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Francois Delalande Com a colaboragao de Jack Vidal e Guy Reibe! - musica sm JOQO oo xh SAU Digitalizado com CamScanner Introdugao O titulo A masico é um jogo de crianga deve ser levado muito a sétio, Aqui apresentamos uma definiggo de misica que, se correta - € esperamos convencé-lo disso, - facilitara enormemente o trabalho dos educadores. Em vez de ensinar conhecimentos e técnicas, eles terao. como tarefa incentivar as criancas a fazer o que elas jé fazem, ou seja, a se interesserem pelos objetos que produzem ruidos (que ja as fascinamn), depois 2 agirem sobre esses objetos para agirem sobre os sons (mas 1s sons que elas mesmas fazem); @ prolongar essa explorago sonora (bastando nao as impedir de realizar sequéncias musicais). Em poucas | palavras,trata-se de identificar e de incentivar comportamentos espon- taneos € de guié-los o quanto antes para que tomem a forma de uma auténtica invengo musicel. A musica nos territ ios da Educacdo se encontra dividida entre dois objetivos: por um lado, o despertar de habilidades gerais de escuta € de invengSo, por outro, a aquisi¢do de nogdes € de técnicas. Conforme | 0 periodos e os responséveis, @ Escola dé prioridade a um ou a outro. Os espiritos conciliadores tentam fundi-los em uma mesma pedagogia. Outros mais radicais (como nés), constatam que nao se pode, sem certa desonestidade, incentivar a crianca a uma pesquisa sonora, empenhar- se com ela nessas descobertas,ajudi-la a ser mais exigente, mais atenta as suas proprias tentativas e esperar que, a0 longo do caminho, ela descubra, por acaso, os modos maiores, menores € 0 compasso ternério. E claro, esses objetivos sao complementares, mas eles supdem atitudes ¢, portanto, momentos pedagdgicos muito distintos. Parece-nos mais sensato despertar antes de ensinar. Mas transmitir nogdes de solfejo faz apelo 20s métodos jé conhecidos, enquanto que despertar as faculdades 4 Digitalizado com CamScanner de escuta ¢ de invencdo, independentemente de qualquer solfejo, é uma abordagem bastante recente que precisa ser analisada nos seus objetivos e meias. Assim, é 0 despertar musical que aqui entrard em questio. Este trabalho é destinado em primeiro lugar aos educadores, mas Educacao nao se restringe exclusivamente ao ambiente escolar: desen- | ‘volver 0 sentido musical e criativo concerne igualmente 8 familia, & “creche e aos diferentes meios de animagao. Em uma perspectiva ainda mais ampla, abordar a invengo musical sem passar pelo solfejo e pelas aulas de “escrita” é ume possibilidade que se oferece agora tanto aos ® adultos quanto as criancas. A situago mudou. Durante o periodo em que vigorava a nota¢ao musical na partitura, respeitando-se os estilos tradicionais, a criagdo se reservava aos compositores profissionais. Quan- to aos outros ~ as criangas, os amadores, os melémanos - limitavam-se a0 papel de ouvintes ou ao rigor de intérpretes de um repertério que, de modo geral, se restringia as musicas do passado, Mas, a musica hoje é, com frequéncia, pensada em termos de massas, de linhas, de mesclas, € hd muitos compositores € pesquisadores que veem nisso a ocasido para promover um novo intercambio com 0 piiblico. Ao lado dos concertos ocorrem ateliés. A milsica ndo mais apenas se “consome’; ela se faz. E nesse contexto de renovacao das praticas musicais que se inscre- ve este livro. Ele nfo nasceu em uma sala de aula, mas da confluéncia do GRM (Groupe de Recherches Musicales), de uma corrente de com- posigéo eletroacistica e de uma sociedade de radiodifuséo. No seio do GRM *, conduzimos pesquisas referentes & andlise da musica renovada pelo eletroactistico, as condutas musicais em geral e, principalmen- te, aos jogos sonoros da crianga, Por seu lado, Guy Reibel propde "jogos musicais" aos corais de amadores, assim como & Maitrise ou 205 coros da Radio France; e aos seus alunos de composi¢éo do Con- servatério, um jogo com corpos sonoros e sintetizadores. Ha muito 1. GRM (Groupe de Recherches Musicales) significa Grupo de Pesquisas Musicas, Trata-se de umn centro francés de pesquisas na area do som e da miisica eletroa- cistica, criado em 1951 pelo compositor e pesquisador francés Pierre Schaeffer, considerado o inventor da misica conercta, Digitalizado com CamScanner tempo, constatamos que nossas abordagens tedricas e praticas con- vergiam e podiam trazer solugdes aos problemas educativos, ¢ a radio, aracas inicialmente a Guy Erismann (France Culture) e, posteriormente, a André Jouve (France Musique), contribuiu, desde 1974, com um forte apoio. As emissdes d'Eveil d lo musique e outras iniciativas pedagogi- cas deram projecao e promoveram 0 encontro de educadores de varias, partes do pais, que conduziam experiéncias exemplares, com talento e competéncia muitas vezes surpreendentes. Os trabalhos de campo des- ses educadores fornecem, saibam eles ou ndo, a base concreta dessas reflexdes. Deveriamos poder prestar homenagem a todos eles. Inclui- ‘mos 20 menos alguns nomes, quase aleatoriamente: Monique Frapat € Anne Benhammou, em Villepreux; Yves Bernet, em Ardéche; Yvonne Quinzii, em Avignon; Elisabeth Saire, em Reims; Simone Marqués, em Marseille; Christine Prost, em Aix-en-Provence; Claire Renard e Wichka Radkiewitch, em Paris; Jean Maumené, em Laon; Geneviéve Clément, ‘em Pontault-Combault; Michéle Sueur € seus colegas de trabalho em Arras; Sophie Moraillon, em Aulnay-sous-Bois; Gérard Authelain, em Wsle-d'Abeau... Nao & preciso ler os capitulos do livro na ordem em que se apresen- tam. No entanto, o primeiro capitulo estabelece as orientagdes musicais e pedagdgicas do livro e, deste modo, ¢ ldgico comecar por ai. Por outro lado, os didlogos 2, 3 e 4 so os mais tedricos e um educador que se preocupe mais com a pratica podera lé-los por ultimo. Mas ele devera saber que neles se discutem trés propostas fundamentais para a musica, tal qual para a pedagogia, a saber: 1) Que 0s comportamentos musicals, mesmo nos adultos, so muito réximos dos comportamentos dos jogos infantis; 2) Que 2 misic@ tem muito @ ver com o gesto (quando a produzi-- ‘mos com um instrumento e a dangamos, mas também ~ mentaimente ~ quando a escutamos);_ . Digitalizado com CamScanner Admitindo- se provisoriamente estas trés teses, estes. sumarios re- sumidos permitirao abordar as questdes mais diretamente pedagdgicas discutidas nos didlogos seguintes. Ao término dos dez didlogos, 0 educador deverd sentir muito bem com que espirito e como abordar o despertar musical. N30 nos cabe propor “receitas’, nem um método, mas “pistas’ multiplas com as quais ele possa se comprometer, com atengo & idade das criangas com quem trabalha - aspecto que ¢ objeto de um capitulo complementar. Por que 0 livro adota o formato de didlogos? Primeiro, porque os temas abordados foram tratados, de fato, em dez entrevistas radiof6: nicas, realizadas com a preciosa ajuda de Jack Vidal? e difundidas pela France Culture em 1976. Esses didlogos originais foram profundamente reelaborados para complementar as informacaes ¢ refinar a retorica (um pouco menos para 05 didlogos 1,9 € 10, por isso neles figuram os nomes dos interlo- cutores), de modo que praticamente nao encontraremos (numeros 3 € 8) 05 tracos do intercambio oral, Mas mesmo quando era preferivel recomecar do zero, 0 diélogo como forma nos pareceu adaptado a ambico deste livro: delinear € discutir questdes que emergem com o despertar musical, fornecendo alguns elementos como resposta. as radios France Musique e France Culture. 