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REVISTA HISTORIAR Francisco Régis Lopes Ramos Dontor em Histéria Social — PUC/SP. Professor do ensso de Historia da Universidade Federal do Ceara UFC e bolsista produtividade do CNPq. Curso de Histéria da Universidade Estadual Vale do Acarad -UVA OBJETO GERADOR: Consideragdes sobre o musen ea cultura material no ensino de histéria. Resumo ‘Se aprendemos a ler palavras, € preciso exercitar 0 ato de ler objetos, de estudar a histéria que hii na materialidade das coisas. Além de interpretar a historia através dos livros, & plausivel estudé-la por meio de objetos. Foi pensando nisso que, em 2004, publiquei 0 livto 4 danacéo do objeto: @ museu no ensino de histéria. No presente artigo apresento algumas reflexdes sobre a proposta deste livro, sobretudo a respeito da proposta de trabalho com o objeto gerador. Palavras-Chave: Histéria, museu, objeto, ensino, sociedade de consumo, Abstract If we leam to read words, you need to exercise the act of reading objects, to study the history that is in the rateriality of things. In addition to interpreting history through books, itis plausible to study it through objects. Thinking about that in 2004 published the book Damnation object: the museum in history teaching. In this article T present some reflections on the purpose of this book, especially about the job offer with the generator object. Keywords: History, museum, object, education, consumer society n Francisco Réejs Lopes Ramos O ensino de histéria a partis dos objetos ‘A utlizacio de objetos na educacio histérica pressupée perguntas em sintonia com 08 recortes temiticos. E tdo pode ficar mais interessante se a visita a exposicio for precedida no s6 por explicagdes sobre o tema, mas também por exercicios com artefatos do dia a dia Exemplo: se hi indumentiria no musen, vale a pena desenvolver atividades sobre a relacio dos esindantes com as roupas que eles vestem ou deixam de vestir. Assim, tomar-se-ia possivel entender que a roupa faz paste das relagées sociais, expressando os mais vatiados tipos de poder. E evidente que, a0 redor dessa operacio Iidica © cognitiva, hi 0 tisco do anacconismo: achar que as coisas expostas sio apenas coisas ultrapassadas, ou que os “antigos” eram ctiangas que hoje se tomaram adultos... A comparacio com o presente sempre pode ser petigosa, mas se tora absolutamente necessitia, porque ¢ exatamente ai que nés cultivamos a consciéncia histérica, entendendo que © presente nio esti solto no at, pois depende das pontes com 0 passado e 0 fistu. Saber por que uma sociedade sesttingia on ampliava 0 uso de um objeto nio se trata de meta cutiosidade, e sim de uma reflesio sobre as dinimicas de poder. Longe do reflexo, essa reflexio passa necessatiamente por uma critica sobre os acordos e os conflitos que transformaram 0 que ontem existia naguilo que hoje existe, sem desprezar aquilo que poderia ter existido e ainda pode exist. Fica claro, portanto, que 0s objetos sio veiculos privilegiados para o pensamento sobre a propria historicidade do ser hnmano atual. Afinal, somos criadoses e csiaturas de artefatos, Fazemos ¢ usamos objetos e, na mesma medida, somos feitos ¢ usados por objetos. Por exemplo: as fardas dos alunos ¢ das alunas sio compostas (atualmente) em fabsicas e tazem, além do simbolo da escola, a etiqueta do fabsicante. Homens e mulheres explorados (a3) pelo capital inserem-se em um longo (¢ ripido) processo de transformacio da natureza em objeto, e do objeto em mercadoria. Operitios e operisias, vendedores ¢ vendedoras esto marcados (as) por essas roupas. Por ontro lado, os estndantes tornam-se “algném” quando colocam a pele em contato com o tecido, Alunos e alunas até podem usar a mesma farda, mas de ‘maneitas distintas, com sonhos e fiustragdes que caracterizam cada pessoa, Ha, também, os que sio impedidos de usar, porque nio tiveram acesso A escola ou foram obsigados a abandons-la Implementar esses exercicios, fazendo conexdes com priticas sociais de determinados petiodos cronologicamente situados, significa alimentar a histéria dos objetos no ensino de histéria, E assim, por exemplo, que a batina do Padce Cicero no Museu do Ceari ¢ 0 vestido da Maria Bonita no Museu Histérico Nacional transformam-se em objetos de conkecimento Revita Hisorar, Vol. 08, N. 14, Ano 2016.1, p. 70-93 OBJETO GERADOR: Consideragées sobre 0 musen e a cultura material no ensina de bistria, R Também é assim que, no Museu da Repiblica, o pijama com que o presidente Vargas moneu ganha substincia existencial, quer dizer, passa a ter existéncia no tempo © no espaco da consciéncia histérica ‘A batina do padse, a farda do policial, o paleté do advogado ¢ o jeans do estdante no so inocentes, Recortadlos, montados e costrados, todos esses tecidos mistnsam-se & ontra tessitusa, dio sentido e forma aos contomos da epiderme. As roupas cobrem e descobrem © corpo, na medida em que escondem € mostram 0 jeito com que cada um se afisma E por isso que nio datia para compreender a imagem do Padre Cicero de jeans ou do presidente Vargas numa batina de padie. Allés, 6 até possivel imaginar esses personagens assim deslocados (coisa que fiz ao escrever ¢ 0 leitor acabou de fazer). Mas eles deixam de ser 0 que eram e transmntam-se em ontsas pessoas (prato feito para o riso dos inreverentes on a indignagio dos admizadores). Do mesmo modo, nds passamos a ser outros (pelo menos a aparéncia) quando nos cobrimos de outras roupas. Em principio, nao hé limites tipologicos, pois o que conta é vineular 0 que vai ser visto no musen com o tema estndado em sala de aula e com objetos contemporineos, a partir de perguntas historicamente fundamentadas. Nao para confirmar nogées de progresso ou regress0, ‘mas pata estabelecer diferencas e contradigdes. Os sos pedagogicos de roupas e outros objetos sio, portanto, infinitos. Afinal, o ensino que se serve da culmea matetial como fonte de saber histérico se nutre, também, da ctiatividade dos mnsens ¢ das escolas, on melhor, dos que trabalham nos museus e nas escolas, em nome do futuro que o passado ainda pode gerar. Objeto de fato Para superar a “educacio bancécia”, baseada na sacionalidade instrumental, Panlo Fieite projetou uma forma de alfabetizacio para adultos por meio de “palavras geradoras”, isto & palavras que tivessem mais sentido para quem iria ser alfabetizado e que fossem utilizadas como matéria-prima para a descoberta da forma pela qual as palavras seriam escritas, A ideia era gerar um movimento de leituras de palavras com leituras do mundo, com a esctita e a re-escrita do mundo. Paulo Freise argumenta que nio se trata simplesmente de uma técnica que coloca ‘uma palavra em conexio com determinada citcunstincia, A palavra isolada nfo fazia sentido na sua (intesjagio educativa, ¢ sim na teama entre palavras em selacio intima com a sealidade histérica do mundo, realidade cotidianamente vivida e cotidianamente pensada, nfo somente para ter informagdes sobre o existente, mas sobremdo para promover transformacdes. Sobre isso vale a pena citar 0 pedaco de uma das suas iltimas palestras, em que ele se aproxima ¢ se afasta de Emilia Ferseito, reafirmando seu compromisso de perceber que ¢ impossivel dissociar o ato Revista Hlictorar, Vol. 08, N. 14, Ano 2016.1 p. 70-93. B Francisco Réejs Lopes Ramos educative do mundo politic: Ona, diz-se, entio, que eu filava em palava getadora ¢ que nio poderia ser a palavra geradora, mas tem de ser a sentenga... E claro, como en falava, nos anos 50, € nos anos 40, em palavra geradora, alguém que tenha vivid naquela época e tenha visto algum tipo de experiacia assim vai lembras que nés partiamos de um discurso lingnistico, da linguagem do alfabetizando e nio do educador (..). Por isso mesmo, entio, 0 que se teria de fazer, de acordo com a minha proposta, era uma pesquisa do que eu chamava “universo vocabuilar minimo dos alfabetizandos”. Nesse universo, és selecionévamos palavras com que partiamos para a experiéncia, Quer dizer, no fundo, 0 que en propunha era uma anilise do discurso popular e, depois, drante a anilise, a apreensio de determinadas palavras que eram chaves — no discurso, nio em si — para, com elas, no processo da sintese, chegar ao disensso global de novo. (..) Quer dizer, na vesdade, o que en queria era provocar o homem € a mulher comuns, para que se descobtissem como competentes de fazer cultura também, mesmo analfabetos. ‘Assim, © prSprio alfabetizando pesceberia que faz cultura quando fica 0 chio ¢ constréi uma cacimba, Perceberia que, se ele constréi coisas, ele pode “mudar o mundo de culmea, que é 0 mundo da politica” As, exatamente ai, ressalta Paulo Freire, “nao tenho nada que ver mais com a Emilia [Ferreiro]. Quer dizer, as preocupagées de Emilia jamais levaram Emilia a discutir sso”. A producto da finguagem, de acordo com Paulo Freire, jamais estatia desvinculada da producio politica: “O que eu quesia era combater a ideologia fatalista segundo a qual Deus ou destino sio os responsiveis pela péssima vida do explorado e do dominado.” * Em certo sentido, a pedagogia do dilogo contida na “palavra gerndora” pode servir de base para © tabalho com abjets graders. Por exemplo: em sala de aula, no musen on em outros espacos educativos, o professor faria uma pesquisa e escolheria objetos signitficativos para 68 alunos, ou patticipantes de certo grupo, e dai seslizaria exercicios sobre a leitura do mundo através dos objetos selecionados? © objetivo primeito do trabalho com 0 objeto gerador & exatamente motivar reflexdes sobre as tramas entre sujeito e objeto: perceber a vida dos objetos, entender ¢ sentir que os objetos expressam tracos cultuais, que os objetos so criadores e ctiatwas do ser humano. Ora, tal exercicio deve partir do préprio cotidiano, pois assim se estabelece 0 dilogo, o conhecimento do novo na experineia vivida: conversa entre 0 que se sabe € o que se vai saber — leitua dos objetos como ato de procusar novas leitucas. Escolhido 0 objeto, a partir de sua insercao significativa na vida cotidiana, ha de ter a cxiacio de mais uma atividade que explicite melhor a propria relevineia do objeto para quem 0 “ FREIRE, Paulo. Pecagogia dos sonhos possiveis. Sto Paulo-Editora UNESP, 2001, p. 161 2 Para uma discussio mais aprofundada sobre 0 uso do “objeto geradox”, consultar: RAMOS, Francisco Régis Lopes. 4 danagao co Objero: 0 mauseu no ensino de historia. Chapeeé: Editora Argos, 2004, Revita Hisorar, Vol. 08, N. 14, Ano 2016.1, p. 70-93 OBJETO GERADOR: Consideragées sobre 0 musen e a cultura material no ensina de bistria, " colocou na qualidade de objeto gerador. Tudo indica que a via mais fiutifera nio é somente implementar a discussio coletiva em tomo do objeto escolhido, Em certas ocasiées, toma-se mais profndo 0 exescicio que chega 4 complexidade do objeto por meio da fice2o, on melhor, de uma nacrativa criada por cada participante do geipo. Cria-se um envolvimento coletivo paca que cada um invente e conte uma histéxia na qual o objeto tenha um papel decisivo: a fotogsafia que gerou um conflito, a roupa que despertou um romance, 0 énibus que quebrou e possbilitou a conversa entre dois futuros amigos, o esclarecimento de um crime a partir da caneta encontrada pelo investigador... Pode-se, também, fazer com que cada pavticipante traga de casa um objeto para ser aptesentado ao grupo, através de comentarios sobre a relagio de quem o escolhen com a propria escolha. Outra opcio é trabalhar com objetos que se carregam em bolsas, nos bolsos on no proprio corpo, tais como: carteicas de identidade, dinheiro, pente, espelho, caneta, retratos, santos, camisa, sapato, calga... Assim, vio se ctiando condi¢des para dilogos sobre © com o mando dos objetos. O importante é que seja construida a circunstincia pata que se fale sobre objetos da vida cotidiana. Fica bem evidente que 0 ponto de paitida para o trabalho aqui defendido a pedagogia de Panlo Fieite, mas, a0 mesmo tempo, essa base teérica é entrelacada com ontras perspectivas, que veem de modo diferente a conexio entre sujcito e objeto. O importante, nesse sentido, é também perceber o dominio do objeto sobre o sujeito, no no intuito de simplesmente inverter uma relicio de poder historicamente constituida na modemidade, mas para buscar ontras formas de ser e estar no mundo e com 0 mundo, © tabatho com sbjetar geradons nto se vincula @ relagdes nas quais 0 sujeito simplesmente descobre 0 objeto. Nao se trata da revelacio & Inz de métodos cujos passos esto seguimente definidos. Antes de tudo, o potencial educative dos objeos geradores xeside no exercicio de alargamento do nosso ser no mundo, da experiéncia de viver a historicidade do ser que dé existéncia a nés e 20 mundo, em suas mviltipla ligacdes. Perscmtar objetos expostos no musen, ou em uma sala de aula, nto é um oficio de analisar © que passou, mas interpretar a presenca do pretérito, em suas multiplas dimensdes tempoade 7 prorhse eye epentinda mas, mecriamen bition Receenivine santens dlsjtea, ik vidas latentes, prolongamentos do corpo, acordos e rupturas diante do espaco e do tempo. Como sessalta Merleau-Ponty, “Habituar-se a um chapén, a um antomével on a uma bengala é instalar- se neles ou, inversamente, fazé-los participar do catiter volumoso de nosso corpo puéptio. O habito exprime 0 poder que temos de dilatar nosso ser no mundo on de mudar de existéncia anexando a ads novos instrumentos.”* MERLEAU-PONTY, Mautice. Fenomenologia da Percepeao, Sto Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 199 Revista Hlictorar, Vol. 08, N. 14, Ano 2016.1 p. 70-93. 5 Francisco Réejs Lopes Ramos Antes de mostrar objetos, © musen é o Ingar do corpo exposto. Ao saber que nas exposigdes hi pedacos amputados, 0 ensino de histéria com objetos comeca a ganhar profundidade existencial. Em sna tama de conilitos historicamente engendiados, 0 objeto esti entre 0 passado e o fisturo — presenga de temporalidades. O ser dos objetos existe na relacio com o ser dos outsos objetos eo ser humano. Falar sobse objetos é falar necessatiamente acetea de nossa pr6ptia historicidade. O trabalho pedagégico com 0 sljet gerador sugere que, inicialmente, sejam exploradas as miltiplas xelagdes entse 0 objeto e quem o escollen. Mais cedo on mais tarde, isso desemboca em outros atos ctiativos: a relagio entre objetos do presente & do passado e o proprio questionamento sobre as divisbes entie o pretérito e o mundo atusl. Tais exercicios vio, pouco a pouco, constituindo base puia um selacionamento mais critics com as exposicées museologicas. Mas isso 56 acontece porgue ha, antes de tudo, uma abertura de visibilidade, o alargamento da percepcio. Desse modo, © objite gender niio € método, E. antes pasimetzo hesmenéutico para a constmucho criativa de priticas pedagégicas que possibilitam novas leitaras da nossa propria historicidade. A historicidade dos objetos reside no tempo, nas marcas do uso, da falta de uso ou nas fendas do abuso. E por isso que sentimos © que é novo, assim como imaginamos o tanto de décadas on séculos que possui determinado objeto. Afinal, com qnantas histésias se faz um objeto? Como foi feito? Por quem? Por qué? Quando? Como foi amado ou odiado? Como foi peimitide on proibido? Como foi sedntor ou sepugnante? Em que sentido foi sacralizado on profanado? Como se tomon piiblico on interditado? Quantos segredos (j)confessaveis...E tantas outras eargas de sentimentos conflitos...Tensdes mais intimas ou de carter social © tiabalho com 0 “objeto gerador”, vale salientar, pode cair em alguns equivocos. Por exemplo, a confusio entie historia « meméria. © importante nfo € apenas relacionar 0 antefato com lembrancas pessoais ou coletivas. Isso pode ser um ponto de partida, mas munca 0 ponto final. Nio se tata de simplesmente compor um canteito de secordagSes, ou justificar identidades a partir de cestas matetialidades. Fundamental e inegocifvel € chegar & histéuia, em sua diivida metodicamente conduzida, em sua capacidade para lidar com as diferengas sem sednzilas a um col de diversidades prontas ¢ acabadas. Cabe a0 grupo que transfozma 0 objeto em objeto getador a tarefa de gerar a reflexio histotica, que significa necessariamente lidar com tenses e contfltos. “Pastis da xealidade do aluno” io significa “ficar na realidade do aluno”. Pelo contuitio, porque o verbo estudar implica, necessasiamente, na saida dessa dita “sealidade”, para tomni-la mais complesa, em comparagdes ctiativas com situagdes mais amplas. Nesse sentido, alids, Paulo Fusire tem sido muito incompreendide. O que ele quetia, ao falar sobse 0 xespeito diante da cultura de todos os alfabetizandos, nao