lo em contacto a contribuição mais
mente na Inglaterra), várias ou- – como, de resto, era significativa de Ho-
tras são situadas em África, mol- seu hábito – com ou- ward nesse domínio
dada pela imaginação do autor e tros escritores como foi a introdução do
povoada pelo sobrenatural e pela Clark Ashton Smith, livro Unaussprechlichen
magia. August Derleth, etc. Kulten(3), da autoria de
Em 1929 surge também outra Da correspondência um certo Friedrich
das suas criações, desta vez em com Lovecraft desta- Wlhelm von Junzt(4),
histórias passadas no mundo do ca-se a atitude filosófi- e do poeta louco Justin
boxe: o marinheiro Steve Costi- ca de cada um quanto Geoffrey, este último,
gan. As suas aventuras foram pu- à oposição entre a bar- quem sabe se represen-
blicadas em revistas como Fight bárie e a civilização, tando vagamente o pró-
Stories e Action Stories. defendendo Lovecraft prio Robert.
A partir de 1930, para além de que a civilização era o Robert Howard escre-
diversas histórias de ambiente destino e finalidade úl- veu ainda alguns contos
celta, Robert Howard publicou tima da espécie huma- que parecem ter sido
várias histórias, consideradas en- na, enquanto Howard claramente influencia-
tre as suas melhores, na revista pensava, pelo contrá- dos pela obra de Arthur
Oriental Stories, fundada pelo fa- rio, que a barbárie é Machen(5), popularizada
moso Farnsworth Wright. Ali deu própria da condição na década de 1920, entre
largas ao seu gosto pela História humana e que prevale- eles “The Little People”
antiga, durante o curto período cerá sempre. (1928), “The Children
de vida da publicação, que termi- Nessa época, Ro- of the Night” (1931),
nou em 1934. bert E. Howard es- “Worms of the Earth”
Foi precisamente por intermé- creveu diversas his- (1932) e “People of the
dio de Wright que, em meados tórias inspiradas nos Dark” (1932).

Conan As Aventuras Fabulosas de Cultos


Para Lá do Rio Negro Salomão Kane Inomináveis

BANG!
BBA
ANG ////
NG! //// 277
No entanto, os efeitos devastadores deu ainda diversas histórias levemente Segundo L. Sprague de Camp, “Ho-
da Grande Depressão americana, inicia- eróticas à revista Spicy-Adventure Stories. ward era por natureza um contador de
da em 1929, viriam a afectar duramen- Robert E. Howard nunca casou e a histórias, cujas narrativas são inigualá-
te o escritor, não só devido ao encer- única relação mais ou menos profunda veis, no que se refere à acção vívida e
ramento de várias das revistas para as que se lhe conheceu foi com Novalyne absorvente”. Hoffman Reynolds reco-
quais escrevia, mas também pela perda Price, professora liceal e escritora. Mui- nheceu que a qualidade da sua escrita
das suas economias, em 1931, em virtu- to influenciado pela mãe, cujo estado de era “superior à de alguns best sellers”,
de da falência das instituições bancárias saúde o preocupava, Robert não con- enquanto Stephen King – que confessa-
em que as colocara. servou a ligação a Novalyne. A sua vida damente não nutre grande apreço pelas
Em 1932, durante uma viagem pelo foi-se complicando à medida que Hester histórias de “espada e feitiçaria” – afir-
Sul do Texas, Robert Howard inspi- Howard, que sofria de tuberculose, foi mou que “Howard ultrapassa as limita-
rou-se na paisagem ao seu redor para piorando, e o jovem começou a conce- ções do seu material […] pela força e fú-
imaginar a região fictícia da Ciméria, que ber o suicídio. Tendo redigido um tes- ria da sua escrita e pela sua imaginação,
alguns comentadores consideram re- tamento, dado instruções adequadas ao que era poderosa”.
flectir a ideia que o autor teria das Ilhas seu agente literário e pedido uma arma S. T. Joshi é consideravelmente mais
Britânicas, não tendo, por conseguinte, emprestada a um amigo, Robert Ervin moderado na sua apreciação global da
nada a ver com o povo cimério, que vi- Howard pôs termo à vida no dia 11 de obra de Robert E. Howard, especial-
veu a Norte do Cáucaso no segundo mi- Junho de 1936, com apenas trinta anos mente no que respeita ao seu enquadra-
lénio antes de Cristo. Nessa remota Ci- de idade. mento no campo da literatura sobrena-
méria, de clara inspiração celta, Howard Alto e entroncado, Robert Howard tural, considerando pouco conseguidas
colocou o que haveria de ser o seu mais surpreendia muitas vezes os que o en- as suas histórias inspiradas na obra de
célebre filho espiritual, o bárbaro Co- contravam e tinham dele uma ideia Lovecraft, mas reconhecendo clara-
nan, cujas aventuras decorrem na mítica completamente distinta, a partir da sua mente a importância do autor, em es-
Era Hiboriana, entre lutas, monstros e produção literária e poética. Possuía pecial no que toca ao ciclo de Conan.
feitiçaria. uma memória quase fotográfica, sendo Na verdade, com adaptações ao cinema
A primeira aparição de Conan – não capaz de decorar longos textos e poemas em 1982, 1984 e 2011(6), a influência de
contando com uma história que se com grande facilidade. Ao todo, produ- Conan o Bárbaro na cultura contempo-
pode considerar, até certo ponto, sua ziu mais de trezentas histórias (116 das rânea tem sido comparada à de ícones
precursora – registou-se no número de quais publicadas profissionalmente du- da estatura de Tarzan, Drácula, Sherlock
Dezembro de 1932 da revista Weird Ta- rante a sua vida, entre elas 49 em Weird Holmes ou James Bond.
les. Tratou-se de “The Phoenix on the Tales) e quinhentos poemas (dos quais A casa de Cross Plains onde o autor
Sword”. Até 1936, nada menos de 17 mais de setenta por cento foram publi- viveu é hoje o Museu Robert E. Ho-
histórias com as aventuras de Conan cados). Entre as influências que sofreu ward.
apareceram nas páginas da revista. ao longo da sua vida literária contam-se
Durante a década de 1930, Robert as narrativas que ouviu de veteranos da
Howard experimentou também o gé- Guerra Civil americana, as histórias da
nero policial – que não lhe agradou – e colonização do sudoeste americano e
também o “western”, a que se dedicou também as histórias de assombrações
com entusiasmo e êxito, publicando di- contadas por antigos escravos, especial-
versas histórias em revistas como Action mente a cozinheira Mary Bohannon.
Stories (que haveria de publicar em cada Não será pois de admirar que Robert
mês uma nova história com a persona- E. Howard utilize nos seus contos uma
gem Breckenridge Elkins, desde 1933 grande variedade de seres sobrenaturais, Nascido em Lisboa em 1951, casado, com duas filhas
até à morte do autor), Argosy a Cowboy onde se incluem lobisomens, vampiros e e três netos. É professor universitário de Matemática
Stories. No início de 1936, o autor ven- toda a gama de feiticeiros. e tem múltiplos interesses, entre os quais a Malaco-
logia, sendo editor da revista electrónica “The Cone
Collector” (www.theconecollector.com).
Na área da literatura fantástica, especialmente da
literatura de terror, para além de pertencer a diver-
sos clubes, é autor de diversos contos publicados
em revistas.

(1) Sword and sorcery, em inglês; o género é também designado por “fantasia heróica”. A expressão “sword and sorcery” foi, ao que parece, inven-
tada por Fritz Leiber, em resposta a uma pergunta de Michael Moorcock. As histórias de “espada e feitiçaria” têm as suas raízes profundas em
duas tradições fundamentais: a Mitologia (grega, romana, nórdica e árabe) e os chamados romances “de capa e espada” como os que foram
escritos por Sir Walter Scott, Alexandre Dumas (pai) e muitos outros.
(2) A primeira história de Robert E. Howard publicada na Weird Tales foi “Spear and Fang”, publicada no número de Julho de 1925.
(3) O livro foi citado pela primeira vez em 1931, nos contos “The Black Stone” e “The Children of the Night”.
(4) O apelido “von Junzt” foi criação de Robert Howard, enquanto os primeiros nomes “Friedrich Wilhelm” foram acrescentados por Lovecraft.
(5) A importância de Machen foi reconhecida por Lovecraft que, no seu ensaio “Supernatural Horror in Literature” o considerou como um
dos quatro mestres modernos da literatura do sobrenatural, sendo os outros três Algernon Blackwood, Lord Dunsany e Montague R. James.
(6) Nos filmes Conan the Barbarian (1982) e Conan the Destoyer (1984), o papel do bárbaro foi interpretado por Arnold Schwarzenegger, enquanto
em Conan the Barbarian (2011) o actor escolhido foi Jason Momoa.

288 ///
/// BBANG!
// AANNG!
G!
por Safaa Dib
BANG! /// 29
Q
uando no primeiro episódio da quarta
temporada, o rei Joffrey está a folhe-
ar um livro sobre os Comandantes da
Guarda Real, comenta perante Jaime
Lannister as quatro páginas dedicadas
a Sor Duncan, o Alto. “Ele deve ter
sido um grande homem”, diz ele. A
referência no episódio foi um piscar
de olhos curioso aos leitores das Cró-
nicas de Gelo e Fogo. Eles sabiam
que Sor Duncan é o cavaleiro pro-
tagonista nas prequelas escritas por
George R. R. Martin. Mas nessas
prequelas ele ainda não é o guerreiro
valoroso cujos feitos ocupam quatro páginas. Ainda é um jo-
vem órfão destituído, oriundo do Fundo das Pulgas de Por-
to Real, em busca de honra e glória num torneio de Westeros.
Até à data, George R. R. Martin publicou três histórias centradas
nas personagens de Dunk (Duncan) e Egg (Aegon) e nas suas aven-
turas, reunidas no livro Histórias dos Sete Reinos (com lançamento a
4 de Julho). Revelou que publicaria mais histórias, as que fossem
necessárias para contar a história deles do início ao fim. A próxima,
com o título provisório The She-Wolves of Winterfell, provavelmente 1
só será lançada após a publicação de Os Ventos do Inverno, o próximo
volume das Crónicas de Gelo e Fogo.

as histórias
A primeira
pri novela, O Ca-
valeir de Westeros, foi ini-
valeiro
cialm
cialmente publicada na
ant
antologia Legends editada
por Robert Silverberg e
a tradução
t portuguesa
foi publicada na colec-
tân
tânea O Cavaleiro de Wes-
tero
teros & Outras Histórias.
Um
Uma BD foi também
lan
lançada em Portugal
com adaptação de Ben
Av
Avery e arte de Mike S.
Mi
Miller.
N
Nela são apresenta-
da
das pela primeira vez as
pe
personagens de Dunk
eEEgg, cerca de noven-
ta anos antes do início
da Crónicas de Gelo
das
F
e Fogo. Sor Duncan é
um escude
escudeiro que testemunha
a morte do seu m mentor e cavaleiro no
início. Desejoso dde conquistar um nome para
si, decide partir para o torneio de Vaufreixo. No
caminho para o torneio, Dunk conhece um ra-
paz de nome Egg que se oferece para ser seu
escudeiro. Inicialmente recusa, mas o rapaz não
desiste e acaba por ir atrás dele. Consciente das
dicas valiosas que Egg lhe dá durante o torneio,

30 /// BANG!
aceita que o rapaz fique ao seu desenvolvimentos das Crónicas. O Cavaleiro Mistério e saiu na an-
serviço. A história decorre no Sor Dunk e Egg e chegam ao tologia Warriors, editada por Ge-
tempo do rei Daeron II Targa- feudo de Sor Eustace, um cava- orge R. R. Martin e Gardner Do-
ryen e conhecemos alguma da leiro idoso cuja glória sobrevive zois. Nela encontramos Dunk e
sua descendência: enquanto al- apenas na memória de feitos há Egg envolvidos em pleno na se-
guns príncipes Targaryen são muito realizados. Perante um gunda rebelião Blackfyre.
honrados e mostram grandeza feudo assolado pela seca, Dunk e Dunk e Egg conhecem um gru-
de carácter, outros resvalam para Egg envolvem-se numa disputa po de cavaleiros na estrada que
a loucura e crueldade. de território entre Sor Eustace e os convida a assistir ao casamen-
rneio, Dunk aca-
Durante o torneio, a Senhora Rohanne, mais conhe- to do Lorde Ambrose Butterwell
ba por se envolverolver a uma dama da casa Frey. Para
hos
em sérios sarilhos celebrar o casamento, haverá
com a nobreza e uma justa com um prémio de va-
é apenas salvo por lor incalculável: um ovo de dra-
intercessão de Egg gão. Tomada a decisão de irem
que revela a sua ao casamento, Dunk participa
verdadeira identi-nti- na justa enquanto Egg começa a
eiro:
dade ao cavaleiro: suspeitar de uma conspiração da
ele é o príncipe Ae- parte de alguns nobres que po-
gon Targaryen, neto derão não ser leais ao Trono de
do rei Daeron II. A Ferro…
princípio chocado do e
zangado por see ter
deixado enganarr tão
facilmente, Dunk
perce-
acaba por se aperce-
ber que o rapaz é um
amigo leal que nunca
urante
o abandona durante
des.
as suas vicissitudes.

A segunda novela,vela, A c i d a
ntada, já
Espada Ajuramentada, como a Viúva Verme-
publicada no formato banda-de- lha tal é o rasto que deixa de ma-
senhada em Portugal pela SDE, ridos e irmãos falecidos. Dunk
mas ainda inédita em prosa, sur- vê a sua lealdade perigosamente
giu pela primeira vez na antolo- testada ao
gia Legends II, editada por Robert deixar-se se-
Silverberg. A BD, à semelhança duzir pela
da primeira, teve também adap- beleza de
tação de Ben Avery e arte e Mike Rohanne,
S. Miller. Uma grande praga di- mas para evi-
zimou centenas nos Sete Reinos, tar o derrame
e entre as vítimas conta-se o rei de sangue
Daeron II. Foi sucedido por e a morte, Obra:
Aerys I Targaryen, mas a gover- tenta mediar Histórias dos
nação do reino estava, de facto, entre ambos Sete Reinos
nas mãos do seu tio e Mão do os lados que Autor: George
Rei, o Lorde Corvo de Sangue. parecem estar R. R. Martin
No início, são contados em deta- condenados à Género: Fantasia
lhe os eventos da primeira rebe- guerra. Épica
lião Blackfyre em que Targaryen Editora: Saída de
lutaram contra Targaryen. Há Emergência
quem acredite que o destaque A terceira no-
Tradução: Jorge
que George R. R. Martin dá às vela, uma es-
Candeias
rebeliões Blackfyre nas preque- treia absoluta
las pode conter algumas pistas em Portugal, Páginas: 336
importantes sobre os próximos recebeu o título PVP: 16,96€
ISBN: 978-989-637-642-0

BANG! /// 31
As ligações
às Crónicas de Gelo e Fogo
O texto abaixo contém SPOILERS e deve ser lido apenas pelos
leitores que já leram os 10 volumes das Crónicas de Gelo e Fogo

Há inúmeras
inú ligações entre o passado e pre- viria a tornar-se o senhor da casa Frey e um
sente, como não poderia deixar de ser. Muitas protagonista de grande relevo nas Crónicas.
das personagens
pe que Dunk e Egg encontram
pelo caminho
c são os antepassados dos nobres Brynden Rivers, mais conhecido por Corvo de
que su
surgem nas Crónicas. O próprio Meistre Sangue, é uma figura de poder e influência em
Aemon da Patrulha da Noite é irmão de Egg O Cavaleiro Mistério e a sua fama de feiticeiro era
e Aem
Aemon relembra-o várias vezes em conversa conhecida nos Sete Reinos. Descobre-se em Os
com Jo
Jon Snow em A Dança dos Dragões. Aemon Reinos do Caos que o Corvo de Três Olhos pre-
é tamb
também referido de passagem em A Espada sente ao longo das Crónicas de Gelo e Fogo
Ajuram
Ajuramentada. que orienta Bran Stark é o próprio Corvo de
Sangue. Ele ainda está vivo como o último vi-
dente verde e vive entre as crianças da floresta.
Rober
Robert Baratheon, o rei sentado no Trono de
Ferro no início da saga, reivindicou o direito
ao Trono
Tro de Ferro pela sua ascendência Targa- O ramo Targaryen dos Blackfyre, que por três
ryen. D
De facto, a árvore genealógica Targaryen vezes se rebelou contra os Targaryen no Trono 1
indica que uma das filhas de Egg, o futuro rei de Ferro, exilou-se para lá do mar estreito, em
Aegon V, se tornaria avó de Robert Baratheon. Tyrosh. Os filhos de Daemon Blackfyre con-
tinuaram a sua reivindicação como pretenden-
Os destinos
des de Dunk e Egg já por várias vezes tes legítimos ao Trono. O tio deles, o Grande
foram referidos nas Crónicas. Ambos morre- Bastardo Aegor River, dito Açamargo, fundou
ram na tragédia de SolarEstival que ardeu num no exílio a Companhia Dourada, composta
evento misterioso muitas vezes recordado por por mais de dez mil homens. São afamados
Rhaeg
Rhaegar com tristeza. Especula-se que ovos de por nunca quebrarem um contrato. No final de
dragão (provavelmente os que foram parar às Os Reinos do Caos, é revelado que a Companhia
mãos de
d Daenerys) estarão ligados a essa tragé- Dourada aceitara estar ao serviço de Daenerys
dia. Rh
Rhaella terá dado à luz Rhaegar, irmão de Targaryen. Uma alteração de planos levou a que
Daene
Daenerys, durante a tragédia. jurassem serviço a outro Targaryen, mas é sob
os estandartes do dragão que iniciam a recon-
Até à data, Lorde Walder Frey é uma de duas quista de Westeros.
person
personagens a surgir nas prequelas e na saga
princip
principal. Frey ainda é uma criança no casa- Especula-se que Brienne de Tarth poderá ser
mento que decorre em O Cavaleiro Mistério, mas descendente de Sor Duncan, o Alto.

Adaptação televisiva de Dunk e Egg?


Em tempos, George R. R. Martin colocou a hipótese de a HBO adaptar uma das novelas
de Dunk & Egg enquanto terminava as Crónicas de Gelo e Fogo. No entanto, essa hipóte-
se sempre pareceu remota. As histórias poderiam ser acolhidas por outro canal televisivo,
mas o autor já explicou no seu blogue que a HBO detém não só os direitos de adaptação
da saga das Crónicas, mas também os direitos sobre o mundo de Westeros. Se algum outro
canal decidisse pegar nas histórias de Dunk e Egg, teriam que remover todas as referências
às casas principais e ao Trono de Ferro, o que tornaria impossível a adaptação. A HBO
ainda não mostrou interesse em adquirir o material de Dunk e Egg, mas pode ser que opte
por tal com o contínuo sucesso da série A Guerra dos Tronos.

32 /// BANG!
O Cavaleiro de Westeros Vaufreixo

A Espada Ajuramentada Firmeza

O Cavaleiro Mistério Alvasparedes

BANG! /// 33
Proezas de
Sor Duncan, o Alto
e Aegon V Targaryen
como Comandante da Gua
Guarda Real e rei de Westeros

Sor Dun
Duncan, o Alto
→ As suas origens são humildes e nasceu no Fundo das
Pulgas, em Porto R Real
→ Na sua juventu
juventude, teve vários anos ao seu serviço
como escudeiro o jovem príncipe Aegon Targaryen,
que viria a tornar-se o rei Aegon V
→ Após a coroação de Aegon, tornou-se mem-
bro da Guarda Real e, mais tarde, o seu Co-
mand
mandante
T um papel decisivo no fim da se-
→ Teve
gu
gunda rebelião Blackfyre
→ A sua fama e coragem como guerrei- 1
ro era lendária e muitas canções foram
compostas em homenagem às suas
proezas
→ Acompanhou o Meistre Aemon
garyen e Corvo de Sangue para a
Targaryen
alha para ingressarem na Pa-
muralha
ha da Noite
trulha

AEGON V

→ Coroado do rei aos 33 anos de idade


→ Casou-se por amormor e teve 3 filhos e 1 filha
→ Durante o seu reinado,do, rebentou uma
nova rebelião Blackfyre
Blac que deu origem
à Guerra dos Reis dos Nove ove Dinheiros
destacara novos
onde se destacaram os cavaleiros
valorosos como SSor Barristan
istan Selmy,
S Brynden
Sor Jon Arryn e Sor nden Tully.
→ O seu reinado fo foi conflituoso de-
do seus filhos em
vido à vontade dos
também casarem-se p or, o que
por amor,
l
levou i ddesentendimentos
a muitos mentos
com as grandes casas
→ Uma das suas grandes obses- bses-
ões
sões foi trazer de volta dragões
a Westeros o que causou a
al
tragédia de Solarestival
→ Foi sucedido pelo
seu segundo filho,
Jaehaerys II

34 /// BANG!
BANG! /// 35
36 /// BANG!
Apreciar a colecção é também reconhecer os seus
defeitos. Defeitos, não de matéria mas de substância.
Se o papel era de menor qualidade, se a edição se
desfazia entre os dedos com o excesso de uso, se as
folhas amarelavam quando demasiado expostas ao
sol, se os títulos eram por vezes absurdos quando
comparados com os originais...

A CALCANHARES DE
colecção Argonauta: a mais
duradoura série de obras de
Ficção Científica (FC) do
espaço lusófono, publicada
CIBERAQUILES

A
em Portugal mas apreciada também
preciar a colecção é também
por leitores brasileiros, que inclui no
reconhecer os seus defeitos.
seu rol de cinco décadas de contínua
Defeitos, não de matéria mas
produção reconhecidos clássicos do
de substância. Se o papel era de
género. Foi através dela que muitos
menor qualidade, se a edição se
dos fãs do género vieram a descobrir
desfazia entre os dedos com o ex- ...ou desvendavam o segredo
Bradbury, Asimov, Clarke, Blish,
cesso de uso, se as folhas amarela- da história antes de se abrir
Heinlein e Simak. Foi nela que se a primeira página (Non-Stop,
vam quando demasiado expostas
apresentaram as primeiras traduções de Aldiss para Nave-Mundo
ao sol, se os títulos eram por ve- [nº333])...
de Fahrenheit 451, The Martian
zes absurdos quando comparados
Chronicles, The Demolished
com os originais (quem terá tido a
Man, I Am Legend, The
infeliz ideia de verter The Big Time
Midwich Cuckoos, Starship se abrir a primeira página (Non-Stop de Aldiss para Na-
de Leiber para O Tempo, o Espaço e
Troopers, A Canticle for ve-Mundo [n.º 333]), os leitores aceitavam as falhas como
o Cérebro? [n.º 415]) ou desvenda-
Leibowitz, Stranger in a Strange sendo peculiaridades, como se aceita um carro feio, ba-
vam o segredo da história antes de
Land, The Man in the High rulhento, difícil de conduzir, mas que acaba levando-nos
Castle, romances que se tornaram na viagem prometida.
entretanto referências da literatura Menos aceitável seria a tendência, que começou
mundial. Acomodou experiências em com o n.º 103 (Perdido no Espaço – I – Marooned de Martin
ilustração pelos seus capistas. Criou Caidin), de dividir um romance mais extenso em dois
uma comunidade de seguidores ávidos ou mais volumes da colecção.
que hoje assolam os alfarrabistas em É uma opção editorial de foro económico, pois per-
busca dos números antigos. É, de longe, mite distribuir custos de produção, como a tradução e
a grande colecção de culto da história a compra de direitos da obra, por diversos volumes, de
da FC dos países lusófonos. Dos seus forma a manter o preço de capa unitário a níveis cons-
feitos e glórias falámos na primeira tantes. Aplica-se aqui um racional pela negativa, pois o
parte deste artigo, que encontrarão no receio é de que o leitor, para quem o preço constitui
número precedente da Bang! factor decisivo, se recuse a adquirir um tomo único e
Mas, infelizmente, nem tudo foram extenso que seja invulgarmente caro. Diga-se de pas-
êxitos, nem sempre se fizeram boas es- sagem que este pensamento tem a sua razão de ser, e
colhas. Gradualmente foi perdendo o em muitos casos, é perfeitamente razoável aplicá-lo para
apreço dos leitores e enfrentando cada vez determinados segmentos ou obras, permitindo a reali-
mais dificuldades – e a entropia acabou ...(quem terá tido a infeliz ideia zação da leitura em (suaves) prestações.
por vencer. É esse lado da história o que de verter The Big Time, de Leiber, Mas a opção tem um busílis: é normal que o cus-
vamos agora contar. por O tempo, o Espaço to acumulado das várias partes seja mais oneroso do
e o Cérebro? [nº415]).