2. Membro do GRIM € preduta Digitalizado com CamScanner Digitalizado com CamScanner JACK VIDAL: Vocé defende, com Guy Reibel, uma concep¢do do “despertor para o musica” que concerne tanto 4 escola, da educacéo infantil ao ensino médio, quanto aos corcis amadores ou grupos de Jovens. Como uma mesma expresséo, “pedagogia do despertor’, pode reunir mbitos tao diversos? FRANCOIS DELALANDE: € verdade que'es8@ definigdo de uma aborda- ni jortanto, mero antficio a definir em oposigao aos métodos pedagdgicos usualmente u lizados na misica, pois até um periodo relativamente recente, a educacao musical focava, sobretudo, 0 ensino do solfejo ¢ técnicas instruments, além do estudo de um repertorio classico € de historia da musica. AS coisas mudaram um pouco devido a tendéncia educativa geral que enfa- tiza as pedagogias ativas. Atualmente ja nao se prioriza apenas a escuta de obras musicais (ainda que tal pratica persista em alguns contextos), incentivando-se o fazer musical. No entanto, tal incentivo ao fazer mu- sical parece, na maior parte do tempo (e dos casos), atrelado a uma espécie de sistema de ensino técnico da musica tradicional. Assim, a pedagogia do despertar é: um método ativo entre tantos outros. No entanto, além disso, o que mais ela é? Nao, a etiqueta “método ativo" é agora tradicionalmente atribuida a estes quatro ou cinco métadas bem conhecidos: Orff ', Martenot? , 1. Carl Or (1895-1982, compositor e educador musical aleméo, de ensino musical Orff-Schulwerk, © qual enfatiza o desenvolvimento ritmica, os jogos infantis cantados ¢ falados, o movimento corporal, a improvisacao e a pratica instrumental, com o uso de instruments elaborados ¢ adaptados para 0 publico infantil (instrumental Orff. 2, Martenot (1898-1980), inventor, violoncelista e educador, considera a educagao musical como parte essencial da formacgo do individuo. Emibora tena tido inte- resse pela misica vanguardista da épocs, sua pedagogia se desenvolveu a partir de Imateriais e contetidos tradicionais. gem. Digitalizado com CamScanner @) Kodaly" , Willems* ¢ alguns outros, dentro dos quais nés néo reconhe- ccemos nossos objetivos. A finalidade de todos esses métodos € formar para ‘a musica tonal, Existem diferentes técnicas, mais ou menos astutas, ‘mais ou menos sensivels, que conferem maior ou menor espago & im= provisago, mas, de mado geral, elas apresentam no final do caminho (0 mesmo objetivo: a misica tonal, dé ré mi fé sol, seminima, colcheia, modos maior, menor. Epor que néo? Por que evitar a qualquer preco nossa heranca cultural ea linguagem musical tradicional? 2 | Oque me parece muito entediante, numa educagao tonal do ouvido . da crianga, é que quanto mais se faz praticar a tonalidade - e mais 0 : fazemos inteligente e eficazmente (por exemplo, 0 método Martenot & . inteligente e também sensivel) - maiores so as difculdades das crian- | : eat? reagao de rejeigdo: faca uma crianga ou mesmo um adulto que recebeu 7 uma formago tradicional escutar Xenakis* ou trompas tibetanas e ouga . 3, Zoltén Kodaly (1882-1967), compositor, musicdlogo e educador musical hiinaaro, cujo método de educagdo musical tem como enfoque o canto (em grupo} de misicas, do folclore hiingaro, bem como o aprendizado do solfejo através da utilizagao do manossolfa, da metodologia de silabagao ritmica, dentre outros. 4, Edgar Willems (1890-1978), pedagogo musical bela, propde um sistema educacional essentialmente dirigido a0 desenvolvimento da sensovialidade auditiva, de modo que 0 preparo aucitivo deve preceder 0 ensino de um instrumento musical, pois a escuta € 3 base da musicaldade, Nesse sentido, Willems desenvolveu exercicios especiais para 3 distingo auditive dos pardmetros do som, principalmente a altura 5. Xenakis (1922-2001) compositor, engenheiro e arquiteto francés de origem area, 10 é somente um dos compositores mais influentes ds segunds metade do século XX, como também um dos mais representativos da multiplicidade de caminhos que ‘2 masica contemporénea tem explorado, Digitalizado com CamScanner O DENOMINADOR COMUM A TODAS AS MUSICAS ‘Mos como ampliar esse campo? Pode-se, efetivamente, expor as criancas a outras musicas, a outras linguagens, a outras técnicas, mas nao é exatamente assim que eu de- finiria nosso objetivo. A intengao € propiciar &s criancas, mais precisa~ mente, experiéncias em aspectos que precedam as aquisigdes técnicas. Ha certo numero de habilidades que intervém na musica ~ sejam mu- sicas extraeuropeias, misicas antigas ou contempordneas - que, afinal de contas, so as mesmas. Existe um “denominador comum" a todas as praticas musicais que tentamos, justamente, definir ¢ que € 0 objetivo numero um de uma formacao musical Quem diz experiéncia, na verdade, diz isco. Quando se propée uma experiéncia, ndo se sabe no que ela iré resultar. Seré que as pessoas que vivenciaram propostas das chamadas “pedagogias do despertar” apreciarGo as produgées musicais como as pessoas que receberam uma formagao cldssica? Evidentemente, sabemos muito bem o que a educago musical classica propicia € muito menos 0 que essa nos propiciard. Mas quan- do eu digo que sabemos o que a educacdo classica oferece, é também num sentido negativo. A escola tratou durante muito tempo a Educacéo Musical como um aprendizado de aquisigdes técnicas e, infelizmente, conhecemos muito bem os resultados dos cursos de canto € das aulas, de solfejo. Todos estdo de acordo com o fato de que € necessario rever completamente a pedagogia. Mas qualquer que seja hoje @ nova solu- cao adotada em grande escala, isso seré sempre uma experiencia! No fundo, os processos que podem