era defender a reveréncia ow a sacralizacio do Revita Hisorar, Vol. 08, N. 14, Ano 2016.1, p. 70-93 OBJETO GERADOR: Consideragées sobre 0 musen e a cultura material no ensina de bistria, 16 “discurso do outro”, © sim explicitar onde comeca © trabalho educative (que, a rigor, tem finalidade, mas no tem fim). Do mesmo jeito, a histéria deve tratar a meméria como matéria de esindo, e niio como a voz que vem do passado e simplesmente deve ser escutada e eredenciada Uma segunda armadilha vinewla-se a essa confusio entre meméria ¢ historia: ttansformar os debates sobse os artefatos em sessGes de terapia, em que 0 professor se vé numa sitmagio na qual ele nio tem dominio (¢ nem deveria, jé que existem profissionais especializados nna questio). Relacionar objetos coma a vida pessoal nfo é um exercicio de desabafo coletivo, Pode set, mas em espacos devidamente preparados para tais empreitadas. Numa aula de historia, em espacos formais on no, © que realmente interessa 6 partir da cultura material atvelada a um problema histético, Nao adianta simplesmente perguntar por perguntar, A pergunta deve ter sentido de anlise da historicidade Como ressalta Paul Veyne, “tim fato nfo é um ser, mas um emzamento de itineritios possiveis”. O fato histérico nfo é um dado, mio ¢ dado 4 percepcio como ser puro ~ esséncia do acontecimento, Conhecer 0 passado significa interrogi-lo a partir de questoes historicamente fandamentadas. Na medida em que sio vestigios do passado recente ow mais longinquo, os objetos também se constituem em um “cruzamento de itineritios possiveis”. Nao possuem esséncia, no sio definidos de modo pronto ¢ acabado: sio tessituras, tramas em movimento.“ 3. A insustentavel leveza do tempo Quer seja nas sociedades antigas através do papel desempenhado pela cavalatia (os primeitos banqueitos romanos eram cavaleitos) ou no poder matitimo através da conquista dos mares, 0 poder é sempre o poder de controlar um tettit6rio por mensageitos, por meios de transporte © de transmissio. Independentemente da economia da riqueza, uma abordagem do politico nio pode ser feita sem uma abordagem da economia da velocidade. O papel desempenhado pela velocidade é difexente segundo a sociedade considexada.* Ha uma relacio intima entre poder e velocidade. Intimidade historicamente situada, dependente das circunstincias nas qnais as sociedades constituem maneiras de compor conexdes entre tempo e espaco. Paul Vitilio chega a afirmar que, se nfo é possivel fazer separagdes entre siqneza e velocidade, qualquer esmdo sobre 0 poder passa necessariamente pelo “poder dromocsitico”. Dromes, em prego, sipnifica costida. Emerge, postanto, um campo de investigagio de primordial importincia: a anilise sobre a maneira pela qual as sociedades dio suas carteiras e suas paradas, A Idade Média conheceu 0s pombos-conteios com Jacques Coeur, 0 4 VEYNE, Paul. Como se escreve a historia e Foucault revoluctonaa hist6ria, Brasilia: Ed, UiB, 1982, p. 45. 5 VIRILIO, Paul. Ciéermndo: a politica do pior. Lisbos: Editorial Teorema, 2000, p. 15, Revista Hlictorar, Vol. 08, N. 14, Ano 2016.1 p. 70-93. n Francisco Réejs Lopes Ramos guande financeiro da época. A sociedade colonial conheceu © poder matitimo da Inglaterra e da Franga. A sociedade do pés-guerra conhecen © poder aéreo com a capacidade dos avides super-s6nicos que transpéem a bameita do som na década de 50. Hoje, a sociedade mundial esti em gestagio € no pode ser compreendida sem a velocidade da luz, sem as cotagdes_automiticas das bolsas de Wall Street, de Toquio ou de Londres Vitilio adverte que 0 ato de viajar se constituia em trés etapas: a partida, 0 tiajeto ea chegada. Com a aceleracio geral do mundo contemposineo, “a chegada generalizada dominou todas as pastidas” Hi prtispe quarengclat emacs cleqpaga quctengiliso:tempo; am yu, perda da proptia experiéneia vivida, Ao lado da “ecologia verde”, que denuncia 2 poluigio da nnatuseza, Viliio propde uma “ecologia cinzenta”: “Ao lado da poluigio visivel, bem matesal, bbem concreta, hi uma ecologia das distincias. A poluicio é também a poluigio da grandeza nnatuial pela velocidade. (..) A velocidade polui a extensio do mundo e as distincias do mundo” ® Nesse sentido, Vislio diz que cottemos o tisco de provocar 0 acidente dos acidentes: “o acidente do tempo”. Catistiofe que vem acontecendo, aos poucos, quando a hipertrofia do presente vai dominando o passado e 0 futuro, na medida em que a pattida vai eliminando © tuajeto em nome da chegada Quando a velocidade aumenta, a duagio diminui, Tal equagio é, em sintese, © sentido que sege a aceleracto dos objetos na sociedade de consumo, Fauto petmitido e proibido do capitalismo, o objeto tuansformado em meseadoria foi se instituindo na constante diminuigio da vida média, Nesse caso, 0 acelerado aumento da mortalidade dos artefatos cortesponde 20 insacidvel inctemento da natalidade. Objetos sio criados em desespero continuo, para alimentar 0 consumo, ignalmente desesperado, Depois de comprado, 0 objeto niio deve ter vida longs: ddesgasta-se logo ot logo fica “fora de moda”, Nunca houve, em neuhuma sociedade, uma relagio to préxima entze beigitio e cemitésio Nessa perspectiva de esmdar a biogcafia dos artefatos, no se pode desprezar, cextamente, os aspectos quantitaivos, as estatisticas que dio conta das vitias tuajetozias elimitadas no comeco e no fim desses artefatos. Mesmo com algumas restiicdes, penso que se eva levat em consideracio as sugestées de Abraham Moles em tomo de uma “demografia dos objetos.”, Enfientar a sociedade de consumo é ou deveria set, 0 pressuposto bisico de qualquer stividade selacionada 20 uso de objetos em aulas de histéxia, pois a conseiéncia histésica nio tuata do passado isolado, ¢ sim das vitias tramas enue pretésito © presente, sem esquecer 0 ®tdem, p15. 2 VIRILIO, Paul. Cibermundo..Op. cit p- 62. 8 VIRILIO, Paul. Cidermundo... Op. cit. p. 63. ° MOLES, Abraliam, Runos de wna cultura tecnologica. Sao Paulo; Editora Perspectiva, 1973, p.213, Revita Hisorar, Vol. 08, N. 14, Ano 2016.1, p. 70-93 OBJETO GERADOR: Consideragées sobre 0 musen e a cultura material no ensina de bistria, 78 campo de expectativas ligado ao futuro. O estatuto atual do objeto é, portanto, ponto de partida. $6 assim toma-se viavel, por exemplo, as chamadas “visitas educativas” aos museus on a aquaisquer ontros “Ingares de meméria”. Afinal, 0 conhecimento histérico se faz no presente € pelo presente, que interpela 0 pasado. A distincia entre 0 que passon ¢ tempo atnal no é 0 entrave on 0 caminho a ser liminado on percostido com a chamada “nentralidade cientifiea”. Como sessalta Gadamer, Yo tempo nfo é um precipicio que devamos transpor para recuperatmos © passado; &, na realidade, © solo que mantém o devir ¢ onde o presente ctia raizes”.” Esse tempo, entre raizes e antenas, no é simplesmente a presenca do presente, mas a presenca das conexdes que nés poderemos fazer entre passado e presente, passado e futuro, Aqui, por uma questio de recoste metodolégico, vow me deter sobre a temporalidade dos objetos atuais, aqueles produzidos no calor da “sociedade de consumo”. Com isso, defendo que se torna completamente indispensivel, para a construgio da consciéncia histérica, a proposicio de atividades pedagégicas com artefatos da contemporaneidade, Uma proliferacio incessante de objetos. Essa é, certamente, uma caracteristica do mundo no qual vivemos. Além do aparecimento constante de certas novidades que rapidamente m de uso mais on menos comm, como o telefone celular, 0 videocassete on o CD, coisas jé inventadas ganham sapidamente outras cores ¢ formatos. Estamos, como diz Jean Bauctillard, no “tempo dos objetos”. No passado, néo muito distante, havia uma perenidade que hoje j nio hé: “os objetos viam 0 nascimento ¢ a morte de getacdes humanas. Atualmente, sio (os homens que assistem 20 inicio ¢ ao fim dos objetos”."