BANG! /// 37
que decidir se o volume de vendas da parte anterior justifica editar a
seguinte. Mas nesta decisão deve ter-se em conta que houve leitores a
comprar, os quais ficarão frustrados perante histórias deixadas a meio,
correndo-se o risco de afastá-los da colecção como um todo.
São vários os exemplos em que isto aconteceu na vida da Argonauta.
O «n.º 249, Exilados da Terra [...] fazia parte duma trilogia que [...] nunca
chegou a ter os dois seguintes cá publicados» (Ricardo Loureiro). A série das
«Crónicas de Âmbar» de Zelazny, composta na língua inglesa por dez
livros, apenas verá sete traduzidos, e a do «Centro Galáctico» de Ben-
Dos 563 números da
ford verá dois em seis – sem contar com o fenómeno bizarro de se
Argonauta, aproximadamente terem publicado os segundo e terceiro livros da trilogia da «Fundação»
oitenta são ocupados pelas
segundas e terceiras partes de
romances cortados às fatias.

que seria a alternativa do volume único. A editora fica


a ganhar, no curto prazo, pois uma percentagem sig-
Talvez a pior época
nificativa dos compradores do primeiro livro quererão dos tempos áureos
conhecer o fim à história, assegurando as vendas dos
seguintes. Mas o mercado acaba por se aperceber e tenha ocorrido em
ganha aversão à prática, se levada ao exagero. Os lei- 1982, em que os
tores fazem contas, medem o tamanho de cada tomo,
perguntam-se porque estão a pagar várias vezes pelo três volumes de O
mesmo livro. E num contexto de colecção com edições
fixas por ano, cada número dedicado a continuar o an-
Número do Monstro
terior representa menos um novo título, na prática – (n.ºs 294 a 296) 1
menos um romance, menos um autor a descobrir. Aos
leitores interessados em ter a colecção completa, deixar
de Heinlein são
de adquirir não se afigura uma escolha possível. seguidos por outros
Dos 563 números da Argonauta, aproximadamente
oitenta são ocupados pelas segundas e terceiras partes três do Planeta dos
de romances cortados às fatias. Referimo-nos a casos Dragões (n.ºs 297 a
em que a divisão foi assumida; outros houve, como os
de certas antologias e colectâneas, em que os títulos 299) de McCaffrey
portugueses escolhidos não revelam o facto de repre-
sentarem divisões da mesma obra (veja-se, a título de
e estes, por dois
exemplo, a antologia The Future in Question, organizada do Mistério de Valis
por Asimov e outros, que foi dividida nos n.ºs 320, Men-
sagens do Futuro, e 327, O Que Será o Futuro). (n.ºs 300 a 301) de
Fazendo contas, equivale a sete anos – quase um Dick: ao final de
quinto da vida da colecção – de números desperdiçados
com esta prática! oito meses seguidos,
Talvez a pior época dos tempos áureos tenha ocor-
rido em 1982, em que os três volumes de O Número do
os leitores ficaram
Monstro (n.ºs 294 a 296) de Heinlein são seguidos por a conhecer apenas
outros três do Planeta dos Dragões (n.ºs 297 a 299) de Mc-
Caffrey e estes, por dois do Mistério de Valis (n.ºs 300 a
três novas obras.
301) de Dick: ao final de oito meses seguidos, os leitores
ficaram a conhecer apenas três novas obras.
Seria de esperar que, com o crescimento do sector
editorial e a expansão da oferta, nos anos 90, houvesse
uma mudança de estratégia. Estranhamente, o que se
verifica é uma intensificação da prática: a partir de 1998,
dos 74 números finais publicados, 21 constituem con-
tinuações...
Outro problema importante (que Ricardo Loureiro
designa jocosamente por «Lei Editorial Nacional» por se
aplicar uniformemente a todas as colecções de FC por-
tuguesas) refere-se à forma como as séries eram con-
duzidas. Apanágio e tradição do género, as sequências
narrativas que atravessam vários livros requerem um
manuseio delicado: uma vez iniciada a publicação, há

38 /// BANG!
de Asimov em 1964, mas não o promisso que tinha com o editor. Aceitei, e o
primeiro...1 único desgosto que tenho é que passados todos
Não obstante estes proble- estes anos não sou capaz de me lembrar quais
Alguns exemplos de
continuações dos 74 mas, nenhum prejudicaria tanto foram os livros que traduzi, e não há maneira
números finais publicados. a colecção como a qualidade das de descobrir porque o meu nome não figura lá»
traduções. (António de Macedo).
Traduções «onde as expressões A falta de percepção de que o pú-
idiomáticas eram invariavelmente tra- blico-alvo evoluía, crescia, refinava os
duzidas à letra» (Ricardo Loureiro). gostos, não permitiu à editora repensar
Traduções que acolheram, no iní- a colecção com outro nível de qualida-
cio, figuras de destaque – como o de e de investimento editorial.
escritor surrealista Mário Henri- Entenda-se que a experiência ini-
que-Leiria, e a (futura) tradutora cial, comum aos apreciadores, era posi-
das principais obras de Tolkien, tiva: «a questão da tradução não me passava
Fernanda Pinto Rodrigues – mas muito pela cabeça na época, aceitávamos o tex-
que acabariam por ser domina- to em português (brasileiro ou não) sem ques-
das, a partir do n.º 103, pela voz tionar. Só depois dos 30 anos de idade passei
ubíqua e, na opinião de alguns a ler preferencialmente no original» (Braulio
leitores, redutoramente uniforme, Tavares).
de Eurico da Fonseca, especialista Mas também era comum o desa-
autodidacta em astronáutica cuja lento posterior: «foi na Argonauta que
simpática presença na televisão pela primeira vez compreendi como um mau
foi prenúncio, durante anos, de tradutor pode assassinar um livro por completo
um entusiasmo contagiante pelas (a vítima foi Roderick [n.º 386] do pobre do
coisas do espaço. Eurico da Fon- John Sladek)» (Jorge Candeias).
seca traduziria mais de 250 dos tí- Desalento que acabaria em aban-
tulos da colecção, ou pelo menos, dono: «entre 1986 e 1989, à medida que
aporia o seu nome nos mesmos. comecei a ler cada vez mais ficção científica em
Porque uma das questões relati- inglês, fui me desiludindo com os livros da Ar-
vas à tradução na Argonauta tem gonauta. Sempre que relia o original de um
a ver com a sua autoria. romance do Clifford Simak que já havia lido
«Durante anos sempre estranhei pela coleção, parecia estar desfrutando de um
a profusão de títulos traduzidos por novo romance, muito mais rico e bem escrito,
Eurico da Fonseca, e pensava que ou porém, compartilhando da mesma temática
o homem tinha um enorme repositório da tradução que eu já conhecia. Foram essas
de traduções já feitas, ou era super-hu- traduções malfeitas e, em muitos casos, resu-
mano [...]. Décadas mais tarde, parte midas, que me fizeram abandonar a Argo-
do mistério desvaneceu-se quando co- nauta no fim da década de 1980» (Gerson
nheci um, à falta de melhor expressão, Lodi-Ribeiro).
“ghost-translator”, que me provou
Seria de esperar que, cabalmente que uma boa vintena de tí-
com o crescimento tulos foram por ele traduzidos, embora
publicados pela Livros do Brasil sob o
do sector editorial e a nome de Eurico da Fonseca. E quantos “...pela primei
compreendi co vez
ra
expansão da oferta, nos mais títulos teriam assim sido?» (Ri-
cardo Loureiro).
mau tradutor
mo um
o po
assassinar um de
anos 90, houvesse uma Prática que aparentemente por completo.
Jorge Candeias
livro
..”
acompanhou a colecção des-
mudança de estratégia. de início: «Fernando Castro Ferro
Estranhamente, o traduziu vários livros para a Argo-
nauta, e em dado momento o trabalho
que se verifica é uma acumulou-se-lhe porque tinha vários
intensificação da livros para traduzir e não dava conta
do recado. Eu nessa altura andava com
prática: a partir de as “finanças” muito em baixo e ele pro-
1998, dos 74 números pôs-me que eu traduzisse dois dos livros.
Concordei, era uma maneira de ele cum-
finais publicados, prir os prazos de tradução que se tinha
comprometido com os Livros de Brasil,
21 constituem e eu recebia umas massas que me davam
continuações... um jeitão. A única condição era que nas
traduções não figurasse o meu nome mas
o dele, para que ele não perdesse o com-

BANG! /// 39
blemas, Guimarães (A Conspiração dos – com particular destaque, em
Não obstante estes pro
to a Imortais), consegue romper este impe- Portugal, para o caso de João
nenhum prejudicaria tan
o a qua lida de das
colecção com
acabariam
netrável crivo editorial. Se o mesmo re- Vagos, que criou um blogue
traduções [...] mas que sultou de decisão consciente do director de dedicado a cada um dos títulos
tir do n.º
por ser dominadas, a par
, pel a voz ubí qua e, na opinião colecção, ou se os manuscritos submetidos da colecção3 e gravou uma série
103
ramente
de alguns leitores, reduto (porque decerto os haveria) simplesmente de vídeos em que os apresenta
ico da Fon seca...
uniforme, de Eur não eram considerados como tendo quali- com evidente nostalgia4.
dade suficiente face às obras estrangeiras, O Brasil antecipou esta ini-
é algo que se desconhece. Mas não deixa ciativa e foi mais longe: «foi na
de ser sintomático, e pouco abonatório Camões [livraria especializada na
para a produção nacional, que nunca um comercialização de títulos portugue-
português tivesse sido incluido na mais ses] que comprei um livro brasilei-
antiga e prestigiada colecção de FC do ro em novembro de 1985: Quem
país, numa época em que o incentivo te- é Quem na Ficção Científica
ria certamente produzido efeitos benéficos nº 1 – A Coleção Argonauta,
para o desenvolvimento do género.»2 (Scortecci, 1985), de Roberto Cezar
Apenas nos anos 80 uma edi- Nascimento 5. O livro analisava os
tora – a Caminho – apostaria com títulos da coleção, desde o número
regularidade nos autores de fala 1 até o 312. Nas últimas páginas
portuguesa. Trinta anos depois. do exemplar havia um formulário
com uma proposta para a criação de
uma agremiação de leitores de ficção
científica. Vários leitores gostaram
E o monstro acabou viran- QUE VIDA DEPOIS da ideia e remeteram os formulários
do-se contra o criador: «criou um preenchidos de volta ao autor, seme-
público para a FC em português, mas DA VIDA ando assim a iniciativa dessa agre- 1
também o destruiu. Muitos de nós, que miação que viria a se tornar o Clu-

«P
ainda continuamos hoje a consumir FC oderia falar aqui das horas be de Leitores de Ficção Científica
em português, devemo-lo à Argonauta; passadas na caça a Argo- (CLFC), a entidade mais pujante
mas julgo que muitos dos que deixaram nautas em alfarrabistas do de seu gênero durante a década de
de o fazer também foi devido à falta de Porto, em busca de lograr completar as 1986-1995. Roberto Nascimento
qualidade da coleção na sua fase final» colecções de Heinlein, Farmer, Dick, Sil- foi o primeiro presidente do CLFC
(Jorge Candeias). verberg (o que consegui, reunindo todos os e também o primeiro editor do
que foram publicados em português), mas Somnium, periódico da agremia-
essa, penso eu é uma experiência comum» ção. Uma das motivações principais
(João Seixas) do CLFC naqueles primeiros anos
O SILÊNCIO Onde encontrar, hoje em dia, foi estabelecer uma rede de troca de
os livros da Argonauta? Alfarra- livros de FC em geral e exemplares
LUSÓFONO bistas de Portugal, com alguma da Coleção Argonauta em particu-
dificuldade. Sebos do Brasil, ima- lar. De fato, à medida que as cole-

É
um defeito que poucos lhe gino que com bastante. Quem os ções de mais e mais sócios veteranos
apontam. A meu ver, como procura, sabe reconhecer as rari- foram se completando, esses sócios
leitor mas principalmente dades, nem que seja pelos preços foram paulatinamente se afastando
como autor de língua portuguesa, mais elevados. Alguns números do convívio com o fandom. Pouco
é o único que não tem desculpa. são relativamente frequentes, ou- a pouco, o CLFC se transformava,
«Se no Brasil, [o editor Gumercindo tros nem por isso. Os derradeiros de um clube de colecionadores numa
Rocha] Dorea criara um espaço para números ainda se encontram nas agremiação de produtores e articu-
desenvolvimento de projectos literários [de feiras do livro portuguesas em pri- ladores de literatura fantástica»
autores nacionais de FC na sua colecção meira mão. (Gerson Lodi-Ribeiro).
GRD], e em Espanha, [Domingo] Não deixa de ser curioso o Se há característica que
Santos seguia-lhe as pisadas [pela colec- afinco com que os apreciado- distingue o fã de FC é precisa-
ção Nueva Dimensión], em Portugal, res hoje recolhem, inventariam e Alguns dos mente a apetência para sociali-
onde a colecção Argonauta teria início mantêm a memória, na ausência, “grandes nomes” zar em torno dos temas do fu-
coincidente com essas duas iniciativas e de livros que, no seu auge, foram que marcaram a
coleção Argonauta. turo – é bizarro, pois normal-
igual finalidade, o acolhimento de obras sumariamente ignorados pela crí- Asimov, Bradbury, mente, ele (e ela) é retratado
nacionais foi nulo [...]. Sem querer me- tica literária. Não obstante as im- Arthur C. Clarke, por quem está de fora como
nosprezar a sua contribuição importan- perfeições, a Argonauta esteve no Simak, Heinlein
e Blish. um indivíduo com dificulda-
tíssima para a divulgação da FC inter- centro de várias comunidades de des de socialização. «Nascimen-
nacional, a verdade é que, nas centenas leitores – e ainda está –, muito an- to escolheu bem a plataforma para o
de títulos editados durante os cinquenta tes das redes sociais. seu gesto de comunicação com outros
anos de actividade, não encontramos Os efeitos secundários fo- fãs – aparentemente a Argonauta
um único autor português, e só em ram-se manifestando ao longo das já despertava paixões entre pessoas
[2005] é que uma brasileira, Márcia décadas e ainda hoje se sentem que não se conheciam, e que se senti-

40 /// BANG!
É bom
recordar que lecionadas, e sobretudo com videojogos e
filmes como principal ponto de contacto»
Agradecimentos
cada “geração (João Seixas). e referências:
É bizarro pensar que o género
tem a sua coleção que sempre falou sem medos do A António de Macedo, João Barreiros, Bráulio Tava-
ou as suas coleções futuro receia agora pelo seu pró-
prio devir, receios que atravessam
res, Roberto de Sousa Causo, Gerson Lodi-Ribeiro,
Ricardo Loureiro, Jorge Candeias, José de Freitas e
formadoras” fronteiras: «sem um lar, sem um abri- João Seixas, pelos imprescindíveis e informativos tes-
go, como podem os novos leitores, os novos
(Roberto de fãs, surgirem? O futuro da comunidade
temunhos que limites editoriais não permitiram in-
cluir na integra. E à Saida de Emergência pelo convite
Sousa Causo). brasileira de FC se torna uma incógnita.
a uma breve mais importante reflexão luso-brasileira.
Haverá uma nova geração, e formada
através do quê? Do cinema, que pare-
ram entusiasmadas com a descoberta de ce ter destruído a FC nesse meio, justo Este artigo não teria sido possível sem duas refe-
outros “semelhantes”. E assim foi que agora que as imagens geradas por com- rências bibliográficas imprescindíveis: o site Bibliowi-
a Coleção Argonauta se tornou o com- putador prometem um realismo nunca ki, mantido por Jorge Candeias, e o site amador da
ponente de uma subcultura nacional antes alcançado pelo gênero – e níveis de colecção Argonauta mantido por João Vagos.
que, por suas origens, comunica-se com imbecilidade também nunca alcançados,
uma vasta subcultura global formada nem mesmo na infantil FC da década de
por fãs de FC e fantasia em todas as 1950? Serão os novos fãs garimpeiros de
partes do mundo» (Roberto de Sou- sebo, revirando o passado editorial brasi- Dedicatória
sa Causo). leiro e português, em busca do que os ins-
Extinta, a colecção resiste no pire?» (Roberto de Sousa Causo). A todos os que participaram, directa e indirecta-
saudosismo e nas estantes dos Talvez, afinal, seja um proble- mente, na concepção e produção de cada um dos
últimos completistas. Mas há ma intemporal e irresolúvel: «quan- livros da Argonauta. Obrigado por cinco décadas
que lembrar que não sairão no- do um professor me aconselhou a que lesse de livros, verdadeiros oásis num deserto literário
vos números, não se reeditarão as obras de Júlio Verne, não o fez para sem imaginação nem futuro. E não levem a mal as
os antigos. Os exemplares que que o meu espírito se soltasse e navegasse nossas exigências. Sabemos que fizeram o vosso
existem continuam a amarelecer, à vontade pelo tempo e pelo espaço, mas melhor, que a época era complicada e o mercado
a decompor-se, a desaparecer da sim para que, através das páginas de
ingrato e pouco desenvolvido. Apenas queríamos
memória. E não parece haver “A Ilha Misteriosa”, aprendesse como
colecções actuais capazes de de-
que tivessem mantido a fé mais um pouco, e que
até numa ilha perdida os conhecimentos
sempenhar o mesmo papel: «o de matemática, física e química, eram ainda continuassem entre nós.
seu catálogo, conjugado com a tremenda indispensáveis. Pena é que muitos dos
disponibilidade nos pontos de venda, jovens de hoje nem sequer se apercebam
permitia a qualquer pessoa, em dado disso»6. Talvez, tendo este exemplo
momento, adquirir uma educação in- presente, devamos descansar e es-
tensiva no campo da Ficção Científica. perar pelo melhor.
Mesmo quando tinha que repartir a É bom recordar que cada «ge-
sua atenção pelas colecções das outras ração tem a sua coleção ou as suas cole-
editoras, o catálogo Argonauta possui ções formadoras» (Roberto de Sousa
um núcleo de obras relevantes, de au- Causo). E, «afinal de contas, desde
tores relevantes que, ainda que com la- meados da década de 1950, com suas
cunas, permite adquirir um panorama falhas e acertos, foi a Argonauta que
geral da evolução do género. Algo que possibilitou o primeiro contato de muitos
hoje desapareceu, o que justifica a ilite- leitores portugueses e brasileiros com o
racia em termos de FC de grande parte mundo encantado da literatura de ficção
daqueles que se dizem fãs, uma ilitera- científica» (Gerson Lodi-Ribeiro),
cia derivada de um contacto totalmente por isso muito lhe devemos do que
fragmentário com poucas obras, mal se- hoje somos.

Luís Filipe Silva (blog.tecnofantasia.com)


é autor português de «O Futuro à Janela»
[1] O fenómeno talvez se explique pelo facto de sos Nunca Dantes Navegados, org. Luis Filipe Silva e (Prémio Caminho de Ficção Científica), «Cidade
o primeiro volume, Fundação, ter sido editado pela Jorge Candeias, 2007. da Carne, «Vinganças» e (com João Barreiros)
Ulisseia em 1961 na sua colecção 3:C, cuja vida [3] http://coleccaoargonauta.blogspot.pt/ «Terrarium - Um Romance em Mosaicos» além
curta (cerca de vinte números) não lhe terá permiti- [4] http://www.fallingintoinfinity.com/2013/01/ de vários contos, críticas e artigos em publica-
do continuar a saga. A ser este o caso, não deixa de coleccao-argonauta.html
ser invulgar a decisão da Argonauta de servir como [5] Nascimento repetiria o feito, em 1999, com ções portuguesas, brasileiras e internacionais.
veículo da conclusão, ao invés da opção mais óbvia o lançamento de Argonauta 500: edição co- Como antologista, organizou «Vaporpunk – Re-
(e talvez mais razoável) de aguardar alguns anos até memorativa, uma pequena edição que contém latos Steampunk Publicados sob as Ordens de
recuperar os direitos de autor e fazer uma edição depoimentos de apreciadores portugueses e Suas Majestades» (com Gerson Lodi-Ribeiro) e
completa... brasileiros. «Os Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa»
[2] Luís Filipe Silva, «O Estranho Caso da Prospec- [6] Da introdução de Eurico da Fonseca ao n.º 500,
tória Amnésica», introdução à antologia Por Univer- Ó Pioneiro! – O Pioneer, de Frederik Pohl. (com Luís Corte Real).

BANG! /// 41
42 /// BANG!
Em Abril, a Casa das Histórias Paula Rego em Cascais foi palco do Utopias – Lugares Imaginários
em Educação, um encontro formativo organizado por João Lima e pelo Centro de Formação de
Escolas de Cascais. Durante dois dias os participantes, professores e não só, puderam participar
em conversas abertas com personalidades ligadas às artes e à educação, assistir a espectáculos que
recuperam o património cultural tradicional, e experimentar uma gama de workshops que ia da
reflexão fotográfica a estratégias de trabalho dramático. Um desses foi o Visões de Utopia, dedicado
à exploração da Ficção Científica e do fantástico no geral sob a perspectiva das utopias. Nele, os
participantes tiveram oportunidade de descobrir um pouco do que se considera FC através de
uma rápida apresentação, de um jogo literário onde puderam explorar conceitos futuristas e ideias
tecnológicas avançadas, e tomar contacto com obras de FC e Fantástico de autores portugueses.
Este texto reúne ideias sobre FC como forma de estruturar o workshop. Não pretende ser um estudo
aprofundado sobre o género, funcionando como introdução ao seu espaço de ideias numa perspectiva
de reflexão sobre desafios contemporâneos extrapolados para futuros imaginários. Agradeço ao João
Campos (http://viagem-andromeda.blogspot.pt/) pela revisão e preciosas sugestões.

