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| VILEM FLUSSER (Visitarei as transgre: Iatretugae I. A calpa 1. A Sb a) A Escéla bd) A Alquimia 0) A Acelada _- 4) A Catedral 2. Bx Oriente Tux Le 0). Pinoel a) A gaverade 3+ Sayrpar a).0 Rgrease b) A Caravela co) A Bassela 4) 0 Navie Fanttons II, A Maldighe 4. O Relogioe 8) 0 Mecanione d) 08 Poateires c) 0 Mestrader 4) 0 Maue-taque ‘b) Revelugees 0) Voltas 4) Reviraveltas 6. Vitéria® a) Inte * ») Querra ofvil 0) Triunfes phge ch, Até a torceira e a quarte geracac. B ath a terceira e a querta geragae daqueles que Me aberrecen). iv * 5” lov} 27 7 25 32 ev 317 427 4@) 0 Exéroite gleri- 1 © meroite siete ase” III. 0 Castige 7. O Fazer a) 0 Verbe auxiliar b) A Obra ©) A Operagae @) 0 Operader 8. 0 Peter 2) OP D) APA ¢) A Ceva 4) 0 Campo , " 9s 0 Btorne reterae a) 0 Medele D) A Parentese ©) 0 Sangue 4) © Banke IV. A Ponipéacia 10. A Pungite &) A Constante ) A Yariével ¢) 0s Valerep 4) 4 Gurva 12, 0 Puncientrie a) 0 Teste ‘b) A Carreira 0) A Apesentaderie 4) A Dentesae 22, 0 Apareihe . &) 0 Program >) A Ruptura ©) © Concrete 4) 0 vin By a deyeite de tude, meve-sel soi, : Introdugio. VILEM FLUSSER Os mensageiros do senor sdoram a suavidade do Seu dia. Wés, os da-terceira | eda quarta geracho, tememos o trovo da sua ira. 0 sou surdo ressoar vibra | nos ares e nos noss0s gtvidos.” Fresegia o dies irae. 0 mundo seré dissolvi ‘do em cinza. Que faremos, miseréveis? O presents livro n§o proouraré form « lur respostas a esta pergunta. Frocurara articular a pergunta.. Tentard tor | nar dizivel o terror indizivel. Porque o articulsdo deixa de amedronter nos. O discurso racional afuguenta 0 medo. 0 medo do medo é o motivo de todo es_ | forgo racionelizador, e tembém ‘do presente esforgo. Sera o esforgo de con_ struir um tripode, (mais ou menos: racional), a servir de ponto. ae ‘vista ede apoio. Desse tripods. proourareios observer es fumagas e os vapores que a ger’! ganta 40 passado exela. rermitiremos que nos envolvem ‘esses. perfumes ‘veneno tos, mas nd que nos. entorpéeyen; Procuraremos manter a dabsya erguide acima 068 exalegdes do abismos - ,Assin aio sera, esptivanos, 8 nossa ertioulagdo um nero balbuctar sem nexoy . Comm police de béa’ vontade poder’, ser descoberto algun significado néla. 5 esse significado dirk respeito 4 pergunta: "como q chegemos até aqui, e.de quem & a culpa?" S&o, com efeito, duas perguatas, Ay primeira indega pelo "de onde?", @ outra pelo "por que?" da situagSo dentro da qual eatamos. Um clima quiliastico envolve ambes perguntas, Vibram oom © trovo ou com o troitio do diltimo juizo.. O dever desta introdugdo 6 intxé. duzir 0 leitor:a esse clima,- Fazer com que o leitor sinta, com o sutor, a 4 Gitima omeaga e a dltima promessa, : Yodas épocas 'tém os seus profetés do ocaso.' Nada mais simples, nada mais of modo, nada maié otimieta em. tltima andlise, de que prevér a -catéstrofe derfa: jr doira., £ uma atitude que exonera da responsabilidade e exalta o,exonerado, ~ Has essa £2 otimista muna catéstrofe violente nfo 6 0 caso do, presente Livroy Néo & .& explostio que receia, mes 880 as cinzss, “As suas"viedes" nfo 650 ae cogumelo eapléndido, mas do déserto. Nao antecipa a morte herdica nae ohasl hue @ uorte com gosto de mataborrio no cotidiano, Néo eré ne catarcis do £97 G0 purificador, mas oréidue a: torceira.¢ querge GeragSo serdo seguidas de qui: ta e sexta, A ira Divine, assim receia, nBo%é a explosio, mas a -estagnagéo L do mundo. 180 imperceptivel adré o ‘iltino dia; que nfo notarenos 0, Bou" rater new 0 seu .crepisoulo, nen aGltima noite. Malvez J& passou,. desperodoido, 0 Gitime dia? Talver vivemos.ta vigesiixe quinta hora? Talver ¢ noticia do a2 timo juizo nos chegeré atrazada, cémo insinua Nictzéche?’ 0 mundo que-nos ca nip passa, talvez,.de um-epiiogo triste de reclidede? Le um portio 6¢ trada pera o nade? & que no nos precipitamos ‘para dentro ‘do heda, fies que Geslibomos nele? Que estamos em plano inclinedo ciijo decliye chamamos "pro. gresso"? =» que era estaa nos3a condenagio “4n conturetian® no é4ia do sued mento finel a0 qual nfo. comparecenos:.a aceleragao geométrica do progresso? sstas sé0 algumas das perguntas que motivam 0 presenté livro, kate .o, tipo dé} quillesmo que o inspira, e contra’ o ual se dispde a lutar'o melhor que pode¢ Fare esta lute convida os léftores.: VILEM FLUSSER © ¢lima que procurei evocar explice o aparecimento dos profetas do ocaso. 0 seu'desejo é 0 pei do seu pensamento. © mundo precisa ecabar, porque é into lerével. Os profetas proclamam o fin dé mundo, pera provoce_lo. Ea humeni dade desoleda, perdida no tédio do cotidiano e feminta de sensagdes, auscul_ te o fimmemento para descobrir sinais de catstrofe iminente. B os sinais & parecem, Cometas con ceudas, e espadas em chemas, e discos voadores, e cria turas de Marte. Uma flora complexa e luxuriante de literatura apocalf{ptica viceja aebeixo desse céu. Descreve o fim da sociedede vurguesa, e do Osiden te, e da humanidede, o da vida ne terre, e proclema « morte de Deus e do di_ abo. Todos est&o de acdrdo num pontos assim néo pode continuary poraue isto sorfa intolerével. © que n&io deve ser, néo pode ser, & o lema que une a to_ Gos. A propria admissio da possibilidede de continuidade § recusada, por de masiada horrivel. Nesse climé surge a pergunta existenciel: "por que hé algo’ As moltiples respostas intelectueis a essa pergunta néo séo interessantes, se comparadas com as respostas vivenciais que ¢ nossa geragéo esti dando, So dues. Umea ‘pode ser decerite como um ato de devorar, a outra como um dar de ombros. Se tentarmos articular as duas atitudes, a primeira serfa “carpe diem", e a out ra "nfo ligo". & assim que reage a humenidade eos sinais no firmementos Pa va uns Bo os foguetes um meio de viejer répidemente e cémodenente, pare out ros sio um ruido desagradével que interrompe por um instenté o écio cotidig_ no. Ambas -atitudes s&o falsas, ambas so poses. Tanto a "progressista"y. a to a "no empenbada", Ambas séo fugas. A pergunta "por que h4 algo?" néo pi ée ser assim evadide. 