mais precisamente ser julgados sao tal- vez essas tentativas do despertar, sempre marginais, mas presentes ha Digitalizado com CamScanner | muitos anos®, O que se constata € que para essas criangas a invencdo sonora e 0 jogo musical tornaram-se muito familiares. Depois disso, imagino que nada impeca de adquirir tal ou tal téc- nico prépria a um estilo porticular, quer seja a flauta doce, o sitar ow aeletroacustico. E claro, e quanto mais a experiéncia anterior de pesquisa sonora € de criagdo tiver sido profunda e tiver desenvolvido 0 sentido musi- cal, mais o trabalho técnico, em seguida, parecer necessério e natural Por exemplo, 0 que queremos para a escola é comegar a abrir, 2 | identemente, como também no ensino fundamental, Isto é: praticar uma pedagogia do despertar, ten- do em perspectiva desenvolver certas aquisigdes mais técnicas, mais especificas, em suma, no decorrer do processo pedagégico. Mas isso sé serd fecundo caso tenha sido criado, durante toda a infancia, um sdlido “apetite musical’ Vocé vé odespertar como uma preparagéo para outras préticas? Nao necessariamente, Para alguns sera uma preparacdo e para ou- tros serd o fim em si mesmo. Quanto mais 0 estudo do solfejo é absurdo para aquele que nao precisa dele, mais | 6.A origem do presente livro se deve a uma entrevista radiofénica, transmitida pela radio France Culture, em 1976, sendo que a primers publicacdo de Lo musique est tun jeu denfant data de 1984. 4 Digitalizado com CamScanner formas de musica. Visto que, contrariamente ao solfejo, ela jé integra SER MUSICO Assim, os pedagogias musicais do despertar, antes da acultura- ¢60.0 um sistema musical preciso, estabelecem um tronco comum no qual podem se desenvolver certas habilidades para a execugdo e para a-escuta musical. ®@ Sim, acredito que o importante é se engajar na pedagogia, munido Essa € a questo que deve primeiro ser levantada pelas pessoas que refletem sobre a pedagogia. Para respondé-la, pode- mos examinar o conjunto das praticas musicais, incluindo as praticas extracuropeias. Acredito que op anagem ‘cais que estamos em condigdes de desenvolver. Em primeiro lugar, sim- plesmente o gosto pelo som - é uma primeira qualidade do misico urna certa sensualidade da sonoridade que se acompanha de uma habilidade para obté-la em um instrumento. Pois fazer saber ouvir sao aqui uma ‘nica @ mesma competéncia. Mas a misica no é um conjunto de indi- viduos que se retinem para produzir som e desfrutar dela sensualmente, nao é somente isso; para eles 0s sons tomam um sentido, podem evocar estados afetivos ou ter um valor simbdlico dentro da sua sociedade ou mesmo dar origem a imagens. Em sintese, de uma forma ou de outa, hi “uma dimensdo imaginaria da musica a que € preciso estar sensivel, pois. ‘sem ela, 2 misica propriamente dita nao diz nada. €, finalmente, a esses, dois niveis de andlise, acrescentamos um terceiro, o da organizagao, Fazer musica € sob muitos pontos de vista organizar. Em primeiro lugar, organizar-se entre musicos quando se toca em grupo, mas, sobretudo, arranjar as partes conjuntas, ordenar para que um tema tocado por um instrumento seja retomado por outro. Todos ja cantamos canones: Digitalizado com CamScanner ® PLonaoaia? existe uma certa satisfacdo de espirito ao ouvir a melodia sobrepor-se a cla mesma apesar do deslocamento. Assim, encaixar as pegas deste quebra-cabecas € um prazer evidentemente compartilhado pelo com- positor e pelos ouvintes. Por outro lado, vocé notard que nao separo, nesta andlise de trés camadas da prética musical, o que diz — a produgao da musica daquilo que concerne 8 sua recepcao. Parece-me Em sua opinido, estes trés pontos de vista sdo suficientemente gerais para constituir uma definigéo do musica? Nao so da misica como, tat das habilidades do musico. Eu farei, se vocé quiser, uma bjetivos completamente distintos. Vocé vé criangas que, antes mesmo de termos ensinado o que € um dé ou um mi, sem que jamais evocés- semos 0 nome de Mozart, so eminentemente receptivas 8 musica, as quais so imediatamente capazes de senti-la. E se vocé coloca em suas mos, por volta dos cinco a sete anos de idade, um instrumento qual- quer, acontece imediatamente alguma coisa, elas so atraidas, elas tem ideias, o que elas fazem & musical: dizemos que elas tém “dom’. E geralmente se pensa que isso ¢ inato... Sim, ¢ isto € muito discutivel. Acredito que nao ha grandes dife- rengas entre individuos no primeiro ano da infancia, entretanto, essas diferengas néo param de aumentar gragas aos reforgos sociais ou as citcunstancias educativas privilegiadas. Digitalizado com CamScanner Mos desenvolver habilidades é um objetivo um pouco abstrato. Eu 1ndo vejo como se pode atingi-lo de outro forma sendo por uma priticae, portanto, transmitindo uma certa competéncia e mesmo um certo saber. E verdade, mas nao se age da mesma mancira quando se tem em mente 0 projeto de incutir algumas nocdes de solfejo ou quando se quer somente despertar esse talento musical do qual fatavamos. Certamente, teremos que desenvolver algumas competéncias, nao um conhecimento muito especifico de um sistema de notagdo ou de uma técnica instru- @ mental, mas ) Assim, nao € exatamente a musica que eu buscava anteriormente definir em trés pontos, mas sim os fazer ou escutar musica. ja um indiano tocando um sitar, um africano tocando uma sanzo ou um europeu tocando um violino. le-se no olhar, nas atitudes da cabera, a mesma conscigncta do gesto. €, 20 mesmo tempo, a mesma alegria. Nao € 0 conhecimento que os Giferentes = Wdsas suas COPING 18 se praticou muito uma pedagogia exclusiva da nossa cultura musical; acredito que agora é preciso propor uma pedagogia das condutas musicais. A MUSICA CONTEMPORANEA Vocé insiste na questéo das habilidades para produzir ou paro tocar e eusei que vocé aconselha que se coloque, de imediato, instrumentos musi- cais nas m@os das criangas. Mas a maioria serdo ouvintes e ndo composi- tores ou intérpretes. NGo se deveria proporcionalmente favorecer a escuta? Isso é verdade, pode-se desenvolver a escuta em si, € isso é feito frequentemente gracas as atividades do “despertar sensorial’ Melhora-se, Digitalizado com CamScanner por exemplo, @ atengao auditiva através de pequenos exercicios de reco- nhecimento ou de identificagao. € evidente que isso habitua as criancas 3 escutarem sem se mexer. Mas @ atengao & sobretudo, uma questio de motivapo. Nés ouvimos aquilo que temos boas razdes para escutar, ¢ um despertar da escuta musical consiste em multiplicar as razdes para escu- ‘tal, ¢ para escutar musicalmente. Por