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aciéncia e as humanidades: a funcéo renovadora da indagacao histérica ‘Allen G. Debus RESUMO — Neste artigo, o Prof. Debus defende a tese de que a Hist6ria da Ciéncia 6, essencialmente, ‘uma sub-4rea da Hist6ria, analisando as implicagSes metodolégicas da mesma. Partindo dos trabalhos, que se tornaram cldssicos, de historiadores da ciéncia co- mo Duhem, Sarton, Koyré, Thorndike, Butterfield, Clagett, Pagel, Kuhn, dentre outros, o autor identifica uma tendéncia que se afirmaria atualmente em pes- quisas mais sensfveis a0 contexto cultural ¢ social em que se dé 0 trabalho cienttfico, ¢ de cunho menos tée- nico ¢ internalista. Esta tendéncia apontaria para pro- plemas metodol6gicos comuns as dreas de Hist6ria da Cigncia e Hist6ria, reforcando a recomendagio do autor de uma maior aproximago entre ambas, que se traduza inclusive no plano institucional. Todos nés sabemos que as interpretagées tradicionais foram freqiientemente desafiadas nas iiltimas trés ou quatro décadas... por muitas e variadas perspectivas. Quanto a mim, creio que as interpretagées tradicionais, fundamenta- das na historia politica, econémica ¢ intelectual, provavelmente continuardo a ser 0 alicerce de nossa profiss4o. Todavia, enfoques revisionistas exigem e continuario a exigit que sejam ouvi- dos. Nas iiltimas décadas, muitos desses desa- fios provieram de profissionais mais jovens, que procuraram desenvolver uma hist6ria capaz de melhor refletir os problemas sociais que atual- * Palestra preparada para a 10! Mid-America Conference on Hisiory, realizada em Lawrence, Estado de Kansas, em 23 4e setembro de 1988. ** Nota dos Editores: No nos foi possfvel obter, junto a0 au~ tor, todos os dados essenciais das referéncias bibliogréficas artigo, Nio obstante, os editores consideraram opor- ‘tuna a sua publicagio, pela temética abordada — uma hist6= ‘ia da historiografia contemporfinea da ciéncia, nas suas v4~ is tendéncias metodol6gicas — ¢ pela indiscutfvel impor- Hncia do Prof. Debus nesta érea. Queremos agradecer & Prof* Ana Maria Goldfarb pela cuidadosa reconstituigo a lista bibliogrética e& tradutora, Vera Cecflia Machline. Aneninttiiint mente enfrentamos. Alias, chego a duvidar se as sess6es versando sobre temas como a histéria das mulheres ou a cultura do fndio norte-ameri- ano, que hoje temos em encontros de historia- dores, poderiam ter sido organi em en contros similares trinta anos atrés. Ainda, & medida que os interesses nacionais tornaram-se globais, mais e mais historiadores passam a considerar a hist6ria mundial ¢ éreas geogréficas que antes despertavam relativa- mente pouco interesse. E, hoje, so poucos 0s departamentos académicos norte-americanos a concentrarem-se exclusivamente na histéria dos Estados Unidos ¢ da Europa Ocidental. Os razoavelmente bons tempos em meados dos anos 60 favoreceram a expansio dos de- partamentos de hist6ria de muitas escolas norte~ americanas para novas reas, que nao tinham representagdo anteriormente. Algumas dessas reas eram notadamente interdisciplinares. Uma delas era a Histéria da Ciéncia, ¢ ser4 sobre ela que ora irei tratar. Meu objetivo nao é simples- mente discorrer sobre 0 desenvolvimento desta rea particular da historia, E, isto sim, sugerir que a Histéria da Ciéncia seria como que um microcosmo de um macrocosme, isto é, a Hist6- ria em sua totalidade. Em outras palavras, gos- taria de sugerir que as forcas ¢ as interpretagdes desafiando os historiadores da ciéncia nas ilti- mas trés décadas refletem muitos dos problemas recorrentes a todos os historiadores neste mes- mo perfodo. Embora nfo pretenda fazer reminiscéncias, gostaria de dizer algumas palavras sobre minha formacfio. Recebi o titulo de Mestre em Hist6ria pela Universidade de Indiana em 1949 e, como havia formado-me originalmente em Quimica, dediquei-me a pesquisas nesta érea durante al- guns anos antes de voltar a escola de pés-gra- duacdo em Harvard no campo da hist6ria da ci€ncia em 1956. Naquela €poca, o programa Revista da SBHC, V. 5, p. 3-13, 1991 xa semi-auronom © UNM Ge Hist6ria. Re frouxas com o Dé cebi 0 Ca sh seguir, ing cnde tens F tO, rer, 0 dente do departaret Johnson, A seu Ver aposentar-se> €T% 1” oprama de hist6ria Oo" nifeleo de qualquer Ls Msria dos Estados Uni- sistente deveria ser a HOST artamento no de- rfodos hist6ricos inco- ‘os limitados recursos fi- 1m corpo docente interessado em freas geosréficas ee Johnson na presidéncia 0 interesses bem mais am- plos. Ele queria desenvolver o Departamento justamente com a introducdo dessas dreas “'e- x6ticas”, e encarregou-se de, pessoalmente, de- senvolver um programa de Hist6ria Mundial. E compreensfvel que ele encorajasse a contratagao de professores novos ¢ interessados em reas recentes ¢ que nfo haviam sido representadas no Departamento anteriormente. Eu fui contra- tado na primavera de 1961, talvez ndo sem certa reserva, uma vez que apenas um tergo do meu tempo era dedicado ao Departamento ~ € 0 res- tante, por alguns anos, foi partilhado com o programa de Ciéncias Fisicas da faculdade, Lembro-me bem das reunibes departamen- tais no infcio dos anos 60. Alguns dos estadis- tas mais idosos advogavam acaloradamente a necessidade de manter-se Chicago como bastiio dos estudos