BANG! /// 43
garet Cavendish. A venerável tradição das utopias e distopias
1. FICÇÃO CIENTÍFICA: dispõe-se num arco literário que inclui Platão, More, Swift,
Defoe, Butler e Zamiatin.
breve apontamento histórico O percurso da ficção científica inicia-se a partir das raízes
das narrativas utópicas e das viagens ex-
traordinárias (Aldiss, 1988), tendo evo-
luído a partir de histórias com preocu-
pações morais e sociais para se focalizar
na importância da ciência enquanto ele-
mento-chave em voos imaginários cons-
truídos a partir de especulações de bases
científicas, ou visões de menor rigor mas
inspiradas no progressismo positivista
da tecnologia. Estes são os elementos
ficcionais do romance de aventuras de
Verne e nos romances científicos de
H.G Wells: obras que ainda não são o
que em definitivo se veio a considerar
ficção científica, mas que apontaram ca-
minhos e traçaram linhas narrativas que
ainda hoje são exploradas.
Deste cerne evoluíram histórias de
guerra futura, narrativas apocalípticas de
uma humanidade extinta ou em vias de extinção, Edisonades

O
detalhando aventuras de engenhosos inventores, ou narrati-
livro The Second Machine Age, de Erik Brynjolfsson e An- vas de aventura em terras exóticas. No processo de desen-
drew McAfee, analisa o impacto da tecnologia de van- volvimento da ficção científica enquanto forma de literatura
guarda na nossa sociedade, oscilando entre o arrepio e o popular, ciência e tecnologia são os elementos que a distin-
optimismo excessivo. Imaginemos a automação algorítmica e guem de outras formas, atraindo os leitores e seduzindo-os
robótica a destruir empregos, ou a hipervigilância de um mun- com sonhos tecno-utópicos. Este progressivo incorporar de
do coberto por sensores baratos capazes de monitorizar e re- elementos científicos culmina nas narrativas pulp ao estilo de
colher quantidades gargantuescas de dados sobre tudo o que Hugo Gernsback, editor da Amazing Stories, talvez o primeiro
fazemos, e temos uma ideia sobre a definir o conceito de ficção científica, e firme defensor de
onde o livro toca. Logo nas primei- histórias onde o imaginário do artefacto tecnológico é o cer-
ras páginas mostra-nos um gráfico ne da narrativa (Stableford, 2003).
muito interessante do ponto de vista Podemos encontrar o berço do que hoje consideramos FC
da FC, que descreve, de acordo com na tradição das revistas pulp dos anos 20 e 30 do século XX. As
os autores, a forma como a partir obras seminais dos grandes autores da era clássica do género
da Revolução Industrial a curva do tiveram a sua génese como contos nestas publicações, algumas
índice de desenvolvimento humano das quais ambicionavam abertamente sair do recanto de publi-
dispara, demonstrando o impacto cações de qualidade baixa que viviam da reimpressão de contos
da tecnologia no progresso humano clássicos e obras simplistas de autores hoje esquecidos. Come-
(Brynjolfsson, McAffe, 2014). Este çam nesta época a traçar-se algumas das clivagens profundas
afirmar da ideia de que o progresso ainda hoje observáveis no género: a concepção de uma ficção
científico geraria progresso tecno- científica didáctica e centrada na tecnologia do editor Hugo
lógico e social é o substrato do qual Gernsback, o foco nas preocupações literárias expressas pelo
podem nascer visões que especulam trabalho de edição de John W. Campbell, e a clivagem entre
sobre futuro possíveis. visões críticas da FC como literatura de entretenimento e como
É curioso observar que é mais ou menos no momento em forma de expressão literária por direito próprio, centrada na
o gráfico dispara, nos primórdios da era industrial, que foi pu- interpretação da influência da ciência e tecnologia sobre a hu-
blicado aquele que alguns consideram como o primeiro gran- manidade nas suas diferentes dimensões.
de romance de ficção científica: Frankenstein, de Mary Shelley Associamos ao pulp histórias formulaicas de aventuras
(Aldiss, 1988). Parece-nos uma ideia estranha, uma vez que futuristas, de prosa muitas vezes sofrível, onde a plausibili-
estamos habituados a concebê-lo como uma obra de hor- dade não é importante. Mas essas histórias formaram men-
ror, mas o romance está na confluência do romance gótico talidades, criaram públicos, e permitiram aos escritores mais
com visões proto-científicas numa história que não se explica ambiciosos desenvolver FC com um misto de preocupação
através do ocultismo mágico e se baseia em possibilidades literária, pensada a partir de ideias e ambientes que não são
científicas, responsabilidade, arrogância e consequências im- necessariamente dependentes de um artifício tecnológico, e
previsíveis do progresso num romance-périplo. uma visão de análise especulativa dos impactos científicos e
Entre textos mais antigos que exploram diversas temáticas técnicos no ser humano.
que irão coalescer na ficção científica podemos encontrar os No ponto mais alto desta tradição de publicação em revis-
périplos inter-planetários satíricos de Luciano de Samosata, tas observamos a fortíssima influência da revista inglesa New
Kepler e Voltaire, ou os proto-universos paralelos de Mar- Worlds dirigida por Michael Moorcock, que fez a ponte entre

44 /// BANG!
publicação das a obras
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e ou outros eescritores
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e 300 ddoo sséculo


éculo XX.” pr
preponderante no género, em-
b
bora a tradição do conto persista
na publicação de antologias, que
mantém viva a memória do géne-
ro enquanto dão voz a escritores blemas reais, experimentalismo O progressivo
novos e consagrados. literário de base modernista da incorporar de
uma FC clássica,
sica, centrada nu
num A afirmação da FC publicada new wave, ou revisões históricas elementos científicos
em livro inicia-se nos anos 50. à luz de hipóteses remotas que culmina nas narrativas
optimismo tecnológico co e em vi-
O advento do formato paperba- pulp ao estilo de Hugo
sões de aventura para uma FC alterariam a estrutura do real per-
Gernsback, editor da
mais madura, de crescentes am- ck permitiu aos editores lançar curso da história. Amazing Stories, talvez
bições literárias, que se inspira e no mercado livros a baixo custo Esta evolução conceptual é o primeiro a definir
busca influências no surrealismo, em competição directa com as mais visível no tratamento das o conceito de ficção
dadaísmo, modernismo e realis- revistas, coligindo contos previa- questões de género, que evo- científica.
mo mágico. Se hoje as fronteiras mente publicados em pulps agora lui da misoginia e infantilidade
narrativas do que é FC são difu- empacotados como romances, pubescente na FC clássica para
sas e abrangem muitas formas caso de livros como The Martian visões fluídas e arrojadas. Esta
que estão próximas da literatura Chronicles de Bradbury, I Robot ou erosão do tradicional foi trazida
convencional, tal deve-se ao tra- Foundation de Asimov, que se tor- por autoras que desafiaram a pre-
balho de Moorcock a estimular a naram referências do género. valência masculina na FC e nos
Os caminhos temáticos têm vindo a legar visões que vão
do género começam a ca- do feminismo assumido à fluidez
racterizar-se pela complexi- relacional.
dade com que abordam re- A ficção científica evolui tam-
alismo científico, especula- bém nos mercados, com alguns
ção informada, visões utó- dos seus autores a atingir o esta-
picas, distópicas ou trans- tuto de super-estrela literária com
formativas. Com temas e sucessos garantidos de venda.
vozes literárias definidas, o Nos anos 80 o emergir do movi-
género atinge a maturidade mento cyberpunk redefine o géne-
nesta época (Aldiss, 1988), ro, com uma forte componente
quando o optimismo se co- intelectual virada para uma visão
meça a esfumar perante o de futurismo hipermoderno digi-
rescaldo da II guerra e das tal experimentalista e fragmentá-
novas super-armas capazes rio próxima da visão pós-moder-
de destruir a humanidade. nista, trazendo o reflexo do mo-
Perdida a fé cega no pro- dernismo de Ballard para o então
gresso e na perfeição tecno- novíssimo mundo digital.
lógica, sucedem-se visões Hoje, o género é ao mesmo
de mundos pós-apocalipse tempo uma ficção popular de
nuclear de franco negativis- mercado alargado e um palco de
mo e paranóia. Esta perda experimentação. As fronteiras
de inocência abre caminho literárias estão difusas e o inter-
para tendências como a câmbio entre FC, fantasia, horror
relativização do real, spa- e o realismo mágico é tema co-
ce operas que recuperam o mum nas obras mais ambiciosas.
Se hoje as fronteiras narrativas do que é
exotismo da aventura em largos Persistem clivagens vindas da era
FC são difusas e abrangem muitas formas,
deve-se em grande parte a fortíssima panoramas, a exploração profun- pulp entre uma FC mais virada
influência da revista inglesa New Worlds da de questões sociais e sexuais para o entretenimento, um apro-
dirigida por Michael Moorcock utilizando o outro ficcional como fundar da sensibilidade literária e
metáfora para reflectir sobre pro- o focalizar na especulação infor-

BANG! /// 45
Hoje afirma-se uma ficção científica de voz global,
com autores dos quatro cantos do mundo a conquis-
tar espaço e leitores, enriquecendo o género com sen-
sibilidades estéticas e conceptuais que se afastam da
visão anglo-americana que historicamente caracteriza
o género. Escritores como Lavie Tidhar (israelita),
Ken Liu (japonês), Aliette de Bodard (franco-vietna-
mita) e Lauren Beukes (sul-africana) recebem prémios
de referência, bom acolhimento pela crítica especiali-
zada, e afirmam-se num mercado global que utiliza
o inglês como língua franca. Autores de países com
fortes tradições de edição de ficção científica são tra-
duzidos para um mercado crescente de leitores que
procuram sensibilidades literárias culturalmente dife-
rentes da tradição clássica. A esta tendência não são
alheias as colectâneas temáticas de contos que mis-
turam autores novos e consagrados, e as sucessoras
das revistas pulp como espaço de primeira publicação
quer em edição tradicional quer em formato digital.
Para o grande público, a face mais visível do género
está no cinema, onde a sua presença se assinala logo
nos primeiros tempos do meio. Esta época legou-nos
clássicos do grande ecrã, desde a sátira inocente de
Voyage dans la Lune de Meliès à precisão de Frau im
Monde ou à absoluta distopia industrial de Metropolis,
ambos de Fritz Lang; ou mesmo à utopia científica 1
de raiz iluminista de H.G. Wells em Things to Come de
Alexander Korda.
Até aos anos 50 o cinema de ficção científica depen-
dia dos argumentos e de efeitos especiais que transmi-
tiam a sensação de estranheza dos mundos ficcionais
através da cenografia e dos processos mecânicos de
A afirmação da FC publicada em livro inicia-se nos anos 50. O advento do formato paperback filmagem. A partir dos anos 50 aprofundam-se os te-
permitiu aos editores lançar no mercado livros a baixo custo em competição directa com as mas dos argumentos, com o surgir das visões radicais
revistas [...] caso de livros como The Martian Chronicles de Bradbury, I Robot ou Foundation e do cinema de série B, bem como a complexidade
de Asimov, que se tornaram referências do género. técnica dos efeitos especiais. O cinema espectáculo
de FC firmou-se no imaginário popular com obras
mada reflectindo as problemáticas contemporâneas, em
especial no que toca aos impactos da modernidade tec-
É importante sublinhar que se o grosso da FC tem uma fortíssima
nológica nos sistemas sociais.
influência anglo-americana, por questões de afinidade cultural, mercados
É importante sublinhar que se o grosso da FC tem editoriais, sensibilidade científica e da própria história da evolução do
uma fortíssima influência anglo-americana, por questões género, este não se resume aos autores ingleses e norte-americanos.
de afinidade cultural, mercados editoriais, sensibilidade
científica e da própria história da evolução do género,
este não se resume aos autores ingleses e norte-ameri-
canos. A tradição francesa de edição espelha em grande
parte a mais conhecida vertente americana, com o género
a florescer pós-Verne e Robida em revistas especializa-
das e colecções editoriais. É o caso da Fleuve Noir Anti-
cipation, que publicou ao longo de quarenta anos autores
como P. J. Hérault ou Serge Brussolo, e outros criadores
marcantes. Omale, de Laurent Genefort, Aurorarama de
Jean-CristopheValtat ou La Mécanique du Coeur de Mathias
Malzieu são algumas das obras de autores contemporâ-
neos a extravasar o espaço da francofonia com edições
internacionais. Na Alemanha, onde a tradição do fantás-
tico ficcional conta com Kurt Lasswitz como contempo-
râneo de Wells e Verne, podemos encontrar vozes como
a hard SF cosmopolita de Frank Schätzing e a série episó-
dica Perry Rhodan, editada continuamente desde os anos
60 do século XX e que conta agora com sensivelmente
quatro mil números, sendo a mais longa série de ficção
científica literária em todo o mundo.

46 /// BANG!
Para o grande público, a
Pa
face mmais
a s visível do género
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está no ccinema,
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presençaa se
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pelal extra- revolucionárias torn naram-se nota de
tornaram-se de rodapé
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nos tele-
ordinári ria evolução da
ordinária da indústria 22.. FC jornais. No nosso dia dia a dia
dia atarefado talvez
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larga maioria dos filmes contem- m E CONTEMPORANEIDADE id
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e a ou sonhar com
ideia co o impacto de uma m nova tecnologia
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P
porâneos, apesar de excepções anunciada. Estamos tão habituados a estas rotinas qu quee
como o recente Gravityy de Al- orquê ler Fi
orquê
o F
Ficção
cção Científica? depressa as esquecemos. A hipérbol hipérbole le do lançamento de d
fonso Cuáron, que ressuscita o A primeira resposta é visce- um novo produto de consumo tecnológico teccnológico depress
depressa sa é
puro sense of wonderr da exploração ral: porque é divertida. Como substituída pela hipérbole do lanç nçamento de mais uum
lançamento m
espacial, ou The Congresss de Ari resistir à sedução de histórias noovo
novov produto de consumo tecnológico, tecnnológico, numa ló ógica
lógica
Folman, que nos obriga a reflec- empolgantes que nos levam ao cíclicaa qu
qquee banaliza a enorme co omplexidade e con
complexidade onh
on heci-
conheci-
tir sobre problemáticas contem- espaço profundo ou ao passado mento cientí tífico dos obj
científi b ectos te
objectos tecn
cnolológ
ógic
i os.
tecnológicos.
porâneas de substituição da força distante, que nos permitem usar
laboral humana por meios de au- tecnologias inauditas, ou mesmo
conceber o inconcebível? A estética da FC ultrapassou os limites
tomação algorítmica e o espaço literários e afirmou-se no cinema. A
abstracto das redes digitais. O mundo contemporâneo em
partir dos anos 50 aprofundaram-se
A estética da FC ultrapassou que vivemos é constantemente os temas dos argumentos, com o
os limites literários e afirmou-se desafiado pelo novo. Todos os surgir das visões radicais...
no cinema, banda desenhada e dias somos bombardeados com
em particular no novo mediaa dos relatos de novas tecnologias, trans-
jogos de computador. O seu es- formações sociais radicais, inaudi-
pírito de extrapolação e reflexão tas maravilhas da ciência que alte-
também se encontra para lá das ram as nossas percepções do real
fronteiras dos livros, fazendo-se e do possível. Emergem novas
sentir na exploração do futuris- profissões, impensáveis há poucas
mo, nas antevisões especulativas décadas ou anos. As tradições es-
da design fiction, e nas fronteiras do vaem-se numa modernidade uni-
experimentalismo digital de van- ficada por meios de comunicação
guarda. Olhando com nostalgia à escala global. Ferramentas tec-
para a inocência dos tempos dos nológicas pervadem o nosso dia a
monstros de olhos esbugalhados dia, dos objectos de uso pessoal às

BANG! /// 47
nos permite questionar os desafios con- dispositivos técnicos que nos fascinam
temporâneos. Raramente a FC consegue pelas novas possibilidades que fazem in-
predizer avanços tecnológicos, embora tuir. Tememos a possível subserviência a
“Há mais de um seja habitual que cientistas e engenheiros tecnologias que se tornam mais avança-
se inspirem no género para desenvolver das do que os seus criadores. Revemos
século que o novas tecnologias. fascínios, xenofobias e medos da relação
As obras reflectem as preocupações com o outro através do simbolismo dos
imaginário da das épocas em que foram escritas. Os alienígenas ficcionais e das suas exóticas
autores atrevem-se, nos seus e ses, a inter- culturas. Deleitamo-nos com a sólida
ficção científica rogar os limites teóricos das ciências, da construção imaginária de mundos fic-
História, da tecnologia, tudo o que cons- cionais de fantasia literária.
nos leva a olhar titui a maravilhosa procissão da huma-
nidade. Baseando-se em extrapolações
em frente” de base científica que tanto reflectem
“Technology is the quiet dri-
um optimismo ingénuo como um cinis- ver of most modern history”,
mo desencantado com potencialidades referiu o escritor e cientista Gregory
e consequências dos desenvolvimentos Benford numa entrevista recente – algo
Tememos o futuro. É-nos difícil con- tecnológicos, ajudam-nos a compreen- que é recordado no ar frenético da dis-
ceber o impacto das novas ideias, novas der melhor o mundo contemporâneo cussão mais mainstream sobre as trans-
tecnologias, novos modos de viver, no- fazendo-nos imaginar futuros. Tudo formações sociais trazidas pela tecno-
vos conhecimentos, do eterno e imenso isto empacotado em histórias divertidas logia, em discursos que oscilam entre a
novo. Sabemos que nos esperam de- e empolgantes que mantém vivo um surpresa com a rapidez transformativa,
safios civilizacionais talvez inultrapas- pouco de inocência e espirito juvenil de o deslumbre com as delícias dos gadgets
sáveis, sabemos que nos espera o des- aventura e exploração à descoberta do ou os temores catastrofistas sobre o co-
conhecido. Cada nova ideia, cada nova mundo. lapso iminente da humanidade perante
tecnologia, cada tendência traz consigo O género vai muito para além da fic- a ameaça dos teares mecânicos/fábri-
promessas de transformação que mal ção especulativa de base científica, indo cas tayloristas/máquinas inteligentes/
conseguimos descortinar. Marshall beber a variadas fontes que por sua vez o inteligências artificiais/redes sociais/
McLuhan, influente teórico dos media modelam e transformam. Associamos a isolamento na internet. Há mais de um
que intuiu que o poder transformati- FC a iconografias específicas: foguetões, século que o imaginário da ficção cien-
vo dos meios de comunicação alterava naves espaciais e habitats no espaço são tífica nos leva a olhar em frente, pre-
profundamente formas de conceber o algumas das mais clássicas imagens as- parando-nos para o futuro real em que
mundo, afirmou que as nossas tecnolo- sociadas ao género. Cientistas loucos e não imaginamos futuros plausíveis ou
gias nos modelam de maneiras inespe- donzelas em busca de salvação são tal- impossíveis, em essência reflectido no
radas. vez dos mais banalizados ícones do gé- impacto que a ciência e tecnologia têm
A ficção científica é um recreio de nero. Visualizamos robôs, mecanismos sobre a humanidade.
ideias que nos permite brincar de for- complexos conscientes de si próprios,
ma segura com o que nos atemoriza ou sexualizados como objecto de desejo
intriga. Possibilita-nos um espaço de ou mesclando o homem com a máqui-
experiências de pensamento, onde po- na. Reflectimos a diversidade de culturas
demos levar ao extremo as ideias que humanas recriando-as como aspectos de
nos atravessam o radar da curiosidade, vastas civilizações extraterrestres. Pro-
extrapolar os dilemas contemporâneos jectamos os devaneios arquitectónicos
e simular as suas consequências num em urbanismos futuros, utopias bucóli-
espaço virtual delimitado pela nossa cas de arquitecturas arrojadas, colisões
imaginação. É vista na cultura popular multiplanares de portentosas edificações
como preditora de tecnologias e futuros, ou vida a formigar na decadência catas-
mas funciona como uma estrutura que trófica do betão. Recriamos e antevemos

Artur Coelho não se consegue libertar da sen-


sação que a realidade mediada pelos sentidos
Bibliografia pode não ser de todo real. Professor do ensino
Aldiss, B., Wingrove, D. (1988). Trillion year spree: the history of science fiction. Londres: Grafton Paladin. básico e investigador na confluência da educa-
Brynjolfsson, E., McAfee, A. (2014). The Second Machine Age: Work, Progress, and Prosperity in a Time of ção com tecnologias digitais e 3D, nunca mais se
Brilliant Technologies. Nova Iorque: Norton. livrou do bichinho da FC desde que foi mordido
James, E., Mendlesohn, F. (2003). The Cambridge Companion to Science Fiction. Cambridge: Cambridge pelas Crónicas Marcianas de Ray Bradbury.
University Press.
Rothstein, E., Marty, M., Muschamp, H. (2003). Visions of Utopia. Nova Iorque: Oxford University
Press.
Slusser, G. (2014). A scientist-author at the heart of Hard Science-Fiction. Institute for Ethics and Emerging
Technologies, 20 de Fevereiro de 2014. Obtido a 20 de Março de 2014 no URL http://ieet.org/
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Watson, R. (2013). Trends and Technologies for the World in 2020. 14 de fevereiro de 2013. Obtido a
21 de Março de 2014 no URL http://toptrends.nowandnext.com/2013/02/14/trends-technolo-
gies-for-the-world-in-2020-2/

48 /// BANG!
por Safaa Dib

Q uando Robert Jordan faleceu em


2007, deixando por terminar a sua
obra-prima, a vasta série A Roda
do Tempo, tornou-se evidente que
alguém teria que ser incumbido de terminar a
série no lugar do autor, respeitando os seus últi-
Books, não foi o primeiro livro de fantasia do
autor de 38 anos de idade. Elantris, o seu ro-
mance de estreia, já tinha sido publicado em
2005 pela Tor Books e já prenunciava uma das
características que o viria a distinguir no meio
da fantasia: um pendor para sistemas de magia
mos desejos e notas, o seu estilo e voz. originais.

Alguns meses depois, foi anunciado que Bran- A magia é tão vital para Sanderson que ele che-
don Sanderson fora escolhido pela viúva do gou ao ponto de enumerar as três leis de San-
autor, Harriet McDougal, para terminar a série derson: a capacidade de um autor em resolver
pois ficara muito impressionada com Sander- um conflito de modo satisfatório com magia é
son após ter lido O Império Final, o primeiro directamente proporcional à capacidade do lei-
volume da saga Nascida na Bruma. Entre 2009 tor em compreender essa magia; as limitações
e 2013, ele viria a escrever os últimos três vo- de uma personagem são mais interessantes do
lumes da Roda do Tempo com uma rapidez e que os seus poderes e, por fim, um escritor
disciplina impressionantes. deve sempre expandir primeiro o seu mundo
O Império Final, publicado em 2006 pela Tor antes de acrescentar algo de novo.

BANG! /// 49

Gosto de
personagens
equilibradas
e confiantes
O
O I MPÉR IO F INAL
Império Final é um livro engana-
dor. Enganador no sentido de
que a trama poderia facilmente des-
A alomância dá origem a algumas das ce-
nas de acção mais intensas do livro. As lu-
tas são todas descritas com base na magia
alomante. Por exemplo, os nascidos nas
brumas recorrem a puxões-de-ferro ou
empurrões-de-aço para voar sobre a cida-
crever-se em um parágrafo e, mesmo
que, por vezes, assim, não apanharíamos a complexi- de ou desarmar um inimigo, respeitando
sempre as leis da Física. Se um alomante
dade subjacente ao enredo. O prólogo
cometem más encarrega-se rapidamente de descrever deitar uma moeda ao chão e puxar contra
ela, isso permite-lhe voar pelo ar.
decisões. Acredito o essencial: há uma classe fortemente
oprimida e escravizada, os skaa, que
que a maioria está há séculos à mercê dos caprichos
O B ANDO DE K ELSIER
do Senhor Soberano e das casas de no-
das pessoas são na bres.
essência boas, e Cinzas caem do céu na capital de Lutha- D esde as primeiras páginas, é traçado
o objectivo de Kelsier: derrubar o
interessa-me ler del e as brumas invadem a noite numa Senhor Soberano e, para isso, congrega
uma equipa de alomantes a quem reve-
terra suja e desolada. Não sabemos re-
sobre pessoas que almente o que se passou para tudo ser la parte do seu plano. É, na sua aparên-
cia, uma trama linear. Mas na verdade,
tentam ser boas.” tão sombrio, mas o Senhor Soberano
governa inquestionavelmente, sendo Kelsier não revela a totalidade do plano,
considerado um herói que passou pela nem adivinha muitos imprevistos e sur-
Ascensão e salvou o mundo da Profun- presas. Não esperava conhecer Vin, uma
deza, embora algo tenha corrido mal. órfã ladra que quase termina nas garras
dos Inquisidores de Aço ao usar os seus
No início de cada capítulo, temos aces- poderes latentes perto deles. Será Kelsier
so a excertos de um livro escrito por um a salvá-la e iniciá-la na magia, mesmo
herói das profecias ao longo da sua mis- quando Vin está tão desesperadamente
são. À medida que se revelam esses ex- desconfiada das intenções do bando e do
certos, o leitor ganha uma maior com- seu líder. A vida nas ruas mostrou-lhe da
preensão da história que deu origem ao forma mais dura que não deve confiar em
Império Final. ninguém, mas os seus poderes de nascida
nas brumas iniciam-na num percurso re-
pleto de perigos e excitação.
U M SISTEMA DE Apesar de um considerável leque de per-
MAG IA CR IATIVO sonagens secundárias interessantes, e dos
estreitos laços que se formam entre os
K elsier desenvolvera inicialmente
uma reputação como fora-da-lei
destemido e ousado e líder dos mar-
membros do bando, é o duo dinâmico
Kelsier e Vin que impele grande parte
do enredo. Kelsier está longe de ser o tí-
ginais da cidade até ao momento em pico protagonista heróico. Comete mui-
que é traído, capturado e enviado para tos actos repreensíveis e a sua obsessão
os Poços de Hathsin onde nenhum pelo Senhor Soberano traz-lhe apenas
homem sobreviveu. Mas as cicatrizes dissabores e uma visão manchada pelo
nos seus braços contam outra história. seu desejo de vingança. Ele quer libertar
Não só sobreviveu, como despertou os os Skaa da opressão, mas ele não aceita
seus poderes da Alomância e se tornou nada mais além da sua visão pragmática,
nascido nas brumas. A Alomância é por vezes, brutal e cruel. Vin admira-o e
um sistema de magia muito curioso e rapidamente percebe como o passado de
que merece ser descrito um pouco mais Kelsier ainda o atormenta. Unidos pelo
em pormenor. Um alomante tem a ca- laço da Alomância, ambos os protagonis-
pacidade de queimar certos metais no tas irão aprender lições importantes pelo
seu corpo (ingeridos numa solução). A caminho.
maioria dos alomantes só tem a capaci-
dade de dominar um metal, mas exis-
tem os nascidos nas brumas que conse- O S VILÕES
guem queimar todos os metais. Assim,

D
temos várias classes de alomantes con- uas outras entidades assumem uma
soante o metal que usam: os calmantes importância vital no Império Fi-
(latão), os fumadores (cobre), ou os nal: os Impositores e os Inquisidores de
brigões (peltre). E temos os nascidos Aço. O Senhor Soberano estabeleceu o
nas brumas. Ministério de Aço para controlar os No-

5500 ///
//// BBANG!
ANGG!!
AN
bres que, por sua vez, controlam a sociedade.
A maioria dos impositores são nobres com GALERIA DE PERSONAGENS
poderes alomantes e que são chamados como
testemunhas para todos os acordos ou contra- DE O IMPÉRIO FINAL
tos entre nobres. As suas caras estão decoradas
por tatuagens e, quanto mais elevado o cargo,
prepare-se para conhecer o bando de rebeldes
maior a tatuagem. Os Inquisidores de Aço são mais fascinante da história da literatura
criaturas de outro tipo. No lugar dos olhos têm
espigões de aço e constituem a maior ameaça
fantástica
ao bando de Kelsier. A principal função dos In-
quisidores é a de perseguir Skaa alomantes ou
nascidos nas brumas, matá-los e roubar os seus KELSIER (KELL) HAMMOND (HAM)
poderes. Entre os Impositores e Inquisidores Tornou-se conhecido como o Um membro alomante do grupo
de Aço existe uma relação tensa de poder. Sobrevivente de Hatshin por ter de Kelsier, da classe dos brigões,
escapado das condições brutais que queima peltre para obter
da prisão dos Poços de Hatshin força.
A IMPOR TÂNCIA onde se tornou um nascido nas
DA RELIG IÃO brumas. Outrora um famoso
ladrão, a sua fuga tornou-se len- LADRIAN (BRISA)