4% preciso eceitar o foguete como desafio, Mas essa B- ecitagio teria por consequencia 6 aceitag&o do mundo. HB isto é intolerdvels _ # melhor. que o mundo acabes 7 © que & mundo? £& 0 conjunto de seres que constitui a realidede. £ um conjun- to mal definido, compocto no seu centro, difuso na periferia. & uma bole cufa’ superticte se evapora. No centro da bola estamos nda, e somos nés os nicleos da realidade. im nosso redor imediato se acotovela a multidio dos seres. Ca da um procure chegar até nos pare realisar_ee. Cada um procura romper a barre: re formada pelos démais, para ser poréobido. Ceda um quer ser conhocido ¢ re conhecido, sm seu conjunto formam esses serea 4 circunstancia dentro da quel estamos. is costas dessa turba desordenada flutua a masse amoxfa dos serea imperceptiveis, Forms o territério da virtualidade, do qual o sores percept! veis ¢ reslizéveis se condensaram, E essa massa nebulose se perde nos abkimos: do nadss A bola da realidade rola na abébada do noda propeligo pelo pacsade em direg&o do futuro, Coro pode accber esse mundo? No por catéstrofe externa, come crém os profetas. Acaba como comeget conos_ co. Somos nds os scocorados no centro da realidede. Somoe ade os responsd_ veis pelo metabolismo da. bola. Se nos abrimos aos seree na atitude devorado_ ra, abrimos uma vértice no certro do mundo, dentro da qual os eeres se preci_ VILEM FLUSSER piteg. .Nesse movimento centripetal o mundo se aniquila no vazio do nosso eu. Se nos fechemos contra os seres na atitude do “ndo ligo", se repelimos os sexes que sobre nés se precipitam, surge um movimento centrifugal na bola. Nesse wo vimento o mundo se diesolve no nada que o cerce. As duas atitudes que caiacte rizem a nossa geregéo sio portanto as responsiveis pelo clima apocalf{ptico den tre do qual existimos. S80 portanto os préprios prefetes de catastrofe os que a provecem Uma texceirea atitude é possivel, Consiste no aceitar das coises como desefio, Nessa atitude as coisas se transfornen em problems, Ao se precipiterem sobre nos, barram o uosso caminho. Se quizermos manter o nosso caminho eberto, néo Gevemos procurar aniquiler es coisas, nem ignora_les. Levemos procurar svupera las. Coisas so superadas ao serem trensformadas. N&o 6 no consumo nem na re cusa que trensfomaremos as coisas, f manipulendo és coisas que as ,superaremos. A maioria das coisas cue cerca a geragdo atueal consiste de instrumentos. Instr mentos sao coisss jé manipuladas. For serem menipuledas, parecem pedir de nbs" etitude do consumo ou da recusa, Ferecem exigir o seu proprio aniquilemento.t este, @ meu ver, # razSo ontologica da expectativa de fim do mundo que reina, 0) mundo dos inetrumentos, (o minco que nos cerca), parece destinado, por sue pro_ pria estrutura de coisus j&é manipuladas, ao aniquilemento, A atitude que estou descrevendo reside no uceitar dos instrumentos como problemas. ese atitude é consequencia de um momento de escolha. { a escolha existenciel do nfo s¢eiter os instrumentos passivamente. Reside na eberture vivenciel em fece do mundo de tecnologia, 4% a decis&o existenciel de superar o mundo da tecnologia, WNéo pel consumo sempre crescente, nem pele recuca enojada e entediada, mas pela menipv., lago e treneformagao da tecnologia. 4A tecnologia, para ser supereda, precisa faer transformeda em outra coisa. Nésse decis&o existencial, nessa escolhs de atitude, inicia_se um movimento di_ ferente no mundo que nos cerca. As coises que sobre nos se precipitam sdo ree_ Lizédue pele atitude menipuledora que escuminos. 0. mundo se torna compacto. ¢ solida_ce o mundo. Longe de precipiter_se para o abismo do eniquilamento, surg ele desse abismo 3 meaide que o reelivenos. kste 6 um clima no qual néo ha lu_ gar para o quilisemo gue carecteriza o nosso tempo. Sera vidvel essa atitude e sera rossivel o estabelecinento cesse cline? Vivenos em nunde j4 esgotedo e pobre. Oseilatos entre o devorer e = recusa. 9 ‘$nstrumentos se precipitam, transparentes e Scos, paxzw o vazio ao nosso eu yara serem conemidos, Hessa quede colidem com outros que estio senéo exp elidos ao nosso ev pelo tédio e pelo nojo. To trunspezentes e Sces sho 6s coiges que 2g cercem, ive pocewos vizlunbrar, atrevé2 eles, o neda. Séo ferrapos nebulosos é eoisss, que mel e mel encebrem 4 nudez du noeso eu. Vivemos em aundo J& quase esvazisdo de reslidade. De razo em raro cinds spanhamos um finsinho de realids ‘de,.vest{gio triste ce um mundo perdido. eses reelidede @ demssiado compec te pere ser suportads. Ko conseguimos agarrar_nos a Somos uma gerago ® VILEM FLUSSER ;ceneada. Seremos ainda capazes de muder de utitude? He N5o sei responder a essa perguntas Mas procuro resposta. O presente livro é a articulegao dessa procura. wuero compreender @ situagdo que dey oricen @ essa pergunta. Compreendendo a situagéo, talvez poderei encontrar respos ta. Creio que a situag&o pode ser compreendide histéricamente. f na histd rie que se encontra a axplicagZo da situagdo ns qual estemos.” Deve ser por tento ne historia que une selaa de nossa situegio se esconde. Visitered as geracdes que nos precederan, pere que elas me respondam: "para onde vemos?" Fago_o com toda a humildace que devemos aos mois idosos, mas néo sem recri_ mina_las, So esses geragdes afinal as culpedas pele situagZo na qual esta mos. Quero apreender do passado, nfo tanto como imite_lo, mae come evitar © os seus erros, Esta a finalidede do presente livros 2 » Cavaco =Azuve wt Haso 14637 ATE A TERCEIRA E QUARTA GERACAO (1) rt A Celpe fh AS ‘A cidade medieval seré o ponto no qual me deterei no curso desta viagem aos antepassados. A nossa geracdo pode observé-la de um ponto de vista transcendente. Nossos avides a sobrevoam, Em perseguicio desalentada dos nossos negdclos e dcios cruzamos os ares em velocidades violentas. ‘Mas esses velocidades nao sio vivenciadas. A flexa furiosa do avidio parece estar parada aos que esto presos a ela pelo cinto de seguranca. Com efeito, 0 avido é um dos oucos lugares de meditagio que restam. O voo nao nos da a sensacdo de movimento. £ um fendmeno tipico do mundo irreal que nos cerca. A velocidade do véo é viven- ciadatdo sdmente depois da viagem, ou por um desastre. Durante 0 vOo estamos parados, e é a paisagem que se desenrola de maneira lenta e convidativa a meditagdes acompanhadas pelo ruido mondtono e entorpencente dos motores. Se essa paisagem for a Europa, notaremos nela formagées curiosas. So pequenas aglomeragses de casas © casinhas, com ruas e Tuelas labirinticas, um ajuntamento estreito e angustiado. Mais parecem organismos que cons- trugdes essas cidades. Parecem brotadas de sua paisagem e nela abrigadas. Nao se espalnam pela paisagem, nem a oprimem, como nossas cidades. Parecem rebanhos de ovelhas que se agrupam, medrosas, em redor do: bordéo do pastor, em.redor da torre. Temem 0 16bo que ronda a cidade. Esse-16bo J4 desapareceu nas brumas das lendas Vilém Flusser (1) Titulo provisécio do livro inédito de Vilém Flusser, cujo primeira capitulo & aqui publieado. 