histéricos tradicionsia Um membro sugeriu que as 4reas ex6ticas — e cle mencionou especificamente a histéria da Africa como um exemplo ~ fossem deixadas para as eae universidades. Todavia, como William cill pensava diferentemente, ele encorajou gar Neill, que sucedeu a coutono de 1961, tinha Isto posto, agora gostari, a Historia da Cincia se Hist6ria. Embora a discipling pyr cat seja bastante antiga, apenas pct be nou-se academicamente respejtge Nee camente meados deste séowio wh Aten" era uma disciplina adequada ies ra 0s cientistas que se voltavam ‘Palen de suas especialidades no final qo" 9 emg, ras, quando seus dias de pesquisa ¢, °°, va haviam terminado. Lembo. Hea, quando era universitério na Nortnng® % versity © pés-graduando em Bloons: Ui, diana, os departamentos de Qufiica, 4 mia e Matemética ofereciam curscg historia de suas respectivas Sobre t6ria “de verdade” era oferecida pelo Dey,” mento de Hist6ria, onde uma palesua noe sobre a Revolucdo Cientifica um cue rhe Civilizagio Ocidental ia A Poderia eventualment, Estranhamente, as relagGes entre a Histii, da Ciéncia e a Hist6ria no foram suficiene, mente desenvolvidas pelo pequeno niinero historiadores da ciéncia a princfpio. Cae Sarton, seu iniciador, provavelmente nio ficaria feliz se ouvisse isso. Porém, 0 que pens. Este matemético belga dedicou sua vide 3 His tOria da Ciéncia. Fundou 0 periédico /sisen 1912 € escreveu uma enorme quantidade de l- vros, artigos e resengdes. Também, organizot encontros internacionais ¢ manteve um vise correspondéncia, o que lhe permitiu estabelee uma rede internacional de pessoas com inte ses similares. Contudo, no raro, seu entusis mo levou-o a insinuar seu proprio posto & vista na visio dos outros. z Sarton era um positivista que revere © trabalho de Auguste Comte. Definia como um “conhecimento positivo sists do”, ao que acrescentava: “nosso eee jetivo nfo € simplesmente registrar a isoladas, mas, isto sim, explicar 0 POSS, pensamento cientffico, 0 desenvolvim™t iss dual da consciéncia humana, aquela (Oi. deliberada de compreendermos © mos nossa parte na evolugio errr 0 meiro volume de sua obra Ine" cos History of Science (1927), ele Habe. aks zer sobre o perfodo anterior 208 2 que a ciéncia Oriental, A cigncia ¢ as humanidades: a funcio renovadora da ‘indagaco hist6ri rica a da ciéneia verdadeira, ou seja, uma eon 1 concebemos hoje, Discig Copan ‘antigamente integravam a visio humana nas a ya, © que dcixaram de fazé-lo atual- a ser seguramente ignoradas, penis Pe “pseudo-ciéncias” e consideradas ciprndes para integrarem © anedotirio da sorigia; jamais poderiam merecet a considera- Bato genuo histriador. A propésito, ele re sie ndou que 0 historiador da ciéncia nfo de- veria dedicar muita atengo ao estudo de supersticéo ‘magia, sto 6,0 irracional, porque isto néo o ajuda muito a compreender © progresso humano, A thagia 6, em esséncia, retr6gada e conservadora: a Géncia é, essencialmente, progressista; a primeira retrocede; a segunda avanca. Néo podemos lidar com ambos os movimentos simultaneamente, ex- ceto para apontarmos o constante conflito entre eles, mas mesmo isso nfo 6 muito instrutivo, uma ver que este conflito raramente variou ao longo dos séculos. Como a insensatez humana retr6~ ‘ada, imukével ¢ ilimitada a um s6 tempo, seu es- tudo é uma empresa va. Nao se deveria incentivar 1 delimitago do que € indefinido, nem a investi- da hist6ria do que nfo se desenvolveu Garton, 1920). Em suma, a seu ver, somente as contribui- gées positivas das disciplinas fronteirigas deve- fiam ser estudadas. Por exemplo, a alquimia e a astrologia poderiam ser estudadas, desde que se encontrassem relagGes entre elas a quimica ou a astrologia “‘legitimas” nos textos analisados. J4 seus fundamentos conceptuais fantdsticos deveriam ser relegados. ‘A visio da ciéncia de Sarton valorizava a teoria. Para ele, a matemética ¢ as ciéncias fisi- cas altamente matematizadas eram as disciplinas mais nobres, enquanto que as aplicacGes priticas seriam de pouco interesse. Ele éscreveu: Os homens compreendem 0 mundo de modos distintos [...] alguns tm uma mente mais abstrata, € eles naturalmente pensam, em primeiro lugar, a unidade ¢ em Deus, na totalidade, na infinitude © em outros conceitos como estes, enquanto que as mentes de outros homens sfio concretas ¢ CO- gitam sobre a satide ¢ a doenga, 0 lucro ¢ 0 pre Julzo. Eles inventam dispositivos ¢ remédios; es- Go menos interessados em saber sobre alguma coisa do que em aplicar 0 pouco que j sabiam em Problemas préticos; tentam fazer as coisas fun- cionarem e renderem, para que possam curar ¢ [AE 08 do segue th Préticos e eis, ee eae Vou sera miopa de ee @ Hist roe 0 sonhador “preguicoso", proven seen a uations * provou também que geralmente estfo enganados. © historiador da ciéncia lida com ambos os tipos Wd Si le est ropenso a sbordinar prin Som nem a sacrificar os assim cha- sonhadores em prol dos engenheiros, dos Professores, ou dos médicos (ébid.). _ Sarton acreditava que a Hist6ria da Cigncia seria a mais valiosa forma de histéria porque, sozinha, apresentava a inspiradora est6ria do Progresso humano, Embora ele cresse que quem Pretendia tornar-se historiador da ciéncia deve- ria estudar tanto hist6ria como ciéncia, parece que ele também supunha que a