* ‘Quem nasceu nos anios 1970 nao manuseou discos de cera, com uma miisica de cada lado. Pasa 0s adolescentes da década de 1990, o disco de vinil apresenton-se como coisa fora de uso comum. E assim, vemos nascer e mourer objetos, com uma rapidez que assusta e excita, no desejo sempre renovado de consumix, O “tempo dos objetos” presmpde a existéncia da “sociedade de consumo”, Beatriz Sarlo indica que o consumidor da atualidade é um colecionador as arescas: “em vez de colecionar objetos, coleciona atos de aquisi¢io dos objetos”. Coleciona, de modo excitante, “atos de compra ¢ venda”. Assim, ha sempre uma auséncia, falta de objetos que nunea 6 preenchida por novas aquisigdes. Depois de sair da vittine, 0 objeto vai se desvalotizando e, mais cedo ou mais tarde, transforma-se em algo fora de uso, sem a sactalidade que 0 envolvia, Objetos effmeros, que nos escapam: “is vezes porque nio podemos consegui-los, outras vezes porque j os conseguimos..” Sorsateiramente, ergne-se um poder dos objetos, seduciio de vida ™ GADAMER, Hans-Georg. 0 problema da consciéncia histérica. Rio de Janeiro: Fundagao Getilio Vargas, 1998, p. 67. * BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. Sio Paulo: Perspectiva, 1993, p. 15. Revista Hlictorar, Vol. 08, N. 14, Ano 2016.1 p. 70-93. 7» Francisco Réejs Lopes Ramos morte: “a liberdade dagueles que os consomem suge da féssea necessidade do mercado de convertes-nos em consumidores permanentes”.” A “sociedade de consumo”, que se xeproduz em uma interminivel rede de fome morte, realiza-se, também, no desejo, na vontade insacivel do consumit, na produgao incansével de objetos. Se o templo dos “colecionadoses is avessas” 6 0 sbopping cote, 0 altar de adoxacio & certamente a vittine, Ingar onde a sacsalizacio do mexcado mostea toda sua carga de erotismo ¢ Ginismo. A velocidade ganha estatuto de lei candnica, que (desjregula o infinito gozo da liberdade de provar os sabores da novidade. O velocimetio vita selégio biolégico, marcando os passos de ‘uma liturgia profana e profanadora, mas em nome do sagrado e da saeralizacio. Nao é dificil pereeber que alguns museus transformaram seus acervos em materiais, de consumo visual, em conchavo com 0 “tempo dos objetos”. Por outio lado, esse mesmo “tempo dos objetos” pode dar mais argumentos para o musen assumir nova abrangéncia: © prSpsio estude das condicdes que possibilitam a “sociedade de consumo”. No “tempo de objetos”, 0 musen sexia um mticleo educativo de insubstitivel impostincia, centro de estados sobre 4 histoticidade dos objetos, instituigio de pesquisa onde © contemporineo ganbaria um status sem precedentes... Enfientar, por meio dos objetos, os sentidos de passado e futuro que habitam o presente tounas-se-ia tum desafio ético absangente ¢, 20 mesmo tempo, especifico, uma via de posicionamento ctitico em consoniincia com o desafio pedagogico do museu. ‘A questio é que, muitas vezes, 2 slternativa criada diante dos musens tradicionais, que glorificavam a histéria das classes dominantes, nio foi a favor de um posicionamento reflexivo, sim em nome do espetécnlo da “sociedade de consumo”. Os musens, desse modo, embaream na onda de consumo visual do pattiménio hist6rico, geralmente associado a um turismo predador. Dai, as chamadas “politicas culturais” ficam reféns do “mercado”, para implementar a “indiisttia e 0 cométcio dos bens simbélicos”. E tndo ¢ feito como “construclo da cidadania”, posque gera “empsego e renda”. Ova, o que muitas vezes acontece é que todo esse vocabulitio que une cultura e economia vai minando aquilo que seria, dentro dessa mesma logiea do mercado, a “grande atracio”: 0 conjunto dinimico das peculiatidades culturais. E claro que, faa complesa sede de produtores, consuumidoses ¢ intermediftios, 0 casamento entre dinheiro ¢ politica cultural nas instituigSes priblicas nfo é, em si mesmo, © deménio a ser afxstado com a gua benta do “intelectual engsjado”. O que se toma inadiivel 6 sempre colocas em pata os pavimetzos da ética pata o fincionamento do poder piiblico ¢ sua capacidade de intesvencio, sobretudo a sua poténcia de assumir a condicio de caisa de ressonncia, sensivel a multiplicidade suti e feérica das tessituras sociais, O que geralmente se vé nessa engrenagem é um esvaziamento do politico em nome de estereétipos, daquilo que postico, autificial e oficial, e sobretudo ® SARLO, Beatriz. Cenas da vida pésemaderna, Rio de Janeiro: Ed, UFRI, 2000, p. 27. Revita Hisorar, Vol. 08, N. 14, Ano 2016.1, p. 70-93 OBJETO GERADOR: Consideragées sobre 0 musen e a cultura material no ensina de bistria, 80 Afinal, se estamos falando de politicas piblicas, fugir da ética piblica é submeter-se aos padrdes do mercado. daquilo que ¢ passivel de se transformar em “material de consumo A ptoposta aqui defendida para as politicas patsimoniais e, especialmente, pasa as politicas museolégicas, no se ancora na preservagio de uma suposta “identidade cultural” ou do “resgate do nosso passado”, e sim no direito 4 diversidade histérica, no direito 4 multiplicidade das memértias como pressuposto bisico para a construcao de um potencial ctitico diante da nossa pr6ptia historicidade. Assim, a preservagio tem o intuito de dar a todos nés o diseito de saborear a diferenca, de perscrutar as marcas de outros tempos, ctiando em nés a consciéncia de que somos setes historicamente constituidos. Se vamos apagando a materialidade do pretétito, que esti, por exemplo, na propria configuracio urbana, vamos esvaziando 0 jogo do tempo, aniquilando © processo edncativo de entrar em contato com o tanto de experiéncia vivida que pode ser encontrado no mundo dos objetos. Enfim, como no podetia deixar de ser, hé uma questio de findo politico na relagio «que se faz entre meméria e preservacéo (ou estudo) da meméria, entre cultura ¢ administracio das instituigdes piiblicas chamadas “‘culturais”, como mnsens, arquivos, teatros, secsetatias de cultusa etc. E, contrasiando o cliché, no se trata somente de descobsir as “taizes cultusnis”. O mais importante é dialogar com o que jé foi feito, sabendo por quem foi feito, para quem e contea quem foi feito, Tratar a culbura em sua constituicio conflituosa, dialogar com 0 pasado, no para sentir sandade ou tentar salvé-lo do esquecimento, mas para interpreti-lo como fonte de conhecimento @ respeito das nossas idas e vindas nos mapas da temporalidade. Se vamos apagando as marcas do pretérito, perdemos o potencial educativo de experimentar as diferenas temporais, de sentir a estética do tempo como forma de entender © que éramos, 0 que somos ¢ © ‘que poderemos ser (© tempo do Consumo Para trabalhiar com objetos da sociedade de consumo no ensino de histéria, é preciso considerar, antes de mdo, que tais objetos devem ser tratados como documentos histéricos. E os documentos histéricos s6 festilizam a retlexio cxitica a pastir de problemiticas historicamente fandamentadas. Os tempos de duragio dos artefatos contemporineos podem ser, por exemplo, uum campo féxtl para a composicio de problemas histéricos nas aulas de histéria, em intesagio com. outras areas, como a biologia, a quimica e a fisica, O inegocidvel, na chamada interdisciplinaridade, é simples: as disciplinas nao podem desaparecer. Cito um caso concreto para deixar mais clara a posigio, aqui defendida, a respeito dessa perspectiva interdisciplinar. Trata-se do livro “Plistico: bem supérflno ou mal necessitio?” Revista Hlictorar, Vol. 08, N. 14, Ano 2016.1 p. 70-93. at Francisco Réejs Lopes Ramos Na introducio hé o seguinte: Podemos dizer que a Immanidade, que ja vivencion as idades da Pedra Lascada, da Pedra Polida e dos Metais, encontra-se atualmente na Era dos Plisticos. Leves e resistentes, priticos ¢ versiteis, duriveis © relativamente baratos, eles so uma das expresses méximas da idia da tecnologia a servigo do homem. Contado, em vistude de sua nio- degradabilidade e também da seducio progressiva dos estoques naturnis de matérias-primas, eles podem representar uma série ameaca 20 meio ambiente. Vale a pena ter 0 confosto proporcionado pelos plisticos, mesmo sabendo que, num futuro proximo, os tervenos sanitisios poderio estar abarrotados de montanhas de liso plistico, que demorarfio décadas para desaparecer? Compensa viver com a polti¢io proveniente das indiistrias que os produzem? E sensato utilizar 0 petréleo, fonte de combustivel e de matétia-prima, para fabricar plisticos, cujo destino final € 0 lixio municipal? Mas, por sua vez, setia uma decisio inteligente ptoibit a fabricacio desse tipo de material e viver sem 0 conforto que ele tua2? Seria justo suspender o uso de plisticos como, por exemplo, 0 teflon, empxegatlo em proteses Gsseas, marcapassos ¢ dentadnsas? Enfim, haveria um meio-termo conciliador para todas