43 antigas, Também o pastor retirowse para histérias ¢ eantos pios, e talvez nfo intelramente sinceros. O que ficou sio apenas as ovelhas eo bordo abandonado do pastor. Sao ‘cascos vazfos de uma esperanca outrora ardente. So rest duos petrificados de um terror glorioso. Sao recifes de coral da fé que se cristalizou em beleza. Assim se escondem essas cidades nos seus vales, ou apoiamse sobre as suas colinas. Estendem em vao as suas trres suplicantes rumo 20 céui e 20 aviio que as sobrevéa. Sio simbolos do nosso subconsciente. Nao atestam apenas 0 passado da nossa so- ciedade, mas também da nossa mente. Os nossos ante- passados habitaram, outrora, essas cdpsulas agora vazias. Sofreram nelas, rezarem nelas, e criaram nelas feitigos € ‘obras primas. Mas nos também, quando criangas, percor- yemos um estgio que corresponde a ésse clima de vida. ramos, nds também, goticos, outrora. Dentro da nossa mente abrigamos recifes de coral que se assomelham a essa carcassa. S60 cépias ou sfio modelos désses fendmenos materializados. As cidades medievais so partes da nossa prdpria mente. Querer compreender o espirito que as eriow @ que por elas foi cfiado é querer compreenderse a si mesmo. f a tentativa de encontrar os nossos antepassados no interior das nossas mentes. uma atividade multivalente essa tentativa de repor a carne nesses esqueletos de pedra, Tem algo de paleontologia fe de poesia ¢ de autobiografia. Reconstruiré, muito prova- velmente, com essas pedras mortes uma criatura tao'grotesca quanto 6 grotesco 0 gigantosauro reconstrufdo com ossos mortos. Esculpiré uma figura tio nossa das ruinas, quanto sua a estdtua que o escultor modela na pedra. Fard surgir, ante a nossa visio mental, um mundo fantastico que serd, om sua esséncia, um sonho e um pesadelo da nossa infancia, projetado sdbre o pano de fundo da histdria da socledade. Esso amnéigama de reconstrucao grotesca, criagio artistica e somho seré 0 espirito que faremos ressuscitar das cidades. Chamaremos “Idade Média” ésse fantasma. Ciéncia, arte e introspecgio foram os agentes que pro- vocaram ésse espectro suave e terrivel. Como esté rela- cionado ésse espectro com aquéle espirito “real” que reinava na Europa hé quinhentos anos? Desconfio que a pergunta carece de significado. Para nds, a realidade do espfrito da Idade Média reside justamente no espectro que invocamos ¥ como tal que éle age sObre as nossas mentes. Invoquemos, 44 pols, com gestos apropriados e com festividade solene, 0 espectro da Idade Média, e facamos com que se materialize da sua limpada de Aladim, da catedral, para servirnos. A sua luminosidade pélida iluminaré a situacio na qual nos encontramos, digno 0 receptaculo no qual o fantasma estava encap- sulado, Surge das pontas cinzeladas, das ameias da catedral, dessa chama da fé petrificada. A catedral, a sé, levantase em labaredas rumo ao céu. Nos seus cantos e entre as suas protuberancias esconde-se, em mil formas, 0 diabo. Na sua ponta resplandece a cruz do Deus tornado carne. Na sua rave se aglomera, ajoelhada, a multidéo, na viagem em busca da vida eterna. A catedral é a chama do auto-dafé, que consome 0 corpo para libertar a alma. Devora a carne, porque esta abriga os sentidos, ¢ os sentidos sio do diabo. Tiumina a alma, e esta se eleva para juntarse a Deus. A sé a ponte entre a cidade dos homens, ameagada pelo inferno, © a civitas Dei. necessrio perguntar-se como e com que material fol acésa tal chama. A lenha que constituiu a fogueira provinha dos bosques da Palestina e da Grécia, e das selvas escuras da Germania antiga. Mas a faisca que féz com que essa Ienha se incendiasse, e se mantivesse em chama durante mil anos, veio de regides desconhecidas. Em tdda Europa oci- dental e central ardia ésse fogo da {é e aquecia e iluminava @ escuridao da solidio humana. O que de calor resta em nossas mentes esfriadas so as brasas quase extintas dessa lenha agora carbonizada. Na fogueira viva e ardente da Idade Média nio foi possivel distinguir os diversos ele- mentos da lenha. Mas nds, a quem a claridade da chama nndo mais ofusca, podemos descobrir os elementos judeus, gregos, latinos e germfnicos na fé medieval, e podemos sen- tirlhes 0 aroma, Nés podemos distinguir, no chamejar me- dieval da fogueira, as diversas tendéncias das quais a chama se compunha. Podemos descobrir, em toda Idade Média, momentos de predominancia ora déste, ora daquele elemento. ‘So outros tantos “renascimentos”. A propria Idade ‘Média nao se dava conta claramente do seu oscilar, porque no estava néle interessada, Nao tinha um interésse “his- t6rico”, no nosso significado do térmo. © hélito que impul- sionava 0 fogo da {é apontava a historia afora. N&o permitia um virar-se do pensamento em direcio &s suas raizes. £ da esséncia da gética o interésse pela eternidade, portanto 45 © desinterésse pela histérla como processo auténomo, ¢ nao ‘como processo de salvagio das almas. O nosso proposito estas consideracoes é a invoeacao do espirito medieval, € isto exige que sejamos obedientes a éle, Esquecamos pols a nossa inclinacao historica, e abramos mo da tentagao de explicar a gética historicamente. Demos as contas 20 mundo fluido do temporal, ¢ encaremos a eternidade. , com efeito, a posicio que recomendamos ¢ aquela que @ catedral assume, Apartase da cidade. Afasta, com gesto solene, a multidao das casas. O circulo mégico da Praga da Sé, mantém, & disténcia, o borbulhar secular ¢ mundano das Tuas. A’ catedral encara a paz silenciosa do céu. Lé fora o céos da cidade, com as cores berrantes dos trajes lascivos, com a eritaria obcena das criadas e dos servos, com 0 cheiro nojento da feira de ontem e hoje. Cé Gentro o ardor reprimido dos vitrais de rubi e esmeralda, as vores suaves e encantadoras do canto gregoriano, 0 per. fume acredoce do incenso. LA fora, na cidade, tudo é confusio, tudo é sofrimento. Cé dentro, na catedral, tudo é ordem, tudo é beleza. Mas a beleza organizada da catedral € ‘conseqiiéncia stiblimada do céos na cidade. A catedral é 0 cos Gisciplinado, casto e castigado. £ a forma severa e légica, para dentro’ da qual o cos derramou para ser salvo. Tao vivo e opulento ¢ ésse