hist6ria da cién- cia deveria ser uma Grea independente, e nio apenas parte de um departamento tradicional de historia. Em 1956, quando ingressei no Programa de P6s-graduagio em Histéria da Ciéncia em Har- vard, Sarton havia falecido recentemente. Em- bora ele tivesse lecionado naquele programa du- ante muitos anos, seu nome nfo era menciona- do com freqiiéncia. Em vez da sua obra, 08 pro- fessores mais comumente referiam-se aos tra- balhos de Alexandre Koyré como modelares. Este fil6sofo da cigncia, de nacionalidade russa, que viveu a maioria dos seus dltimos anos em Paris, insistiu num vinculo estreito entre a cién- cia e 0 pensamento filos6fico. A hist6ria tam- bém era importante para ele, uma vez que ape- has através dela divisarfamos o “iprogresso glo- rioso” das idéias cientfficas. Como os interesses de Koyré centravam-se na astronomia ¢ na fisi- ca dos movimentos dos séculos XVI ¢ XVII, a seu ver, a Revoluco Cientifica nao deveria se explicada a partir nem das mudangas sociais, nem do desenvolvimento do método experi- mental. Para ele, a Revolucio Cientffica foi, de Certa forma, o triunfo de Platio sobre Arist6te- les na Renascenga. Mesmo que Sarton discor- dasse de Koyré quanto A importncia de Platéo no nascimento da ciéncia moderna, ambos con- cordariam que a temética da Hist6ria da Ciéncia seria a ciéncia, e que ela era a est6ria do pro- gresso. Em meados deste século, parecia que 0 fu- turo da Histéria da Ciéncia seria o estabeleci- ‘mento de programas independentes ou semi-in- dependentes. O impacto das idéias de Koyré na Revista da SBHC, V. 5, p. 3-13, 1991 4rea resultou em alguns programas de Hist6ria ¢ Filosofia da Ciéncia separados e independentes dos departamentos tradicionais de historia ¢ fi- losofia. Até entéo, poucos historiadores haviam dado atengao a esta frea. A grande excecio foi Lynn Thorndike, da Universidade de Columbia, cuja obra monumental, de oito volumes, History of Magic and Experimental Science, foi publi- cada ao longo de um perfodo de 35 anos, entre 1923 e 1958. Todavia, o titulo da obra de ‘Thorndike denunciava seu interesse particular, de que a magia precederia a ciéncia, uma abor- dagem que tornava seu trabalho menos intores- sante para os historiadores da ciéncia que se- guiam a principal corrente de estudos da Epoca. Assim, por mais importante que este trabalho seja, inclusive nos dias de hoje, seu valor resu- me-se em ser basicamente uma fonte bibliogré- fica, Bem mais influente na Hist6ria da Ciéncia foi a publicacéo em 1949, sob o titulo The Ori- gins of Modern Science, 1300-1800, das poucas palestras do historiador Herbert Butterfield, da Universidade de Cambridge. Estas palestras, que haviam sido dadas no ano anterior, faziam um levantamento da entao recente literatura da rea. Obviamente, Butterfield era uma persona- lidade eminente entre os historiadores. Jé em 1931 ele tinha publicado um ensaio amplamente lido denominado “The Whig Interpretation of History”, onde ele argumentava que os historia dores, com efeito, tomaram partido, Eles orga~ nizaram suas hist6rias do ponto de vista do pre- sente, favoreceram inequivocamente os refor- madores protestantes dos séculos XVI e XVII, ¢ definiram “progress” a partir deste ponto de vista. Em termos polfticos, eles cram culpados de terem criado uma hist6ria “whiggish’’, ou Seja, uma hist6ria de acordo com a ética pro- gressista do partido britfnico dos Whigs. Estes historiadores tinham achado ser de bom alvitre darem um veredito, mas, ao fazerem isto, ha~ viam simplificado demasiadamente a rica com- plexidade das suas fontes. Opondo-se a isto, Butterfield escreveu: [...] néo cumpre ao historiador fazer 0 que po- derfamos denominar julgamentos de valores Sua fungo € descrever; ele [deve] permanece[r] imparcial entre cristios e muculmanos; nfo [deve] ‘sta(r] interessado nem numa nem noutra religifio, exceto quando estas interrelacionam-se com vidas humanas, (..] Ele resumiré posigéo que Ihe compete quando afastar-se dos julgamentos sim- Revista da SBHC, V. 5, p. 3-13, 1991 Allen G. Debus ples ¢ absolutos ¢ retornar 20 conterto histéy que embaralha tudo novamente. [..] Se a pigs” pode fazer alguma coisa, & lembrar-nog Fy complicagées, que solapam nossas certeras mostrar-nos que todos nossos ion ta simplesmente relativos a0 tempo e &s circunss® cias (1965). 3 Ambos, Sarton ¢ Koyré, consideravam 4 Hist6ria da Ciéncia em termos de progresso, 52 recorrermos A definicio de Butterfield, cig, também poderiam ser considerados historiade: res “‘whiggish’’. Todavia, como as palestras dy Butterfield em 1948 foram fundamentadas em esquisas recentes na rea, elas inevitavelments refletiram as mesmas interpretacdes whiggish que ele pretendeu evitar. Quando teve que lidar com a alquimia ¢ trabalho desenvolvido por van Helmont, um médico quimico belga do sé. culo XVII, Butterfield chegou a dizer que os comentadores de van Helmont do século XX so criaturas igualmente fabulosas, ¢ as coisas mais estranhas em Bacon afiguram-se racionalis- tas © modernas em comparacio. No tocante al- uimia, € mais diffcil descobrirmos 0 atual estado das coisas, uma vez que os historiadores que se especializaram nesta rea as vezes também pare- cem estar influenciados pela ira de Deus; afinal, arece que eles, assim como os que