que vocé compara 0 que vocé escuta com 0 que vocé po- @ deria fazer por si mesmo? Mos a musica que as criangas fozem é suficientemente proxima de uma obra do repertério - de uma serenata de Mozart, por exemplo ~ para que esta comparacéo seja possivel? : Entéo, ndo 2s faga ouvir Mozart! Elas entender pouca coisa: uma : requleridade de pulsa¢ao ritmica, talvez uma linha melédica, se elas es- . tiverem habituadas 8 cangdo, mas certamente nao entenderdo 0 que faz o encanto de Mozart, pois isso est muito mais ligado 20 uso que 0 compositor faz da escrita musical clissica. | Entéo 0 qué? Musica contempordnea? Muitas das pecas recentes sio, de certa maneira, mais proximas de experiénci infantil; aquelas que nao se apoiam sobre um sistema musical elaborado pela tradigao. A recusa do passado tem 0 mérito de estar acompanhada de um retorno as fontes. AS referéncias das ‘misicas atuais s2o frequentemente mais proximas de uma vivéncia XVII, endo 0 inverso.. Mas dai a militar por uma pedagogia da musica contemporéneo, ‘ndo estdé muito distante. Poderiam criticé-lo! a Digitalizado com CamScanner E 0 pior mal-entendido. 0 repertério contemporaneo & mais dis- quarenta anos’, os sons musicais respondiam a normas precisas: eles deveriam ter uma altura definida, para 0 uso melédico e harménico 20 qual estavam destinados. Nesta perspectiva, ¢ evidente que muitas das produgées infantis so consideradas apenas ruidos. Assim como numerosas miusicas africanas, asidticas ou esquimés? Porque o segundo fator que nos abrigou a abrir nossos horizontes é 0 etnomusicologia. De fato, s80 duas contribuigées bem recentes. N30 podemos re- assim como a pintura que péde ser introduzida na Educago Infantil gragas 4 brecha que a arte abstrata abriu. Pudemos ver com interesse as criangas pintarem: quando deixamos de nos preocupar, 0 priori, com a finalidade da in- Cometemos erros de harmonia, ou simplesmente cantamos desafinado. 7. Ressaltamos que 2 primeira edigdo deste livro é de 1984. Digitalizado com CamScanner ouat Como para uma lingua natural, o uso do cédigo que é 0 sistema tonal implica uma gramaticalidade. Isso nao existe mais na pintura. O que se produz € mais ou menos bem-sucedido, desenha-se mais ou menos bem, mas jamais “errado: A abertura da misica atual deveria permitir Mos jé que vocé mesmo pertence ao Groupe de Recherches Musi- coles', ou seja, um grupo de compositores e pesquisadores que fazem ‘miisica eletroacistica, de que modo essa experiéncia com a miisica “concreta’, depois com o musica eletroacdstica, influenciou as peda- gogias musicais do despertar? Porque as criangas de uma classe de Educagdo Infantil so musi- ‘cos “concretos" Elas descobrem utensilios, corpos sonoros quaisquer e ‘exploram o dispositive, observam o que dele & possivel tirar, tentam |. produzr toda uma familia de sons que se parecam. Quer dizer que, perante educadores que podem pensar que essas criangas néo fazem mois do que ruidos, ¢ assim pedem siléncio, sua atitude éa de dizer: " escutem, elas esto fazendo miisica!” porque «@ miisica no é somente um jogo de alturas e duracées. Sem diivida. Pessoalmente, se me interessei pela pedagogia da Educacdo Infantil é porque fica muito evidente que os musicos con- cretos fazem algo muito préximo 8 misica infantil e que, portanto, se deveria chamar a atengao para esse fato. 8.0 GRM: Groupe de Recherches Musicales. Digitalizado com CamScanner JOGAR / TOCAR A exploracao dos corpos sonoros pelos criangas & um acesso 6 di- mensdo sensorial do jogo musical da qual vocé falava hd pouco, ao lado da significagdo e do regra. Como esses trés pontos de visto podem guiar o trabalho educative? Aqui abordamos uma ideia absolutamente central. Estes trés as- | pectos da pratica musical correspondem as trés formas da atividade | ludica infantil, tal como as define Jean Piaget. A pesquisa do som e do ® _gesto nao é sendo um jogo sensério-motor;a expressao ea significacao na musica se unem 20 j i regra. Eis ento porque essa andlise € uma ideia chave na abordagem do despertar musical Além disso, 0 ts tips de jogo correspondem as ra situar aproximada- mente, dois anos. Em sequida, 0 jogo simbdlico se desenvolve mais ou menos . Entao, vemos na crianga um terreno totalmente favordvel para desenvolver sucessiva- mente os diferentes aspectos da pratica musical. Com as criangas mais italizado com CamScanner Digitalizado com CamScanner Até pouco tempo atras, 0 foco da Educagio Musical no Ensino Fundamental concentravo-se na escuta de gravagées de obras mus cois. Parece-me que esse método de formagao saiu de modo, certo? Ainda é usado as vezes, se nao para educar, pelo menos para ocupar pacificamente a aula quando as turmas so numerosas ou os professo- res insuficientemente competentes. Mas ouvir gravagées sequia sendo, até recentemente, o principal objetivo. 0 ideal educativo focava a for- macao de melémanos capazes de ouvir com prazer e discernimento as principais obras do repertdrio musical clissico. Ainda que esse objetivo ® permanega em vigor, 20 lado de outros, é 0 método que merece ser discutido neste contexto. A escuta de um disco, de uma obra musical, era a ocasiao para transmitir certo nlimero de informagies referentes obra, a0 compositor, 20 contexto historico. Até ai, nenhuma abjecao. Afinal, um homem instruido deve conhecer a vida de Johan-Sebastian Bach e os titulos das grandes dperas de Mozart, assim como a historia do Antigo Egito! Mas, no que diz respeito 4 criagdo de um gosto... Nao are estou certo de que esse seja 0 camino mais seguro. Se esse acontecer, tanto melhor. Isso significa que os alunos estavam prontos, por razdes que escapam ao sistema pedagdgico, para receber essa mi- sica: a lembranca de uma escuta anterior, o entusiasmo comunicativo de um amigo, mesmo do professor. De qualquer forma, essa maneira de proceder evaluiu!Felo menos, tento-se, de diversas formas, introduzir praticas ativas. Um pouco de floute doce na escola secundéria algumas percussées no primaria! 0 drama é que essas praticas sio miseréveis se comparadas aos monumentos que so ouvidos. Que impressio se pode sentir ~ apés ter balbuciado uma melodia numa flauta de plastico - 20 ouvir uma sinfonia de Beethoven, executada por uma das melhores orquestas do 1. Optamos por mantera nomencatura ds cuss vigentes na rang segundo o alo. — or Digitalizado com CamScanner como enucAR A ESCUTA?