S eria uma pena não mencionar uma das per- dária, bem como os poderes de Membro alomante do grupo de
sonagens secundárias mais fascinantes: Sa- Alomância que desenvolveu na Kelsier, da classe dos Calmantes,
zed. É uma Guardião terrisano, pertencente a prisão. É o estratega de um pla- que queima latão para exercer
uma raça quase extinta, que domina a magia da no audacioso para pôr um fim à influência emocional.
Feruquimia. A Feruquimia permite ao seu por- escravatura do povo dos Skaa.
tador usar os metais como unidades de armaze-
namento dos seus poderes. MESTRE CLADENT (COXO)
V IN Membro alomante do grupo de
O seu vasto conhecimento das religiões do Uma órfã e ladra que vive nas Kelsier, um Fumador, que quei-
passado faz com que Kelsier lhe peça sempre ruas, é recrutada por Kelsier ma o cobre para evitar a deteção
ao longo do livro para que descreva algumas para a sua equipa, após revelar de poderes de Alomância.
dessas religiões, as suas práticas e crenças. O ser nascida nas brumas e com
que leva à criação de uma lenda? Como nasce a incríveis poderes de Alomância.
fé? O que define um herói e um líder? Através É também recrutada como espia LESTIBOURNES (SUSTO)
dos diálogos de Kelsier e Sazed, acabamos por entre as casas dos Nobres. É a Membro alomante do grupo de
obter algumas reflexões surpreendentemente protagonista principal e grande Kelsier, um vista-de-estanho,
profundas. parte da história é contada através que queima o estanho para obter
da sua perspetiva. sentidos mais apurados.
A cruzada de Kelsier contra o Império Final
não está condenada a arrastar-se por vários li-
vros. Se há algo que distingue enormemente O SENHOR SOBERANO SAZED
Império Final de outras fantasias é a sua habili- O governante implacável do Um terrisano e Guardião, es-
dade em contar uma história com início, meio Império Final. As suas origens pecialista em religião e línguas
e fim e gerar uma conclusão muito satisfatória. são desconhecidas e rodeia-se de antigas.
O livro é o primeiro de uma trilogia, mas con- impositores e inquisidores de aço.
segue a proeza de iniciar e concluir um vasto Uma enigmática lenda, carregada
arco de história num único volume. Claro que de misticismo, rodeia o início da ELEND
algumas questões nos ficam na mente após o sua liderança. De modo a se tor- Um jovem nobre e herdeiro da
fim e as brumas ainda são demasiado misterio- nar o Senhor Soberano, cumpriu Casa Venture. Conhecido pelas
sas para o nosso gosto, mas não há a praga dos a profecia da Ascensão e afastou suas tendências bibliófilas e por
cliffhangers. As cenas de acção são muito intensas a Profundeza, mas desde então o ter uma personalidade excêntrica,
e as últimas 300 páginas são imparáveis com al- mundo tornou-se mais desolado tem uma relação difícil com o seu
gumas reviravoltas interessantes de enredo. É e sombrio. pai, Lorde Straff Venture.
fácil de compreender quando se chega ao fim
porque a viúva de Robert Jordan ficou impres-
sionada com Brandon Sanderson. DOCKSON (DOX) MARSH
Amigo de longa data e membro Irmão de Kelsier e determinado a
da equipa de Kelsier. É respon- derrubar o Império Final a todo
sável pelas operações da equipa e o custo.
sua organização. Não tem pode-
res de Alomância.

BANG! /// 51
52 /// BANG!
BANG! /// 53
54 /// BANG!
Entrevista a
BRANDON
SANDERSON
Por João Campos, exclusivamente para a revista Bang!
(A entrevista que se segue é a transcrição de uma gravação áudio gravada pelo autor para esta entrevista)

C
omeçou a sua série acho que ainda não tinha essa ideia quando
Nascida na Bruma escrevi a primeira versão do primeiro livro
em 2006, com a que não é a versão que acabou por ser


publicação de O publicada.
Império Final. Qual foi
a faísca – o primeiro O cenário e personagens da série tendem Quando
conceito ou ideia, a evitar a tendência “grimdark” que comecei a
personagem ou situação – que deu vida ao está a dominar grande parte da fantasia
universo do livro? contemporânea, com universos negros e escrever
desesperantes e personagens moralmente
Diria que a primeira ideia girou em torno ambíguas. Foi deliberada da sua parte esta fantasia, sentia
de uma possível vitória do vilão. O que decisão ou não pensava nisso à medida que que uma das
aconteceria se os vilões ganhassem? E se o desenvolvia o mundo ficcional?
herói profetizado de uma dessas histórias coisas que a
de fantasia épica falhasse? Achava essa Diria que me encontro algures no meio.
ideia fascinante. Nunca tinha lido essa ideia “Grimdark” ainda não era tão popular fantasia podia
antes. Eu adoro fantasia – passo imenso quando escrevia este livro, mas George R. fazer melhor,
tempo a ler fantasia. Por isso, criar uma R. Martin era a força dominante na fantasia
história que subvertesse as convenções épica. Houve muitas reacções no sentido mas ainda
soava-me como algo muito interessante. de imitar George R. R. Martin da parte de
escritores que estavam a começar a escrever não tinha
Tinha consciência desde o princípio de que ficção. Eu li A Guerra dos Tronos e pensei: desenvolvido
a série Nascida na Bruma constituiria mais “há alguma coisa que possa aprender
do que uma trilogia? com isto?”. Ele é certamente um escritor mais, era inovar
fabuloso, mas acabei por perceber que não
Não sei indicar o momento exacto em que era aquilo que queria para mim. Tomei a nos sistemas de
me apercebi disso. Antes de ser lançado decisão consciente de não escrever no seu magia.”
o primeiro livro, falei com o meu editor estilo. Gosto de personagens equilibradas
sobre uma ideia para três trilogias. Ainda e confiantes que, por vezes, cometem
estava muito no início do processo, mas más decisões. Acredito que a maioria

BANG! /// 55
das pessoas são na essência boas, e Chegou a elaborar as três Leis de
interessa-me ler sobre pessoas que Sanderson sobre a criação de sistemas
tentam ser boas. Ambiguidade moral de magia. Como encara a magia na
é uma coisa, mas penso que muito do fantasia contemporânea? Acha que
género está a optar por chocar e por os autores de hoje estão a abordar a
dizer “aposto que não sabiam que o magia de uma forma lógica e séria ou
herói iria fazer isso”, e depois o herói apenas porque acham que fica bem?
acaba por o fazer. Quero que as minhas
personagens – até mesmo os vilões Ambas as abordagens existem e são
– tenham uma centelha de heroísmo. válidas. Gosto da forma como muitos
Quero que sejam pessoas que possam abordam a magia de uma perspectiva
ter feito as escolhas erradas, mas que científica, mas não precisa de ser
são admiráveis de uma forma ou outra. baseada na ciência para ser racional.
É por isso que leio ficção e é por isso Podemos criar uma magia que nunca
que escrevo ficção. Diria que não faço é explicada, mas que é consistente, e
conscientemente parte do movimento isso será tão bom quanto as magias
“grimdark”. Embora aprecie que a que eu crio. Por vezes, podemos ter a
fantasia seja grande o suficiente para descrição de uma magia incrivelmente
abarcar diferentes estilos de escrita e inconsistente, mas ainda assim
reconheça que muitos desses escritores fascinante. Gosto do facto de o
são excelentes, não é aquilo que quero género estar a explorar todas estas
fazer. Ainda quero escrever sobre direcções um pouco e colocar as
heróis, mesmo que sejam heróis com questões: Porque temos esta magia? O
Brandon falhas. que é que está a acrescentar à história?
E o que é que essa magia faz? Estas
Sanderson Uma das coisas que descreveu com ideias são muito cativantes para mim
é uma estrela em ascensão na fantasia grande cuidado na série Nascida na e há muitos escritores a levar isso a
norte-americana conhecido pela sua Bruma consiste no sistema de magia sério. Fazermos este tipo de perguntas
saga Mistborn e por ter terminado da Alomância, uma abordagem muito tornou-se a nova tendência da fantasia
a série de fantasia épica A Roda do racional da magia baseada em metais. É
Tempo de Robert Jordan, após o seu também um conceito muito original – Já era um fã da série A Roda do
falecimento. Em 2010, iniciou uma o que esteve na origem dessa ideia? Tempo de Robert Jordan quando foi
nova série de fantasia, Stormlight escolhido para escrever os últimos
Archive, com o título The Way of Kings, Quando comecei a escrever fantasia, livros depois da sua morte. Quão
além de outras séries direcionadas para sentia que uma das coisas que a fantasia desafiante foi pegar na série no ponto
o público jovem-adulto. Dá aulas de podia fazer melhor, mas ainda não em que ele a deixou, considerando a
escrita criativa e participa em podcasts tinha desenvolvido mais, era inovar magnitude da saga?
sobre escrita e o género fantástico. nos sistemas de magia. Alguns autores
estavam a fazê-lo muito bem e eu É uma excelente questão. Foi um
sabia que queria fazer parte disso, dos maiores desafios da minha vida.
dessa tentativa de pegar na magia e É difícil exprimir muito daquilo que
explorar novas direcções. Era algo que tinha que ser feito. Eu precisava de
tinha muito presente na minha mente. escrever os livros como se ele ainda
Quanto à Alomância em si, disse para estivesse presente, mas ao mesmo
mim mesmo “quero brincar com tempo introduzir a minha voz de
ciência e magia”. Queria conjugar o forma equilibrada. O mais difícil foi
lado científico e magico em simultâneo. lidar com as personagens. Manter-me
Gosto de encarar a magia nos meus a par de tantas personagens e
livros como um novo ramo da Física escrevê-las de uma forma que
que não existe no nosso mundo; isso lhes fizesse justiça foi a parte mais
é algo que acho muito interessante. incrivelmente desafiante numa série
A ideia que serviu de base para a tão popular e bem-sucedida.
Alomância era a ideia de um sistema de
magia com uma base racional científica,
como os vectores e o metabolismo,
Obra:
b O Império Final mas numa pespectiva mágica e com
Autor: Brandon Sanderson algum sentido de deslumbramento. É
Género: Fantasia Épica o que adoro fazer. É o que me excita
Editora: Saída de Emergência sobre a magia. E é por isso que dou
Tradução: Jorge Candeias por mim sempre a tentar criar sistemas
Páginas: 624 de magia diferentes baseados, em parte,
PVP: 22,00€ na ciência.
ISBN: 978-989-637-638-3

56 /// BANG!
A Saída de Emergência propôs-me
continuar a nossa colaboração,
convidando-me a ilustrar a capa do
primeiro volume da saga Nascida na
Bruma de Brandon Sanderson. Já tinha
feito uma ilustração para a capa da
revista Bang!, e outra para A Espada de
Shannara, o primeiro romance da saga de
Terry Brooks, publicado pela Saída de
Emergência Brasil. Foi com
grande entusiasmo que
aceitei a proposta.

I lustrar capas de romances tem sido um dos trabalhos que gosto mais
de fazer, tanto pelo conteúdo das histórias que me têm chegado,
como pela liberdade que me costumam dar, e especialmente porque,
ao contrário do meu trabalho habitual de ilustração para a indústria de
videojogos (que depende quase sempre de uma grande equipa e envolve
muitas regras definidas pela direcção de arte), sinto maior proximidade a
uma visão de autor e uma ligação mais pessoal com a “matéria prima”,
ou seja, o texto.

F oi-me sugerida, pelo Luís Corte-Real, uma cena para


representar: Vin, a protagonista, sobre a paisagem
grandiosa de Luthadel ao luar, com a característica ne-
blina a espalhar-se pela cidade.

F iz a minha pesquisa no sentido de visua-


lizar esse ambiente. Às referencias visu-
ais que me foram enviadas (capas de outras
edições e ilustrações existentes online de
personagens da história) juntei uma
busca minha. Esta teve duas
vertentes: o ambiente e pale-
ta de cores e as referências de
arquitectura. (figuras 1 e 2).
Para o ambiente, procurei
principalmente concept art
para títulos com

BANG! /// 57
1 2

bons ambientes nocturnos, que utilizei


como meta visual. Foi desde logo uma
ajuda que algumas destas imagens retra-
O primeiro passo do trabalho pro-
priamente dito passou pela elabo-
ração de 3 esboços em tons de cinzento,
meu PC não é propriamente a máquina
mais potente do momento. O esboço
foi então colorido com uma paleta azul
tassem já mundos fantásticos, sem re- com diferentes ideias de dinamismo e simples, definindo desde logo a gama
lação directa – histórica ou geográfica composição. Tentei ser o mais econó- de valores e a profundidade atmosféri-
– com a realidade. mico possível com estes, tendo utiliza- ca do cenário. Seguidamente, ampliei a
Tentei uma abordagem desse género, ao do uma foto para o céu, por exemplo, imagem para a sua resolução final, para
retratar Luthadel. No entanto, para os como truque para inserir detalhe rápido. poder começar a definir detalhes.
pormenores da mescla arquitectónica Destas três, a SdE escolheu a opção B

V
procurei por referências fotográficas, (fig. 3) isto que a personagem é o foco 1
desde catedrais góticas diversas, cúpulas da ilustração, optei por dese-
londrinas, até aos telhados incríveis de
Praga. Tudo o que me lembrei (dentro
da arquitectura pré-industrial) que pu-
E ra o esboço com menos dinamis-
mo, apesar de a composição ser
bastante dramática. Tentei que a imobi-
nhá-la em detalhe com linhas limpas
(fig. 4). Fi-lo numa camada superior
ao esboço, enquanto esforçava o meu
desse dar uma silhueta interessante ao lidade da personagem fosse compensa- muito reduzido conhecimento de de-
topo da cidade. da pelas linhas ondulantes dos retalhes sign de moda fantástica tentando dar
Para realçar o aspecto épico e fantásti- da capa ao vento. um aspecto minimamente interessan-
co da imagem
incluí, ao fun-
do do cenário,
uma torre de
proporções
gigantescas,
com um de-
senho qua-
se de um
arranha-céus
moderno mas
com deta-
lhes góticos.
Assim, pen-
so que ficou
anulada qual-
quer remi-
niscência que
existisse de
alguma cidade
europeia.

O software utilizado, que é aquele


com que quase sempre trabalho,
foi o Photoshop, versão CS6, com um
T inha feito os esboços num tama-
nho muito mais pequeno que a
ilustração final por dois motivos: para
te e misterioso à ladra-heróica. A ta-
refa foi facilitada por a descrição da
personagem já incluir o guarda-roupa,
conjunto de pincéis relativamente sim- não correr o risco de me focar, nesta sendo que a capa retalhada em tiras
ples, alguns standard do programa, ou- fase, em pormenor desnecessário, e para era obrigatória e é o seu traço visual
tros meus e outros reunidos de colec- assegurar a fluidez ao trabalhar com as mais identificável.
ções partilhadas por outros artistas. ferramentas do programa, visto que o Comecei também a detalhar mais um

58 /// BANG!
pouco o fundo,
definindo me-
lhor as caracte-
rísticas dos edi-
fícios.

N a fase que
se vê na
imagem (fig. 5),
as cores ain-
da algo lisas e
linhas limpas
começaram a
incomodar-me
um pouco, por
me sugerirem
um estilo mais
comic, que não
era o pretendido,
principalmente
porque me pe-
diram expressa-
mente para que a
ilustração não tivesse traços de Young Adult, pelo que
procurei aproximar-me de um tipo de tratamento pró-
prio do que é mais visto na fantasia clássica, de aspecto
tradicional e com algumas pretensões realistas. Tratei
assim de adicionar textura e pinceladas mais enérgicas
e de cores mais variadas (fig. 6).

O resto dos passos consistiu na adição algo previsí-


vel de detalhe. Pintura de telhas, janelas, nuvens,
multiplicação de edifícios, definição das propriedades
Espero que a capa agrade aos leitores e sobressaia na
prateleira! Pela minha parte, como fã de literatura
fantástica, fico muito contente que a Saída de
dos materiais da roupa da personagem, e certificar-me
de que esta sobressaía do fundo (algo que o contorno Emergência tenha dado uma oportunidade a este
branco do luar ajudou a realçar), até chegar ao resul- tipo de ilustração, que tende a ver-se menos hoje em
tado final, que espero ser um compromisso suficiente- dia, e ainda mais contente que eu tenha feito parte
mente equilibrado entre fluidez e detalhe. Aspiro sem-
dessa decisão. Se tudo correr bem, esta colaboração
pre a desenvolver mais a fluidez das pinceladas, e sinto
que muitas vezes me perco na rigidez dos pormenores, continuará a repetir-se.
mas o progresso vem com o tempo e obcecar com a
perfeição só torna as coisas mais rígidas.

Luis Melo nasceu em Lisboa em 1981. Estudou Design de


Comunicação na Faculdade de Belas-Artes da Universidade
de Lisboa, porém aprendeu ilustração digital paralelamen-
te, como autodidata, online. Esta passou a ser o foco da sua
carreira, ligada na maior parte à indústria dos videojogos,
tendo trabalhado não só como freelancer em projectos
para os mais diversos países, mas também como concept
artist em vários estúdios, um deles em Xangai (Spicy Horse
Games), onde viveu entre 2009 e 2010. Outros dos seus in-
teresses incluem a escrita de ficção científica, instrumentos
de percussão, e pratos picantes.

BANG! /// 59
60 ///
/// BANG!
BANG! /// 61
R
aimundo afunila o olhar pelo cessam de ser excretados pelo monstro, novamente em casa, contorna com as
infinito dos campos e ao longo que se multiplica e preenche toda a su- pontas dos dedos o circuito de tubagens
da ponte rosada, ferruginosa, perfície do vidro, pronto a rebentar com subcutâneas que ramificam ao longo das
que liga Lisboa à outra margem. a derradeira protecção que o limita. paredes do apartamento. Estaca diante
Tenta não pensar. “Ligo-não-ligo”. Não, “6ºC”, indica o termómetro do da grelha desumificadora do escritório. O
melhor não pensar. Mas o Tejo emerge mostrador, no lado interior da porta. ar parece-lhe, agora, mais fresco e seco.
do Hades, sobre a maquinaria e parafer- “Não é suficiente para o debelar”, pensa Graças ao Dürer, a fonte fria de onde
nália de aço, com aquele bafo húmido e Raimundo, “preciso de baixar mais a radia o sistema de tubagens. Ou graças
pestilento, especialmente carregado nos temperatura”. Olha para os ponteiros do ao efeito de sugestão, considerando que
dois últimos dias, assim sentem os pul- manómetro. Os níveis de amónia e de Raimundo nem confirmou o termóme-
mões de Raimundo, traumatizados pelos hidrogénio estão bem, mas os valores de tro do Dürer, prefere não tirar a limpo.
episódios de asma na infância. E dá por pressão do condensador encontram-se Melhor ficar com a sugestão, enquanto
si a hiperventilar, a sentir, nas palmas das abaixo do normal. “Preciso, portan- escorrega no couro áspero do cadeirão
mãos, o afloramento de uma sudação to, de mais calor”, conclui Raimundo. do escritório, frente à secretária colonial
profusa. “Isso são coisas da tua cabeça” Paradoxo dos tempos, mais calor para de ébano, ocupada pelo cilindro metaliza-
dir-lhe-ia o seu irmão mais novo. “São as baixar a temperatura. E só há uma forma do e manivela do telegraphone.
tuas paranóias, mais um ataque de pâ- de o fazer. Retira de uma gaveta uma “Ligo-lhe? Não lhe ligo?” ocorre-lhe
nico”. Raimundo sabe que sim, acredita carbo-lâmina, espátula de aço perfura- de novo à mente. “Merda”, solta, com
nestas palavras, mas o corpo trai-o logo da, com micro-pastilhas de querosene um suspiro, perante a inevitabilidade do
de manhã, a resposta vagal sobrepõe-se à hiperactivo, e um cabo de borracha que vai fazer. Tão certo como já sente os
razão. Vira costas à marquise e percorre, com um botãozinho verde na ponta. dedos ocultos, demenciais, da lascívia, a
com rapidez trôpega, pelo corredor es- Encaminha-se para a área comum do 5º trepar-lhe as entranhas. De uma forma
treito da cozinha. Pé esquerdo, pé direito, andar, um espaço apertado, dominado retorcida, o nojo e o pavor pela mons-
esquerdo-direito, esquerdo-direito, na di- pela caixa do elevador, sob a luz crepi- truosa fungosidade culmina-se-lhe num
recção do Dürer, o imponente Metafrigo- tante de uma lamparina. Está agarrada à travo a líbido na boca. Sabor que faz por
rífico de bronze, que ocupa a parede do parede rugosa do átrio, mal iluminando o colmatar, servindo-se de um cálice de
fundo. Raimundo leva as mãos ao volan- soalho oleoso, que Raimundo calcorreia absinto, sintonizando a telefonia, onde
te de escotilha já com a força a evadir-se em bicos de pés, de respiração sustida, há dois dias se comentam os estilhaços
dos braços. Roda o volante, e destranca contra a atmosfera plúmbea, carregada do meteoro que veio colidir com a Eu-
os vários trincos que serpeiam a reticu- de petro-combustível. Debaixo da lam- ropa. “Felizmente somos uma colónia
lata couraça, de robustez paquidérmica. parina está o gerador, uma salamandra de africana, não fazemos parte da Europa”
Um som cavo antecede o vapor baço estanho encastrado na parede. Abre-lhe irrompe uma voz roufenha da amálgama
que se expele com o entreabrir da porta. a tampa rebordada, revelando o quadro de sons distorcidos e fogo cruzado de
Um vapor frio, que Raimundo recebe no com as ranhuras onde se inserem as interferências. Raimundo ouve, mas não
rosto com gratidão. Uma frescura que carbo-lâminas. A de Raimundo já pisca ouve. Bebe o álcool, mas não o bebe. O
o reanima. As mãos tornam a secar, o no amarelo, como, de resto, quase todas telegraphone incita-o. A líbido destaca-se
rosto enrubesce-se, braços recuperam as outras, excepto a do 5ºE, que há dois do corpo, como a pele de um fantasma.
o viço. A respiração sôfrega atenua-se dias se encontra no vermelho. Raimun- E a agulha roda para a frequência secre-
e Raimundo semicerra os olhos, inspira do franze o sobrolho, mas lá substitui ta, a manivela começa a girar sozinha,
fundo, embora não totalmente sereno. a sua carbo-lâmina, que passa a emitir rolando o cilindro e fios de alumínio
Sabe que, quando os reabrir, encontrará uma luz verde reluzente. Ao fechar-se que o envolvem, conectados ao bocal
diante de si, numa prateleira metálica do do auscultador, que perscruta Raimundo
Metafrigorífico, no cimo do lado direito, com o olhar hipnotizante de uma cobra.
acondicionado a um canto, o mostrengo.
Ainda ali estará, dentro do tupperware
“Mas o Tejo emerge Pouco depois, tocam-lhe à porta.
Uma porta que hesita, até se abrir
quadrangular de vidro. Há semanas que
repousa naquele nicho, hermeticamente
do Hades, sobre devagar, rangendo, com pesar, as do-
bradiças. Sob a luz da lamparina do hall,
fechado. Quieto, silencioso, ameaçador.
Um mostrengo azul-esverdeado, ou ver-
a maquinaria e brilham uns olhos grandes, negros, rasga-
dos, espreitando pelas espirais de cabelo
de-azulado, conforme a perspectiva. Um
ser informe, esponjiforme, fibroso. Um
parafernália de aço, que contornam as feições do rosto. Um
rosto onde uns lábios carnudos esboçam
bolor que começou por ser um arroz de
marisco, mas que o “princípio activo”
com aquele bafo um sorriso sardónico, em forma de quar-
to decrescente. Diante dela não está, pro-
devagar tomou conta, transformando-o
naquela criatura. Raimundo repete a si
húmido e pestilento, priamente, o cliente mais charmoso do
mundo afro-ariano, com aquela máscara
mesmo, sempre, a mesma desculpa. Que
não o deitou fora a tempo, que as hifas
especialmente cirúrgica de linho a cobrir nariz e boca,
luvas de borracha e um olhar sisudo,
do mostrengo surgiram de um dia para o
outro, que agora já é tarde demais. Jamais
carregado nos dois mas siderado, a percorrer-lhe as sinuosas
curvas do corpete grená. Um corpete de
conseguirá pegar-lhe e muito menos
abrir a tampa plástica do recipiente. Tam-
últimos dias, assim cabedal, assente nos folhos negros da mi-
nissaia, com cinta de ligas enganchando
pa que vai cada vez mais se abaulando.
Gás metano e dióxido de carbono não
sentem os pulmões nas meias de rede, que enformam umas
pernas torneadas, longilíneas, enfiadas
de Raimundo...”
62 /// BANG!
numas botas de verem-se em óleos e o apetecível corpo nele, massajando-lhe o peito. Olhos nos
salto alto. Ela esten- de Alcídia a aproximar-se, insinuante, so- olhos, cliente e massagista. Um brilho
de-lhe, graciosamente, bre o seu corpo. Mas Raimundo é traído nos olhos de Alcídia reflecte Raimundo
a mão fina, ornada de pela gota de suor que volta a formar-se por inteiro.
um punho de renda, tatuada na testa. Sente, novamente, o bafo nau- “O meu irmão...”, retoma ele, “há
com uma cornucópia branca seabundo. O olhar dirige-se para a grelha dois anos que não o vejo. Ele tem uma
que serpenteia o pulso até ao nó do desumificadora do quarto, lembra-se filha com dois anos, que eu nunca vi”.
polegar, realçando o tom castanho da do monstro do frigorífico. A respiração “Porquê?”, pergunta Alcídia.
pele sedosa, bonita, perfumada. torna-se ofegante. “Porque eu não consigo sair da mi-
“Olá, eu sou a Alcídia”. “Sossegue” soa a voz de Alcídia, nha casa. Tenho esta doença, esta fobia.
“Raimundo”, responde ele, com agora mais doce, enquanto poisa as mãos Perdi até... o meu emprego”.
atraso, e baixa a máscara, retira uma luva aveludadas nas costas de Raimundo, co- “E onde é que trabalhava?”, indaga-o
e as mãos tocam-se. Pele na pele. Emba- meçando a massajá-lo com suavidade. “E a masseuse, num tom casual, sem abrandar
raçado, mas sorridente, Raimundo confia. relaxe, vai sentir-se bem”. a massagem.
Apercebe-se que é o primeiro diálogo Alcídia desliza sobre Raimundo. Ele “Nos campos de ensaio. Fazia expe-
que entabula, este dia. sente-lhe o macio do interior das coxas, riências manipulativas com o princípio
“Fui usada, muitos anos, em serviços que vêm-se-lhe enlaçar na cintura. O activo, tentando criar peixes por geração
de autopsicanálise”, avisa-o Alcídia, “te- coração palpita, esquece-se, por mo- espontânea. Corvina, Perca-sol, enfim...
nho os circuitos mecano-neurais progra- mentos, da dificuldade em respirar que hoje sou apenas um teórico, fechado
mados para sintonizar o subconsciente agudizou nos últimos dias. As mãos de nesta prisão”.
do cliente. Já fui reformatada mas, sabe Alcídia palmilham-lhe as costas e o corpo “E porque é que o seu irmão não o
como é, ficam sempre resquícios”, con- sinuoso da masseuse acompanha os movi- vem visitar?”
clui, de olhos postos no rosto intrigado mentos dos braços, roçando os mamilos “Ele vive na outra margem. Recu-
de Raimundo, e remata ainda: “espero túrgidos na pele excitada de Raimundo. sa-se a atravessar a ponte, acho que de
que não haja problema, ou então pode Os dedos de feiticeira crescem para a propósito. Para me penalizar”, responde
chamar outra masseuse”. secção dos ombros, descongestionam-lhe Raimundo. Alcídia detecta-lhe um sofri-
Mas Raimundo diz que não, não há os nódulos doridos da nuca. mento contido no tom de voz.
problema e, pouco depois, estão os dois “Pode virar-se”, diz-lhe, por fim. Rai- “Porquê penalizá-lo? Por você ser...
no quarto. Numa borda da cama, ela mundo torna a obedecer, mas ao voltar-se assim?”, pergunta ela.
pede-lhe auxílio para desapertar o corpe- encontra-a de olhos postos no fundo do “Ele perdeu um braço, nas guerras
te. Os dedos de Raimundo percorrem a quarto, maravilhada. Por cima da cómoda, afro-arianas. Guerras que eu, por ser assim,
fieira de cordões e fivelas. Ao desenco- atrás de um rinoceronte talhado em pau não fui combater. Ele foi no meu lugar”.
brir-lhe o ombro esquerdo, repara que preto, e ao lado da estatueta de uma gira- Alcídia não diz nada, continua a
ela tem, desenhada na omoplata, outra fa está, pendurada na parede, uma peça massajá-lo. Até que os dedos suaves,
tatuagem branca. Pétalas de uma flor, que magnífica. É uma máscara de gás, com nas clavículas, se transfiguram em lá-
se perpetuam num caule folhoso e recur- peças de marfim incrustadas numa matriz bios. Lábios que descem pelo peito, até
vado à medida que o corpete vai sendo de couro, tachas douradas ao longo das à barriga, bordejando a zona pélvica.
despido até à base das costas. Umas costuras, respirador de bronze e discos
costas bem torneadas, com uma elegante oculares bordeados em ouro.
linha de vértebras. “Foi o meu avô que trouxe da metró-
“É uma açucena” responde Alcídia, pole. Há muitos anos. Quando a metró-
à pergunta que Raimundo não chegou pole era ainda uma colónia. Só existem
a formular. “Mas dispa-se também, e duas como esta”.
vire-se de barriga para baixo”, diz-lhe “E onde está a outra?” pergun-
num tom seco, adejando os volumosos ta Alcídia, sem tirar os olhos da
seios desnudados, ao debruçar-se sobre máscara.
a cinta de ligas, que desafivela com um “Tem o meu irmão”
gesto treinado. Raimundo obedece-lhe responde Raimundo,
e encontra-se nu, deitado de costas para com uma voz grave,
cima, ouvindo melancólica. Alcídia
sons de prepa- detecta-lhe o tom,
rativos. As mas retoma a
mãos a tarefa, encai-
envol- xando-se