escrevem so- bre a controvérsia entre Bacon e Shakespeare, ou sobre a politica espanhola, [também] foram tin- turados pelo mesmo tipo de insanidade que Propuseram a descrever. Neste caso, Butterfield certamente nfo permaneceu imparcial entre “‘cristfos” e “mu- gulmanos”’; estava, com efeito, fazendo um jul- gamento de valores. Ainda, ele nfo se esforgou em integrar a hist6ria cientifica ¢ o contexto so- cial. Bem mais tarde, numa palestra em Har- vard, em 1959, Butterfield repetiu sua antiga idgia de que os historiadores deveriam cons- cientizar-se da Hist6ria da Ciéncia, mas sua hist6ria da ciéncia cra a de cunho positivist que ele havia aprendido h& mais de uma década antes. Para Butterfield, assim como para Sarton € Koyré, a Hist6ria da Ciéncia era uma rea 6° estudo internalista e altamente técnica. soe tia aos historiadores, nao aos historiadores ciéncia, aplic4-la em quest6es mais amplas- No infcio da década de 50, restavam ainds grandes hiatos na hist6ria da ciéncia. O tabt de Otto Neugebauer e seus alunos estava es ay cando a preencher algumas das lacunas 40 A ciéncia © as humanidades: a funcéo renovadora da indagagSo hist6rica so conhecimento das cincias fisicas no Oriente anteriormente 208 gregos, enquanto que a obra monumental de Joseph Needham, Science and Civilization in China, prometia Sha discussdo inédita e exaustiva sobre as con. tribuigdes dos chineses. O estudo precedente de Duhem, realizado em Franca, havia apontado a importiincia das criticas medievais a fisica aris- Biglica, ¢ suas idéias estavam sendo desenvol. ‘vidas por académicos alemies © norte-america. nos. Todavia, o fio da navalha da drea conti- nuava incindindo nas ciéncias fisicas até a época de Isaac Newton. Pesquisas sobre a ci&ncia do século XVIII cram representadas basicamente por estudos sobre Lavoisier ¢ a Revolucdo Quimica. Quanto ao século XIX, parece que sabia-se muito pouco, Em 1954, I. Berard Co- hen observou que [.] ap6s ultrapassarmos a fronteira entre os sé- culos XVIII ¢ XIX, no encontramos levanta- mentos de carter geral escritos de modo a ser- virem para o historiador das idéias. (...] Apenas 0 futuro poderé dizer se a hist6ria da ci€ncia sobre co século XIX poderé ser apresentada de modo 2 tomar-se significativa para o historiador em geral. ‘Trés anos mais tarde, Marshall Clagett reu- niu um grupo internacional de estudiosos na Universidade de Wisconsin para discutirem os entfo atuais problemas da histéria da ciéncia. Os trabalhos coligidos, que foram publicados em 1962, constituem a melhor obra sobre a si- taco da érea 30 anos atrés. Eles pendiam exa- geradamente para as ciéncias ffsicas © restrin- giam-se quase que exclusivamente ao perfodo compreendido entre a Idade Média ¢ 0 século XVIIL. No prefécio, Claggett comentou que [..] & primeira vista, pode parecer que demas Pouca énfase aos desenvolvimentos no iiltimo sé- culo. A Comissio certamente concordaria com isto. Contudo, cumpre destacar que t4o poucos historiadores esto realizando trabalhos sérios € profissionais sobre a hist6ria da ciéncia [no século XIX e no infcio do século XX], que a apresenta- $40 de uma discussfo critica de tais problemas ‘seria dificflima, Também, pode parecer que negli- genciamos os desenvolvimentos biol6gicos em fa- Vor dos avancos nas ciéncias fisicas. Esta nfo era Rossa intengfio original. Mas nossos esforgos pre~ ir 8 para reunirmos um eminente grupo de ‘pessoas para discutir-se a biologia do século XIX foi apenas parcialmente bem-sucedida. O cfrculo dos que esto engajados em pesquisar ativamente a hist6ria da biologia € tio tefl, que, cede Tecebemos alguns cancelamentos antecipados, fomos levados a eliminar um dia adicional que es. perdvamos dedicar & biologia. Desnecessfrio dizer que, desde entio, o extudo das ciéncias biolégicas no século XIX eclipsaram as pesquisas bereiy ioe aes sobre a Revoluco To importante quanto o estudo da cigncia no século XIX tem sido a compreenséo de que © desenvolvimento da ciéncia pode ser influen- ciado por fatores que nao considerarfamos nada cientfficos. Uma das primeiras vezes que esta questo surgiu foi quando deparou-se com a Obra de Isaac Newton. Amplamente considera- do como 0 maior cientista de todos os tempos, nfo raro, seus bidgrafos conscientemente igno- ravam 0 fato de que grande parte dos escritos de Newton tratam da alquimia e de outros temas que, aparentemente, tm pouco a ver com os fundamentos da fisica cléssica e o estabeleci- mento da teoria copernicana. Ainda mais sur- preendente era o desprezo para com Paracelso, van Helmont e seus seguidores. Os trabalhos de todos eles foram entusiasticamente discutidos nos séculos XVI e XVII, mas foram rejeitados e tachados de mfsticos pela nova Ordem Cientifi- ca de fins do século XVII. E, devido a0 viés Positivista dos historiadores da cigncia, nem a alguimia de Newton, nem o misticismo de Para- celso © van Helmont eram considerados “‘cién- cia”, Pensava-se que os fildsofos mecanicistas da Revoluco Cientffica tinham procedido cor- retamente ao desconsideré-los, e que se deveria continuar procedendo assim. Dentre 0s historiadores da ciéneia e da me- dicina, Walter Pagel foi um dos primeiros a chamar a atencfo para estes personagens esque- cidos da hist6ria. Mas, embora seu primeiro li- vro sobre van Helmont