cdos, que ameaga romper @ forma severa em todas as costuras. No ouro e no rubi dos vitrats transparece a calga amarela e vermelha do escudeiro, No repicar dos sinos ressoam os chocalhos do gorro do bobo da corte. No arco ogival que aponta o céu escondese 0 seio da meretriz, e todo 0 edificio da catedral ¢ carne sublimada. Nisto reside significado da catedral, e 6 assim que ela supera a cidade: ela a sublima para elevéla. Transform fs cores da séda e do veludo no reluzir das gloriolas: Faz com que os chocalhos do bobo da cérte se transformem em convite para a prece. Purifica a carne. & assim que a ca tedral se torna foco da cidade. Nela todos os raios da Jdade Média se focalizam, para serem purgedos no seu fogo. } ela a meta centripeta da atividade das ruas. Dé rumo, portanto significado, a tOda atividade. Gracas & catedral & téda atividade mundana significativa. A gula mais desen- freada, a bebedeira mais abjeta, a fornicagao mais impiidica, © atormentar mais bestial de gente e de animais, tem um significado sacral que lhe dé meta: desemboca na catedral, para 14 ser englobado pela beleza disciplinada e purificadora. 46 Até a bruxa que passa a8 suas noites devassas em Companhia do bode encontra o seu nicho na catedral salvadora. Toda a cacofonia da cidade, tanto a reza mondtona do monje quanto 0 canto berrado do lansquenete, tanto o sussurrar Ga donzela quanto a gritaria da meretriz, faré parte da polifonia do canto gregoriano. # neste sentido que ¢ catdlica a cidade. Todos participam da mesma realidade, ¢ todos tendem para a mesma meta, Ninguém duvida do funda. mento. A nave da catedral é ésse fundamento. A propria heresia, 0 préprio ateismo, a prépria diivida no sentido me- dieval do térmo é fundamentado por ela. A catedral imprime a sua estrutura sobre a cidade. A ordem e a organizacao da catedral é a camisa de fora dentro da qual a vida da Idade Média se processa. © uma vida Jouca ¢ uma vida de louco. A camisa de forga reprime, salienta, reprimindo, os gestos de loucura. £ a loucura da solvagao divina, Observemos os gestos. So os ornamentos involutos e loucamente detalhados nas cumiciras das casas. Sao as iluminuras complexas e loucamente caprichadas dos palimpsestos. So os animais fantasticos ¢ as plantas gro- teseas que aparecem nos gobelins e nas tapecarias. A cidade tOda é um tinico arabesco louco. £, do nosso ponto de vista, um unico gesto alienado. Mas é uma alienacdo organica, uma loucura natural, a saber, a loucura da natureza humana. ‘Todas essas formas grotescas sio fauna e flora auténtica da mente humana. As trepadeiras fantasticas que formam as grades dos chefarizes sfo plantas que brotaram espo1 taneamente, Os unicémios e os dragées onipresentes sio animais de verdade. S40 muito mais reais essas plantas animais que os nossos automéveis e as nossas geladeiras. Os sapatos de bico e as armaduras absurdamente pesadas sio muito mais auténticos que nossos “blue jeans” que se esforcam, debalde, por evocar um “Wild West” inteiramente ficticio e’ mentiroso. Nao obstante, do nosso ponto de vista temos 0 direito de falar em loucura. Uma época que nega realidade ao mundo dos sentidos, mas que se rende tao violentamente ‘aos sentidos, é ma época louea. Uma época que tende com tanta fé para 0 mundo do espirito puro, mas que esta sempre pronta para entrar em conluios e pactos com 0 mundo impuro da magia, é uma época louca. Uma f¢ tao profunda na realidade da alma, casada com um empenho tio lascivo na realidade do corpo, 6 uma fé transviada. Nao a7 sabemos quem era 0 mais doido: se a bruxa que dormia com 0 diabo, ou o bispo que mandava queimé-la. Quem era © mais possesso: se 0 alquimista que procurava a sabedoria nos precipitados, ou o astrélogo que a procurava nas cons- telagées, ou 0 escolistico que a procurava na razio silogista. ‘Quem era o louco mais perigoso: se o relojociro que construia, um relégio que marcava as horas, os dias, as méses, os epleicios dos planetas, com 0 rico,'a morte, os apéstolos ¢ ‘05 galos acompanhando as evolugées celestes, ou o impe- rador que mandava cegar 0 relojoeito, e depois jogéo as feras. E uma loucura tudo isto, mas é uma loucura que funcionava. De um ponto de vista’ pragmatico eram portant ésses juizos desvairados juizos “verdadeiros”. A bruxaria, a algquimia, a escoléstica eram, pragmaticamente, fontes de conhecimento. O reldgio louco era um instrumento fun- cional, portanto pragmaticamente itil. Mas acima de tudo era a loucura da Idade Média téda, tal como ela se apresenta de beleza. A Idade Média toda, tal como ela se apresenta a nés, portanto, como algo pasado, isto 6, perfeito © rea- lizado, pode ser encarada como uma tinica obra de arte eigantesca. A sensagio do grotesco 6 0 resultado da contemplagio de uma fase destacada, Se’ contemplarmos a Idade Média em sua totalidade, essa sensagao se evapora. Uma estatua destacada, um livro destacado, um episédio destacado causam em nés @ impressio do grotesco. Mas € 0 nosso proprio ato de destacar, 0 responsdvel pela impressio que temos. O ato de destacar, de individualizar e de salientar é uma atitude moderna. E consegiiéneia da clara e distinta pereepgio cartesiana, A Idade Moderna consiste, efetiva- mente, de fases destacaveis, Uma estétua moderns, um livro moderno, um episddio da histéria moderna podem ser con- templados Individualmente. Porque a sociedade moderna consiste, em tese, de individuos destacdveis. A estétua, 0 livro e 0 episédio tém, na Idade Moderna, autores respon- sdveis, Mas a Idade Média 6 uma época de estrutura dife- rente, £ ela uma cadeia cujos elos tendem a se fundir e confundir no anonimato. Destacar um elo significa romper a cadeia. Significa transformar e deformar a Idade Média em museu imagindrio moderno. Dai a nossa sensagio do Erotesco. A cadeia, em sua totalidade, é uma obra de arte completa. Geragées de mestres ¢ aprendizes andnimos for- Jaramna, O projeto artistico da cadeia néo resultou de um 48 ianejamento. A aura de organicidade e autenticidade qué viaoa! todo fenomeno medieval € prova de espontaneidade. Os mestres forjadores nfo passavam de instrumentos arti- euladores de um artista supremo, Téda a sua atividade ‘obedecia a um projeto artistico impalpavel. Esse projeto informava e permeava até o minimo detalhe. Dava signi- ficado a tudo. Fazia com que a Idade Média, como wm todo, fosse a articulacgdo da propria sanidade. i ‘A meta da vida medieval