BANG!
BBA ///
ANNGG! ///
//// 63
63
Raimundo sente-lhe a língua, a enros- vem de esporos pela boca. Algo em Rai- o percurso, Alcídia deixa escapar uma
car-se na zona do umbigo. Soluça, na mundo sabe do que se trata. Num gesto lágrima, que não sabe se é sua ou se é
antevisão do prazer, mas Alcídia sustém urgente agarra na máscara da cómoda e líquido dos circuitos mecano-neurais.
o movimento, faz uma pausa e levanta pega em Alcídia ao ombro. No átrio, gri- “Também te amo”, murmuram os lá-
a cabeça para ele. ta por ajuda aos vizinhos, mas ninguém bios da masseuse.
“Se deseja mesmo mudar algo, expe- responde. Verifica a salamandra. Todas
rimente começar pelas pequenas coisas”, as carbo-lâminas, excepto a dele, estão no Dois meses depois, a fungosidade
diz-lhe, com um olhar assertivo, intenso. vermelho. Ou estão todos mortos, ou já
“Tens razão”, pensa Raimundo, todos zarparam. acabou por ser debelada de
lembrando-se do monstro no frigorífico. “Confias em mim?” Pergunta a Alcí- Lisboa. Uma brigada anti-fúngica
Exemplo de uma pequena coisa, limpar dia, e ela faz-lhe que sim, com a cabeça visitou o epicentro da ocorrência,
o tupperware. Fácil dizer, difícil fazer. A zonza.
breve introspecção é quebrada por um Raimundo reúne, então, todas as na zona do Restelo. Luís
chiado metálico, seguido de uma inter- suas forças. Não é tempo de paranóias, acompanhou-os, aproveitando
jeição dorida de Alcídia, que cai de lado de suores frios, de reacções vagais. É para visitar o apartamento do
na cama. tempo de fugir, de sobreviver, e assim
“O que foi?”, pergunta Raimundo corre Raimundo, pelas ruas desertas de seu irmão Raimundo. Passeou
num sobressalto. Lisboa, cruzando a Calçada da Ajuda, a pela casa, impregnada de cheiros
“Acho que me avariei, não consigo carregar uma Alcídia torpe às cavalitas. de família, cheiros de Luanda.
mexer as pernas. Ajude-me, por favor, “Onde se meteu toda a gente? O que
Raimundo”. é que me escapou?”, pergunta-se um Recolheu memórias, algumas
Ele percebe que Alcídia fala ver- Raimundo que controla o pânico, cor- em fotografias antigas, outras
dade, ao abrir-lhe a caixa de circuitos rendo, quase sem pensar, na direcção da em pequenas estatuetas de
pelo fino sulco, disfarçado ao longo da ponte ferrugenta, na direcção da outra
açucena. No sistema de rodas dentadas, margem. “Um-dois-um-dois”, “esquer- madeira, perfiladas na estante
alguns troços, cobertos de ferrugem, do-direito-esquerdo-direito”, assim vai, do escritório. Na cozinha, viu-se
movem-se descompassadamente, aos tartamudeando, freneticamente, contra a frente a frente com o Dürer.
solavancos. Nada a fazer, muito menos tempestade de esporos que se infiltram
àquela hora, “só um mecânico da mar- em todos os orifícios. Já Alcídia vai alter- Dirigiu-se a ele e abriu-o para o
gem sul, amanhã, é capaz de te conser- nando a máscara de gás, ora colocando-a limpar, mas pouco havia dentro no
tar isto”, diz Raimundo, deitando-se ao nele, ora colocando-a nela, numa luta metafrigorífico. Percorreu, com o
lado de Alcídia. inglória e desigual contra o bolor que se
“Desculpe, arruinei-lhe o happy abateu sobre a cidade. olhar, a prateleira de cima, até
ending”, profere a massagista num tom Raimundo não resiste. Conseguem ao canto superior direito. Um
sério, mas com um sorriso irónico a cres- chegar a meio da ponte, quando ele canto onde, reparou, não havia
cer-lhe na boca. Sorriso que Raimundo colapsa, com as mucosas recobertas
capta, num olhar cúmplice que eles tro- de fungosidades, e o branco dos olhos, nada. Estava vazio.
cam. Sorriso que se contagia e desenvol- atacados de verdete, fixos, sem vida.
ve numa gargalhada, seguida de amena Alcídia vê-se então sozinha. Mesmo
conversação pela noite dentro, até Alcídia com a protecção da máscara, sente que
adormecer. Raimundo vagueia pela casa, não lhe resta muito tempo. Arrasta-se,
mas acaba por voltar, aninhando-se nela. com força de braços, para a beira da
Leite e chocolate, envolvendo-se com ponte. Com os olhos marejados de lá-
estranha intimidade, como se há muito grimas, decide antecipar o destino que a
se conhecessem. E Raimundo adormece espera. Lá em baixo, o lugar pantanoso,
também. que foi outrora o Tejo, não é mais que
Uma tosse convulsiva trouxe-o de um manto esponjiforme, um abismo
volta. Pareceu acordar de um delírio azul-esverdeado. Alcídia empoleira-se
febril, com a cama ensopada num fluido e lança-se para o abismo, quando um
viscoso, pulmões obstruídos, olhos a braço a segura. Um braço de ferro,
arder, um travo a ácido na boca. É já de articulado, com dedos mecânicos, que a
manhã e Raimundo percebe que algo puxa para cima.
está mal. Ao pôr um pé fora da cama es- “Onde é que ele está?” pergunta-lhe,
correga num tapete esponjoso, esverdea- com urgência, o homem que a segu- Pedro G. P. Martins nasceu em Lisboa, cresceu no Alen-
do, que recobre o soalho. Corre, com um ra. Ele enverga também uma máscara tejo, e não sabe onde vai morrer. É biólogo, escritor
olhar esgazeado, para a janela. Lá fora, anti-gás, uma máscara igual à sua. e argumentista, tem uma queda pela ficção científica
toda a rua, edifícios e viaturas, cobertos “O Raimundo morreu”, respon- e muito má orientação espacial. “Quem semeia no
pela massa informe esverdeada, e uma de-lhe Alcídia. O homem baixa a cabe- Tejo” foi o seu primeiro conto a ser publicado, no livro
nuvem de esporos esvoaçantes, como ça, com pesar. Um mundo, maior do “Lisboa no ano 2000 - uma antologia assombrosa
flocos de neve, turvando a visibilidade do que este, parece desabar-lhe nos om- sobre uma cidade que nunca existiu”.
horizonte acima do Tejo. bros. Os mesmos ombros que acabam Este ano publicou também o livro “Paragem de
Acorda Alcídia, também ela com a carregar Alcídia o resto do caminho, autocarro”, bem como o conto “Arrábida 8”, pronto a
uma tosse de cão, aspergindo uma nu- para a margem sul de Lisboa. Durante sair em mais uma antologia.

64 /// BANG!
Como surgiu a ideia do Prémio Bang? mos ter muitas surpresas fortes nos próximos meses. O gé-
Surgiu da paixão que a Saída de Emergência tem pela lite- nero fantástico tem vindo a crescer imenso nos últimos anos
ratura fantástica. Em Portugal são já dez anos de dedicação e despertou a imaginação de dezenas de criadores.
a este género. Mas não queremos apenas apostar em clássi-
cos ou grandes nomes internacionais. Queremos dar a co- Qual o subgênero que mais tem recebido submissões
nhecer novos autores. Como sabemos que há muitos leito- até agora?
res que querem transformar-se em autores, esta foi a nossa Definitivamente, a fantasia. Recebemos vários manus-
forma de abrir as portas a todos os talentos por descobrir. critos de ficção científica ou horror, mas a fantasia é o
subgênero incontestável das submissões.
Mais de dois meses após o anúncio do prémio, qual o
balanço que fazem? Têm recebido mais submissões de Portugal ou Brasil?
O balanço é muito positivo! Até à data recebemos mais de 200 Por ser um país de dimensão e população muito superior a
submissões, embora algumas tenham sido desclassificadas por Portugal, naturalmente recebemos mais submissões do Bra-
não cumprir um ou outro requisito do regulamento. Quando sil. Os portugueses estão a submeter também, mas acredi-
se aproximar o final do prazo, o volume de submissões deverá tamos que estes submeterão em maior número quando se
crescer substancialmente. Tem havido muito entusiasmo nas aproximar o final do prazo.
redes sociais e blogues em torno do prêmio e as visitas ao
site Bang! duplicaram desde o anúncio de apresentação do Quais algumas das perguntas mais frequentes que os
prêmio. participantes têm feito?
Se não contabilizarmos as questões de foro técnico, temos
A leitura das submissões tem estado a surpreender? recebido mais perguntas sobre o tipo de histórias que pre-
Como é natural, tem havido um pouco de tudo. Encontrámos tendemos ou perguntas relacionadas com os direitos do
alguns romances promissores, mas acreditamos que ainda va- autor em caso de adaptação cinematográfica ou televisiva.

NGG! //
BANG!
BANG
BA //// 655
Esta última questão prende-se a uma interpretação errada primeira tentativa. Antes de submeterem o manuscrito
que alguns leitores fizeram do regulamento ao julgar que, no formulário de inscrições do site, aconselhamos to-
em caso de adaptação, o autor não teria direito a lucros. dos os participantes a ler o regulamento do princípio ao
Ele terá direito, sim. Tomara que o vencedor do prémio fim para garantir que a vossa inscrição cumpre todos os
Bang! possa um dia ter uma adaptação em curso. critérios.

Que dicas poderão dar aos participantes? Vão continuar com o Prémio Bang! nos próximos anos?
Os participantes devem investir na leitura regular dos li- O prémio só faz sentido se for para ter continuidade, ganhar
vros que já foram publicados nesta área, aprender com os respeitabilidade, dar a conhecer novas vozes. Queremos que
melhores autores do género, trabalhar todos os dias no ganhar um Prémio Bang! seja sinónimo de uma carreira ga-
aperfeiçoamento da escrita e devem ser exigentes con- rantida no género. E para isso será preciso tempo e muito
sigo próprios e não aceitar logo tudo o que escrevem à trabalho.

O Prémio Bang! tem por objetivo


encontrar o George R. R. Martin, AFONSO CRUZ
a J. K. Rowling, o Isaac Asimov ou o Nasceu em 1971,
Stephen King da língua portuguesa. Ou na Figueira da Foz,
Portugal, e estudou
seja, destina-se a galardoar um romance nas Belas Artes de
Lisboa, no Instituto
inédito de literatura fantástica (fantasia, Superior de Artes
ficção científica, história alternativa, Plásticas da Madeira
e na António Arroio.
horror, realismo mágico, etc.) escrito É escritor, músico, cineasta e ilustrador.
em português e que Escreveu os livros A Carne de
Deus (Bertrand), Enciclopédia da Estória Universal
não tenha sido (Quetzal - Grande Prémio de Conto Camilo
premiado em Castelo Branco 2010), Os Livros Que Devoraram
o Meu Pai (Caminho – Prémio Literário
nenhum outro Maria Rosa Colaço 2009), A Contradição
concurso. Humana (Caminho – Prémio Autores 2011
SPA/RTP; escolha White Ravens 2011; Menção
Especial do Prémio Nacional de Ilustração
2011, Lista de Honra do IBBY - International
Board on Books for Young People, Prémio
Ler/Booktailors – Melhor Ilustração Original),
A obra premiada A Boneca de Kokoschka (Quetzal – Prémio da
União Europeia para a Literatura), O Pintor
será publicada em Debaixo do Lava-Loiças (Caminho), Enciclopédia
Portugal e no Brasil da Estória Universal – Recolha de
Alexandria (Alfaguara), Jesus Cristo Bebia
pela editora Saída de Emergência durante Cerveja (Alfaguara – Prémio Time Out Melhor
o ano de 2015 e o autor receberá um Livro do Ano 2012), Enciclopédia da Estória
Universal – Arquivos de Dresden (Alfaguara),
prémio de 3.000€ (três mil euros) O Livro do Ano (Alfaguara), O Cultivo de Flores
de Plástico (Alfaguara), Assim, Mas Sem Ser Assim
aquando da cerimónia de atribuição do (Caminho) e Para Onde Vão os Guarda-Chuvas
prémio; (Alfaguara). Ilustrou, desde 2007, cerca de
trinta livros para crianças, trabalhando com
autores como José Jorge Letria, António
Para mais informações, Torrado, Alice Vieira. É membro da banda
consulte o regulamento em The Soaked Lamb.
WWW.REVISTABANG.COM

66 ///
66 /// BBANG!
ANG!
ANG!
FÁBIO YABU
Nasceu em 1979, em Santos (SP), Brasil. Suas histórias já fazem parte
da vida de duas gerações. Aos 17 anos, criou uma das primeiras histórias
em quadrinhos para a Internet no mundo: Combo Rangers. Em 2004,
lançou Princesas do Mar, livro que ele mesmo transformou em desenho
animado, hoje exibido em mais de 100 países. É também autor de outros
livros infantis premiados, como Raimundo, Cidadão do Mundo e Apolinário, o
Homem-Dicionário.
Na literatura juvenil, publicou a graphic novel Independência ou Mortos e
transformou a vida da Princesa Isabel num conto de fadas em A Última
Princesa. Em 2013, reinventou os contos de fada clássicos em Branca dos mortos e os sete zumbis.

LUÍS CORTE REAL


Nasceu em Lisboa em 1973. Foi criativo publicitário durante 10 anos até que
um longo amor aos livros o levou a criar, com o irmão,
a Saída de Emergência, uma editora vocacionada para a literatura fantástica.
Concebeu a coleção Bang!, a revista Bang! e o prémio Bang!
A sua paixão pelo fantástico começou nos anos 80 com os comics da editora
Abril. Tem saudades das animadas sessões de Dungeons & Dragons e Call of
Cthulhu, coleciona action figures e continua a preencher todos os requisitos para
se considerar orgulhosamente um nerd.
Quando não está a organizar o catálogo da editora para o mercado português
e brasileiro é porque está a fazer alguma coisa urgente (como escrever um texto sobre si próprio na
terceira pessoa).

SAFAA DIB
Safaa Dib manifestou sempre, desde muito nova, uma paixão por livros que
a levou a optar por uma licenciatura na Faculdade de Letras de Lisboa. Após
dar os primeiros passos no mundo editorial na área da tradução e revisão, foi
só em 2008 que se dedicou a tempo inteiro à edição ao ingressar na editora
Saída de Emergência onde se mantém como coordenadora editorial. Desde
2010, é editora da revista Bang! em Portugal e, desde 2013, da revista Bang!
no Brasil. É também responsável de conteúdos na plataforma digital da
revista Bang!. Vive em Lisboa, onde faz parte da organização da convenção
anual do Fórum Fantástico.

ANTÓNIO VILAÇA PACHECO


Nasceu bem no centro de Lisboa há 36 anos. Era ainda pequeno quando
abriu um velho atlas do mundo que lhe lançou um encantamento e o
quebrou em mil pedaços que se espalharam pelos quatro cantos do mundo.
Hoje, procura viajar pelos continentes, e a cada viagem é mais um pedacinho
seu que descobre, e recolhe. Cada país é uma parte de próprio. Tirou
a Licenciatura em Gestão de Empresas, se especializou em Auditoria,
e trabalhou na seguradora Allianz. Faz 10 anos que criou a Saída de
Emergência com o irmão e desde então a sua vida são os livros. Hoje, cada
livro é também uma viagem.

THAÍS PAIVA
Cria do curso de Produção Editorial da UFRJ, Thaís Paiva integra a equipe
de aquisições da editora Sextante/Arqueiro desde 2010, é leitora contumaz
desde criancinha e nerd desde o berço. Fã incorrigível de literatura fantástica
e ficção científica, acredita com todas as forças que o mundo vai acabar em
um apocalipse zumbi – e já tem uma katana separada especialmente para a
ocasião.