tivesse surgido em 1930, a amplitude de sua influ€ncia metodols- gica € mais recente; deu-se a partir da publica- Go, em 1958, de Paracelsus. Pagel reconheceu a falécia de Sarton a respeito da histéria da cigncia como se fosse uma escada rumo ao pro- gresso, e argumentou que tal abordagem, “ba- seada na selecio de material a partir do ponto de vista moderno, pode prejudicar a apresenta- io da verdade hist6rica.” pas ‘Como, entio, os historiadores da ciéncia deveriam proceder? Referindo-se & sua prépria pesquisa, Pagel sugeri Revista da SBHC, V. 5, p. 3-13, 1991 Allen G. Debus Em vez de selecionar dados que ‘facam sentido’ 20 acélito da ciéncia moderna, o historiador de- veria, portanto, tentar buscar sentido nos ‘des- vios’ filos6ficos, misticos ou religiosos [do traba~ Iho] de cientistas do passado tides como ‘sérios’ — ‘desvios’ estes que sfo geralmente desculpados alegando-se 0 espfrito, ou mesmo o atraso do pe- riodo hist6rico. Sio justamente estes [‘desvios'] que esto a desafiar o historiador: desvelar a ra- zo e a justificativa internas de sua presenga na mente do sibio e a coeréncia orgfnica de suas idéias cientfficas. Em outras palavras, cumpre a0 historiador reverter 0 método da selegdo cienttfi- cae reapresentar os pensamentos de seu her6i nos seus cenfrios originais. Os dois domfnios do pensamento — 0 cientifico ¢ 0 nfio-cientffico — irdo ento emergir, nfio como simplesmente justa~ ostos ou como concebidos a despeito de um ou do outro, mas como um todo orgainico, no qual eles se reforcam e se confirmam reciprocamente. Nao hf outro modo de compreender-se plena- mente 0 sfbio. Pagel achava que, quando isto fosse reali- zado, a hist6ria da ciéncia e da medicina iriam “parecer muito mais complicadas do que se afi- guram na perspectiva usual de linhas retas do progresso, Todavia, teremos que assumir a tare- fa inc6moda de reconstituir 0 pensamento anti- g0 se desejamos escrever hist6ria — em vez de best-sellers.” De certo modo, foi Pagel, e nfo Butterfield, quem forneceu para o historiador da ciéncia um manifesto preconizando a contex- tualizagio. Nao obstante a import4ncia do trabalho de Pagel, € possfvel que sua influéncia tenha sido menor do que a da Dama Frances Yates, que escreveu uma série de livros relacionando a Re- voluco Cientffica e o hermetismo, Ela atraiu grande atenco dos historiadores da ciéncia pela primeira vez quando da publicado, em 1964, de Giordano Bruno and the Hermetic Tradi- tion, Esta obra foi uma tentativa de estabelecer © trabalho de Bruno como uma adesao, no sé- culo XVI, & teoria helioc€ntrica, ndo porque ele fosse um cientista com idéias avancadas, mas devido ao fato de que o sistema tendo o sol co- mo centro acomodava melhor sua visdo mfstica © “hermética”’ do sol e do universo. Este livro é certamente um dos que mais influenciaram o curso da histéria da ciéncia no terceiro quartel deste século. E, de modo geral, sua influéncia tem sido benéfica, uma vez que instigou os Revista da SBHC, V. 5, p. 3-13, 1991 historiadores a lidarem com um vasto corpo de textos que nunca deveria ter sido ignorado. Todavia, 0 trabalho de Yates apresentava também perigosos efeitos colaterais. Muito im. pressionada com a importancia do hermetismo, do neo-platonismo, da magia e de outras cor. rentes misticas da filosofia renascentista, Fran. cis Yates tomou posic6es progressivamente mais ousadas mas fundamentadas em evidéncias cada vez menos s6lidas. Em Rosacrucian Enli. ghtenment, publicado em 1972, ela chegou perto de insistir que toda a Revolugdo Cientifi- ca foi um desenvolvimento do misticismo ¢ da magia renascentista. Nesta obra, ela esforgou-se em estabelecer conexGes entre as origens da Sociedade Real de Londres — assim como o tra- balho de Descartes e Newton —e John Dee ¢ os documentos rosacrucianos do infcio do século XVIL. Contudo, ao contrério do que seria dese- jdvel, estas sugestdes nfo estavam fundamenta- das em evidéncias hist6ricas substanciais. Entre os historiadores da ciéncia, 0 estudo das pseudo-ciéncias engendrou muitos confli- tos, principalmente quanto A interpretacdo mais adequada da obra de Isaac Newton. Como de- verfamos interpretar os milhares de félios de manuscritos alquimicos que ele escreveu? No infcio da década de 70, Sam Westfall estava convencido de que o misticismo hermético do século XVII era um ingrediente essencial no pensamento de Newton, ¢ de que isto “poderia elevar a filosofia mecanicista relativamente grosseira da ciéncia do século XVII a um plano de sofisticacdo mais alto.” E, num estudo mais recente, Betty Jo Dobbs foi ainda mais longe 20 alegar que nfo s6 a maioria das obras mais im- portantes de Newton derivaria de suas especu- lagées alquimicas, como também, “de certa forma, toda sua carreira a partir de 1675 pode- tia ser considerada uma longa tentativa de inte- grar a alquimia ¢ a filosofia mecanicista.”” ‘Nao € surpreendente que historiadores da cincia mais tradicionais tém manifestado temo" quanto a estes novos desenvolvimentos. Numa reunifo em King’s College, Cambridge, © 1968, para a anflise das novas tendéncias né frea, P. M. Rattansi debateu.a pritica de um? historia contextualizada e declarou que “a tae fa dos historiadores nfio deve ser o isolament? de componentes ‘racionais’ e ‘irracionais’, ae isto