era a realizagao progressiva désse projeto. Era a procura do dedo modelador do artista Supremo. ‘Tudo apontava o dedo, as torres pontudas, os tetos pontudos, as janelas pontudas, a escrita pontuda, até ‘as langas pontudas. Tudo apontava o dedo, mas nada o alcangava. Néste sentido, é a Idade Média uma época frus- trada, Tinha meta inalcangavel. E, apds centenas de anos de esforco frustrado, a Tdade Média abandonow a tentativa. ‘A Idade Moderna é, t6da ela, uma tinica fuga de uma tarefa excessivamente dificil. A Idade Média fracassou nessa tarefa. ‘As catedrais sfio os monumentos patéticos ¢ vazios da tarefa néio cumprida, [As catedrais so monumentos da frustragéio no contexto da Idade Moderna. Séo assim, porque estao perfeitas © neabadas. Mas ésse aspecto trégico é justamente o seu as- pecto moderno. Na época da sua construcdo eram as cate- Urais, muito pelo contrério, monumentos de otimismo. Essa ‘construgao levava centenas de anos. Pedreiros, ferreiros, ourives, vidreiros ¢ toda a multidao catdlica da cidade, do eastelo edo mostelro convergiam para a Praga da Sé pare colaborar na construggo da catedral e de suas obras primas. ‘Todos 0s caminhos labirinticos, todas as veredas tortuosas desembocavam na praca. A Praca da Sé ere a représa dé todos os riachos. A certa distancia da praca concentrava-se © sistema fluvial do feudalismo em trés rios mestres: eram es trés estados. Assim reunidos, fluiam majestosos para 0 ‘oceano no qual a nave da catedral navegava. Essa nave tinha dois capitaes: 0 Santo Imperador e 0 Bispo de Roma. A tensdo entre ambos tornava a viagem emprésa arriscads. Mas néo 6 éste aspecto global que pretendo ilustrar nas consideragées seguintes. O meu método sera diferente. Es- colhi trés entre as miltiplas veredas que demandam a praca, @ procurarei seguirthes 0 rumo. £ a vereda da escola, a vereda da magia, e a vereda da espada. Nessas trés contri- puigdes para a construeéo da catedral procurarel descobrir ‘a explicagio do seu fracasso. © meu metodo seré, portanto, 49 imodemo. Serd o método discursivo ¢ terd a distingéo clara por meta, Nao obstante, se tiver éxito, devera poder trans- initir ao leitor algo da vivéncia medieval da realidade. ‘A Escola. — A crenga que o pensamento ¢ uma atividade nobre, a crenca na “razio pura”, é uma ‘supersticao mo- derna, A Idade Média ignorava 0 conceito do homem como coisa pensante, Os doutores da escola desconheciam, por- tanto, 0 nosso significado do térmo “teoria”. Nao viviam teoreticamente, ¢ néste sentido nio amavam a sabedoria. Nao eram fildsofos no nosso significado de térmo, Se a filosofia f6r definida como amor ao pensamento despren- dido, a um pensamento portanto que persegue um curso do qual’ ignora a meta, a escola medieval é antifilosdtica em seu proprio fundamento. Tem meta ciara, precisa e definida, ‘A meta da escola é 0 ensino da técnica da vida eterna. A escola 6 o fundamento da vida, e ndo é para a escola, mas para a vida que estudamos. 16 ébvio para os escolisticos, {iio ébvio que néio admite divida, que essa vida para a qual estudamos € a vida depois da morte do corpo. Com efeito: 0 mundo dos sentidos, aquéle mundo fenomenal que nos cerca e do qual participamos em virtude do nosso corpo, nfio passa de um instituto pedagégico gigantesco. A sua Yinics finalidade é educarnos para a vide etema. O mundo como escola de almas, e 0 homem como aluno do curso para candidatos a vida eterna, esta 6 a cosmovisiio dos doutores. Toda atividade humana 6 preparagéo para o exame vestibular chamado “morte”. A vida no corpo ¢ iniciagio para a “ars moriendi”. &, falando estritamente, um ensino da técnica da morte. E a escola, no significado estrito do térmo, isto é, 0 quarto baixo e mal iluminado no qual os doutores ensinam, é a politécnica da vida eterna, A escoléstica € portanto uma disciplina eminentemente técnica e pragmética com fina- lidades didaticas, e “toto coelo” diferente da filosofia no sentido antigo ou moderno do térmo. Os doutores no sao pensadores “puros”, mas instrutores altamente especiali- zados, A escoldstica 6 a ciéncia aplicada da salvagio de almas. O sentimentalismo romantico que caracterizava as univer- sidades modernas até o coméco do nosso século é um clima inteiramente estranho aos doutores. E, do seu ponto de vista, sintoma da inautenticidade dos nossos professores. Os escolisticos sio, todos éles, profundamente realistas, 50 imesmé quando so chamados técnicamente de nominalistas. stdo plantados com ambos os pés firmemente no chéo da realidade. A saber, no cho daquela realidade que a 16 proporciona. ‘As especulagdes &s quais se dedicam tém para nds um ar de irrealidade, do irrisdrio e do abstrato. Mas isto 6 sinal Ga nossa alienagdo, nao da déles. £ que, romanticos que ainda somos no fundo, no conseguimos seguir-lhes 0 argu- mento racional e émpirico, isto é, 0 argumento baseado sobre fh radio e aquela experiéncia imediata que a {é oferece ‘Alienados, somos vitimas de uma esquizofrenia curiosa Existe um abismo, para nds, entre a razdo e a vivéncia imediata. Oscilamos entre 0 racionalismo e empirismo. E perdemos 0 contacto com a realidade, que se precipitou para dentro do abismo entre ambos. Mas os argumentos Ga escoldstica referem-se exatamente a ésse terreno do real que est localizado, para nés, entre a razéo ¢ a experiéncia Imediata. Os escoldsticos nio sentem, bem integracos como sao, @ nossa antinomia. Razfio e vivéncia nao sao duas capacidades opostas de captar-se realidade, mas sio duas capacidades complementares. Sao duas gracas das quais dispomos. A nossa entinomia é resultado de um desloca- mento da experiéncia que esté no fundo da nossa loucura. Deslocamos a experiénela para os sentidos. E a expe: riéncia que os sentidos fornecem ¢ ilusdria e enganadore. £ por isto que contradiz a razio e se ope a ela. Para os escolasticos nao sfio os sentidos, mas é a fé a que fornece @ experiéncia imodiata. Entre ésse tipo de expe- riéncia e razfio nfo hi, em tese, antinomia. ‘Antinomia nfig hé, mas hé uma relagdo problematica entre ambos. A'fé nos poe em contacto com a realidade. de duss formas distintas. A primeira 6 publica e objetiva, fa segunda é intima e subjetiva. A primeira tem por fonte a revelacdo Divina, e por depositério as escrituras sa gradas. A segunda tem por fonte a nossa consciéncia, © Inanifestase esporadicamente. A fungao da razio é unir fessas duas formas de £6 em nossas mentes. O