essas ¢ tantas outras questées polémicas relativas aos plisticos? Mocinho ou bandido? Bem supérfio ow mal necessitio? Este livro nio tem a pretensio (ov, até por que no dizer, antoritarismo) de esbocar uma resposta acabada definitiva a essa indagacio. Sua proposta consiste, ao contritio, em fomecer um minimo de informagio centifica e tecnolégica sobre os plisticos, suas proptiedades e aplicacdes, vantagens e desvantagens, Entio, apés estar munido dessas informacdes — e, espera-se, tanto vacinado contra as maravilhosas coloragées publictisias que endeusam os plisticos, quanto prevenido contra “ecologismos catastuéficos” “chutes” baseados no senso comum e nas informagées veiculadas pela midia (nem sempre corretas ¢ confidveis nos seus aspectos cientificos) -, cabe 20 leitor posicionar-se, como pessoa e cidadio, diante dessa controvertida @ atual discussio, Faz, pottanto, parte da proposta desta obra proporcionar subsidios para que o leitor possa entender por que ha tanta polemica no que diz respeito aos plisticos, 4 necessidade de seu reaproveitamento através da reciclagem e 4 sna degradacio natural por intermédio de uma producio que pense nisso previamente. Finalizando a introdugao, gostaria de esclatecer que, embora este livro seja destinado a pessoas que jé se iniciaram no estado de Quimica do Ensino Médio, acredito que um leigo também possa titar algum proveito do contetido agui exposto. Basta nfo dar is formulas e nomes quimicos uma jimportincia maior do que eles tm." E um texto que parece promover a construglo do conhecimento histbtico. Até existe, nesse Livro, tum capitilo intitulado “Um pouco de histéria dos plisticos”. Mas é ai que se petcebe, de modo mais evidente, a falta de uma fandamentagio histérica. A histéxia € confundidla com sequéncia de datas ¢ fatos. Em poncas palavias: o antor ackedita que mais informagées sobse © passado e o presente promoveriam mais consciéncia histérica ® CANTO, Eduardo Leite do, Plastco; bem supérfluo ou mal necessério? 2 ed, Sao Paulo: Moderna, 2004, p. 9. Revita Hisorar, Vol. 08, N. 14, Ano 2016.1, p. 70-93 OBJETO GERADOR: Consideragées sobre 0 musen e a cultura material no ensina de bistria, 82 Nao cabe, aqui, uma andlise mais detalhada sobre isso, até porque esse livro faz parte de um vatiado conjunto de publicacées pretensamente didaticas que, a rigor, estio mais prosimas de uma ceita literatura de autoajuda para quem acha que 0 saber se confunde com armazenamento de informagées. Vou apenas identificar uma caréncia qne deixa ainda mais anémico 0 sentido exitico que 0 referido autor deseja ter: no hi discussdes sobre as intimeras conexdes entve o desenvolvimento do plistico ¢ (se)produgio das desigualdades sociais na exploragio capitalista. A evolugio da técnica fica solta no ar, como se bastasse citar uma sequéncia de inventores e suas invencées ou um inventitio de problemas técnicos ¢ solucdes igualmente tecnolégicas ‘A ecologia até aparece, mas igualmente solta, como se a questio fosse apenas defender on acusar 0 plistico, como se houvesse neuttalidade cientifica diante da sociedade, da economia, da politica, dos objetos... Tudo é resumido na simplificagio do titulo: “Plistico: bem supérfluo ou mal necessitio?”, Nao ha ditvidas, por outro lado, que cettas informacdes trazidas nesse livro podem ser fundamentais, mas na medida em que forem inseridas em problematizacdes histéricas, prontas para gerar reflexdes sobre a nossa condicio de criadores tiaturas do tempo. Conhecer 0 passado de modo citico significa, antes de tudo, vives 0 tempo presente como amidanca, como algo que no ema, que esti sendo e que pode ser diferente. Mostrando relacdes historicamente fiundamentadas entre objetos atuais e de outros tempos, o musen ¢ a sala de aula ganham substincias educativas, pois hé relagdes entre 0 que passou, o que est passando eo que pode passat: No cotidiano, usamos uma infinidade de objetos: desde a televisto até uma roupa. Por ontto lado, pouco pensamos sobre os objetos que nos cercam. Se pouco refletimos sobre noss0s pudptios objetos, a nossa percepcio de objetos expostos no museu sexi também de reduzida abrangéncia. Sem 0 ato de pensar sobre 0 presente vivido, nfo ha meios de constrnir conhecimento sobre 0 passado. E 0 proprio conhecimento do presente jd pressupée referéncias 20 pretétito. EE por isso que qualquer museu histérico pode (e deve) ter, em seu acervo, artefatos do mundo contemporineo, Se aprendemos a ler palavras, é preciso exescitar o ato de ler objetos, de observas a hiistéria que hi na materialidade das coisas. Além de interpretar a histéria através dos livros, € plausivel estudé-la por meio de objetos. Foi pensando nisso que, em 2004, publiquei 0 livro 4 danagio do objets 0 mmsex no ensino de bistéria.®* Perguntar-se sobre nossas roupas comparando-as com as vestimentas da década de 1950 ou da atistocracia francesa do século XVIII é, por exemplo, uma das questdes que podem * RAMOS, Francisco Régis Lopes. A Danacdo do Objeto.. Op. cit. Revista Hlictorar, Vol. 08, N. 14, Ano 2016.1 p. 70-93. 83 Francisco Réejs Lopes Ramos desencadear processos de sensibilizagio para a histoticidade dos objetos com os quais lidamos no dia a dia. Uma ontsa questio podesia vislumbrar a telagio entre 0 selégio que esti no brago dos alunos, ou no pitio, e a nogio de tempo necessitia & chamada “Revolugio Industtial”. Ou a relagio desse mesmo relégio com a “sociedade de consumo”, Pode-se qnestionar a ligacio do relégio com a destmi¢io da natureza, a busca de lucsos que insidiosamente proclama que “tempo € dinheiro”, as diferengas entre 0 tempo dos “indios” que no usavam rel6gios € 0 tempo do mundo capitalista, No musen on na sala de aula, um copo descartivel pode ser tomado como fragmento do tempo monetitio, no qual tudo deve durar pouco, pois o ideal é sempre acelerar os indices de consumo. Mais coisas consumidas em menor quantidade de tempo: tempo marcado pela matemiitica € ponco mascante nas afetividades da meméria, mdo em nome de um presente antficialmente etemizado. (© melhor exemplo que en conheco de tsabalho com tais artefitos foi dado por Ulpiano Bezerta de Meneses: Um museu de cidade, por exemplo, pode contar com uma colecio de rel6gios de ma. E pode ampliar tipologicamente tal colecio e também expé-la tipologicamente, em paralelo a vitias ontras classes de objetos, cada uma em sen segmento taxonémico, Pouco conhecimento se tera da cidade, salvo numa escala pontual e limitada. Sequer ficatiam clasas as fingdes desse tipo de monumento urbano. No entanto, caso se parta de ‘um problema (qne a propria colecio de relégios pode sugerit), como a do tempo enquanto forma de controle social no espago urbano, jé se pode montar uma estratégia e mobilizar outras colegdes existentes on definit uma politica de coleta. Assim, a partir do rel6gio de mua, como referéncia que projetava no espago urbano as significagées do tempo enquanto fator de organizacio © convergéncia, numa sociedade em processo ripido de fragmentacdo, buscar-se-iam relagdes com outras formas de controle social por meio dos objetos pertinentes. Como, por exemplo, a domesticacio do tempo natural pelas exigéncias da producio, ‘que nossa sociedade impée. A producio requer continuidade, mas 0 tempo natural apresenta mpturas como a altemincia dia/noite. Dai ser adequado incorporar 4 exposicio colecdes de eqnipamentos de iluminagio (doméstica, industrial, de rua), capazes de pecmitic © entendimento deste dominio sobre 0 tempo. Outra relacio podetia set com 0 dominio da durac2o das coisas, da vida titil dos objetos reduzidos & mercadosia, a fim de que elas cixcalem mais sapidamente (é, postanto, a mesma matriz). Assim, a exposi¢io contaria também com uma colecio de objetos descartiveis, como embalagens, copos, por exemplo, on outros objetos marcados pelo effmero ou pela obsolescéncia programada, Poderia parecer uma exposicio compésita, eclética, De fato, ‘mas nisso mesmo ela remete s miiltiplas malhas da interagio social, sem a qual escapatia © sentido histé1ico dos diversos tipos de objetos Revita Hisorar, Vol. 08, N. 14, Ano 2016.1, p. 70-93 OBJETO GERADOR: Consideragées sobre 0 musen e a cultura material no ensina de bistria, 84 exibidos.” Aqui, a base é a problemitica histérica diante dos objetos, em dilogo politico com as nia sence a omemund