sim, consideré-los como uma unidade ¢ A calizar pontos de conflito ¢ tenso com bast apenas uma explorago em profundidade- A ciéncia e as humanidades: a fungéo renovadora da indagagéo hist6rica sua réplica, Mary Hesse opés-se a incluso na grea de disciplinas que, em termos modemos, néo seriam legitimamente cientificas. As pseu. do-ciéncias poderiam muito bem pertencer & histOria, mas ndo deveriam ser consideradas da hist6ria da ciéncia. Ela acrescentou que Pria essencial usarmos a ciéncia modema como um fiel a0 pesarmos Os argumentos do passado, Usarmos julgamentos do passado que inclufs- sem elementos néo-cientfficos seria perda de tempo. Com efeito — ela concluiu — devemos ser cautelosos quanto ao que lemos ou que valori- zamos, de vez que, “‘iluminando-se ainda mais um quadro, poderemos distorcer 0 que jé enxer- impasse na discussdo entre Hesse ¢ Rat- tansi ilustra parcialmente a tenséo que existia vinte anos atrs ¢ que persiste até hoje. Contu- do, o cardter das assim denominadas pseudo- cigncias nfo € a tinica fonte de polémicas. Pro vavelmente, 0 debate mais acirrade no momento diz respeito as relagGes entre ciéncia e socieda- de. Hf alguns anos, esta questo era relativa- mente pouco importante para os historiadores da ciéncia, mas seu recrudescimento tornou-se muito mais importante para os historiadores em geral. Em 1968 quando Thomas Kuhn preparou 0 artigo sobre a Histéria da Ciéncia para a En- eyclopedia of the Social Sciences, ele comparou as hist6rias da ciéncia “‘internalistas”” e “exter- nalistas”. No seu entender, as primeiras lida- vam com questées técnicas relativas ao cresci- mento da ciéncia, enquanto que as tiltimas eram “tentativas de estabelecer a ciéncia num con- texto cultural, 0 que poderia incrementar a compreensio tanto de seu desenvolvimento co- mo de seus efeitos [...]". Como exemplo das Ultimas, ele referiu-se a obra de 1938 de Tho- mas K. Merton, Science, Technology and So- ciety in XVLth Century England, que procurava, explicar o sucesso da ciéncia do século XVII na Inglaterra com base, em primeiro lugar, na én- fase de Bacon nas artes e nos processos comer- ciais, ambos de natureza prdtica, e, em segundo lugar, no campo religioso, no estfmulo do Puri- tanismo. Kuhn, inspirado pela obra de Koyré, argumentou que a “nova geracao de historiado- Tes” cra internalista. Nao s6 os estudos sobre as tadigdes dos offcios, como também a metodo- logia baconiana, seriam dispensdveis para com- Preenderem-se as ciéncias matemiticas, ms f a-se de passagem, foram a cerne da Revolug’ Genta. © livro bastante elogiado de Kuhn, A Es- trutura das Revolucdes Cientfficas, data de 1962; basicamente, € um estudo internalista que procura explicar as revolucées cientificas em termos da substitui¢do de um paradigma cient- fico por outro. Apesar do crescente interesse em fatores niio-cientfficos relacionados A expansio da ciéncia, este livro no afetou os historiadores da ci€ncia tanto quanto se poderia supor. Ao contrério, agradou especialmente & maioria dos cientistas sociais, aos fildsofos ¢ a outros histo- riadores, que o usam menos como um modelo da hist6ria da ciéncia, do que para examinarem 0s desenvolvimentos internos de suas reas particulares de estudo. Apenas recentemente, desde o final da dé- cada de 60 ¢ 0 inicio da década de 70, testemu- nhamos um interesse crescente nas interrelagdes entre ciéncia ¢ sociedade. E compreensfvel que, neste perfodo, esta Grea tornou-se muito mais atraente para os historiadores ¢ os cientistas so- ciais — muito embora sua maioria tivesse pouco treinamento, seja nas ciéncias, seja na hist6ria da ciéncia, Estes autores alegam que, agora, as- pectos significativos da hist6ria cientffica po- dem ser compreendidos, mesmo sem 0 conhe- cimento tecno-cientffico que antes parecia ser essencial. E alguns estudos importantes surgi- ram. Por exemplo, Religion and the Decline of Magic (1971), de Keith Thomas, € uma contri- buicéo monumental & nossa compreensio do cenrio intelectual no infcio da modernidade na Inglaterra, Nao menos importante 6 The World Turned Upside Down (1972), de Christopher Hill, que se baseou em estudos entio recentes sobre a alquimia e os paracelcianos ¢ logrou uma chave integradora para compreender a Guerra Civil na Inglaterra. Em The Newtonians and the English Revo- lution, 1689-1720 (1976), Margaret Jacob aventa que 0 triunfo da fisica newtoniana seria devido, nem tanto ao valor da ciéncia de New- ton, do que ao fato de que os tedlogos ingleses no perfodo da “Revolugéo Gloriosa”, em 1688, buscavam um aliado poderoso ao esposarem a sfntese newtoniana, A seu ver, a nova ciéncia seria uma rejeigio explicita a todas as outras filosofias naturais mais antigas — ndo s6, ob- viamente, as de Aristételes e Galeno, como também A Filosofia Qufmica dos paracelcistas as obras de Hobbes e Descartes. Para ela, a ex- plicago social para o triunfo do newtonianismo residiria em “sua utilidade para os lideres inte- Revista da SBHC, V. 5, p. 3-13, 1991 wustentée jicana, como um i amen gostavam de denom aoe verso newto! O uni Soe mate lectuais da Igreja culo da visio do ae ‘politica mundial’. sO maticamente regulado — fornecia ua an oe qa o estado estdvel ¢ préspero, 80 interesses pessoais dos homens. ‘uma explicagdo para © do ion apn ene