® mundo ou os maravilhosos efldvios de um Pollini? Em outro contexto, isso poderia ser um estimulo. Mas tdo claro que a escola, dadas as | Eu acho que hd dois objetivos que sdo perseguidos separadamente: ‘opresentar oessencial do repertrio dar alguns rudimentos de pric Esquecemos ento um terceiro, em minha opiniao 0 principal, que, alés, & 2 candigdo para alangarmos os dots primeiros: fazer maser 3 vontade, Nés realmente colocamas o carro na frente dos bois se nao cria~ ‘mos, em primeiro lugar, um verdadeiro apetite pele musica: um desejo de fazer e de escutar. De modo que a escuta de gravacdes seja apenas uma resposta a uma expectativa que foi construida voluntariamente e de manera consciente ste &0 papel insubsttuvel da escola, Para garanti a segunda parte do trajeto, que € proporcionar acasides de escuta, as midias competem: radio, discos, shows. SENSIBILIZACAO-INSENSIBILIZACAO sso sensibiizagéo nao é confiada precisamente ao ensino fun- domental? O conhecimento de um repertério sé & abordado apés um ‘inimo de cinco anos - sem contar a Educagao Infantil - de despertor ede abordagem ativa. Vocé fala de uma situagdo ideal. A realidade & mais confusa: faze- 1mos tudo ao mesmo tempo. Misicas do repertério de musica cléssica sao difundidas desde a educacdo infantil. Por pequenos fragmentos, obviamente, porque a receptividade nao é muito grande, Aumenta-se progressivamente a dose, até que fiquem completamente acostumados: Digitalizado com CamScanner até que 0 organismo nao rejeite mais o veneno. Uma sensibilizagio? € Vejo que vocé tem sérias reservas... Se eu levasse 0 pensamento até as tltimas consequéncias, cusaria dizer que as criancas que foram poupadas dessa “impregnaco" tive- ram uma sorte considerdvel. Messiaen conta como ele fez um casal de cultivadores conhecerem Pelléas ¢ Mélisande, tocando a obra para eles num velho piano, em uma granja: "Quando eu me vie", diz Messiaen, eles estavam chorando.." (1) Para mim, uma grande obra ouvida pela primeira vez sem emosao € uma ocasi8o irremediavelmente perdida. Vocé entende que a “impregnagéo", essa técnica que consiste em deflorar todas as obras-primas, em es- magé-las em condigdes desastrosas, provoca em mim um insuportavel sentimento de desperdicio! Sem divido, para defender esso maneira de proceder, evoco-se co exemplo dos criancas nascidas nas fomilias de misicos e que se tornam misicos como consequéncia de terem sido “impregnados” durante todo a infanci Com certeza, esquecemos que a miisica tem sido associada, a0 lon- go da infancia dessas criangas, ao amor dos pais, Nao é tanto o banho musical em si que determina esse gosto, mas o valor afetivo que esta ligado a ele. Eu imagino que uma crianga criada em um ambiente musi- cal, que detestasse seus pais, rejeitaria a musica também. Digitalizado com CamScanner como coucAR A EScUTA?T® Por que ofator afetivo ndo interfere na escola como em caso? Ele interfere. Uma professora adorada pelas criancas faz com que elas amem qualquer coisa. Se eta gosta de Schénberg?, as criancas vio gostar também! Sé que disso dificilmente se pode fazer um método musical: "Faca-os amar’. € melhor encontrar motivacdes mais gerais, € procuré-las preferencialmente no processo de desenvolvimento proprio a crianga do que em seu ambiente. SEM MOTIVACAO, NAO HA ESCUTA Vocé quer dizer que as circunsténcias sdo sempre particulares ¢ incontroléveis, 0 passo que as criangas sto todas mais ou menos as mesmas... Até certo ponto, sim. Naturalmente, elas diferem em muitos aspectos, mas ha, no entanto, caracteristicas comuns suficientes no comportamento «eno desenvolvimento delas que permitem a construcéo de uma psicologia geral da crianga. €, se quisermos uma progresséo pedagdgica que tenha certa generalidade,teremos que fundé-la nessa base de dados. Mas vocé acredita ser possivel definir as condigdes pedagégicas de uma boa escuta musical apoiando-se em leis gerois? naipeeafemenpaslapiseiin ssa é uma lei geral. 2. Arnold Schoenberg (1874-1951) compositor, pedagogo € tedrico austriaco, reconhecido como o criador da musica dodecafénica, Digitalizado com CamScanner Al Equal é a miisica que uma crianca de seis anos pode ter boos razbes pora escutar? Adela! A que ela esta fazendo ou a que acabou de fazer. Mas é um repertério um pou limitado! consis em defi ura csr feta ® Encontraremos misicas para todos os idodes? ‘Sim, ou mais exatamente, para cada etapa de desenvolvimento das atividades de produgao. ‘Mesmo para uma crianga de um ano em plena explorasao sensério- motora? E claro! Por exemplo, as famosas Variagdes para uma porta € um suspiro de Pierre Henry, sao obras, em geval, reeitadas pelos adultos, mas que ganham a adesdo dos pequenos. Temos feito esta experiencia lem creches: eles deixam tudo para escuté-la;ficem fascinados! Por ou- tro lado, Mozart, a contrério de uma ideta bastante difundida, néo tem sucesso! € normal: Piere Henry faz uma porta cantar €preisamente 0 Vocé nao tem medo de que sua anélise dos VariagSes Seja um pouco suméria... Certamente, a semelhanca entre uma producao infantil e uma re- feréncia adulta sera sempre superficial ou, pelo menos, diré respeito a Digitalizado com CamScanner EDUCAR A como apenas um aspecto. Mas pouco importa: esta seré uma entrada particu- lar, uma certa semelhanca, suficiente para que a escuta seja motivada, A ESCUTA ESPECIALIZADA Vocé, portanto, defende uma escuta “especializada’, como ditia Schaeffer, comporével 4 de um instrumentista que escuta pecas de seu repertério, executadas por outro intérprete. Ele espera as passogens de- licados, colocando-se no lugar do intérprete, como também, no lugar do compositor ou mesmo do luthier, que apreciam o obra como conhecedo- res, mesmo prtindo de distintos pontos de vista. Vocé pensa, por acaso, ‘que esse desvio pela criagdo seja a nica maneira de motivar a escuto? Nao penso que seja a Unica maneira, mas, sim, que seja a mais natural. Nés sempre podemos inventar indmeros artificios para forgar 2 crianga @ se concentrar como, por exemplo, pedir que ela observe € repita @ apari¢do de um tema, ou que identifique os instrumentos. Em resumo, propomos uma tarefa. Se ela cumpre, nés a parabenizamos ou a recompensamos; se ela falhta, nds a reprovamos de maneira mais ‘ou menos gentil. E um método educativo antigo que se aplica 4 musi- lamos muito nossa vida se ca como @ qualquer outra coisa. Mas faci descobrimos motivacdes mais profundas, as quais permite reduzir 0 lugar dessas estratégias que, além do mais, ndo tem garantia alguma de eficdcia! A misica se mantém um pouco @ parte dos demais sistemas de ensino, posto que, por natureza ela é um jogo. Que sorte! E necessé- rio, evidentemente, preservar esse cardter ludico € evitar que se torne um exercicio escolar motivado