BBANG!
BA
BANG
ANG ///
N ! //
// 677
«Home. Home was BAMA, the Sprawl, the Boston-Atlanta Metropolitan
Axis. Program a map to display frequency of data exchange, every thousand
megabytes a single pixel on a very large screen. Manhattan and Atlanta
burn solid white. Then they start to pulse, the rate of traffic threatening to
overload your simulation. Your map is about to go nova. Cool it down. Up
your scale. Each pixel a million megabytes. At a hundred million megabytes
per second, you begin to make out certain blocks in midtown Manhattan,
outlines of hundred-year-old industrial parks ringing the old core of Atlanta...»
William Gibson in Neuromancer (1984)

68 /// BANG!

anos que, na FC, as ci- jança construtiva da cidade, entre as
dades vêm extravasando décadas de 1920 e 1930, seguem-se
os seus actuais e reais ensaios gráficos e projectuais a definir
limites. As cidades já uma nova arquitectura nova-iorquina.
não são só cidades, são Essencialmente são encomendas muni-
conjuntos de cidades, são cidades em cipais. Estudos como a Zoning Resolution
quantidade e, tanto na Costa Este como (1916-1922), de Hugh Ferriss, mais tarde
na Costa Oeste dos EUA, o território publicados em The Metropolis of Tomorrow
humanizado vem sendo composto por (1929), reflectem neste ponto algumas
imensas e enormes partes numa espécie das preocupações relacionadas com o
de constelação de núcleos urbanos ou- crescimento e uma certa insustentabilida-
trora autónomos. de corrente. O próprio filme Just Imagine
Mega City One (1977)1 por exemplo, a (1930), de David Butler, apropria esta
cidade que dá lugar à colecção de banda ideia para projectar a cidade a meio sécu-
desenhada (bd) Judge Dredd, escrita por lo de distância, colocando-a num futuro
John Wagner e desnhada por Carlos Ez- optimista na década de 1980. Com seme-
querra, projecta uma urbe para o ano de lhanças com o épico Proposal for Manhattan
2099 como um território sem fim nem (1929), de Raymond Wood, a cenografia
fronteiras. Sobrepovoada, aquela megaló- do filme, da autoria de Stephen Gooson e
pole não é propriamente uma cidade canó- Ralph Hammeras, terá sido constituída por
nica com dimensões definidas mas sim um uma maqueta com arranha-céus de 200 pi-
território urbano que se espalha ao longo sos e com uma área aproximada de 76 por
de toda a Costa Este albergando cerca de 27 metros. É também este o tempo onde as
800 milhões de habitantes. Estamos, então, soluções de construção assentes em mate-
perante a mesma conurbação descrita por riais e tecnologias industriais se tornam cada
William Gibson, em Burning Chrome (1982), vez mais sinónimas de progresso. O nunca
um espaço posteriormente reforçado na de- construído First All Glass Building (c. 1930),
signada Trilogia Sprawl, constituída pelos vo- desenhado por Frank Lloyd Wright, projec-
lumes Neuromancer (1984), Count Zero (1986) ta-se como uma torre de vidro e reflexos em
e Mona Lisa Overdrive (1988).2 Aprofundando, oposição a volumes pesados de pedra como
contudo, este continuum urbano que se esten- o Equitable Building (1915). Ainda assim e no
de em quase toda a faixa litoral de Boston a lado do real, entre guerras, a arquitectura pa-
Miami poderá ainda ser possível reconhecer a rece ganhar um certo fôlego e, porque não,
cidade e o fundo narrativo de outra colecção razoável mediatismo. A exposição Modern
de bd, mais recente, chamada Transmetropo- Architecture (1932), organizada por Philip Jo-
litan (1999-2005). Neste caso e ao longo de hnson e Henry-Russell Hitchcock para o Mu-
10 volumes, os autores Warren Ellis e Darick seum of Modern Art (MoMA), em NYC, terá
Robertson desenvolvem, para a genérica City, sido o acontecimento a partir do qual se veio
um regresso a um cenário punk, subversivo e a nomear o estilo modernista aburguesado e
congestionado por humanos e estranhas cria- globalizado, o designado International Style.
turas numa paisagem urbana interminável, en- Em 1939, e num formato mais festivo, a
tre Boston e Washington.3 cidade acolhe um evento que ficaria nos ca-
dernos de história mas também nos de futu-
ro: NYC serve então de palco às experiências
Nova Iorque (NYC) e delírios arquitectónicos de uma World Fair.
Na base da Exposição Universal está o tema

ASéculo
ilustração New York City in 1999 (1900) de
Louis Biedermann lança, logo no início do
XX , uma hipótese de reconhecimento da
“The World of Tomorrow” e a vontade em
prever as cidades Norte-Americanas para o ano
de 1960. A General Motors, por exemplo, ensaia
cidade situada algures entre uma realidade ex- com imediato sucesso o Futurama Pavillion, de-
pectável e uma ficção que ainda não se concre- senhado por Norman Bel Geddes, com rasgos
tizou. Pelo menos, as aeronaves tão inevitáveis de auto-estradas e níveis urbanos separando os
nos imaginários do final do Oitocentos ainda peões dos automóveis.
não existem. No entanto, entre realidade e fic- Ainda na década de 1930, no lado da FC, pare-
ção, emerge uma certa indistinção. Finis (1906), ce arrancar o tema da catástrofe enquanto visão
por vezes titulado de The Last Dawn, de Frank nova-iorquina. O fim daquela urbe parece próxi-
L. Pollack, troca a vista com a imagem de Bie- mo e surge segundo três formas: a ambiental; a
dermann. Se New York City in 1999 se trata de monstruosa; e a alienígena. No primeiro caso, De-
uma representação da cidade quando vista do luge (1933), o filme de Felix E. Feist, vem inspirar
céu, em plano picado, Finis é um conto em plano cenas de Deep Impact (1998), de Miriam Leder, e
contra-picado, onde as personagens olham o céu The Day after Tomorrow (2004), de Roland Emmeri-
de um observatório. ch.4 No Segundo caso, filmes como The Beast from
Passados alguns anos, por época da maior pu- 20.000 Fathoms (1953), de Eugène Lourié, ou mes-

BA N ! //
BANG!
ANG //// 69
69
ficção e, essencialmente, sob artigos
em revistas da especialidade. Na Mecha-
nix Illustrated (de Novembro de 1968),
surge o What Will Life Be Like in the
Year 2008? e na Amazing Stories (de Se-
tembro de 1968) vem o conto Manhat-
tan Dome, de Ben Bova. Em cada uma
destas projecções, a humanidade vive,
paradoxalmente, livre mas enclausura-
da sob estruturas geodésicas à imagem
das de Fuller. Estamos perto da se-
gunda Exposição Universal local, um
projecto político e pessoal de Robert
Moses (figura responsável por parte
do desenvolvimento urbano entre os
New York City in 1999. anos 30 e 70 daquela cidade). A New
Autoria: Louis Biedermann © New York World (1900) York International and Universal Exposition
(1964-1965) constrói então um parque
temático aliado à ciência, aos satélites
e à aeroespacialidade.6 Alguns dos ob-
mo os últimos dois Godzilla
jectos construídos como a Unisphere, da
(1998 e 2014) não deixam de
autoria de Gilmore David Clarke, ou as
reflectir sobre as consequên-
explícitas Observation Towers, do mesmo
cias de ensaios químicos ou
Geddes e Albert Kahn. denotam esse
nucleares. Por sua vez, Isaac
fascínio pela conquista da Lua e do
Asimov escreve The Caves
cosmos,7 sendo curioso verificar que a 1
Of Steel (1953) projectando
primeira alunagem acontece apenas um
uma cidade sobrepovoada
ano depois, a 20 de Julho de 1969.
no IIIº Milénio justificando
As décadas de 1970 e 1980, porém,
as “caves de aço” como lu-
reconduzem a percepção de futuro a
gares interiores e inferiores.
um certo pessimismo mais terreno e
Sob cúpulas gigantescas, aliás
social. Exercícios como aquele dos Ho-
como a Dome over Manhattan
meless Vehicles (1970-1989), de Krzysztof
Island (1960) do engenheiro
Wodiczko, mais não fazem do que evi-
e académico Buckminster
denciar e alertar para os desequilíbrios
Fuller em colaboração com
e traumas à solta na cidade. Escape from
o estudante e arquitecto Sho-
New York (1981), do realizador série-B
ji Sadao, estas novas cidades
John Carpenter, por seu lado, explora
são capazes de acolher 10 mi-
Lower Manhattan. Autoria: uma parábola de liberdade controlada
lhões de habitantes cada. É,
Lebbeus Woods © New York World (1999) onde “Snake” Plissken, o protagonista,
de resto, curioso que Harry
tem a tarefa de resgatar o presidente dos
Harrison escreva Make Room!
Make Room! (1966), idealizan-
do NYC em 1999 e sem espa-
ço disponível para acolher os
seus habitantes. Outro filão,
ainda, surge pela congestão
das populações, como ver-
são inversa da FC relativa à
ideia do último homem.5 No
terceiro caso, o de enquadra-
mento alienígena, não pode-
riam faltar as referências a
filmes como Meteor (1979), de
Ronald Neame, Independence
Day (1996), de Emmerich, ou
War of the Worlds, de Steven
Spielberg, baseado na versão
original Londrina de H. G.
Wells.
Na década de 1960, ainda
assim, o tema das cúpulas Hello America . Autoria: Chris
permanece no ensaio e na Autoria: Alan Aldridge Welch © Liveright/W. W. Norton
© Penguin (1967) & Company, Inc. (2013)

70 /// BANG!
E.U.A. da ilha de Manhattan, suge- de Francis Lawrence, baseado na obra
rida como estabelecimento prisio- homónima de Richard Matheson
nal de máxima segurança em 1997. e Cloverfield (2009), de Matt Reeves.
Numa outra acepção, o conto The Como nota breve, vale a pena lem-
Minority Report (1956), de Philip K. brar que, na primeira obra, o futuro
Dick, também mais não é do que se encontra demasiado próximo e
uma caricatura paradoxal de inter- presente. A começar a dois anos de
venção policial numa cidade supos- distância, aquele desastre urbano e
tamente aperfeiçoada. Numa outra humanitário tem início em 2009 e fim
visão de sub-género B, Liquid Sky em 2012 e assenta no facto da popu-
(1982), realizado por Slava Tsuker- lação, outrora de milhões, se encon-
man, “representa uma cidade onde trar reduzida ao Dr. Robert Neville,
drogas e sexualidades são a norma.”8 o único humano naquele território.10
Utilizando a alucinação, a deprava- Um outro exemplo e afinidade e
ção, a ilegalidade e a anarquia como reconhecimento, por proximidade
evidências, estas imagens parecem cronológica, política e militar, é a co-
vir directamente das ruas de Ma- lecção de bd norte-americana DMZ
nhattan. Por outro lado, The Manhat- (2005-2012), da dupla Brian Wood
tan Transcripts Project (1979-1981), o e Riccardo Burchielli na qual, o pro-
ensaio gráfico do arquitecto francês tagonista Matthew Roth, repórter
Bernard Tschumi, parece mais uma em cenário de guerra civil na ilha de
ficção em pranchas de bd que um Manhattan, se move num território
ensaio imagético ou arquitectónico. semelhante ao de Carpenter. Como
Naqueles anos tudo parece destruí- diz o autor no primeiro número da
do, desconstruído ou em permanen- colecção, num esforço de reconhe-
te ruína.9 As pessoas não existem, cimento de NYC, basta “pensar em
como no continente inóspito em partes iguais no filme Escape from New
2114 em Hello America (1981), de J. York, Fallujah e Nova Orleães depois
G. Ballard; ou, quando existem, pare- do furação Katrina.”
cem perdidas, como em In the Country
of Last Things (1987), de Paul Auster.
É neste último livro, por exemplo,
que Anna Blume, a protagonista, Filadélfia, Baltimore
partilha a sua “odisseia” num espaço e Washington DC
estranho e violento. Acontece, curio-

M
samente, num espaço limitado, talvez as a Costa Este não é só Nova
peninsular, mimético de Manhattan, Iorque. Resumindo o levanta-
preenchido por lixo, corrupção e po- mento à área do cinema, há casos de
voado por gangs de criminosos. filmes como The Day the Earth Stood
Já na década de 90 é de referir a Still (1951), de Robert Wise, Logan’s
sugestão visual que The Fifth Element Run (1976), de Michael Anderson,11
(1997), o filme de Luc Besson, faz 12 Monkeys (1995), de Terry Gilliam,
sobre a cidade no Século XXIII. A ou Minority Report (2002), de Steven
densidade lembra as perspectivas Spielberg. Se o primeiro e o segundo
dos autores de bd franco-belga Jean se localizam na cidade do Congresso
Giraud “Moebius” ou Jean-Claude e da Casa Branca, o terceiro caso re-
Mézières e a ilha parece ter tomado a corre a sets localizados na região, entre
forma de um penhasco sobre a baía Filadélfia e Baltimore, para readaptar
do Hudson, após a descida de cota livremente a obra-prima fotográfica
das águas, algo de muito semelhan- que é La Jetée (1963), de Chris Ma-
te ao projecto da Lower Manhattan rker. O quarto caso, inclusive, chega
(1999) do arquitecto e académico Le- ao ponto de alterar o lugar da acção
bbeus Woods. Nestes casos, parece de NYC para DC e Baltimore, no ano
encontrar-se uma quase indistinção de 2054. Em Logan’s Run, o segundo
entre arquitectura e ficção enquanto caso, com acção no ano de 2274, o
actos de rigor. território vem com parecenças de
Mais recentemente, neste Século, parque temático. Uma cidade-jardim
há dois projectos cinematográficos polvilhada por estruturas piramidais
que regressam ao perfil nova-iorqui- e redes de transporte elevadas resiste
no para descrever narrativas de fra- sob enorme cúpula face à ruína exte-
casso face ao progresso humano. A rior do que outrora fora a capital. Nos
ameaça do desconhecido surge então interiores, ressonantes com a Capela
em obras como I Am Legend (2007), de Notre Dame du Haut, em Ronchamp

BANG! /// 71
(1955), de Le Corbusier, im- bury, Robert A. Heinlein (ambos
põe-se uma linguagem modernis- em 1934) ou A. E. Van Vogt (em
ta tardia como a do Mestre Suíço 1944).13 Praticamente coincidente
enquanto a comunidade luta sob com a 2ª Guerra Mundial, a rede
um carrossel mecanizado e desu- viária cresce a todo o gas, desen-
manizado. Nos exteriores, desig- volvendo então uma relação de
nados por Sanctuary, impõe-se paranóia ao longo de toda a dé-
o lado selvagem mas, também, o cada de 1940, como acontece em
desejo. Aparentemente distante, a The Day after Tomorrow14 (1941), de
cidade do actual poder e símbolo Heinlein,, originalmente publica-
da instituição Norte-Americana do como Sixth Column.
surge irreconhecível enquanto Já na década de 1950, muito
ícone e monumento na sua for- embora não haja qualquer men-
ma destruída e reconvertida pela ção a LA na referência literária
natureza. que é Fahrenheit 451 (1953), de
Ray Bradbury, a caracterização
dos espaços trata especialmente
Los Angeles (LA) o assunto da censura num tem-
po pós-nuclear, pós-1990.15 No
ano seguinte é publicada a obra
Tlocalizada
ransposta a grande porta con-
tinental de entrada no Oeste,
em St. Louis, no Esta-
I Am Legend (1954), de Richard
Matheson, a qual, na tradição
do “último Homem”, propõe
do do Missouri, o Gateway Arch uma cidade vazia de gente a
(1968) desenhado por Eero Saari- pouco mais de vinte anos de
nen, chegamos à solar Califórnia. distância, entre os anos de 1975
Ao contrário de Nova Iorque, de e 1977. A versão cinematográ-
conformação centrípeta, a cidade © 20th Century Fox (1951)
fica The Omega Man (1971), de
de LA é centrífuga. Boris Sagal, refere de resto essa
No início do Século XX, numa condição de last man on Earth no
época pré-automóvel, LA é a próprio slogan do trailer apre-
cidade norte-americana com o sentando a downtown despovoa-
melhor sistema de transportes da e esvaziada de movimento na
públicos (e, talvez surpreendente, visão de um condutor errante, o
de perfil ferroviário). Hoje, numa mesmo protagonista Dr. Robert
época de privatização quase total Neville. Ainda nos fifties, impor-
da mobilidade, as actuais redes de ta referir duas obras de culto,
ferrovia urbana e suburbana são umbilicalmente relacionadas,
praticamente nulas nos vales e como é o livro original The Body
colinas da Cidade dos Anjos. Tudo Snatchers (1955), de Jack Finney,
terá arrancado na década 1920 e a versão cinematográfica Inva-
com a construção massiva de sion of the Body Snatchers (1956),
vias e villas nos subúrbios de LA de Donald Siegel. Tudo aconte-
como a Ennis Brown House (1924), ce na cidade ficcional de Santa
de Frank Lloyd Wright.12 Desde Mira que, como o segundo títu-
então o território tem sido rasga- lo diz, trata do receio em aco-
do por canais de circulação auto- lher e aceitar criaturas estranhas
móvel levando a que a ideia de e deconhecidas.
movimento, trânsito e velocidade Após este momento de receio
surja cada vez mais enraizada (ou, e incertezas na ressaca da Guerra
paradoxalmente, natural). Ora, Mundial,16 surge na arquitectura
também devido a este assunto uma certa tendência para o delírio
relacionado com mobilidade, a e o optimismo. O denominado
cidade parece querer anunciar o estilo googie ou popdeluxe torna-se
seu estatuto de local de experiên- referência naquela zona do glo-
cia e excelência da FC. No arran- bo. O pop e o kitch parecem sin-
que do que é considerada a idade tetizados tanto em construções
dourada do género é, de facto, como o LAX Building (1961), de
curioso que seja fundada a Los James Langenheim, William Pe-
Angeles Science Fantasy Society (1934) reira, Charles Luckman, e Paul
um pouco antes da chegada à ci- Williams, a Leonard J. Malin House
dade de inúmeros aspirantes a Autoria: Jenny Augutter (1960), de John Lautner, quanto
escritores de FC como Ray Brad- © MGM/United Artists (1976) nos espaços da animação The Jet-

72 /// BANG!
“Há anos que,
na FC, as cidades
vêm extravasando
os seus actuais
e reais limites.
As cidades já não
são só cidades,
são conjuntos
de cidades, são
cidades em
Chemosphere . Autoria: Julius Schulmann
© Julius Schulmann (1961) quantidade.”.
© Signet Books (1951)
[1ª edição com o título G. Paull, há material “do Egipto aos esti-
The Day after Tomorrow ] los Deco, Moderno Streamline e Clássico,
de Frank Lloyd Wright a Antonio Gau-
di” (1992). O edifício, usado como habi-
sons (1962-1963). Tanto um aeroporto tação da personagem maquetista e cria-
como uma série televisiva se transfor- dora de réplicas J. F. Sebastian, é então
mam em concretizações de um futu- um híbrido arquitectónico intemporal.
ro retro fascinante. Uma casa como Ironicamente de discutível enquadra-
a Chemosphere, outro nome atribuído mento, o edifício Bradbury parece forçar
à obra de Lautner, é talvez exemplo a dúvida entre o verdadeiro e o falso (ou
de um desenho doméstico inusitado entre o animal e a máquina) querendo,
sendo que a sua volumetria, como se assim, passá-la para a caracterização dos
de um disco voador se tratasse, expli- próprios espaços. O dilema de luta entre
cita efectivamente a reverência e re- o orgânico, o estranho e o humano, de
ferência cosmológica e orbital.17 Por resto, é também tratado nos filmes Ter-
outro lado, continua em acção a “em- minator (1984) e Terminator 2: Judgement
presa” utópica das Case Study Houses Day (1991), de James Cameron, They Live
(1945-1966), um projecto verdadei- (1988), de John Carpenter, ou mesmo
ramente Californiano.18 Um dos seus Predator 2 (1990), de Stephen Hopkins.
Blade Runner . Autoria: John Alvin
“episódios”, a CSH #22 (1959), de Projectando a cidade para o ano de
© The Ladd Company (1982),
Pierre Koenig, em Hollywood Hills e 1995, o segundo filme de Cameron ele-
The Blade Runner Partnership (1991)
com a grelha Angelina ao fundo, che- va a tecnologia e a respectiva suspeição
ga a servir de habitação ao protago- numa coexistência aparentemente im-
nista de Galaxy Quest (1999), de Dean praticável. A relação homem vs compu-
Parisot. Na cena do seu encontro com autor, projecta a narrativa para o Verão tador, representada pela Skynet, revela a
aliens, a cidade é vista do interior do- de 1994, em Orange County.19 sobreposição e substituição do humano
méstico, de uma cota elevada, através Na década de 1980 estreiam alguns numa cidade de rios secos e canais de-
dos grandes planos de vidro fixados dos filmes de FC mais analisados: Blade gradados. A cena clássica da perseguição
na fotografia de Julius Schulmann. A Runner (1982), de Ridley Scott, represen- de veículos no LA River, uma infra-es-
Stahl House, como também é conheci- ta a cidade no ano de 2019.20 Do lado trutura que atravessa a cidade desde San
da, habitada pelo actor-estrela Jason da urbe, o plano de sequência aéreo de Fernando Valley até Long Beach, para
Nesmith (o Comandante Peter Quincy aproximação à cidade permite reconhe- além de funcionar como sinal de ruptu-
Taggart na série dentro do filme), é o cer a extensão através da grelha eléctrica ra sobre aquele tecido urbano, funciona
lugar do rapto naquela paródia. e explosões industriais avulsas. Do lado também como canal de fluxos numa
Na década de 1970, Cloak of Anarchy do objecto arquitectónico, o plano de cidade fragmentada. Já em meados da
(1972), de Larry Niven, Flow My Tears, entrada no Bradbury Building (1893), de década de 1990, estreia Escape from LA
The Policeman Said (1974) ou A Scanner George Wyman, talvez a estrutura pa- (1996), de Carpenter, a sequela do an-
Darkly (1977), ambos de Dick, surgem trimonial historicista mais relevante da terior Escape from New York. De volta à
como viagens ao mundo das drogas e baixa de LA, permite uma colagem clara acção e a uma cidade prisional, “Snake”
das alucinações. O conto de Niven, por ao denominado modus operandi pós-mo- Plissken é colocado no ano 2000 após
exemplo, é localizado em São Diego, dernista. Na investigação e levantamen- um terramoto na cidade com conse-
enquanto o último de Dick, retirado de to gráfico efectuados pelos directores de quências catastróficas, tanto políticas
experiências suburbanas e pessoais do arte do filme, como nos diz Lawrence quanto territoriais.

BANG! /// 73
São Francisco (SF) em espaços na periferia de SF como o
Marin Civic Centre (1957), de Frank Lloyd
Wright, em São Rafael, ou em instala-
Omaislugar homónimo da expressão Scien-
ce Fiction (SF) é outro dos espaços
atribulados e atribuídos ao género.
ções universitárias como o CLA Building
(1992), de Antoine Predock, em Pomo-
na.
Obras como The Scarlet Plague (1912), de Mais recentemente, neste século, há
Jack London, Earth Abides (1949), de uma adaptação para cinema da série The
George R. Stewart, It Came from Benea- Planet of the Apes chamada Rise of the Pla-
th the Sea (1955), ou Do Androids Dream net of the Apes (2011), de Rupert Wyatt,
of Electric Sheep? mostram que a tradição localizada em SF e transportada para
distópica tem corpo e força neste lugar. alguns dos seus ícones urbanos e monu-
A obra de Stewart, por exemplo, assume mentos arquitectónicos.
SF como lugar infectado, apresentan-
do-nos um professor da Universidade
de Berkeley a monte e em fuga constan-
te para o selvagem. A obra de Dick, por
outro lado, levanta o tema do irreconhe-
cimento humano (ou androide) quando
as respectivas propriedades ou caracte- THX 1138 © Warner Bros.
rísticas passam a ser reproduzidas. Nesta /American Zoetrope (1971)
obra, para além de SF, a narrativa deam-
bula ainda por Seattle, por desertos no
Oregon e por colónias orbitais (original-
Until the End of the World (1991), de Wim
mente) no ano de 1992. Wenders. Na narrativa, localizada no fi- João Rosmaninho (n. 1979) é licenciado
Pouco depois, no início da década nal do ano de 1999, um casal dá a volta em arquitectura e mestre em ciências da
de 1970, aparece THX 1138 (1971) de ao mundo (fazendo lembrar a volta eu- comunicação. É docente na Universidade
George Lucas, o primeiro filme do re- do Minho onde desenvolve, actualmente,
ropeia de The Last Man, de Mary Shel- investigação de doutoramento sobre as
alizador,21 um exercício semi-abstracto ley) na iminência de conviver com um relações entre as cidades e o cinema.
e com aparente ressonância com Brave choque planetário. Com uma diferente Todos os seus campos de interesse
New World (1932), de Aldous Huxley. Na performatividade, é também interessan- convergem na ficção.
obra está representada uma sociedade te encontrar outra trilogia de William
onde as pessoas são peças e números Gibson, a Trilogia Bridge, desta vez com
de uma maior máquina. Os espaços têm referência à ponte Golden Gate na baía
tanta profundidade quanto as relações de SF e Oakland.22 É ainda nesta década
têm amor, ou seja: zero. que surge um dos filmes mais impres-
Ultrapassados os anos 1980, a década sionantes pela sua verosimilhança. Gat-
seguinte começa com o sugestivo título taca (1996), de Andrew Niccol, é rodado

1 Surgiu originalmente no 2º número da revista 2000 A.D. lírio e o sonho norte-americanos, surjam também construções móveis
2 É de referir, de resto, que os contos Johnny Mnemonic (1981) e New Rose de genealogia ficcional e científica como são as auto-caravanas Airstream
Hotel (1984), também de Gibson, acontecem parcialmente no mesmo (1936-1948), desenhadas por William Hawley Bowlus.
território. 14 Sem relação com a obra homónima (2004) de Emmerich.
3 Eixo esse apelidado de BosWash, muito embora contenha referências 15 Os contos que dão origem a esta obra são The Pedestrian e The Fireman
a cidades exteriores como Chicago e São Francisco. (ambos de 1951) e projectam a narrativa a cerca de 100 anos de distância,
4 Realizador alemão, rei dos filmes-desastre. para os anos de 2053 e 2051 respectivamente.
5 Baseado nesta obra surge o filme Soilent Green (1973), de Richard 16 A título de exemplo muito recente poderíamos enunciar o filme Battle:
Fleischer, antecipando uma cidade sobrepovoada no ano de 2022, com Los Angeles (2011), de Jonathan Liebesman, e a respectiva exploração de
40 milhões de habitantes. um cenário de guerra, na alusão ao incidente que foi a batalha de Los An-
6 O próprio terminal de aeroporto no JFK (1956-1962), em Long Is- geles, de Fevereiro de 1942, no rescaldo de Pearl Harbor.
land, desenhado por Eero Saarinen, faz notar este fascínio nas suas 17 Aparece no episódio The Duplicate Man (1964), da série de televisão
formas. The Outer Limits.
7 Ray Bradbury, por exemplo, é convidado para exercer a figura de con- 18 Para além de LA, há também casas implantadas nas áreas de São Die-
sultor do Pavilhão dos E.U.A.. go e São Francisco.
8 Diz Eric Mahleb. 19 Tem adaptação cinematográfica (2006) realizada por Richard Linkla-
9 E porque não lembrar a exposição Deconstructivist Architecture (1988), ter.
no MoMA, comissariada por Philip Johnson e Mark Wigley? 20 O filme é uma adaptação livre da obra Do Androids Dream of Electric
10 À imagem do que acontece com a cidade de Londres em 28 Days Sheep? (1968), de Philip K. Dick.
Later (2002), de Danny Boyle. 21 Na verdade, trata-se da evolução de uma curta-metragem, trabalho
11 O autor da primeira versão cinematográfica de Nineteen Eighty-Four académico feito quatro anos antes e sob o título Electronic Labyrinth:
(1956). THX-1138 4EB (1967).
12 Referimo-nos a este caso, especificamente, por se tratar de uma habi- 22 Composta pelos volumes Virtual Light (1993), Idoru (1996) e All
tação importada e representada em Blade Runner (1982), de Ridley Scott. Tomorrow’s Parties (1999).
13 Para além dos escritores, é interessante verificar que, entre o de-