en Go valor geralmente atribufdo & ciéncia, explicagéio da natureza. ri Pia Historia da Ciéncia continua @ expandir- se. Sempre atraiu os historiadores que penta associf-la ao desenvolvimento da arte ~ ¢, aa nalmente, agora temos um especialista ne: Jacionaram-na a campo em Chicago. Outros rel politica... E, mais recentemente, aumentou © interesse nas relagdes entre ela e a literatura. Um ramo da Modern Language Association € composto por estudiosos desta especialidade. Eu préprio, alguns anos atrés, fui consultor para um novo programa em ciéncia e literatura que esté sendo organizado no Georgia Institute of Technology. Um segundo grupo — alids, bas- tante ativo — organiza encontros exclusivamente sobre alquimia e literatura. A historia da Ciéncia também nfo tem per- manecido imune As outras correntes contempo- rfneas que influenciaram a hist6ria em geral. Carolyn Merchant, em The Death of Nature: Women, Ecology and the Scientific Revolution (1980), interpreta a Revolugdo Cientffica como a ruptura de uma antiga visio césmica, de crientacdo feminina, Bem mais radical € How Sir Isaac Newton Helped Restore Law’n Order to the West, um trabalno de David Kubrin, que registrou os direitos autoras de sua obra ¢ mi- meografou-a em 1972 “para protegé-la de usos indevidos por interesses capitalistas.”” Foi dedi- cada a “meus irmfos e irmas lutando contra © imperialismo, o racismo, 0 sexismo e o ecock- dio grassando pelo mundo afora, desde a Indo~ china até a pristio de Atica.” Kubrin, um aca- démico bastante respeitado, tinha estudado sob # orientago de Henry Guerlac, da Universidade de Comell, © envolveu-se profundamente nos camut0s sociais no final da década de 60. Apés ¢xaminar a Revoluc&o Cientffica, ele conclu que o surgimento da ciéncia moderna hacen Revista da SBHC, y, 5, P. 3-13, 1991 10 ente antagénica & natureza.” Mais aq, Kubrin afirma que “a tradi¢ao evoluciongi =, no ocidente precisa separar-se da falsa Ciéneia da superioridade ocidental, que, lizmente, resultou de seu florescimento no culo XIX, se pretende ser capaz de Tespondes perguntas que as pessoas, © a natureza, ae perguntando hoje.” ‘Nao pretendo discorrer mais sobre trabalhos; mas gostaria de apontar 0 fato ge"? eles sio evidéncias de que alguns estugt® nesta Grea foram fortemente influenciados quest6es sociais contempordneas, assim cme foram muitos estudiosos em outras éreas, Quers também ressaltar que, nestes wltimos quinze oy vinte anos, a Hist6ria da Ciéncia foi muito alen das suas origens técnicas. Estas interpretag6es novéis foram obsery,. das pelos historiadores da ciéncia mais tradicig. nais. Numa reuniao da American Associat for the Advancement of Science, realizada em dezembro de 1979, Charles C. Gillispie, da Universidade de Princenton, disparou contra aqueles que seguiam as novas tendéncias nq rea, Conforme foi relatado em Science, Gilis- pie lamentou que “‘a histéria da ciéncia esti perdendo o pulso que mantinha sobre a ciéncia, [est4] apoiando-se exageradamente na histéria social [est4] brincando com estudos diletantes, [Outrossim,] ele atacou quem discutia proble- mas cientfficos mas com pouca ou nenhuma formagéo cientffica.” Conforme o repérter Menos odiosas, mas nfo menos problemas so, para Gillispie, as hist6rias sociais que igno- Tam completamente a ciéncia, tais como os estt- dos que tratain do papel da mulher numa deter- minada instituigdo cientffica, mas omitem qual seria sua atividade cientifica. [...] Outra tendéo- ia, ele disse, € a dos estudiosos que se detém 00 que € pessoal ¢ anedético: Newton e a alquimis, em vez do movimento, a danga da cobra de Ke- kulé, em vez do anel de benzeno, a neurose 0 Darwin, em vez de como ele organizou suas tet déncias. Alguns assim denominados estucioses Preferem os escdndalos. [...] ‘Estes estudios0s» diz Gillispie, ‘tém um pendor justamente Pat 0 tipo de coisa que rigorosamente excluimos & Corte da cigneia ~ 0 irracional, o pessoal’ (Bro% 1980), Ife. A ciéncia ¢ as humanidades: a funcéo renovadora da i ‘A bist6ria social da ciéncia j6 est estabelecida ee ‘ig disciplina como um método legftimo de Sbordar-se 0 passado. A despeito das recentes eagoes, especialmente as de C. C, Gillispie, a mroria dos historiadores aceitam 0 fato de que as ‘Géncias precisam ser suplementadas com 0 estudo Sos fundamentos sociais semoventes da atividade Gentifica. Espera-se que os debates entre “[yi- ‘soes] internas ¢ externas” do final da década de 60 soja uma coisa do passados(ibid.). Em 1956, quando do falecimento de George sarton, a hist6ria da ciéncia estava estabelecida Somo uma Srea pequena, mas era reconhecida por um niimero crescente de pessoas como im- Portante. Todavia, devido ao seu desenvolvi- mento hist6rico, era encontradiga no mundo ‘académico mais freqiientemente na forma de programas independentes de histéria ou ciéncia. Hé trinta anos, a maioria dos historiadores da ciéncia que publicaram trabalhos foram inicial- mente treinados como cientistas — assim como foi o meu caso. Sarton reconhecia este fato, mas, acreditava que, no futuro, 0 historiador da cién- cia profissional deveria ter pelo menos dois tf tulos de mestre — um em ciéncia © outro em hist6ria — antes de prosseguir sua formagéo e realizar o doutoramento em histéria da ciéncia. Contudo, a influéncia