exclusivamente pelas pressdes exercidas pelo professor. través do jogo, as fontes sonoras séo exploradas, o real Digitalizado com CamScanner Entéo, néo seria apenas ao final de um periado de producéo que se levaria @ escuta de abras musicais? E necessdrio, a principio, “censurar’a escuto, deixando de lado o "taca- discos"? Seu discurso contra a impreg- nagdo" incitaria a crenca nisso! De fato, este & um ponto sobre o qual hesitei - ¢ ndo sou o inico - nesta reflexdo sobre o despertar musical. Conheco educadores que do um grande espaco para a producdo musical, mas que oferecem com- pleta resistencia 2 audigao de obras. Afinal de contas, entre todos os professores da Educacgo Infantil que trabalham com a pratica da pin- tura, quantos trazem as aulas as reprodugdes de quadros dos mestres? Poderiamos muito bem focar o despertar musical sobreacriagdo e adiar para a adolescéncia o contato com o repertério, Mas 0s discos nos sero Litels muito mais cedo € por uma simples razdo: é que, seja qual for a “censura’ aplicada pelos educadores, as criangas sempre escutardo mi- sica, principalmente no radio e na televisdo, € qualquer misica, Entéo, | Euma maneira de valorizar o trabalho delos. Sim, assim como de fornecer referéncias:"Voeés fazem isso? Escute 0 que faz fulan no para edit, para se julgar melhor que Xenakis, mas para conquistar seguranga | 3. Como o livro foi escrito nos anos de 1980, noss0s hébitos de escuta musical mudaram de modo substancial. Atualmente, o consumo musical se dé através de diversas maneiras: CDs, TV, videos, radio e pelas plataformas digtsis, como € 0 caso do formato streaming (execucao online} que tem ganhado espago em todo 0 mundo. Digitalizado com CamScanner cono EDUCAH A ESCUTA?® Mas essa maneira de reduzir a miisica és suas proprias preocu- ‘pores no acaba fitondo a escuta? Vocé concordoré comigo que 0 trompetista que tem interesse numa cantata de Bach somente pela performance do trompete e para saber como seu colega fard a nota si bequadro, corre o risco de ignorar qualidades profundas da obra. Se ele realmente sd ouve isso, vocé tem razéo. Mas vocé tem cer- teza disso? » | 9. E se 0 si natural provoca nele arrepios isso no se deve somente & performance do trompetista. Vocé sabe disso, a misica nos pega sempre de surpresa, desprevenidos. Vocé esta prestando atencao na performance do trompete e, justamente por causa dessa apreciagéo, a entrada dos coros te pega de surpresa € te arrebata. Neste momento, vocé escuta os coros € o tenor Ihe comove. 0 | 2 sua frente que vocé nao sabe como agarré-la. a performance de um trompete? Muito bem. qualidade da maisica faré o resto. Em sumo, ocondigdo éescutar ativamente. Pouco importa a entrada, E ter uma forte intengo de escuta. Sim, 5 oe RR RN ‘plementores. Educomos os duas ao mesmo tempo. vito openas que se crie um abismo muito grande entre 0 que se produz € o que se ‘uve de maneira que as duas formacdes se reforcem mutuamente. Tenha em mente que 0 método € cléssico. Todos os artistas apren- deram o seu oficio assim, em particular os musicos. Digitalizado com CamScanner Os profissionais adquirem um hdbito especial de escuta, uma certo agilidade? Poderiamos falar de “virtuosismo” da escuta? Penso que sim; para ouvir isto ou aquilo, para "explorar” muito rapidamente as partes simultaneas, eles aprendem a “centralizar” ou “descentralizar’ a propria atengio. Fala-se de “centralizagdo” psico- légica como de "centralizacao” retiniana. Se vocé fixa um objeto, 0 contexto aparece, so que de maneira mais vaga, em visdo “periférica”. ‘Acescutaativa, da’ mesma forma, & uma exloraco. Voce continua ® ouvindo tudo, porém escuta mais particularmente isso ou aquilo. Ora um acorde, ora um tema ou uma nuance. Em outras ocasides, por ou- tro lado, vocé nao presta atengdo a nada preciso, de modo a ter uma vis80 global; € é essa gindstica que considero bastante caracteristica dos habitos de escuta do musico. A INTERIORIZACAO. Se sabemos analisar esso estratégia de escuto, imagino que pode- mos do mesmo modo conceber umo pedagogio. Eclaro que fazer miisica é uma delas, mas nem todos os ouvintes de concertos séo instrumentis- tas ou compositores. ‘No caso em que o professor ndo tenho a intengdo, \Certamente: Através da danga, pelo menos. Antes de ser exclusi- vamente mental, a recepgao da misica é, em primeiro lugar, corporal. I Pensamos imediatamente na escuta religiosa do concerto, ou ainda, na atitude do melémano perfeito, como se pode ser visto nos anuincios de equipamentos de audio, com a cabeca entre as maos: mas nao! A crianga, desde muito cedo, se movimenta ouvindo miisica; a maior par- te dos povos participa fisicamente de uma forma ou de outra: batendo Digitalizado com CamScanner como epucaR aA eEScUTA?® as mos ou os pés; movimentando 0 corpo ou a mao; ou cantarolandy mais ou menos com o cantor. Aimobilidade nao é a reara. | Mos a dango néo desenvolve uma escuta muito analitca, | Até certo ponto, sim. Quando a crianga de quatro anos comecaz balancar ritmicamente, isso significa que ela captou a periodicidade dz pulsagao. E balancar nao € a forma mais refinada de dancal As veze, ‘0s movimentos do corpo se adaptardo aos perfis sonoros. Por que nao encorajar, por outro lado, essa andlise dangada, pedindo para algumas criangas sequirem uma linha melédica, enquanto outras traduzem um contracanto? Mas vocé tem razdo, 0 misico que nao precisa mais ba- langar para sentir 0 balango, que internalizou todos os gestos quea midsica sugere, economiza muito tempo e energial E & assim que ele pode, como virtuose, passar de uma "centralizagao" a outra, escutando ora um movimento ritmico, ora o desenho de um canto. Vocé fala de'internalizagéo. Os miisicos sabem, quando leem umo portitur, ouvir nternomente os aiferentes partes. Ess A como é chomado, ndo é uma habilidade caracteristica do misico? Seria melhor falar de "canto internalizado’. Mais do que ouvir,é | lum ato ~ um cantar ~ que no é verdadeiramente efetuado. Como se todas as operages mentais que comandam o canto acontecessem, mas que, no entanto, a transmissao até a boca € o diafragma estivesse i terrompide, Com efeito, € uma pratica tipica do musico. O habito de ir voltar entre fazer € ouvir, entre produzir e escutar permite simulat mentalmente os gestos de produgao. Mas & preciso realizé-losalgumas vezes! AS ti € diferente, Imagino que, se nunca tivéssemos cantado, no teriamosa | merridi do qu pode sees esata interior Adar, cat, a execugao instrumental por si s6, e em outras culturas, as batidas de a atts Digitalizado com CamScanner