papel da yazao 6, portanto, logicamente e psicologicamente posterior a £6, e a razio existe em fungao da fé e esta a ela subor- dinada. A escoléstica é a razio consciente da sua funcao, portanto razio disciplinada, & a razfo iluminada pele 16, como diriam os doutores. Ou é @ razéo como apologia da fé, como dirfamos nds, 0s modernos. Essa nossa for- se mulagéio moderna da escoldstica barra o nosso caminho para a compreensio do principio que a informava. Os esoolisticos sao, para nds, em virtude dessa formulagio, ora misticos irtacionais, ora racionalistas extremos. “Ou 's40 ambas as coisas, portanto ambas as coisas inauténti- camente, Sio prestidigitadores de palavras que manipulam con- ceitos com 0 propésito aparente de produzir conhecimentos, ‘que na realidade, jd escondem nas mangas. Os escoldsticos So jograis racionalisias da 18, do nosso ponto de vista. O seu jogo preconcebido vicia, para 0 nosso gosto, 0 sabor da espontaneidade do conhecimento. ‘A contradi¢ao e a inautenticidade da escolastica se dis- solve, entretanto, se abandonarmos 0 nosso ponto de vista modemo. Esse ponto de vista é resultado da nossa ten- déncia contraditéria de divinizar e menosprezar a razio como revelagdo da realidade, Se divinizamos a razio, @ esoolistica se nos apresenta como abuso absurdo das facul- dades racionais, e como degradagio da razao e capitulagao ante a fé, portanto ante a irracionalidade. Se menosprezamos fa razio ‘a escolistica se nos apresenta como disciplina in- teiramente afastada da realidade, que se perde em discussdes ferttiifas como aqueia que tem por tema 0 sexo dos anjos. Mas o problema da escolistica nao era éste. Nao era 0 nosso problema inteiramente tedrico das fontes e do cardter do conhecimento. A escoldstica néo é uma teoria do co nhecimento. #, pelo contrério, uma disciplina eminente- mente pratica, ¢ seus problemas sio outros. Sio problemas éticos, © é no clima da ética que a escoldstica deve ser enquadrada. Por exemplo: a afirmagio dos empiristas modernos que nada esté no intelecto que nao tenha estado antes nos sentidos seria, para a escolistica, a afirmagao da origem diabdlica de todo conhecimento. A nossa ciéncia, enquanto desenvolvimento sistemético dos dados dos sen- tidos seria, portanto, uma forma de magia negra. O ponto de vista da escoldstica ¢ tio deformador do pensamento moderno, como 0 é 0 nosso ponto de vista do pensamento dos doutores. A escolistiea nfo é uma teoria de conhecimentos. uma técnica da salvagdo de almas. Os seus problemas sao pedagogicos e didaticos, e como tais devem ser encarados. Pretendo discutir trés désses problemas. fsses problemas tem nomes. Esses nomes sio: “tradigao”, “universais” € 52 ayerdade”, Devemos tomar euidado para que os signifieados modernos désses trés térmos mio invadam @ noses To Piesso, a fim de néo deforméla. O esf6ro que develtoe fazer 6, portanto, negativo. © preciso queesquegames Tie aquéle desenvolvimento moderno que. manipul fermos propostos, para darThes contetdo novo, (© conesito da tradicao deve ser depurado de todos oe significados que o relacionam com o coneeito moderne preciso esquecor que . eNtharxismo, ¢ darwinismo, © & tecnologia moderato ente assim & que poderemos comegar , ‘fignificado do térmo “tradicao” mo seu contexto, 2 um ox forgo dificil. No fundo do nosso pensament desenvolvimento da Bessa planta eresce e se desenvolve. Tina o ae chamaros “progreso™ £ Pres, Tene ianta do fundo do nosso . SSpstifutla pela imagem medieval do mundo, Bata, fe asso melha a uma cachoeira, O mundo se P) rumo 20 timo j Jg0 as NOSsAS {iltimo juizo, Em sue queda arraste consigo ns Roser! Bitte Mas existe nessa cachocira um segundo 1 . iéncia extramundana Os ensinamentos da Tgreja, & uma influencia exttiinys ‘queda. # uma C transcendente que modifica o curso da queds, Nae Yteza na cachoeira, que tem sua font > corm. A fonte & a revelagio Divina, ¢ a correnters, Or dela brota para influir no mundo ¢ & eerie aa Yplema da tradigio reside na_circunst guinte: a sua fonte 6 © Tevelacdo tal como fol recebida Hog profetas judeus e encarnada pela figure, do feos, eeontrasse depositada nos. livros sagrados, do, YSN | Go Novo Testamento. Mas a corrente da tredicit fot int ‘lementos que tém origem totalmel - trade Ror Sitas esto depositados nos livros de, AristGteles 2 oe ear ale tam, corset ‘neia_ on 3 { enqundratico e exige esclarecimentos. Com efeito, ela & Smt promimento em procura de esclarecimentos, £8 Poot da sintese entre as vis6es dos profelas s judeus ¢ 8 expect fagdes dos fildsofos gregos. Pode ser Compares © oe te rafuso, cujas rOscas procura penetrar 6 crescentes teri aimas. A escolistica é a cl a mista, stra aratuso,e oste sentido é a esctastica ‘a chave do paraiso. 53 ‘A escoldstica como técnica para a propagagiio da tra. digho vése diante de problemas secundérios que dificultarm © seu avanco. Os livros sagrados dos judeus esto escritos fem linguagem densa, poética e misteriosa. & a linguagem Divina. Precisam ser traduzidos pera a linguagem rigorosa dos silogismos, isto é, para a linguagem da rezio humans, Os livros dos fildsofos gregos, ¢ mais especialmente os de aristateles, 0 fildsofo “tout court”, contém passagens perl gosas, j@ que nao so iluminados pela revelagao divina. esas passagens precisam ser depuradas. Acresce que os livros sagrados estio escritos em hebréico, araméico ° rego, linguas cujo conhecimento so tornout inacessivel. Os ereoldsticos se vem relegados a tradugoes feitas por arabes @ judeus, portanto de infieis que infiltram a tradieso com seus eros. £sses erros precisam ser extirpados. Em sintese, © dever da escoléstica reside no esclarecimento da reve- facdio, na assimilagao da filosofia grega a essa _revelacio, é na depuragio de erros que surgiram por assimilagses fenganosas. Neste sentido 6 a escolastica o proprio niicleo Ga tradigdio, e como tal é ela a escada para o céu. O concelto Ga tradigto ocupa portanto um lugar no pensamento me Gieval, que se assemelna ao lugar ocupado pelo conceito do progresso no pensamento moderno. rConcebida assim, € a escolistica um esforgo parado xalmente frustrado. Procura esclarecer a revelacao, @ acres. Sentalhe, nessa tentativa, uma multiddo de comentérios que pedem esclarecimentos, Procura assimilar 0 pensa Trento grego & revelagho, e consegue apenas, nesse esfOre0, Temonstrar 0 abismo que separa ésses dois mundos. Pro- Cura tornar-se um filtro da tradigéo, pelo qual passa a égut Genta da verdade para o poco cristalino do Deus. Tornow-se Com efelto, uma ramificagao labirintica de teses contradi- forias, portanto em patanal no qual esse agua estagna Quanto mais avangava o parafuso da tradigio, tanto mais Garo se tornava o fato de que afastava o pensamento das suas fontes, A escolistica, longe de ser uma escada para 0 oft fohduria a alma para regiGes perigosas. A sua procura da fimplicidade da verdade resultou na argicia sofistica 32 Snultipticidade de teses. Uma sensacéo trégica de profundo Goseneanto envolve as tltimas fases désse esforco gigan fosoo. A escolistica 6 um dos pilares nos quais a catedral tesenta, O fracasso da escoléstica provava vivencialmente tim erro profundo no plano de construcéo da eatedral, um erro que féz com que a Idade Média desesperasse. 