de Koyré, além de toda uma corrente de fil6sofos afastados da hist6ria da filosofia e mais afins da filosofia da ciéncia, preconizava o desenvolvimento de programas independentes na Hist6ria ¢ Filosofia da Cién- cia, Naquela €poca, parecia evidente que a his- t6ria da ciéncia exigia uma especializagéo nas cifncias, 0 que sugeria uma distingao entre a formagdo em histéria da ciéncia ¢ a tida pela grande maioria dos historiadores. Mas, conco- mitantemente, os historiadores tradicionais ¢s- tavam conscientizando-se cada vez mais do tremendo impacto da ciéncia ¢ da tecnologia em nossas vidas, 0 que motivou uma certa urgéncia de aprender-se mais sobre esta frea. Gostaria de novamente citar Herbert Butterfield... desta vez uma passagem de sua palestra “The History of Science and the Study of History”, de 1959: Embora 0 mundo h4 muito saiba que a ciéncia @ tecnologia ram importantes, apenas recente mente estas coisas passaram a comandar nosso destino ~ aquele destino que tinhamos aprendido com nossos livros de hist6ria a considerar dema- ae dependentes dos desfgnios dos esta~ tas, i indagacSo hist6rica Mais © mais ttulos de Do ata Citacia foram concedides ne aria 210 6 ana ncedidos nas décadas de 60 fines ‘oria destes jovens académicos fo- mpregados em departamentos de hist6ria Sr dba Pot meen ner » OU na hist at cami ng ct a foi instrumental para que a frea abarcasse inter. Pretages mais relevantes para os historiado- §, promoveu uma hist6ria da ciéncia mais préxima dos estudos desenvolvidos por Yates ou Merton, do que os gerados por Neu- gebauer, Sarton ou Koyré. Conseqiientemente, ao longo da década de 70, houve um debate acir- rado entre os internalistas tradicionais ¢ os que buscavam um contexto mais amplo para com preenderem as ciéncias. Ao terminar minha conferéncia, talvez seja apropriado dizer algumas palavras sobre 0 que Penso sobre as relagdes entre a Hist6ria da Ciéncia © as Ciéncias Sociais, as Humanidades, ©, particularmente, a Histéria. E desnecessério Jembrar que o mundo modemo seria simples- mente incompreensfvel se nfo considerfssemos © desenvolvimento das ciéncias, da medicina ¢ da tecnologia, Elas influenciaram todas as ati- vidades humanas. O historiador tratando da Ci- vilizagao Ocidental — especialmente o perfodo apés 1500 — no pode ignorar este fato, senéo obteré um quadro muito pobre ¢ distorcido do mundo em que vivemos. Mas, afinal, o que é a Historia da Ciéncia? Serf a tradigfio técnica e internalista de Sarton, Koyré ou Neugebauer, ou serd a tradicao exter- nalista daqueles que buscam compreender as cientfficas a partir do contexto so- cial? E, com certeza, ambas as tradigdes, embo- ra seja 0 segundo grupo 0 que propde as ques- t0es de maior interesse para os outros historia- dores. A meu ver, o debate entre internalistas € ‘externalistas na hist6ria da ciéncia ¢ na hist6ria da medicina foi, de modo geral, uma perda de tempo para todos os envolvidos. Aliés, isto j4 foi observado por outros. Acredito que seja verdade, nfio s6 porque as duas tradigSes esto imbricadas, mas também porque precisamos de ambas as perspectivas. Queremos saber exata- mente como Lavoisier procedeu experimental mente, assim como gostarfamos de descobrir 0 efeito da religifio no desenvolvimento da teoria cientffica do século XVII. E, certamente, o tra- balho de Frances Yates sobre a hist6ria literé- ria, ou o de Christopher Hill relacionando a po- Revista da SBHC, V. 5, p. 3-13, 1991 —_— Iftica da Guerra Civil Inglesa ¢ os médicos qui- micos radicais, propiciou discussées importan- tes que esto nos ajudando a integrar as cién- cias As preocupagées mais amplas dos historia- dores. Em suma, precisamos aprender nio 86 sobre os desenvolvimentos técnicos das cién- cias, mas também as inter-relagdes entre elas € todas as outras esferas da atividade intelec- tual. Alguns aventariam que seriam necessdrios departamentos de histéria da ciéncia indepen- dentes. Nenhum departamento de Hist6ria seria capaz de lidar com as exigéncias salariais de um Programa que, em termos ideais, deveria abran- ger todas as ciéncias, a medicina e a tecnologia de todos os perfodos hist6ricos. Contudo, de- partamentos independentes tendem a permane- cer altamente internalistas e técnicos. Creio que © historiador da ciéncia deveria manter estreitos contatos com outros historiadores para evitar os perigos inerentes a uma abordagem exclusiva- mente internalista. Embora nao alimente ilusio sobre a possibilidade de que todos os historia- dores irao converter-se a Histéria da Ciéncia, penso que a presenca de especialistas desta 4rea poderia ser titil para outros historiadores. Pode- se estabelecer pontes com individuos ¢ depar- tamentos interessados na Histéria da Ciéncia dentro de uma universidade, de modo que um Pequeno grupo de especialistas poderia desen- volver um programa bem mais abrangente do que 0 niimero de seus integrantes permitiria su- por. Mas, enfim, a Historia da Ciéncia — embora exija alguns requisitos relativamente especiais — € basicamente Histéria, e deveria ser sempre considerada parte integrante de um departa- mento de historia, onde quer que ele esteja es- tabelecido. LISTA BIBLIOGRAFICA BROAD, J. W. History of Science losing its science. 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