an conten TF aes Gena pane aan sees, pom aR amplo tettitétio de possibilidades educativas. Imagino grandes exposicdes, juntando os mais vatiados objetos descastiveis com os mais vasiados relogios, a pattir de tecortes que vio depender do enfoque que se deseja. Por outro lado, penso em pequenas exposicdes de estudantes do ensino fundamental on médio, na sala da escola, com propostas que podem relacionar historia e biologia, por exemplo. Seria interessante levar certos objetos de plistico para anlas sobre temas clissicos, como industsalizacio, urbanizagio ou globalizacto. E plenamente wiével propor que, além da voz, 0s professores uitilizem objetos, nfo importando o tema, porque o que di a qualidade da construgao da consciéncia histérica é 0 problema historicamente fundamentado. Pode-se pensar, por exemplo, como hi relagdes entre o desenvolvimento do capitalismo e a sedugio do tempo dos objetos, inclusive com destaque para 2 atal proliferacio de relogios de plistico e o crescente desaparecimento de oficinas de consertar rel6gios. E a selacio dos relogios com as propagandas? Refiro-me nao somente a propagandas para vender selégios, facilmente encontradas em jomais e sevistas de todo século XX e que apresentam um infindivel cardipio de indicios sobre os usos dos ponteiros, passando por questies de género, classe social, distingdes entre piiblico e privado, simbologias do poder. Reporto-me, também, as atuais propagandas nos relogios piblicos e privados. Atris dos ponteitos, é comum a colocacio de informes publicititios, Trata-se de um recurso que extiapola a propagacio do consumo, enteando, sem pndoses, na propaganda da fé. Afinal, nfo é dificil encontear no comércio de eletrodomésticos a existncia de celégios de plistico com a figura de um santo atras dos ponteitos. E, nesse caso, nem é preciso dizer que ha sempre um fro no rosto da imagem, quase sempre no natiz, evidenciando que a légica de funcionamento dos objetos nas sociedades sempre foge de regtas congeladas, Outro desdobramento possivel para o exercicio € comparar 0 tempo mecinico do relégio com a nocio de tempo de outras culturas. Se observarmos a temporalidade vivida pelos chamados “‘indios”, veremos que hi uma considecivel distincia entre o que somos ¢ © que eles sio, dando a nés a possibilidade de pensar sobre o quanto ha de gloria e malvadeza em nossa prdpria esperiéacia de contas as horas. Somos cativos do tempo? Como esse sentido de prisio foi se tomnando possivel? Como o relégio transformou-se em objeto noumal e necessitio? ‘Vale ainda breve mencio ao emprego de certos objetos (como 0 préptio copo BEZERRA DE MENESES, Ulpiano. Do teatro da meméria 20 laboratério da Histéra: a exposicio suseolégica e 0 conhecimento histbrico. Anais do Museu Paulista, So Paulo, Nova Série, v. 2, 1994, . 32. Revista Hlictorar, Vol. 08, N. 14, Ano 2016.1 p. 70-93. 85 Francisco Réejs Lopes Ramos plistico) para entabular didlogos interdisciplinares, a exemplo dos relacionados & educagio ambiental. Um objeto descartivel tem sen valor de uso aviltado, seduzido, depreciado pela snpidez de seu consumo /destruicio, mas sua matésia-prima cobra e dé a ver 0 alto custo social natural da produgio fabril massificada: 0 plistico, que em um momento fugaz era objeto, ¢ logo depois viron lixo, requer algumas centenas de anos para se decompor no meio ambiente, pois lo € biodegsadiivel. Isso, obviamente, implica em discusses sobre o estatuto do objeto na sociedade de consumo. Nesse sentido, é plansivel discutir a cxiagio de “Museus do Consumo”, que setiam, em certo sentido, a mesma coisa de “Memoriais do Lixo”. Afinal, a sociedade de consumo, na ‘qual vivernos, se faz na medida em que produz uma sociedade do lixo. Além de ser “meio de vida” para milhases de moradores das petiferias, 0 lixo expée e esconde uma multiplicidade de vivéncias com os objetos. Objetos que so restos do consumo, on melhor, objetos que jé foram definitivamente consumidos dio uma reviravolta e comecam a despestar uma série de consnmos, fem certo sentido, inusitada, de uma ctiatividade anénima que se compée nas titicas de sobrevivéncia. Nas casas da petiferia, em sua propria constituicio ou em objetos de uso doméstico, esti a infinita presenea dos materias jé gastos pela sociedade de consumo: plisticos, vidtos, latas, papéis, papeldes, bortachas, fertos, aluminio. Garrafas de plistico ou vidro transmutam-se em secipientes utiitisios on adounos; latas vitam copos ou a pasede da casa; coisas de plisticos geram flores de plistico; mdo é recortado, sefeito, reposto, repintado, mdo é (te)formado, em ‘uma dinimica permanente ¢ proviséria, de vida e morte, de esquecimento e meméria, profianda e A flor da pele, imanente e transcendente, A sociedade de consumo é a sociedade do descartivel somente para uma parcela da sociedade: os que tém dinheiro para consumir. Para a grande maioria, o descartivel é a possibilidade de sestitir a vida dos objetos, dando-Ihes um pequeno valor monetixio ou novas, utilidades. O objeto finado transfiguin-se em objeto ressuscitado. Mas tudo continua tiansitétio, de ponca durabilidade, e © lixo utilizado com ponco tempo volta ao lixo initil, mas que talvez, ainda possa ser ttil em alguma inchistsia de seciclagem. Na sociedade cheia de objetos, novos on com novos formatos, ha um imenso vazio, Temos, entio, um paradoxo inevitivel: a proliferacio dos objetos cxia, a0 mesmo tempo, uma deliberada perda de dusabilidade, uma presenca que se sealiza na auséncia programada. Os objetos ja nascem pain moter rapidamente, em nome do “avanco tecnolégico”, do “novo modelo”, do “conforto”, da “beleza” e da “satide” dos “nsuétios”. O obitnario das invengoes cxesce vertiginosamente. Na medida em que tem intima selacio com as mazelas e glérias das RAMOS, Francisco Régis Lopes. A Danacao do Objeto.. Op. cit. Revita Hisorar, Vol. 08, N. 14, Ano 2016.1, p. 70-93 OBJETO GERADOR: Consideragées sobre 0 musen e a cultura material no ensina de bistria, 86 subjetividades contemporineas, a custa dusagio dos objetos deve necessariamente ocupar um Ingar de destaque nas reflexdes sobre os feitos e as faltas dos museus (¢ das aulas) de histéxia E nilo se tata apenas de desenvolver tabalhos com temiticas mais especificas, como “amsen do telefone”, “amsen do brinquedo” on “memorial do lixo”. Ao pér em cena a necessidade de coletar, conservar e expor objetos da atualidade, os museus nao podem fugic do debate sobre os sentidos dos objetos na “sociedade de consumo”, levando em consideracio a grande complexidade que reside no préptio desenvolvimento do capitalismo. Ja que no ensino de historia por meio de objetos o lixo nio pode faltar, vale a pena Gitar uma exénica de Lnis Fernando Verissimo. Trata-se do dilogo entse a senhora do 601 e © senhor do 612, quando se encontraram pela primeira vez. Estavam na fea de servigo, “cada um com seu pacote de lixo”. Aproveitando a situacio, ela fe2 2 ponte entre a polidez qnase anénima do “Bom dia” e uma confissio quase repentina: “Desculpe a minha indiscricio, mas tenho visto © seu lixo..”. A partir dai, os objetos comegam a falar, ou melhor, transformam-se na via de acesso entre dois desconhecidos, que ja conversavam, mas sem palavras, - Reparei que nunca é muito. Sua familia dever ser pequena. - Na verdade son s6 eu, - Mmmm. Notei também que 0 senhor usa mnita comida em lata ~ E que eu tenho que fazer minha prépria comida. E como aio sei cozinhat... - Entendo, A senhora também. - Me chame de voc’. - Vocé também perdoe a minha indiscrigio, mas tenho visto alguns restos de comida em seu lixo. Champignons, coisas assim. - E que ev gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas como moro sozinha, As vezes sobra ~ A senhora... Vocé niio tem familia? ~ Tenho, mas niio aqui. - No Espitito Santo. - Como € que voré sabe? ‘Yejo uns envelopes no seu lixo. Do Espitito Santo, -E, Mamie escreve todas as semanas, - Ela é professora? ~ Isso € incxivel! Como foi que voed adivinhou? ~ Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora - O senor nio recebe mnitas cartas. A julgar pelo seu liso. -Pois é..7 No modo pelo qual o testo se constitui, do comeco ao fim, ha uma impressionante trama de ligagdes entre sujeitos ¢ objetos, uma complexa rede de conexdes que pode sair de coisas aparentemente inanimadas, como se o lixo fosse um museu de novidades, porque o acervo " VERISSIMO, Luis Femando, O Analista de Boge. Porto Alegre: LPM Editors, 1982, p. 83 Revista Hlictorar, Vol. 08, N. 14, Ano 2016.1 p. 70-93. a7 Francisco Réejs Lopes Ramos estarin em constante renovacio e, em cada visita, tudo seria visto pela primeita e tinica vez. Depois do telegrama amassado, seguido de mnitas carteiras de cigarro, a trama fica ‘Voce ousada e quem dispara é ele, ansioso pain saber até onde a conversa podetia chegar: brigou com o namorado, certo?”