74 /// BANG!
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BBA ///
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77
e manhã, já não temos a certeza de num rong de cartilha – um bailado repul- havia para saber acerca do restaurante da

D quem somos.
Estamos à frente do espelho, que
se mexe e treme, refletindo apenas
o que queremos ver – olhos que parecem
demasiado largos, pele excessivamen-
sivamente familiar que Quy passara quase
toda a vida a observar, uma onda de es-
trangeiros que invadiam a estação como
se fossem uma praga de centopeias ou de
sanguessugas.
Avó: afinal de contas, era irmã de Tam; e
vira as contas, o lento declínio da procura,
à medida que os clientes mais finos se mu-
davam para zonas melhores da estação; o
fluxo de turistas mais pobres, sem tempo
te pálida; um cheiro estranho e distante Não obstante, Quy observava-os. Re- para pratos dispendiosos, preparados com
chega-nos do sistema ambiental do com- cordavam-na do tempo passado em Pri- os melhores ingredientes.
partimento, um aroma que não é incenso me, dos dias inebriantes de escola, reple- − Está bem − acedeu. – Eu vou.
nem alho, mas sim outra coisa, algo es- tos de bares atulhados e fins de semana
quivo, que em tempos reconheceríamos. extravagantes, de revisões para exames o pequeno-almoço olhamos para a
Já estamos vestidos – não a pele, mas o
exterior, aquilo que é importante, com o
em cima da hora, um período descon-
traído que não voltaria a ter. Anelava por
A comida espalhada sobe a mesa: pão,
doce e um líquido colorido – ficamos em
nosso avatar a envergar azul, preto e dou- esses dias, ao mesmo tempo que se detes- branco por um instante, até que o imersor
rado, as roupas elegantes de uma mulher tava pela sua fraqueza. A formação rece- entra em ação, recordando-nos de que é
viajada e de boa posição. Por um instan- bida em Prime, que a deveria ter conduzi- café, forte e simples, como sempre o to-
te, quando nos desviamos do espelho, do aos níveis mais elevados da sociedade mámos.
o vidro tremeluz e desfoca-se; e é outra da estação, só lhe trouxera uma sensação Sim. Café.
mulher, de túnica de seda pesada, que nos de afastamento da família; uma solidão Levamos a chávena aos lábios – é o
olha: mais baixa, mais atarracada, diminu- crescente e uma insatisfação, uma falta de imersor que nos incita gentilmente, lem-
ída em todos os aspetos – uma estranha, objetivo a que não era capaz de dar voz. brando-nos de onde agarrar, de como
uma recordação distante que perdeu o Podia ali ter ficado imóvel durante o erguer, de como sermos graciosas e ele-
significado. resto do dia – não fosse pelo sinal que lhe gantes em todos os aspetos, sempre um
começou a piscar no limite do campo de modelo fluido.
uy estava nas docas, a assistir à chega- visão, sobreposto pelo router. Uma men- − Está um pouco forte – diz-nos o
Q da das naves. É claro que poderia en-
contrar-se onde quisesse na Estação Lon-
sagem do Segundo Tio.
− Filha. – Tinha o rosto pálido e can-
nosso marido, num tom apologético.
Olha-nos do outro lado da mesa, o ros-
gevidade e solicitar que a transmissão da sado, os olhos marcados por círculos to com uma expressão que não somos
rede lhe fosse enviada para o router, o que escuros, como se não tivesse dormido. capazes de interpretar – facto bizarro,
lhe permitiria ver, sobreposta ao campo Provavelmente não dormira – Quy vira-o pois não devíamos saber tudo acerca de
de visão, a dança lenta das naves a entrar pela última vez fechado com Tam, a irmã
nos ancoradouros individuais, quais par- de Quy, a tentar organizar uma entrega
tos invertidos. Mas a presença no átrio para um casamento – quinhentos melões “Mas já há muito
do espaçoporto era diferente – transmi- e seis barris do melhor molho de peixe da tempo que não
tia-lhe uma sensação de proximidade que Estação Próspero. – Volta ao restaurante.
não poderia ser replicada se estivesse nos − Este é o meu dia de descanso – re- tiramos o imersor,
Jardins da Carpa Dourada ou no Tem-
plo do Dragão Azul. Isso porque ali... ali,
plicou Quy, num tom mais caprichoso e
infantil do que o pretendido.
não é? É um
separada dos ancoradouros unicamente O Segundo Tio contorceu o rosto no pensamento efémero:
por algumas placas metálicas, sentia-se a que poderia ser um sorriso, embora ele
flutuar à beira do vácuo, mergulhada no tivesse muito pouco sentido de humor. A um momento suspenso
frio, sem inspirar ar ou oxigénio. Quase cicatriz obtida na Guerra da Independên- que rapidamente
se imaginava sem raízes, de regresso, por cia brilhou, branca, contra o fundo car-
fim, à origem de tudo. regado de grão – a retorcer-se, como se é soterrado pelo
Atualmente, a maioria das naves era de
origem galáctica – seria de esperar que
ainda o magoasse.
− Eu sei, mas preciso de ti. Temos um
fluxo de informação
os antigos senhores da Longevidade se cliente importante. do imersor, cujas
mostrassem insatisfeitos com a indepen- − Galáctico – aventou Quy. Era o úni-
dência da estação, mas agora que a guerra co motivo para a estar a chamar a ela, e pequenas setas nos
terminara, Longevidade era uma boa fon- não um dos irmãos ou dos primos. Por- chamam a atenção
te de lucro. As naves chegavam e vomita- que a família julgava que os estudos feitos
vam um fluxo constante de turistas – de em Prime lhe davam um certo conheci- para o pão e para a
olhos demasiado redondos e direitos, os
queixos excessivamente vincados; os ros-
mento da maneira de pensar dos galácti-
cos – algo útil, mesmo que não o grande
cozinha, para o metal
tos com um tom rosa pouco saudável, êxito esperado. polido da mesa –
como carne mal passada deixada muito − Sim. Um homem importante, chefe
tempo ao sol. Andavam com a confiança de uma empresa de comércio local. – O que nos estabelece
descontraída das pessoas com imersores: Segundo Tio não lhe saiu do campo de um contexto para
faziam pausas para admirar os destaques visão. Quy via as naves a deslocarem-se
sugeridos durante um segundo, pouco pelo rosto dele, a alinharem-se lentamen- tudo, abrindo o
mais ou menos, antes de se dirigirem à
estação de transporte, onde regateavam
te à frente dos ancoradouros, com o bu-
raco à sua frente a abrir-se como a flor
universo como uma
corridas até aos hotéis recomendados de uma orquídea. E ela sabia tudo o que flor de lótus.”

78 /// BANG!
expressões? O imersor não devia ter tudo Quy não teceu comentários. Os seus ciam entranhados um pouco por todo o
sobre a cultura galáctica na sua base de próprios sonhos tinham acabado por de- lado – é claro que era sempre a geração
dados, não no-lo deveria transmitir ins- finhar e morrer aquando do regresso de mais nova a ficar com o piso inferior,
tantaneamente? Mas está silencioso, o Prime, altura em que chumbara nos exa- onde conviviam os cheiros e os barulhos
que é estranho, e isso, mais do que qual- mes de mandarim de Longevidade; mas da legião de empregados que levavam co-
quer outra coisa, assusta-nos. Os imerso- era bom ter Tam por ali – ter alguém que mida até à sala de refeições.
res nunca falham. visse além do restaurante, além do círculo Aí estava Tam, sentada no pequeno
− Vamos? – diz-nos o nosso marido. tão limitado dos interesses familiares. E se compartimento que servia de zona co-
Por um instante, temos um espaço em não fosse ela, quem defenderia a irmã? mum do piso. Espalhara os aparelhos
branco no lugar do nome dele, até que Tam não se encontrava nas zonas co- pelo chão – dois imersores (Tam e Quy
por fim nos lembramos: Galen, é Galen, muns dos pisos superiores; Quy relanceou deveriam ser os únicos membros da famí-
o nome de um médico da Velha Terra. o elevador para os aposentos privados da lia que ligavam tão pouco aos imersores
É alto, de cabelo escuro e tez pálida – o Avó, mas duvidava que Tam tivesse an- que os deixavam ao abandono), um apa-
avatar do imersor não é muito diferen- dado a reunir tecnologia galáctica para ir relho de entretenimento remoto ocupado
te da pessoa real; os avatares galácticos cumprimentar a Avó. Dirigiu-se, em vez a transmitir uma história sobre crianças a
raramente o são. São as pessoas como disso, ao piso inferior, o que ela e Tam correr em planetas terraformados, e mais
nós que mais têm de se esforçar por se partilhavam com os filhos da sua geração. uma coisa que Quy não conseguiu iden-
adaptarem, pois há muita coisa que cha- Ficava mesmo ao lado da cozinha, e os tificar, pois Tam decompusera-o em pe-
ma a atenção – os olhos esticados que se cheiros a alho e a molho de peixe pare- quenos componentes: jazia na mesa como
enrugam na forma de traças, a pele mais um peixe estripado, reduzido a peças me-
trigueira, a forma mais diminuta, mais “Os imersores, no tálicas e óticas.
atarracada, mais reminiscente de uma jaca A dada altura, no entanto, Tam farta-
do que de uma fronde ao vento. Não im-
entanto, deixavam-na ra-se obviamente do trabalho, pois esta-
porta: podemos ficar perfeitas; podemos bloqueada: os va agora a terminar o pequeno-almoço,
ligar o imersor e ser outra pessoa, alguém sugando massa da malga de sopa. Devia
pálido, alto e belo. aparelhos dispunham tê-la ido buscar aos restos da cozinha, pois
Mas já há muito tempo que não tira- de proteções. Era Quy conhecia o cheiro, sendo capaz de
mos o imersor, não é? É um pensamen- identificar o sabor dos temperos na língua
to efémero: um momento suspenso que possível abri-los ao – era um dos pratos da Mãe e deixava-a de
rapidamente é soterrado pelo fluxo de estômago a roncar, mesmo tendo comido
informação do imersor, cujas pequenas
meio para substituir bolos de arroz ao desjejum.
setas nos chamam a atenção para o pão a bateria, mas não − Andas outra vez nisso – suspirou
e para a cozinha, para o metal polido da Quy. – Importas-te de não fazer experiên-
mesa – que nos estabelece um contexto se conseguia chegar cias com o meu imersor?
para tudo, abrindo o universo como uma mais longe. As Tam nem sequer aparentou estar sur-
flor de lótus. preendida.
− Sim − respondemos. − Vamos. – A anteriores tentativas − Não me pareces com grande vontade
nossa língua enrola-se na palavra: deve- de o usar, mana grande.
ríamos ter utilizado uma certa estrutura,
de Tam quase lhe − Isso não quer dizer que seja teu – re-
ter empregado um pronome em vez da haviam custado torquiu Quy, mesmo que não fosse esse o
frase galáctica tão concisa. Mas não surge verdadeiro motivo. Não se importava que
nada e sentimo-nos como um campo de o uso das mãos.” Tam lhe levasse as coisas e, a bem da ver-
cana-de-açúcar depois da colheita – de- dade, não se incomodaria se nunca mais
vastados, sem doçura no que restou. voltasse a usar um imersor – detestava a
sensação que o aparelho lhe transmitia, a
claro que o Segundo Tio insistiu que vaga noção de que o sistema lhe vascu-
É Quy fosse buscar o imersor para o
encontro − só por via das dúvidas, ga-
lhava o cérebro, em busca dos melhores
estímulos corporais para transmitir. Não
rantiu ele, no seu habitual tom afável e obstante, havia alturas em que era espe-
diplomático. O problema era que não se rado que usasse um imersor: sempre que
encontrava onde Quy o deixara. Depois lidava com clientes, quer estivesse a servir
de enviar uma mensagem ao resto da fa- às mesas ou em reuniões para ocasiões de
mília, a melhor informação recebida por maior monta.
Quy chegou do Primo Khanh, que julga- É claro que Tam não servia às mesas –
va ter visto Tam a revirar os quartos, onde revelara-se tão destra com logística e com
recolhera cada amostra de tecnologia ga- tudo o que estivesse relacionado com os
láctica que encontrara. A Terceira Tia, que sistemas da estação que passava a maior
lera a mensagem de Khanh no canal de parte do tempo à frente de um ecrã ou
comunicação da família, mostrou o seu ligada à rede.
desagrado. − Mana pequena? – insistiu Quy.
− A Tam. Sempre de cabeça perdida Tam pousou os pauzinhos ao lado da
nas montanhas, aquela menina. Os so- malga e descreveu um gesto largo com as
nhos não descascam arroz. mãos.

BANG! /// 79
“Quy envergou o imersor,
ajustando a fina rede
metálica em torno da cabeça.
Fez um esgar quando o
interface se sincronizou com o
cérebro. [...] Viu-se envolvida
por uma retícula tremeluzente:
era o seu avatar, que lentamente
ganhava forma à sua volta.
Ainda conseguia ver a divisão
– a estrutura era só vagamente
opaca −, mas, pelos antepassados,
como detestava a sensação de não
estar completamente presente.
– Como estou?”

− Está bem, leva-o. Sempre posso usar e ordena-as numa narrativa coesa satisfa- satisfeita por ter um avatar, para que eles
o meu. tória. Por exemplo, pessoas que estabele- não lhe vissem a fúria no rosto. – Não
Quy mirou o que estava disposto sobre cem o seu destino e que combatem alie- respondeste à minha pergunta.
a mesa e fez a pergunta inevitável. nígenas pela posse de um planeta, coisas Os olhos de Tam cintilaram.
− Como vão as coisas? que pouco nos dizem, aqui na Longevi- − Imagina só as coisas que podíamos
Tam trabalhava com ligações de rede dade. Quer dizer, nunca sequer vimos um fazer. É o melhor aparelho que os galácti-
e com a manutenção da rede no restau- planeta. − Tam suspirou profundamente. cos nos deram.
rante; a tecnologia era o seu passatempo. Olhava em parte para o Compositor de O que não era grande coisa, mas Quy
Tecnologia galáctica. Desmantelava apa- Literatura Artificial desmembrado, em não precisava de dar voz a essas palavras.
relhos para ver como funcionavam e de- parte para uma qualquer sobreposição no Tam sabia exatamente o que Quy pensa-
pois voltava a montá-los. A sua incursão campo de visão. – É como os imersores, va dos Galácticos e das suas promessas
pelas unidades de entretenimento tinha que pegam numa dada cultura e a divi- ocas.
servido para que o restaurante dispusesse dem de modo a que tenhamos pontos de − Também é uma arma. − Tam deu
de sons ambientes – música rong antiqua- contacto: língua, gestos, hábitos, tudo. A um toque na unidade de entretenimento.
da para os clientes galácticos, recitais de arquitetura tem de ser a mesma. – Como os livros e os holos, e os jogos ao
poesia recente para os nativos. − Continuo sem perceber o que queres vivo. Para eles é uma maravilha; ajustam
Os imersores, no entanto, deixavam-na fazer com isso. − Quy envergou o imer- os imersores para definições de turismo
bloqueada: os aparelhos dispunham de sor, ajustando a fina rede metálica em e recebem o que é preciso para se orien-
proteções. Era possível abri-los ao meio torno da cabeça. Fez um esgar quando tarem num ambiente estranho a partir do
para substituir a bateria, mas não se con- o interface se sincronizou com o cére- guião em rong que um idiota qualquer
seguia chegar mais longe. As anteriores bro. Moveu as mãos para ajustar alguns escreveu. Mas nós... nós veneramo-los.
tentativas de Tam quase lhe haviam cus- dos parâmetros, baixando-os em relação Estamos sempre a usar os imersores em
tado o uso das mãos. às definições de origem – o malfadado galáctico. Tornamo-nos parecidos com
A julgar pela expressão de Tam, esta aparelho regressava sempre às definições eles porque nos forçam, e porque somos
ainda não estava pronta para uma nova de fábrica, facto que duvidava fosse aci- ingénuos a ponto de ceder.
aventura. dental. Viu-se envolvida por uma retícula − E achas que os podes melhorar?
− A lógica tem de ser a mesma. tremeluzente: era o seu avatar, que lenta- − Quy não teve como evitar. Não que
− Do que o quê? − Quy não pôde mente ganhava forma à sua volta. Ainda precisasse de ser convencida: nunca vira
evitar a pergunta. Pegou no seu imersor conseguia ver a divisão – a estrutura era imersores em Prime. Eram coisas de tu-
e confirmou rapidamente que o aparelho só vagamente opaca −, mas, pelos an- rista, e mesmo quando viajavam de terra
ostentava o seu número de série. tepassados, como detestava a sensação em terra, os cidadãos partiam do princí-
Tam apontou para os componentes es- de não estar completamente presente. – pio de que dispunham de conhecimentos
palhados sobre a mesa. Como estou? suficientes para se orientarem. Mas as es-
− Compositor de Literatura Artificial. − Horrível. Até parece que o teu avatar tações, as ex-colónias estavam carregadas
É um aparelho que cria romances leves morreu, ou assim. de imersores.
para diversão. − Ha ha ha – exclamou Quy. O avatar Os olhos de Tam chamejaram, selva-
− Não é o mesmo que... − Quy ca- era mais pálido do que ela, e mais alto: gens como os dos rebeldes dos holos
lou-se e esperou que Tam se explicasse. ficava linda, segundo a opinião geral dos históricos.
− Pega nas normas culturais existentes clientes. Nesses momentos, Quy ficava − Se os conseguir desmontar, posso

80 /// BANG!
reconstruí-los e desligar os circuitos ló- Paramos espontaneamente a uma mesa Segundo Tio já estava à espera quando
gicos. Posso conseguir-nos a língua e as
ferramentas para lidarmos com eles sem
e observamos duas jovens a comer com
pauzinhos de um prato de frango – o
O Quy chegou; os clientes também.
− Estás atrasada – enviou o Segundo
que nos absorvam. cheiro a molho de peixe e a erva-limeira Tio através do canal privado, embora o
A mente perdida nas montanhas, dizia enche o ar, forte e insuportável como car- comentário tivesse sido feito sem grande
a Terceira Tia. Ninguém podia acusar ne podre – não, não, não é isso, temos a convicção, como se já o esperasse. Como
Tam de não pensar em grande. Nem de imagem de uma mulher de tez escura a le- se não acreditasse que podia contar com
não fazer aquilo a que se dispunha. E to- var um prato de arroz branco até à mesa, ela – isso magoava.
das as revoluções tinham de começar por as mãos com esse mesmo cheiro e nós a − Permita-me que lhe apresente a mi-
algum lado – a Guerra da Independência salivarmos com a antecipação... nha sobrinha Quy – disse o Segundo Tio
da Longevidade não começara por causa As jovens estão a olhar-nos: ambas em galáctico ao homem ao lado dele.
de um poema, e da detenção injusta do usam avatares padrão, dos mais banais – − Quy – repetiu o homem, com o
poeta que o compusera? as roupas são um misto garrido de ver- imersor a assumir na perfeição as nuances
Quy assentiu. Acreditava em Tam, em- melho e amarelo, com o corte bizarro do nome dela em rong. Era exatamente
bora não soubesse até que ponto. e embaraçoso de um estilista reles; e os como imaginava; alto, com um avatar dis-
− É justo. Tenho de ir, ou o Segundo rostos tremem, deixando-nos vislumbrar creto, um tudo-nada que lhe estreitava o
Tio esfola-me. Até logo, mana pequena. pele mais escura por baixo das faces cora- queixo e os olhos e lhe alargava um pouco
das. Reles e de mau gosto, absolutamente o peito. Melhorias cosméticas: bem vistas
uando passamos por baixo da larga inadequado; ficamos com a satisfação de as coisas, era bem-apessoado, para galácti-
Q arcada do restaurante com o nosso
marido, olhamos para cima, para as le-
não estarmos no lu-
gar delas.
co. Prosseguiu em ga-
láctico: − Chamo-me
tras que compõem o letreiro. O imersor − Posso ajudar-te,
“Quy perdera Galen Santos. Muito
tradu-las como «Cozinha da Irmã Hai» e irmã mais velha? – o interesse: estava gosto em conhecê-la.
começa a debitar os antecedentes do es- pergunta uma. Esta é a Agnes, a mi-
tabelecimento: a ementa e os pratos mais Irmã mais velha. a olhar para Agnes. nha esposa.
recomendados – quando passamos pelas Um pronome que Observava o avatar Agnes. Quy vi-
várias mesas, ele destaca o que julga po- antes procurámos; rou-se e olhou pela
dermos gostar, desde sonhos de arroz a uma das coisas que impenetrável – uma primeira vez para
camarão frito. Alerta-nos para os pratos
mais exóticos, como a orelha de porco
nos parece ter desa-
parecido da mente.
mulher ruiva à moda apiou-se. mulher – e arre-
Não estava
em picle, a carne fermentada (é preciso Debatemo-nos com mais recente de ali ninguém: apenas
ter cuidado com esse, pois o nome muda, as palavras, mas o um avatar espesso,
dependendo do dialeto da estação que imersor só sugere Prime, com sardas denso e complexo, a
usamos para o pedir) ou o durião, o fruto
malcheiroso de que os nativos tanto gos-
um pronome neu-
tro e impessoal, algo
na pele e laivos de ponto de não se vis-
lumbrar o corpo por
tam. que sabemos instin- um bronzeado de ele oculto.
Pensamos que... há qualquer coisa tivamente ser erra- − É um prazer. –
que não bate certo; e, entretanto, esfor- do – algo que só os
estrela no rosto. Mas Quy fez uma vénia
çamo-nos por seguir Galen, que já se estrangeiros e os fo- no interior, ela não seguindo um palpite;
afastou, avançando com a confiança que rasteiros utilizariam um gesto de jovem
deixa transparecer sempre na sua vida. As nessas circunstân- era isso; o imersor para mais velho, com
pessoas abrem caminho; uma empregada
com um avatar jovem e bonito faz-lhe
cias. – Irmã mais ve-
lha – acabamos por
mergulhara em as mãos juntas – ao
estilo rong, não como
uma vénia, embora Galen nem repare. repetir, pois não nos outra coisa.” uma galáctica − e viu
Sabemos que esse servilismo o incomo- lembramos de mais o corpo de Agnes a
da; está sempre a perorar sobre os hábi- nada. estremecer, algo que
tos antiquados a bordo da Longevidade, − Agnes! mal se notou; mas Quy era observadora,
sobre as desigualdades e a falta de um A voz de Galen, a chamar à distância – sempre fora. O imersor gritava-lhe, dizen-
governo democrático – ele acredita que é por um breve momento, o imersor pare- do-lhe que estendesse as duas mãos, de
uma questão de tempo até que mudem, ce voltar a falhar, pois sabemos que temos palmas para cima, à moda galáctica. Quy
até que se adaptem à sociedade galáctica. muitos nomes, que Agnes é o que nos de- ignorou-o: encontrava-se ainda na fase em
Nós – nós temos a vaga memória de dis- ram na escola galáctica, aquele que nem que era capaz de distinguir entre os seus
cutirmos com ele, há muito tempo, mas Galen nem os amigos adulteram quando pensamentos e os do imersor.
agora já não recordamos as palavras, nem o pronunciam. Recordamos os nomes O Segundo Tio recomeçara a falar – o
sequer o motivo por que... faz sentido, rong que a nossa mãe nos deu em Lon- seu avatar era claro, uma versão mais pá-
tudo faz sentido. Os Galácticos rebela- gevidade, as ternas alcunhas de infância e lida dele.
ram-se contra a tirania da Velha Terra e o nome adulto. − Estão à procura do local para um
livraram-se das suas amarras, conquistan- Be-Nho, Be-Yeu. Thu − Autumn, ou- banquete.
do o direito a determinar o próprio des- tono, como uma memória de folhas aver- − É verdade, sim. − Galen puxou uma
tino; e todas as estações e planetas acaba- melhadas num planeta que nunca chegá- cadeira e sentou-se. Todos o imitaram,
rão por fazer o mesmo: revoltar-se contra mos a conhecer. embora sem a mesma descontração flui-
as ditaduras que os mantêm afastados do Afastamo-nos da mesa, tentando dis- da e arrogante. Quando Agnes se sentou,
progresso. É justo; sempre foi justo. farçar o tremor nas mãos. Quy viu-a a tremer, como se ela se tivesse