mos, todos esses gestos sao revividos interiormente na escuta. Por esse motivo, enriquecemos a escuta sempre que associamos um ato corporal a misica; sempre que o fazer precede o escutar DESPERTAR SENSORIAL Vocé relaciona obstinadamente a educagdo da escuta ao exercicio de uma pratica de produgéo. Mos, antes mesmo de falar em misica, no € necessério treinar 0 ouvido, desenvolver a destrezo do audicéo, simplesmente na perspectiva de um despertar sensorial? E claro, podemos exercitar a audicdo, a propésito da misica ou de qualquer outra coisa, As professoras de Educacao Infantil fazem isso frequentemente: "Eu vou me esconder atras da cortina e vocés vao adi- vinhar o material com o qual estou fazendo som: - as chaves! - uma canetal”. Depois de um pequeno treino, as criangas ja se tornam boas nisso. Mais tarde, o exercicio é retomado com as sinfonias de Mozart: "Vocés levantardo a mao quando ouvirem o fagote.” E um exercicio de atengao e de identificagao. Com Mozart é um pouco triste, mas com as chaves, ¢ divertido! Vocé néo acredita muito nisso! Oh! Estes so pequenos jogos de escutae, inclusive, é possvelinventar dezenas deles. No entanto, eles nao devem visar objetivos musicais, sendo que, sem dlivida, serdo mais Uteis se usados com o intuito de favorecer a distingdo entre 05 fonemas de linguagem. Além do mais, a identificagao de fontes de ruido € certamente a fungao aucitiva mais solicitada na vida cotidiana. "A orelha de coelho", como diria Bayle. Quando a crianga esta No quarto € a mae prepara a comida, ela tem uma percepgao auditiva suficientemente agucada para prever aproximativamente o cardapio, Eu acho até que os mais comildes devem ser capazes de adivinhar se have- A bolo de maga ou de morango. E também uma questo de motivagao. ® italizado com CamScanner f uc i E como Els precisa de um despertar sensorial para isso? Eu acho que nao. Prefe- rivelmente de uma solid educacao gastronémica. Parece-me que, para ‘assegurar 0 refinamento da escuta musical, basta que a musica tenhs um apelo tao forte quanto 0 bolo. Eo meio, de acordo com voc, é que as criangas fagam a sua prépria musica, tocando, executando. Flas aprenderdo a escutar e simultane- ‘omente a produzir. Bem... Estamos em uma grande classe na etapa do . N2o apenas elas nao escutam as ou- tras criancas, como ‘também nao escutam 2 si préprias. Elas percutem felizes por poderem gastar sua energia. Por outro lado, nao olham para 0 seu instrumento, mas sim para o rosto das demais criangas; isso por- que 2 comunicagéo passa mais espontaneamente pelo olhar, do que pelo som, pela escuta. Enfim, digamos que ela esta contente por poder se juntar ao alvoroco coletivo! Mos és6. primeira aula! professora, ou 0 professor, nfo intervier, Fazer musica é uma atividade complexa na qual intervém 0 gesto, a atracao visual, a réplica sob a forma de uma ago - "Vocé manda isso para mim e eu jogo de volta para vocé™. Mas para nds, que temos um objetivo musical em mente, interessa ter todo esse pequeno teatro simbolizado por meio do som: movimentos sonoros; intercémbios sonoros. Ser preciso concentrar nossa atengdo nisso, como se fosse o personagem principal da aco, ‘ou seja, sua 1280 de ser. Para isso existem varios meios. Como em todas as situacdes pedagagicas, vocé pode escolher: ou emprega toda Digitalizado com CamScanner a sua autoridade ~ mas tenha cuidado para nao reprimir essa alegria; fazer barulho & um sinal de festa, tanto melhor! - ou vocé recorre & tegistro éauténtico, Sem diivido, néo devemos esperar uma opreciogéo musical refi ‘nada nesta primero re-escuta, Revivemos a cena; ado um reconhece ‘suas intervengées. € claro: "Esse sou eu, aquele, o Joo!” Recentemente,falamos dos jogos de identificagao das fontes de ruidos ou dos instrumentos de um conjunto. Estamos nisso e para aumentar a dificuldade, 0 grava- dor da classe registra uma gravacdo quase inaudivel. No entanto, as criangas se portam de modo brilhante, pois, dessa vez, elas se sentem verdadeiramente envolvidas. ‘Mos como vocé mesmo observou, nio ¢ 0 reconhecimento das fon- tes sonoras que vai preparé-los pora ‘penetrar’ na misico. Nao. € preciso aproximar-se de uma escuta critica. Mas, se vocé Pensa assim, vamos distinguir dois problemas que, 8s vezes, se confun- dem, mas que nao exigem a mesma solugo. 0 primeiro é escutar-se tocando - escutar a si mesmo ¢ aos outros -, 0 segundo é ser capaz de apreciar. Escutar durante a execugao é uma questdo de centralizacao: do so as maos, nem as cordas ou os companheiros que devem atrair a aten¢do, mas 0 som. Eu proponho para isso, simplesmente, amplificd-Io. _gamos melhor depos. Desa vez entéo,o metodo ¢ gave Naturalmente as duas técnicas se reforcam e poderiamos, eventualmente, abrir méo de Digitalizado com CamScanner J uma das duas. Ao ouvir bem, adquirimos o habito de prever o resultado, ‘reciprocamente, tocar para a gravacdo leva a se escutar. Mas, na medide do possivel, procuramos classificar séries de dificuldades. Vocé fala sobre “amplificor’. E realmente necessério utilizar um microfone, um amplificador e um alto falante? Nao € 2 solugao mais classica, mas, certamente, € a mais simples, 0 som é captado bem perto do corpo sonoro, reverberando no outro extremo da sala. Esté muito “presente”: diriamos que colamos 0 ouvido no instrumento ~ como 2s vozes radiofanicas gravadas de muito perto, < 7 to perto que ouvimos a saliva na boca. Mas, a0 mesmo tempo, est © Jonge, que ver do fundo da sala. Consequentemente, ocupa o esparo “ € esté, literalmente, aumentado. Todo mundo pode ouvi-lo, o que nao é < pouco, mas acima de tudo, é novo, surpreendente e chama a atengao. < ‘Mos nem sempre dispomos de meios de amplificagao e as vezes os e = ‘cabos elétricos inspiram terror! ~ Existem solugdes simples e nao tao dificeis de acessar. Um toca- ° = discos pode solucionar o assunto*. No entanto, se alguém ¢ irremedia- © velmente contrério a técnica, a eletricidade nao é a Unica saida. Existem equivalentes acisticos. 0 tubo grosso que funciona como um resso- nador: os colegas ouvem do outro lado. Ou em qualquer espago que bom assobiar em uma sala vazia, 0s reverbere, grande ou pequeno: pintores de edificios sabem fazer isso muito bem. As mulheres do Alasca 4s vezes cantavam Je katojjag, com a cabeca numa tigela que devolvia 0s ruidos da boca e da respiracao amplificados (3). Vocé conhece essas cabines telefdnicas de parede que ensurdecem a voz. Por que nao, 20 contrario, revestir tal superficie cncava de um material refletivo, como 4.Na década de 80 do século passado, as vitrolas, os toca-discos € os LPs se faziam presentes no cotidiano (No), Digitalizado com CamScanner ‘o metal, que devolveria imediatamente o som ao emissor? Uma acistica CRITICAR-SE Por acaso esses dispositivos néo realizam com preciséo esse dis- tanciamento que vocé considera util para desenvolver um juizo critic? Porece-me que 0 microfone, ao projetar o som pora alguns metros de disténcia, concretiza fielmente a imagem do passo para trds do pintor. 