. Ela, no mesmo sitmo, engata uma pergunta “Tsso vocé também descobrin no lixo?” e secebe uma resposta mais on menos esperada: “Primeito 0 buqué de flores, com 0 cartiozinho, jogado fora. Depois, muito lengo de papel”. Mas nada é tio simples assim. Verissimo sabe disso como poncos e, no calor da fronteita entre 0 piblico e 0 privado, insere as devidas ambignidades diante de lencinhos, fotografias e ontras materialidades, Fi riba ante (pao ~ Mas hoje ainda tem uns lencinhos. oH qoé @itedtoa cant na pouto de-coiiak - Ah, ~ Vejo muita revista de palavras exnzadas no seu lixo. ‘Sim, Bem. Eu fico muito em casa. Nio saio muito, Sabe como €. - Namorada? -Nio. - Mas ha uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu liso. Até bonitinha. - En estava limpando tumas gavetas. Coisa antiga - Vocé nao rasgon a fotografia. Isso significa que, no fundo, vocé quer que ela volte. - Voc# jd est analisando o men liso! - Nao posso negar que o seu lixo me interesson. - Engracado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostatia de conhecé-la. Acho que foia poesia - Nao! Voc vin meus poemas? - Vie gostei muito. - Mas sio muito rainst - Se voce achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. Eles s6 estavam dobrados. - Se en souibesse que voce ia ler. ~ S6 nio fiquei com eles porque, afinal, estasia roubando. Se bem que, nfo sei: 0 lixo da pessoa ainda é propriedade dela? ~ Acho que nao. Lixo é dominio piiblico, - Vocé tem razao, Através do lixo, o particular se torna pitblico. O qne sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo & comunitatio. Ea nossa parte mais social. Sexi isso? - Bom, ai voce ja esta indo fando demais no lixo. Acho que.. - Ontem, no seu ix - O qué? ~ Me enganei, ou exam cascas de camatio’ 21 E assim, nessa peleja que fascina e prende o leitor, a troca de palavras continua. No final das contas, 0 casal encontra nas cascas de camatio 0 tio desejado motivo para uma nova conversa, Encontro que iria dar, mais cedo ou mais tarde, coisas novas no liso. ** VERisSIMO, Luis Femando, © Anolista de Bagé...OP. cit. 85, Revista Hisorar, Vol. 08, N. 14, Ano 2016.1. p. 70-93. OBJETO GERADOR: Consideragées sobre 0 musen e a cultura material no ensina de bistria, 88 Imagino que € nesse jogo do cotidiano apresentado por Verissimo que reside a matéria-prima para 0 uso dos objetos no ensino de historia, E nfo ser exagero concluir que a literatura tem um papel fundamental para fazer vinculos entre o ensino de Histéria e a Historia dos objetos Nao se trata, obviamente, de apenas fazer do objeto uma fonte de informacio sobre © sujeito. Isso pode ser 0 primeizo passo. A exénica de Luiz Femando Verissimo, por exemplo, € significativa como abertura da percepcio para as relagdes entre os seres hnmanos e suas coisas materiais, mas isso deve ser apenas o comeco. Toma-se necessitio problematizar as relagdes sociais mediadas pela cultura material. © trabalho dos objetos através da literatura no pressupde 0 descarte da interpretagio histéria. Pelo contuisio: a interpretaglo da histéria social da culmea continua sendo a base, é sobre esta base que a literatusa é convocada pasa alargar a poténcia do ensino de historia, © objeto: postica e narrativa As interconexées entte literatura, histéria e objetos podem ser um caminho promissor para aulas de histéria. A literatura, nesse caso, tetia a missio de absir a pescepeio, funcionatia como uma espécie de musen onde os objetos estio expostos de uma maneisa muito especial: nas tramas da narrativa, isto é, em fancionamento cotidiano. O uso da literatusa parece-me indispensivel para qualquer atividade em tomo do uso dos objetos no ensino de histéria, na medida em que ressalta as temporalidades dos objetos, na medida em aque seafisma que a matéria-prima de cada artefato é 0 tempo no qual ele gana existéncia. ‘Um sapato, por exemplo, nio deve ficar no plano de uma defini¢fo absteata. E preciso inseticlo no tempo. Uma das maneiras de fazer essa insescio € coloci-lo numa trama nanrativa. Assim, enredado no tempo, o sapato passa a ter a possibilidade de ser tiatado como documento histésico. Nas narrativas, 0s objetos ganham vida juntamente com a vida dos sujeitos. Um sapato, para continuar com o mesmo exemplo, deisa de ser uma generalidade © ganha substincia existencial. Nesse sentido, vale a pena lembrar o depoimento de Primo Levi sobre uma situacdo extrema, a sta vida no campo de concentiacio: “(.) Aprendemos 0 valor dos alimentos; nés também, agora, raspamos fando da gamela, e a seguramos debaixo do queixo quando comemos pio, para nio desperdicar migalhas. Nés também, agora, sabemos que iio € a mesma coisa receber uma concha de sopa retirada da superticie, ov do fundo do panelio, e jé estamos em condicio de calcular, na base da capacidade dos diversos paneldes, qual é 0 Ingar mais conveniente quando entramos na fila. (.) Aprendemos que tudo serve: 0 pedaco de Revista Hlictorar, Vol. 08, N. 14, Ano 2016.1 p. 70-93. 89 Francisco Réejs Lopes Ramos suame, para amaxzar 0s sapatos; 05 tuapos, para envolver os pés 0 papel, pasa forzar (embora proibida) 0 casaco contia o frio. Aprendemos que, por outso lado, tudo pode sex rombado, aliés, que é sttomaticamente soubado a0 menor descuido, e pata evitar isso tivemos que aprender a arte de dormir apoiando a cabega numa trousa feita com 0 casaco e contendlo todos os nossos pertences, da gamela até os sapatos. (..) E niio 6 de crer que os sapatos signifiqnem ponco, na vida do Campo. A morte comeca pelos sapatos. Eles se xevelatam, para a maiosia de nés, vesdadeiros instramentos de tortura que, apés umas horas de mascha, csiavam fetidas dolorosas, sujeitas a infeccio na cesta. A gente, entio, caminha como se tivesse uma bola de fe1so amatada no pé (dai, a estranha andadura do exéscito de fantasmas que a cada noite voltxva em formacio de marcha); sempre chega por siltimo, e sempre apanha; se perseguido, nfo consegue figir; seus pés incham e, quanto mais incham, ais insuportével toma-se 0 attito com a madeita e a lona dos sapatos. Entio, s6 resta 0 hospital, mas entrar no hospital com o diagnéstico dice Fisse (pés inchados) € sumamente petigoso, jé que todos sabem (¢ especialmente 03 SS) que essa doenca, aqui, no da para curat."* Os sapatos, aliés, os ptéprios sapatos dos estudantes em uma aula de histéria podem set, portanto, objetos geradores para o estndo de muitos temas, inclusive o nazismo. Estudo em uum sentido profundo, por meio do desenvolvimento de uma consciéneia histérica e a partir de objetos do presente, relacionando-os com outias simacdes, criando assim teflexées sobre a historicidade do existente. Desse modo, o saber histotico deixa de ser @ histdria dos outtos, para se transformar na nossa hist6xia, feita de mudancas e permanéncias, semelhancas e diferencas, mas sempre sefeita por seres humanos em contato com objetos, nas mais varindas simacées, ctiando e destruindo poderes de vida e morte. Isso significa tratar © objeto como documento hist6rico a ser estudado por meio de problematicas historicamente fundamentadas. Para reduzir um complicado problema a sta minima espressio, no nivel empitico, pode-se dizer que documento é um suposte de informacio. Hii, em certas sociedades, como as complexas, uma categoria especitica de objetos que so documentos de nascenca, sio projetados para registrar informacio, No entanto, qualquer objeto pode funcionar como documento e mesmo o documento de nascenca pode fomecer informagdes jamais previstas em sua propsamacio. Se, a0 invés de usar ‘uma caneta para esctever, Ihe sio colocadas questdes sobre o que seus atiibutos informam relativamente @ sua matéria-prima e tespectivo Processamento, a tecnologia e condicdes sociais de fabrieacio, forma, fangio, significacto etc. — este objeto utiltirio esta sendo