BANG! /// 81
lembrado de algo desagradável. – Vamos tal ponto. A maioria estava convencida de este movimento e aquele, incitando-nos –
celebrar o nosso quinto aniversário de ca- que o galáctico lhe abriria todas as portas. senta-te direita e em silêncio, e apoia o teu
samento, e gostaríamos de marcar a oca- O Segundo Tio e Galen regateavam, marido −, e vamos sorrindo com a boca
sião com qualquer coisa adequada. discutindo preços e condições; com o que parece colada.
O Segundo Tio aquiesceu. desenrolar da conversa, o Segundo Tio Entretanto, sentimos a jovem rong a
− Estou a ver – comentou, coçando o soava cada vez mais um turista galáctico, mirar-nos; queima como gelo, como se
queixo. – Os meus parabéns. progressivamente mais agressivo por um fosse o olhar de um dragão. Não se afas-
Galen anuiu. lucro mais baixo. Quy perdera o interesse: ta; e a mão pousa em nós, agarrando-nos
− Pensámos... – Fez uma pausa e lan- estava a olhar para Agnes. Observava o o braço com uma força que nunca ima-
çou à esposa um olhar que Quy não foi avatar impenetrável – uma mulher ruiva à ginámos que aquele corpo possuísse. O
capaz de interpretar – o imersor perma- moda mais recente de Prime, com sardas avatar dela é uma camada ténue e vemos
neceu em branco, mas o gesto tinha algu- na pele e laivos de um bronzeado de es- o que está por baixo: um rosto redondo
ma coisa de familiar, algo que ela deveria trela no rosto. Mas no interior, ela não era de lua-cheia, com pele da cor da canela –
conseguir interpretar. – Uma coisa rong isso; o imersor mergulhara em outra coisa. não, não são especiarias, não é chocolate,
– acabou o indivíduo por concluir. – Um Não era de todo isso. Tam tinha razão; é apenas uma cor que vimos durante toda
grande banquete para uma centena de todos os imersores deviam ser desmante- a vida.
pessoas, com os pratos tradicionais. lados. E que explodissem? Já tinham feito − Tens de o tirar – diz ela. Não nos me-
A satisfação do Segundo Tio era quase mal suficiente. xemos; mas interrogamo-nos sobre o que
palpável. Um banquete dessa dimensão Quy queria levantar-se e arrancar o seu ela quererá dizer.
seria um pesadelo logístico, mas se con- imersor, mas não podia, nunca a meio da Tirar. Tirar. Tirar o quê?
cordassem com o preço adequado, o res- negociação. Em vez disso, levantou-se e O imersor.
taurante sairia do vermelho durante um acercou-se de Agnes; os dois homens, de- De repente, lembramo-nos – um jantar
ano ou mais. Mas havia qualquer coisa masiado ocupados na busca de um preço com os amigos de Galen, em que eles se
errada – qualquer coisa... aceitável, mal a olharam. riam de piadas que passavam demasiado
− O que tinha em mente? – perguntou − Não estás sozinha – disse ela em depressa para as percebermos. Chegámos
Quy, não a Galen, mas à mulher dele. A rong, num tom baixo o suficiente para a casa a reprimir as lágrimas; e demos
esposa − Agnes, que provavelmente não mais ninguém a ouvir. connosco a pegar no imersor que esta-
seria o nome com que nascera −, que en- Outra vez aquele vislumbre bizarro e va na mesa de cabeceira, a sentir o peso
vergava um avatar denso, e que parecia deslocado. frio nas mãos. Julgámos que Galen ficaria
não estar a responder, nem sequer a falar. − Tens de o tirar – indicou Quy, mas satisfeito se falássemos a língua dele; que
Na mente de Quy formava-se uma ima- não obteve nova reação. Num impulso, ficaria menos embaraçado pela falta de
gem terrível. agarrou no braço da mulher; sentiu as cultura que deixamos transparecer para
Agnes não respondeu. Previsível. mãos a atravessarem o avatar do imersor, os amigos dele. E então descobrimos
O Segundo Tio assumiu o controlo da a tocarem carne quente e sólida. que tudo está bem, conquanto mante-
conversa, desfazendo o momento incó- nhamos as definições no máximo e não o
modo com gestos expansivos das mãos. uvimo-los a negociar em fundo – não retiremos. E depois... e depois passámos
− Tudo a que têm direito, certo? –
adiantou o Segundo Tio. Esfregou as
O é fácil, pois o rong mostra-se aguerri-
do, reusando-se a ceder ao massacre de
a andar com ele, a dormir com ele, e só
mostrávamos ao mundo o avatar por ele
mãos, um gesto estranho que Quy nunca Galen. É tudo muito distante, um tema concebido – não víamos nada que ele não
o vira fazer – uma expressão galáctica de de um estudo intelectual; o imer- tivesse identificado e catalogado.
satisfação. – Sopa de melão amarga, tra- sor vai-nos recordando, Depois...
vessas de Dragão-Fénix, Porco Assado, interpretando
Jade Sob a Montanha... – Recitava os pra-
tos tradicionais de um banquete de casa-
mento – sem saber até onde o forasteiro
quereria ir. Omitiu as iguarias mais bizar-
ras, como Barbatana de Tubarão ou Sopa
Doce de Feijão-Vermelho.
− Sim, é isso que queremos. Não é ver-
dade, querida? – A esposa de Galen não se
mexeu, nem falou. Galen virou a cabeça
na direção dela e Quy pôde, finalmente,
vislumbrar-lhe a expressão. Imaginou que
seria de desprezo ou de ódio; mas não:
era de angústia. Ele amava-a realmente e
não compreendia o que se passava.
Galácticos. Não seria capaz de reco-
nhecer um viciado em imersores? Claro
que, tal como referira Tam, os galácticos
raramente se deparavam com esse pro-
blema – não usavam os imersores por
mais do que alguns dias, sempre com de-
finições baixas, e isso quando chegavam a

82 /// BANG!
Depois, tudo se desmoronou, não foi? lar de Agnes. Como estava condenado para proteger a sua famosa propriedade
Já não éramos capazes de programar ao fracasso, pois tudo seria filtrado pelo intelectual; mas sim devido a algo muito
a rede, não conseguíamos olhar para o imersor, deixando Agnes apenas com um mais fundamental.
âmago das máquinas; perdemos o empre- festim exótico de sabores desconhecidos. É um brinquedo galáctico, concebido
go na empresa tecnológica e fomos para − Lamento – repetiu-se, mas ninguém por uma mente galáctica – cada camada,
o compartimento de Galen, vagueando a ouvia; e virou costas a Agnes com fúria cada ligação lógica exsuda uma mundi-
pelo quarto como uma casca vazia, uma no coração – com a sensação crescente de visão que para aquelas raparigas é aliení-
sombra do que éramos – como se já tivés- que tudo acabara por ser em vão. gena. É preciso ser-se galáctico para se
semos morrido, longe de casa e de tudo acreditar que é possível pegar em toda
o que ela representa. Depois – depois, o amento – diz a rapariga – levanta-se uma cultura e reduzi-la a algoritmos; que
imersor já não saía. −L e larga-nos o braço, e sentimo-nos a
rasgar por dentro, como se algo no nosso
a língua e os costumes podem resumir-se
a um simples conjunto de regras. Para
que estás tu a fazer, minha jovem? íntimo se esforçasse por se libertar. Não aquelas jovens, as coisas são muito mais
−O O Segundo Tio levantara-se vás, queremos dizer. Por favor, não vás.
e dirigia-se a Quy – o avatar afogueado Por favor, não me deixes aqui.
complexas; e nunca compreenderão o
funcionamento de um imersor, pois não
com a fúria, a tez pálida mosqueada de Mas estão a apertar as mãos; sorriem, são capazes de raciocinar como um galác-
vermelho. – Se não te contentes com o acor- tico, nunca pensarão assim. Não é possí-
importas, os adultos es- do a que chegaram – vel pensar como um galáctico, a menos
tão a meio de uma ne- “Levantamos como tubarões, pensa- que se tenha nascido nessa cultura.
gociação importante. – a mão – é como mos, como tigres. Até a Ou a menos que, ano após ano, tenha-
Noutras circunstâncias, jovem rong se afastou; mos mergulhado nela, como numa droga.
isso talvez levasse Quy se nos mexêssemos deu-nos como perdi- Levantamos a mão – é como se nos
a vacilar, mas a voz e
a linguagem corporal
através de das. Ela e o tio vão-se
embora, seguindo ca-
mexêssemos através de mel. Falamos –
debatemo-nos para formar palavras por
do Segundo Tio eram mel. Falamos – minhos separados para entre as inúmeras camadas de pensamen-
totalmente galácticas; as zonas interiores do tos do imersor.
parecia-lhe um estra- debatemo-nos para restaurante, de volta a − Eu conheço isso – dizemos, e a voz
nho – um estrangeiro formar palavras casa. sai-nos rouca, com as palavras a encontra-
furioso, a quem tivesse Por favor, não vás. rem o seu lugar como um disparo laser, e
trocado o pedido – de por entre as É como se alguma sabem bem, corretas, como desde há cin-
quem troçaria mais inúmeras camadas coisa nos dominasse o co anos nada o é. – Deixem-me ajudá-las,
tarde, quando estivesse corpo; uma força que irmãs mais novas.
no quarto de Tam com de pensamentos não imaginávamos pos-
um chá nas mãos, ao suir. Quando Galen re- Para Rochita Loenen-Ruiz, pelas conversas
som das divagações fa- do imersor.” gressa à sala principal do que inspiraram o conto.
miliares da irmã. restaurante, à azáfama e
− Lamento – disse Quy, desprovida de aos cheiros tantalizantes da comida – de
sinceridade. frango com erva-limeira e arroz branco,
− Não faz mal – interveio Galen. – tal como a nossa mãe fazia −, voltamos
Não queria... – Fez uma pausa e olhou as costas ao nosso marido e seguimos a
para a esposa. – Não a devia ter trazido. jovem. Lentamente e à distância; e depois
− Devia levá-la ao médico – aventou a correr, para que ninguém nos impeça.
Quy, surpreendida com a própria audácia. Ela anda depressa – vemo-la a afastar o
− Achas que não tentei? – A voz soava imersor do rosto e a atirá-lo, repugnada,
amarga. – Cheguei a levá-la aos melhores para uma mesa lateral. Vemo-la a entrar
hospitais de Prime. Eles olham para ela numa divisão; e seguimo-la.
e dizem que não o podem tirar. Que o Estão a observar-nos, as duas rapari-
choque a matava. E mesmo que não ma- gas: a que seguimos; e outra, mais jovem,
tasse... – Abriu os braços, deixando o ar a levantar-se da mesa a que estava senta-
cair entre as mãos como grãos de poeira. da – ambas terrivelmente estranhas e, ao
– Sabe-se lá se ela voltava. mesmo tempo, familiares. Têm as bocas
Quy sentiu-se a enrubescer. abertas, mas não há sons.
− Sinto muito. – Agora com sinceridade. Nesse instante – a entreolharem-se,
Galen ignorou-a com um gesto negli- suspensas no tempo − vemos as entra-
gente, mas ela percebeu a dor que estava nhas das máquinas galácticas espalhadas Aliette de Bodard é uma escritora de ficção
a ser ocultada. Recordou que as lágrimas em cima da mesa. Vemos as ferramentas; especulativa franco-americana. De ascendência
não eram consideradas viris pelos galác- as máquinas desmanteladas; e o imersor francesa e vietnamita, nasceu nos EUA e cresceu
ticos. à frente delas, as duas metades abertas em Paris. A sua língua materna é o francês, mas
− Estamos então de acordo? – pergun- como um ovo partido. E compreende- escreve em inglês. Trabalha como engenheira
tou Galen ao Segundo Tio. – Por um mi- mos que têm estado a tentar abri-los e de software e é membro do grupo de escritores
lhão de créditos? compreendê-los; e sabemos que nunca Written in Blood. Os seus contos e noveletas já
Quy pensou no banquete: a comida nas vão conseguir. Não por causa das prote- venceram vários prémios Hugo e Nébula.
mesas, Galen a imaginar que recordaria o ções ou das encriptações galácticas criadas

BANG! /// 83
84 /// BANG!
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“ Perguntar a um escritor o
que ele pensa sobre críticos
Crítica
Literária

é como perguntar a um
poste de candeeiro o que
pensa sobre cães.
John Osborne

Fashion Beast um lado ajuda a construir a sensação de


realidade distópica assolada pela guerra
me de ficção científica a estrear em 2014
(mesmo sendo, na prática, um filme de
Alan Moore e sob ameaça nuclear; por outro atribui 2013 que só agora chegou ao circuito
[livro] uma contínua importância à indumen- comercial, após o périplo pelos festivais
tária das personagens, conjugando-se de cinema internacionais). O Congresso, de

D oll Seguin sempre viveu entre as


camadas desfavorecidas mas o
novo emprego como modelo principal
assim com o discurso sobre moda que
atravessa todo o livro. As questões rela-
cionadas com o mundo da alta costura
Ari Folman, andou lá perto, com o seu
psicadelismo animado visionário e a sua
reflexão tão pertinente sobre o efémero;
da casa Celestine muda tudo. Enquan- não só informam a acção como propul- mas há qualquer coisa na meditação lenta
to desenvolve uma relação conflituosa sionam muitos dos conflitos. Se Moore e algo arrepiante que Glazer tece sobre
com o jovem supervisor do guarda-rou- expõe as obsessões e os ridículos des- quão insondável pode ser o outro, e quão
pa Jonni Tare, Doll vai pouco a pouco ta indústria, também lhe demonstra a frágil é aquilo que define o ser humano,
embrenhando-se no estranho mundo importância na contemporaneidade. A que eleva Debaixo da Pele acima de outros
do criador de moda Jean-Claude Celes- imagem é poder e quase serve de iden- filmes de ficção científica que tentaram
tine, entendendo-o e desvendando-lhe tidade. explorar territórios próximos. Alieníge-
os segredos. A par da moda, outras duas componen- nas há muitos, mas nenhum como aque-
Alan Moore escreveu Fashion Beast a tes assumem centralidade: a narrativa de la que Scarlett Johansson interpretou de
pedido de Malcolm McLaren como ar- “A Bela e o Monstro”, cujas temáticas forma sublime, a vaguear pela Escócia em
gumento onde se misturariam a vida de e estrutura de algum modo regem o busca de presas.
Christian Dior, “A Bela e o Monstro” e enredo, e o confronto entre tradição e A premissa, aliás, é tão simples como isso:
a versão cinematográfica de Jean Coc- novidade, o que se tornou habitual e o uma alienígena na pele de uma jovem va-
teau, porém, o filme nunca se efectuou. que surge em oposição, em ruptura. À gueia pelas cidades e pelos ermos da Es-
A história acaba transposta para banda- volta desta tríade, inter-relacionada de cócia em busca de homens, seduzindo-os
desenhada em 2013, com algum auxílio forma imediata, desencadeiam-se mais e dando-lhes boleia na sua Ford Transit
adaptativo de Antony Johnston, resul- assuntos mas todos de carácter secundá- branca. Para quê, o espectador não sabe
tando numa obra estimulante de capa- rio. Afinal, a guerra, a realidade precária – até ao momento em que o propósito
cidade encantatória onde o passado se da maioria dos cidadãos, os contrastes de todo aquele jogo de sedução é reve-
entrelaça com o futuro para gerar uma sociais, funcionam mais como cenário. lado, numa cena memorável pela beleza
ambiência atemporal típica dos contos Fashion Beast não é uma das obras-primas da sua composição e pelo horror visceral
populares e contos de fadas. Estabele- de Moore, mas movimenta-se por temas que evoca. Mas nada em Debaixo da Pele
ce-se aliás relevantes, provoca debates, vicia. E ter- é evidente: Glazer, na sua adaptação do
uma grata mina com uma sugestão tão inquietante romance homónimo de Michel Faber, re-
simbiose quanto maravilhosa. / Inês Botelho duziu o enredo ao mínimo possível e op-
entre o en- tou pela abstracção e pela subjectividade
redo e o na exploração do ponto de vista do outro,
g rafismo, em dois momentos radicalmente diferen-
com este a Debaixo da Pele tes: quando, com aparência humana, se
contribuir Jonathan Glazer assume alienígena e intangível; e quando,
largamente [Filme] sendo alienígena, procura alcançar a hu-
para a nar- manidade, revelando-se esta inescrutável.
rativa e a O resultado, esse, é soberbo – um filme
relembrar-
lhe as ori- C omecemos pelo óbvio: será neces-
sário estrear algo de absolutamente
revolucionário para que Debaixo da Pele,
profundamente atmosférico, com a foto-
grafia de Daniel Landin e a banda sonora
gens fílmi- de Mica Levi a tornarem toda a experiên-
cas. Além a terceira longa-metragem do britânico cia desconfortável e, a espaços, perturba-
disso, por Jonathan Glazer, não seja o melhor fil- dora. E com um desempenho magnífico

86 /// BANG!
obras da fic- findos os combates, a pátria que juraram
ção científica (por convicção ou obrigação) defender
conseguiram já não existe. Pelo menos não na forma
reflectir sobre que a conheciam, antes da sua passagem
a natureza do pela máquina desumanizadora do exérci-
conflito como to e após as sequelas, físicas e sobretudo
esta – uma ex- emocionais, que a passagem pela guerra
trapolação em sempre deixa.
jeito de spa- As batalhas em The Forever War estão lon-
ce-opera realista ge do frenesim das escaramuças a que a
da experiência ficção científica audiovisual nos habituou
do próprio au- – combates entre naves colossais a dis-
tor na Guerra tâncias praticamente incompreensíveis
do Vietname, no vazio do espaço não se regem pelas
de Scarlett Johansson, que só por si justi- onde comba- regras do dogfighting de caças modernos,
fica o bilhete. teu e foi ferido. No futuro que Haldeman e Haldeman sabe-o bem – o rigor que
Debaixo da Pele está longe de ser consen- imagina, os jovens mais promissores são emprega no desenvolvimento da premis-
sual – não era esse, aliás, o objectivo de recrutados por conscrição para o confli- sa atravessa todos os aspectos da obra,
Jonathan Glazer. Com reacções polariza- to interestelar que a Humanidade trava e ainda que alguns cenários que imagina
das desde a sua passagem pelos festivais contra uma raça alienígena inescrutável, para a Terra futura sejam hoje implausí-
de cinema, o filme tem dividido tanto a conhecida como Tauran; e o leitor acom- veis e até um pouco datados, nem por
crítica como o público; e a ambiguidade panha o soldado William Mandella desde isso deixam de ser eficazes a veicular a
da sua mensagem tem suscitado críticas a recruta em Caronte, nos limites do Sis- estranheza que é central ao texto.
díspares, que encontram nos seus vários tema Solar, até às batalhas no vazio en- Há quem diga que The Forever War foi uma
elementos interpretações radicalmen- tre as estrelas e na superfície de planetas resposta ao militarismo cívico e entusias-
te diferentes. Silencioso e pausado, com remotos. mado de Heinlein em Starship Troopers
uma aproximação visual a Kubrick e uma O que distingue The Forever War das mil e – Haldeman recusou a intenção, mas o
narrativa mínima e em momento algum uma space-operas já apresentadas pela lite- contraponto está lá, na reflexão desapai-
evidente, Debaixo da Pele não poderia estar ratura e pelo cinema de ficção científica xonada, quando não cínica, que faz sobre
mais distante da maioria dos blockbusters (que, não raro, também têm um jovem a futilidade da guerra e sobre a irrelevân-
da época (e do género) – e dificilmente soldado como protagonista) é o realismo cia do indivíduo num conflito de uma es-
agradará a todos. Mas quem apreciar cine- científico praticamente inabalável que cala avassaladora. Notável pelo seu rigor
ma menos óbvio, menos explosivo e mais Haldeman emprega no desenvolvimen- e pertinente pelas questões que suscita,
meditativo, encontrará aqui uma obra- to da premissa. A dilatação temporal, The Forever War é um clássico incontor-
prima de uma qualidade rara nos dias que aspecto inevitável das viagens a velocida- nável da ficção científica, cuja
correm, e uma das mais importantes en- des relativísticas (e ainda leitura, 40 anos
tradas da ficção científica cinematográfica assim evitado em tanta volvidos desde
contemporânea. ficção científica espacial), a sua publicação
Debaixo da Pele (2013) é realizado por Jo- assume aqui um papel original, continua
nathan Glazer, com Scarlett Johansson e preponderante: os anos a ser pertinente.
Jeremy McWilliams. / João Campos de combate de Mandella Esta nova edição,
traduzem-se em décadas traduzida por João
e séculos na Terra, e a Barreiros (que co-
A Guerra Eterna cada regresso a casa de- nhecerá o género
Joe Haldeman para-se com um mundo como poucos em
[livro] progressivamente mais Portugal), inclui
estranho, mais irreconhe- ainda uma intro-
cível – mais alienígena. Ele dução de John
S aúda-se o regresso de The Forever
War, o romance clássico de Joe Hal-
deman agora editado pela 1001 Mundos
mesmo um ex-comba-
tente, Haldemam utiliza a
Scalzi (autor de
Old Man’s War) e
relatividade para explorar duas breves intro-
com o título A Guerra Eterna, às livrarias a ideia de que nenhum duções do próprio
portuguesas. O tema da guerra, afinal, é soldado regressa verda- Joe Haldeman. /
sempre (e infelizmente) actual, e poucas deiramente da guerra – e, João Campos

Venha descobrir mais no


Site da revista Bang!
www.revistabang.com BANG! /// 87
Sugestões Fnac
por Ricardo Monteiro / Fnac Portugal

A Primeira Lei de Joe Abercrombie [ A Lâmina | A Forca | A Coroa ]

L
ogen Novededos é um bárbaro infame, um merce- autor britânico Joe Abercrombie nos guia através de um
nário psicopata com um passado negro e cheio de mundo e de uma época onde os conflitos e a violência pro-
violência, que o atormenta e coloca em evidência a liferam. Um mundo sem heróis, onde todos se questionam
complexidade do seu carácter. Ao mesmo tempo, é o sobre o seu lugar e onde os conceitos de moralidade mu-
mais próximo daquilo a que se pode chamar um herói que dam de perspectiva a cada página.
vamos encontrar nestes livros. A Primeira Lei é uma trilogia de fantasia negra, enérgica e de
Bayaz, Primeiro dos Magos, é uma figura lendária e enigmá- ritmo rápido. A Lâmina, o primeiro livro, dá-nos a conhecer
tica. De acordo com o próprio, é um dos grandes respon- as personagens e o seu mundo, servindo de base para o que
sáveis pela criação da União e vive há séculos. De entre os se seguirá em A Forca e A Coroa: uma viagem inesquecível
seus muitos poderes, a capacidade de manipulação parece o num universo de aventura, sombras e intrigas, que subverte
mais desenvolvido. todas as convenções da literatura fantástica que conhece-
Sand dan Glokta é um inquisidor brutal e impiedoso. Des- mos.
figurado e aleijado depois de ter sido ele próprio torturado,
Glokta usa de todos os meios à sua disposição para sobre-
viver. É também a personagem mais moralmente duvidosa
pela qual o leitor se pode apaixonar.
Jezal dan Luthar é um jovem capitão na guarda real. Arro-
gante e precipitado, vive para a glória a para mostrar a sua
superioridade para com os demais. No entanto, esta arro-
gância esconde uma insegurança profunda que vai influen-
ciar os destinos de toda a civilização.
É pelos olhos e acções destas quatro personagens que o

Convenções europeias
no verão de 2014
E
ste verão não há falta de importantes eventos de De 14 a 18 de agosto, uma das mais antigas e importantes
literatura fantástica a nível europeu. Para quem convenções de fantástico no mundo, a Worldcon (Lon-
desejar passar umas miniférias fora de Portu- con), vai decorrer em Londres onde irão ser anunciados
gal e viver a experiência os vencedores dos prémios Hugo. A
de uma grande convenção programação extensa e diversificada
cheia de autores e fãs, pode escolher inclui uma homenagem ao falecido
as seguintes opções: de 30 de julho escritor britânico Iain M. Banks e
a 2 de agosto, decorre na cidade de entre os vários convidados de hon-
Avilés, em Espanha, o festival Cel- ra temos Robin Hobb, John Clute e
sius 232 (numa clara homenagem a Bryan Talbot, entre outros.
Fahrenheit 451 de Bradbury) em que
irão participar os autores Joe Aber- Também em Agosto, de 22 a 24 de
crombie, Brandon Sanderson, Patrick agosto, decorre a Eurocon (Sha-
Rothfuss e Tim Powers, entre outros. mrokon), em Dublin, Irlanda, a con-
venção europeia de ficção científica.
Em Londres, a Nine Worlds Con- Durante três dias, os interessados
vention, uma festa direcionada para poderão assistir a debates e conhe-
geeks, decorre de 8 a 10 de agosto e cer os autores Andrzej Sapkowski,
é descrito como um evento mais in- Michael Carroll, Seanan McGuire e
clusivo e eclético em torno da ficção Jim Fitzpatrick.
científica e fantasia no cinema e te-
levisão, a literatura do género, bem
como escrita criativa, ciência e pro-
dução de cinema.

88 /// BANG!

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