8 Isso é parcialmente verdade. Ele permite uma distancia espacial, no entanto, fica faltando o distanciamento temporal. Quando voce toca, vocé esta inteiro no que esta fazendo. 0 som é afastado pelo alto falan- te, mas também esté amplificado, vocé esta dentro, em agao. 0 distan- ciamento psicolégico necessério para julgaré, na verdade, uma questo de disponibilidade. Quando o pintor recua, obviamente, ele esté mais afastado, mas, sobretudo, ele para de pintar. De produtor, passa a ser _—————— Porece que a critica é facil, nio é? Ou’ necessrio, 0 contri, um a ‘Antes de tudo, ha uma questo de idade. E instil pedir a uma crian- ga de quatro anos a minima autocritica, ela fica sempre feliz em ouvir ‘seu trabalho. Por outro lado, para as de oito ou dez anos, nao sera ne- cessdrio incita-las muito, especialmente se o trabalho for coletivo e as, 5.0 mesmo podemos dizer em felagdos cabinestelefénicas:quase jé no as vemos poelas ruas (Ndo.T). Digitalizado com CamScanner como EDUCAR A ESCUTA?® opinides se referirem s intervengdes musicais dos colegas! Essas escu- tas serdo maravilhosos momentos educativos, tanto para a tolerancia ¢ para a qualidade das relagdes arupais, como para a formacdo do gosto da exivéncia artistica. Uma vez que os criangos adguirem o habito de escutar a proprio miisica com discernimento ¢ com um ouvido onalitico, esse habito se transfere também 4 escuta de gravacdes de obras musicais? Eles ouviréo Mozart como se tivessem feito isso? Claro, e isso nao deixa de ter sua graca! Eles terdo, diante de mi- 280, crtcaréo severamente ume obra, a despeito da fama dos génios ‘compositores! Os melémanos conformistas se ofenderao, mas estaro errados, pois ou vocé tem um espirto crtico ou n&io o tem! Nao faltam exemplos de criangas habituadas a criar misicas que adquirem uma escute muito refinada do repertério, Penso nas criangas de Marselha, de dez @ doze anos, alunas da professora Christine Prost que as con- duziu tio bem no projeto de realizado de uma sequéncia marcada por uma aparente auséncia de direcionalidade, de modo que o resultado se aproximave de uma obra que ela planejava escutar com 0 grupo pouco tempo depois: terceira das Cinco pecas para orquestra op 0, de Webern. A rapida passagem entre a produgao e a escuta incitou, evidentemente, a obtengao de comentarios de especialistas, produzidos pelas criangas: “0 fundo é muito natural, e entéo aparece o violino, que estraga tudo. Eles quiseram fazer uma musica entre 0 cléssico, muito imposto, € o livre e acho que isso nao funcionou muito bem!" Apesar do carater sucinto da formulagao, considero que essas observacdes sao surpreen- dentemente pertinentes para quem conhece a obra. Conseguir notar imediatamente esse confit estlistico 20s doze anos de idade ¢ digno de receber um elogi ‘Bravo"! 2 Digitalizado com CamScanner A ESCUTA CRIATIVA Sem diivido, existe uma grande fomiliaridade, no bom sentido do termo, Eles se sentem muito préximos de uma pega que desencoraja- ria muitos ouvintes. Mas vocé nao acha que essa liberdade de ondlise 6 também, uma superficialidade? Que a escuta dessos criancas, apesar de tudo, esté mal informada? Se eles dizem: “Eles quiseram..", como se tratosse de uma criagdo coletivo, temos o direito de pensar, com maior rozdo, que ainda escopom, para essos criancas, os fundamen- tos da escrita musical. ® Certamente, uma andlise da mesma obra feita por Leibowitz ou Boulez nao levantaria os mesmos aspectos. Mas qual seria a boa andli- Existe, em todo caso, uma anélise que se adequo aos procedimentos de composic 1, Ou seja: uma andlise serial das miisicas seriais! Mas vocé acredita que este tipo de andlise funcione como chave para a escuta? Tem-se demonstrado que, mesmo para ouvintes especia- listas, uma musica serial no & mais parecida, quando a ouvimos, com a série da qual ela surge do que com outra (4) € preciso admitir que as E verdadl que os compositoressdo owvintes perfetomente desres- Exatamente! Eles demonstram mesmo uma itritante tendéncia a escutar a musica dos outros 6 luz de suas proprias preacupacses. renee ete en Digitalizado com CamScanner como toucanaescutar@ Eles tém razao! Vocé nunca ouviré uma musica javanesa da mesma ‘Essa musica tem um significado para ele que nao tem para vocé. Azar! Deveriamos ser proibidos de ouvir canto gregoriano por ndo sermos monges? Obviamente, a compreensio entre um miisico € os seus ou- Vintes € tanto mais fiel quanto menor for a disténcia cultural que os separa. Mas, mesmo seo compositor é seu contemporanco e seu vizi- oe Eu retomo aqui uma argumentagao de Jean Molino ao defender o contassenso. modelo cléssico de comunicagio qeeeenteeeeneeoee Sim, em casos extremos, cantorolamos sem piblico, assim como em sentido inverso, fcomos em éxtase diante de uma musica que ninguém escreveu: 0 da natureza, Penso em misicos como Cage ou Ferrari que fazem do escuta um ato de criagdo; que publicam mesmo em disco, dan- do-Ihe uma foixo, uma poisagem sonora é beira do mar (§). Ea escuto Mas no pense que uma composigao ¢ ouvida de maneira muito diferente. Aimagem perceptiva que vocé constrdi é sua obra. Uma peca é uma tela na qual o ouvinte projeta suas imagens. Evidentemente, ele descobre 2 qualidade da escrita € do pensemento musical. Mas acres- centa 2 riqueza da sua leitura, Acima de tudo, nao reduzamos a anéli- se a uma explicago do texto: os temas, 0s movimentos, a construgao. Isso € apenas gramética, Nao varios empobrecer a percepeao, querendo 4 Digitalizado com CamScanner com a musica um manual de instrugdes, Como a invengo, uma escuta ‘pode ser pessoal, eratva, NOTAS BIBLIOGRAFICAS E DISCOGRAFICAS (1) Messiaen, conversa com Cl. Samuel, disco incluido na edigo da gravagdo do Turongalila Symphonie, Vega BVG 1363/4, (2) Ver discografia, p. 186. (3) The Eskimos of Hudson Boy and Alosca, compilado por Laura Boulton, Folkways Records FE 4444, (4) FRANCES, Robert, Lo perception de la musique, Paris, Vrin, 1958, pp. 133 e seguintes. (6) FERRARI. Luc, Presque rien n®I (Le lever du jour au bord de a mer), disco DGG 25 61 041 Digitalizado com CamScanner

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