empregado como documento. (Observe-se, pois, que o documento sempre se define em relagio a um terceiro, extemo a seu horizonte original). O que fiz de ‘um objeto documento nio pois, uma carga latente, definida, de informagio que ele encesve, pronta para ser extraida, como 0 sumo de limio, © documento nao tem em si sua prdptin identidade, LEVI, Primo, E isto wm homem? .. Op. ct. p. 32. Revita Hisorar, Vol. 08, N. 14, Ano 2016.1, p. 70-93 OBJETO GERADOR: Consideragées sobre 0 musen e a cultura material no ensina de bistria, 90 provisoriamente indisponivel, até que 0 dsculo metodolégico do historiador resgate a Bela Adormecida de sen sono programatico. E, pois, a questio do conhecimento que ctia 0 sistema documental. O hhistoriador nfo faz 0 documento falar: € 0 historiador quem fala e a explicitacio de seus critétios e procedimentos é fandamental para definie © alcance de sua fala. Toda operacio com documentos, portanto, ¢ de natuseza retériea. Nao hi por que o documento material deva escapar destas trilhas, que casactetizam qualquer pesquisa histéxica™ Persctar objetos expostos no museu, ou em uma sala de aula, nio ¢ um oficio de analisar © que passou, mas interpretar a presenca do pretérito, em suas muiltiplas dimensdes eager. parse (fie apearas web, RCM RES ReeRAN eaTeeE ate vidas latentes, prolongamentos do compo, acordos e nupturas diante do espago e do tempo. Os poetas ensinam que os objetos nio estilo tigidamente sepasados da pele, da came icnecsada de sangael B parissc ques caixto domonop element pane do exper O enterro sempre deixa pedacos: (Os objetos sobrevivem 20 motto: 05 sapatos, © 1el6gio, 0s dculos sobrevivem 20 corpo @ solitarios restam sem confoxto. Alguns deles, como os livros, Ficam com o destino torto. Parecem fillios deserdados ‘ou folhas secas no hotto. As jdias perdem o builho embora em ontio rosto, Nao deveriam deixar pelo mundo espalliados 08 objetos drfios do mosto, pois eles sio, na verdade, fiagmentos de um corpo. Antes de mostrar objetos, o museu é 0 Ingar do corpo exposto. Ao saber que nas esposigdes hd pedagos amputados, o ensino de histéxia com objetos comeca a ganhar ® BEZERRA DE MENESES, Uliano, Meméria e Cultura Material: Documentos Pessoais no Espago Piblico. Revista Estudos Historicos. Rio de Janciro: Fundagio Getilio Vargas, v. 11, n. 21, 1998, p. 95. * SANT'ANNA, Affonso Romano de. Jnervalo amoroso e outros poemas escolhidos. Porto Alegre: L&PM, 1999, p. 78 Revista Hlictorar, Vol. 08, N. 14, Ano 2016.1 p. 70-93. ot Francisco Réejs Lopes Ramos profundidade existencial, Em sua trama de conflitos historicamente engendsados, © objeto esta entre 0 passado © © futuro — presenca de temporalidades. Presenga de tempos em prolongamentos do nosso corpo. Jean Brun arguments, a partir do pensamento de Bergson, que 095 nossos érgios sio instrumentos naturais ¢ os nossos instrumentos sio rgios attificiais. A fescamenta, por exemplo, continua 0 braco. Os utensilios da humanidade sio, postanto, prolongamentos do corpo humano.” Nesse sentido, ¢ impressionante notar que, em certas ocasides, a literatura $6 consegue falar de certas configuragdes existenciais do ser humano com a ajuda de referéncias do mundo dos inanimados. Cito um caso, intimamente ligado a um objeto: 0 automével. O antor é Mia Couto: Crzamo-nos com um Insuoso automével enterrado no areal. Quem traria viatura da cidade para uma ilha sem estrada? — Ola, ¢ 0 Tio Ultimio! — e acenam, ‘Meu Tio Ultimio, todos sabem, 6 gente grande na capital, despende negécios e vai politicando consoante as conveniéncias. A politica 4 a arte de mentir tio mal que 36 pode ser desmentida por outros politicos Ultimio sempre espalhon enganos e parece ter Ineradlo, acumnlando aliangas ¢ influéncias. No entanto, ele ali se apresenta frigil, a mercé de uma pobre mio, No tractor comentam vastamente 0 casro afocinhado, sodas enfronhadas na areia. Mas nio param. Ainda ha alguns que insistem nos devetes soliditios. Mas Fulano Malta é terminante: — Ele que se desenterre — é sua arreganhada sentenca.? Pensando nesse carto preso, imagino que se toma invivel falar de certos sujeitos sem falar de cestos objetos, que se toma impossivel se refesir a determinados compostamentos sem mencionar artefatos. Isso, nio tenho drividas, nio € somente um recurso estilistico do texto ficcional. Trata-se, também, de petceber que os Immanos se fazem por meio dos innmanos, que 0s compostamentos se sealizam por meio de utensilios. Veja-se, por exemplo, mais um parigrafo do romance Onincas Borba. ( parigrafo se inicia com a acto de uma pessoa: “Um ctiado trouxe o café”. A seguir © foco se desloca para 0s objetos: “Rubio pegou na xicara e, enquanto the deitava acitcar, ia disfarcadamente mirando a bandeja, que era de pata lavrada”. Dai o tema passa a ser a matéria com a qual os objetos foram feitos: “Prata, ouro, eram os metais que amava de coracio; nfo gostava de bronze, mas 0 amigo Palha disse-the que era matésia de preco: e assim se explica este par de figuras que esté na sala, um Mefist6feles e um Fausto”. No mesmo parigrafo, e alargando a itonia com a qual o autor escreve, a nattativa ® BRUN, Jean. A Mio eo Fupirito. Lisboa: Edigdes 70, 1991, p. 64 ® COUTO, Mia. O outro pé da sereia, Sao Paul: Companhia das Letras, 2006, p. 28. Revista Hisorar, Vol. 08, N. 14, Ano 2016.1. p. 70-93. OBJETO GERADOR: Consideragées sobre 0 musen e a cultura material no ensina de bistria, 92 passa dos objetos para pessoas como se elas também fossem objetos, ¢ ainda mais, também feitos dde matétias que podem ser nobres on nfo, a depender da moda em vigor: O leitor fica sabendo que 0 ciiado era espanhol, que Rubio resistin para aceité-lo e até argnmenton que “estava acostimando aos seus crioulos de Minas". Mas, no final das contas, cedeu: “o amigo Palha insistin, demonstrando-the a necessidade de ter cxiados brancos”* O possuidor, quando esti possuindo, também é possnido. O usnisio, quando esti usando, também é usado, © fabricante, quando esté fabricando, também € fabricado. A ficgio, mais do que qualquer outra area, sabe muito bem disso. E é exatamente isso que faz da literatura uma via de acesso pasa a constmugio de problemiticas histéxicas diante dos objetos. Quando o museu se coloca como instituicio que expde estudos de cultura material, pressupde-se exatamente isso: a vida que hé nos objetos, a historicidade constitativa dos objetos, que permite novas aventuras para o ato de conhecer 0 nosso mundo ¢ 0 mundo de ontros tempos e outros espacos, Bibliografia ASSIS, Machado de. Quineas Borba. Sio Paulo: Mastin Claset, 2012. BALANDIER, Georges. © Déiale — para finalzar o século XX. Rio de Jancico: Bestrand Brasil, 1999. BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. Sao Prulo: Perspectiva, 1993. _-A suciedade de consnme, Lisboa: Ed. 70, 1995. BEZERRA DE MENEZES, Ulpiano. Do teatro da meméria a0 Inboratério da Historia: a exposicio muscolégica e 0 conhecimento histético. Anaés do Museu Paulista, Si0 Paulo, Nova Sétie,v. 2, 1994. (© museu de cidade e a consciéncia da cidade. In: Maseus & Cidades— tive do Seurinrio Tniernacional. Rio de Janeizo: Musen Histéxico Nacional, 2004. BRUN, Jean. 4 Mio e 0 Espinite. Lisbon: Edicdes 70, 1991, p. 64. 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Revista Hlictorar, Vol. 08, N. 14, Ano 2016.1 p. 70-93. 93 Francisco Réejs Lopes Ramos MOTTA, Lia. A aproptiacio do pattiménio urbano: do estético-estilisico nacional ao consumo ‘visual global. In: Arantes, Antdnio Augusto (Org). O esparo da dijerenga. Campinas: Papicus, 2000. HUYSSEN, Andreas. Escapando da amnésia: 0 museu como cultura de massa. Revistr do Pairimdnio Histrio e Artiste Nacional, Rio de Janeiro, n.23, 1994, RAMOS, Francisco Régis Lopes. A danazio do objeto: ¢ museu no ensino de bistria. Chapec: Editora ‘Aggos, 2004. SARLO, Beatsiz. Cenas da vida pér-moderna, Rio de Janeico: Ed. UFRJ, 2000. SANTOS, Milton. Territiio ¢ socedade — entrevista com Milton Santos. Sio Paulo: Persen Abramo, 2000. SANT'ANNA, Affonso Romano de. Infernal amoroso ¢ outras poemas exolbides. Porto Alegre: LAPM, 1999. VARINE, Hugues de, Le musée au service de Thomme et du développement. (1969) In: Desvallées, Andké. Vague une anthologie de la nouvelle museologie. Paris: Editions WMNES,, 1992. 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