54 ‘A famosa contenda dos universals € sintoma precoce désse desespéro. £ preciso localizer essa contenda néste fontexto. Para uma mente informada pelo pensamento moder parece tratarse de um problema inteiramente fabstrato, Parece tratar-se da relagéo entre nomes particu Inves, (nés diriamos “nomes préprios”), ¢ homes universais, (nds ditlamos “nomes de classes”). & uma questao pur: mente formal do ponto de vista modemo, O fato de assumir Ruuaimente uma importancia capital na filosofia, é prova de como comegamos a superar a Idade Moderna. & preciso por entre paréntesis 0 ponto de vista moderno, se quizermos Zaptar 0 espirito que impulsionava a contenda. Para, os CQoolisticos tratase de uma deciséo existencial entre duas Sitornativas, uma decisao que acarreta dois projetos de vida Giterentes. ‘Conceitos “universais” como genero, espécie © $ropriedade sao “ante res”, “in rebus” ou “post res’, Proranteriores as coisas, dentro das coisas, ou posteriores se coisas? Trata-se de decidir onde est4 a realidade. £ w forma tipicamente escolistica da procura de Deus. Para faquales que se decidiram em pro! do juizo "os universais Sao anteriores as coisas”. Assim resolveram negar, nessa Seeisto, @ autonomia do mundo das coisas. A realidade ¢ Gntorior as coisas. A realidade esté em Deus que é anterior Bs coisas. A mente humana participa dessa realidade, porque Spriga nomes universais, @sses mensageiros da. realidade. ‘Os que se decidiram pelo empenho em prol désses mena foiros séo, portanto, os realistas. Mas essa decisio nfo seré sinal de soberba? Como podemos ‘nds, mentes aprisionadas em corpos, visiumbra Pguilo que é anterior ks coisas, em virtude de meros nomes? Nao; essa realidade anterior &s coisas 6 inomindvel, © 98 James universals néo Ihe dizem respeito. Sfo meros alentos Fotos, meras articulages da mente, posteriores &s coisas. ‘Assim ‘argumentam os franciscanos humildes. & impermis” deel, € pecaminoso, querer penetrar 0 reino “metafisico” pela raz80 Mluminada, como querem fazer os realistas. | pecaminoso, e além disto é um érro de ldgica, ¢ um eugene. ‘preciso tomar a decisio corajosa e humilde da limitegso darmente humana. £ preciso aceitar 0 fato terrivel, conse: {qlénoia do pecado original, de que a realidade aperens, 6m Qbecas mentes apenas no particular, e que o resto é “flatus Tools” “Essa nossa Timitagsio nao pode ser rompida into, Jectualmente. Apenas pela {6 ingénua e inarticulnda em 55 Cristo podemos libertar-nos do pecado original ¢ ingressar no reino da realidade. Esta é, em sintese, @ posicio dos nominalistas. Os livros de histéria da filosofia ensinam que a posicéo nominalista resultou vitoriosa, e que a Idade Moderna ¢ nominalista, Provam assim ésses livros 0 quanto sio_mo- demos, Perceber apenas a semelhanca formal que une 0 nominslismo e a posigaio moderna, Nao percebem o abismo que separa o nominslismo da Idade Moderna, e nao per- Cebem 0 fundamento ‘que une nominalismo ¢ realismo. A Jdade Moderna ¢ nominalista, no sentido de transferéneia da {6 para as coisas particulares. E essa transferéncia re- sulta na pulverizagao da {6, jf que as coisas so realidade ‘apenas nominalmente. E neste sentido que @ Tdade Moderna @ nominalista. Diente dessa posicio, os franciscanos sio realistas. Crém nume reolidade anterior As coisas, @ di- Yergem dos dominicanos apenas na questéo da articulagio dessa realidade. Vivem, tanto quanto os realistas, ancorados essa realidade. So cristios, néo sio “humanistas”. ‘Nao obstante, a divergéncia entre franciscanos e domi, nicanos é uma chaga aberta no pensamento medieval, que pressagia a sua morte, Divide a tradigao, que ¢ 0 metodo Ga salvaeéo, de forma irrepardvel. Sao duas maneiras de Viver irreconcilidveis, 0 realismo e 0 nominalismo, Se a vida ho corpo 6 Uma escola, como passar por ela com dos mestres que se contradizem? As tentativas de unificar as Guas tendéncias, por astutas que sejam, sao tentativas Gesesperadas. ‘Déste ponto de vista, nao passa o tomismo e todas as tentativas de dizer-se que “os universais estéo nas, coisas” de derradeiros esforgos para salvar o condenado. Afinal, a contenda de universais nao passa do sinal de uma doenca mais fundamental: o fracasso da escoldstica em estabelecer uma tradigfio salvadora, Ndo é suprimindo o sintoma que ‘se cura a docnga. Porque nao se pode deixar de perguntar: qual dos dois esta com a verdade? a verdade deve ser tima, e uma s6, se a catedral quiser continuar apontando © caminho do céu. ‘© que 6 verdade? No contexto do pensamento medieval esta pergunta significa: qual é 0 caminho da salvacao, » qual 6a técnica para seguilo? #, portant, eminentemente Pragmétiea a pergunta pela verdade. Mas ¢ novamente preciso ellminar da nossa mente os significados modernos 56 dos térmos “verdade” e “praxis”. Para a mentalidade mo- tema é a verdade um tesouro que deve ser procurado pare ser descoberto. Reside na adequacho progressiva do in telecto & coisa, (essa coisa que é, para os modernos, a sede nominal da realidade). Todo passo dessa adequacéo pro- gressiva fornece wma verdade parcial, uma moeda do fesouro procurado, ‘Toda moeda é submetida ao teste de validade, porque téda moeda é duvidosa. Esse teste é o que chamamos de “praxis”. Um aspecto importante do conceito do progresso, no sentido moderno, é justamente ésse fcumular de moedas testadas, Mas 0s testes nfio sio de finltivos, A despeito do teste, toda moeda continua duvi- cosa. Com efeito, tio duvidosa quanto ¢ duvidosa a coisa 2 qual a moeda s¢ adequa. A inflagio da moeda da verdade 6 uma caracteristica da Idade Moderna, Dispde essa Tdade fe um tesouro enorme e sempre crescente de verdades, que se desvalorizam de forma galopante. A situagio da Idade Média 6 totalmente diferente. © tesouro da verdade estd intelramente depositado na catedral, ea Igreja é a guardia da chave. A verdade foi confiada & fatedral por Deus, e nao ha portanto nenhuma dtivida quanto a sua validade. A Igreja, guardia da chave, estaya Chcarregada da distribuigiio do tesouro. A distribui¢io da Yerdade indubitével: éste € 0 significado medieval do térmo “praxis”. problema é 0 seguinte. O tesouro da verdade. enquanto depositado na caixa forte da catedral, tinha valor jnoubitdvel, Mas, uma vez posto em circulagao, tornavarse Guvidoso, porque circulavam muitas moedas falsas que 0 imitavam, A escoléstica 6, déste ponto de vista, o institute encarregado da distingdo entre moedas verdadeiras ¢ falsas. seu dever recolher ¢ destruir as moedas falsas ¢ disci- plinar a circulagdo das moedas verdadeiras. ‘A contenda dos universais era prove existencial da in- competéncia do instituto. Em desespéro de causa, 05 nomi: Shalistas propuzeram uma safda de emergéncia: a verdade dupla. Argumentavam da seguinte forma: existem trés tipos Ge moedas: as de ouro, as de prata, ¢ as falsas. A esco- istica é inteiramente capacitada para a distingao entre as toedas verdadeiras e falsas. Neste sentido ela funciona perfeitamente e € portanto pragmaticamente util. Mas os Pealistas confundem as moedas de prata com as de oure Grom que os universais so moedas de ouro, crém que S80 Gerdade pura, Mas € dbvio, dizem os nominalistas, que 0s 81 realistas esto enganados. Deus concedeu_o tesouro da verdade em dupla cunhagem: as moedas de ouro da 16, € as moedas de prata da razio discursiva, As moedas de curo compram a salvacéo eterna. As moedas de prate Servem apenas para serem trocadas por moedas de ouro. ‘Uma quantidade enorme de moedas de razéo compra uma moeda de fé pequenina, Nisto esta 0 valor das moedas de prata. Uma quantidade menor de moedas de prata nao vale nada, jd que ndo pode comprar moeda de ouro alguma. Neste sentido so as moedas de prata um desperdicio de tempo. © valor das moedas de prata 6 comprovado no momento de sua troca por mocdas de ouro. O érro dos realistas € desperdicar seu tempo com esas moedas infe- riores, E um érro terrivel, porque o tempo do qual dis- pomos no corpo € a nossa’tinica esperanca para uma vida eterna. Os realistas so pecaminosos, no por acumular falsidade, mas por acumular verdades inferiores. Mas nem por isto tratase de um érro menos grave. O concelto da Gupla verdade nfo consegue portanto salvar uma situagdo J perdida. ‘Téda essa tentativa ilustra bem o clima existencial que zeinava na escola. £ 0 clima pragmatico de querer forgar ‘a salvacio da alma a todo custo. & a consciéncia constante do perigo do anigtiilamento da alma, se falhar a técnica ue a escola ensina. E essa técnica falha, se perder o contacto com a catedral, seu foco. A escola esté dominada pelo receio constante da heresia. ste receio explica porque ‘0s doutores se confinam, intelectualmente, a uns poucos postulados, ¢ fisicamente, a suas salas de aula, escuras e ‘empoeiradas. Procuram abrigar-se entre as paredes estreltas da £6, e sabem porque 0 fazem. Recelam a ira da catedral, embora nao no sentido indigno que o espfrito moderno thes imputa, Muitos dentre éles enfrentaram, corajosamente, © aio do andtema, e as chamas da fogueira. O que receiam, entretanto, € 0 fogo eterno do inferno. E neste sentido que a escolistica nfo passa de apologia e de serva da Igreja. Defends a Igreja, mas néo tanto perante os homens, como perante Deus. E''serve a Igreja, nfo tanto por submissio intelectual e ‘moral, mas como’ um gutia serve 0 guiado. A escola é uma atividade pragmatica, um empenho vivencial, e 6 inteiramente auténtica nesse empenho, Tudo aquilo que se nos apresenta como inauténtico, a argicia dos argu mentos, 0 tecer dos pensamentos, a submissio aparente, 38 LQ enquadrase nessa suprema autenticidade. A escola é un empenho auténtico, mas um empenho fracessado. £ res: ponsavel, em parte, pela ruina da catedral e pelos seus escombros. Neste sentido é a escola responsavel, em parte, pela Idade Moderna, Destarte ficou desenhado um dos pilares da catedral, wm pilar que durante centenas de anos sustentava a sue nave e féz com que as suas tOrres pudessem apontar 0 cév'. © erro fundamental em sua construgéo explica, em parte, ‘9 acontecimento fatidico que a Idade Moderna chara, com Otimismo injustificado, de “Renascimento”. Tornase ne- Cessiria a contemplacio de um segundo piler, se quisermos aprofundar, a commpreensio désse acontecimento, © T fuk ds dquimistas. Como todas as Tuas da cidade, esta também desemboca na Praca da Sé, mas o seu trénsito € ambivalente. Existe um corredor secreto, subterraneo e fechado por portées lacrados hermeticamente, ¢ @sse cor- Tedor liga a Tua dos alquimistas mom a floresta, além dos jnuros da cidade. Essa floresta é habitada por bruxas 0 pelos deuses gregos € perménicos banidos. Apenas o ini, Prado pode ousar quebrar o lacre e penetrar a floresta. & {um mundo obscuro no qual a Igreja se choca contra 0 templo e no qual a escolistica abraca 0 orfismo. Este choque f este abraco, que tem a luz pilida da Tua por testemunha. é uma luta 6 um ato amoroso. Até o proprio alquimista nfo pode dizer quem preside a essa uniao ambivalente © misteriosa, se Deus ou se o Outro, £ um torcer ¢ um re: foreer ésse encontro Ibidinoso, e nessa retorta se precipita © puro ouro, a pedra da sabedoria, Nossa terra de ninguém Gue se situa entre a {6 e 2 superstigéo, entre a organizacso Co céos, surgité 0 poder magico e perigoso da ciéncia froderna. A Igreja, como que inspirada por premonicao profétice, protele a entrada a ésse terreno com a espada, Pra saida com afogueira. Parece decididamente contréria f todas essas experiéncias duvidosas e potencialmente pe- taminosas, Mas essa aparéncia engana, A Tgroja sente ume forte atragao por essas tentativas de dominar a primeira inatéria espiritualmente. A transmutagio do vil metal em Tnetal constante e precioso nfo passa de outro aspecto da calvacao da alma aprisionada no corpo. Ambas as tentativas Sho o resultado da mesme mentalidade. A relagio entre Sgreja e magia ¢ intima e de interpretagio dificil. Para a iefeja nao passa a magia de uma situacso de fronteira. 59

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