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DIALOGO INCONCLUSO: OS CONCEITOS DE DIALOGISMO E POLIFONIA NA OBRA DE MIKHAIL BAKHT: Patricia Marcuzzo"™ RESUMO: Dialogismo e poltforta sto dois concettos importantes na obra de Bakhtin acerca dot quais a critica atual tem debatido com jrequéncia (ver, por exemplo, os rabalhos de BRAIT, 1996, FARACO, 1996, BARROS, 2003 e BEZERRA, 2008). No entarto, muitas vezes, eles sG0 utiizades como sinénimos ‘em alguns trabathos (BARROS, 2003, p. 5; EMERSON, 2003, p. 164). Portante, o objetivo do presente artigo é discutir es conceites de dalogismo e polifonia a partir de uma revisho da literatura, buscando epinur e distngurr ais concettos. PALAVRAS.CHAVE: Dialogismo ~ Polifonia ~ Bathtin ABSTRACT: Dialogism and polyphony are two important concepts in Bakhtin’s work which have been often discussed by the critics (see, for example, BRAIT, 1996, FARACO, 1996, BARROS, 2003 and BEZERRA, 2008), However, they aré frequently adopted as synonyms in some works (BARROS, 200%, p. 5; EMERSON, 2003, p. 164). Thus, tho objective of the pracont paper is to discuss the concopt: of dalogism and polyphony based on a review of literature, aiming at defining and distinguishing these concept KEY-WORDS: Dialogism - Polyphony ~ Bakhtin CONTEXTUALIZACAO. Em Problemas da poética de Dostoiévski, Mikhail Mikhailovich Bakbtin faz uma observagio criginal a obra do grande romancista russo. Contrapondo-se 20s, criticos anteriores do autor, Bakhtin destaca que Dostoiévski reencena, na obra litera aquilo que seria a propria esséacia da linguagem: o dialogismo. Além disso, segundo Bakhtin, nenhum desses ciiticos teria sido capaz de enxergar, na obra do romancista, aquilo que realmente poderia distingui-la e que seria a sua grande contribuigao para a arte do romance e para a teoria da linguagem: a polifonia, nome que Bakhtin toma emprestado da Miisica para nomear a inovacao na relacio autor/her6i preseate aa obra de Dostoiévski (FARACO, 2008, p. 48). Portanto. essas duas inovacdes — a palavra dialégica no interior de um desenho polifénico (dialogismo) e o her6i plenivalente (polifoniz) — constituem o niicleo tedrico da obra Problemas da poetica de Dostoievski (EMERSON, 2003, p. 162) e se coafiguram em dois conceitos-chave importantes na obra de Bakhtin acerca dos quais a critica atual tem debatido com frequéncia (ver 0s trabalhos de BRAIT, 1996; FARACO. 1996; BARROS, 2003; BEZERRA, 2008, para citar alguns exemplos). * Mestre e doutoranda em Lewas-Estudos Linguisticos Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), patimarcuzze@yahoo com br. Agradero a leiture dos pareceristas da revista Cademnos do I. MARCUZZD, Pala Didlogo incouctuse: os coucelts de dalogino « polifala ua obra Ge Mall Babin Tendo em vista que, muitas vezes, polifonia e dialogismo sdo utilizados como sinonimos, conforme destacam Barros (2003, p. 5) ¢ Emerson (2003, p. 164), discuto, no presente artigo, esses dois conceitos a partir de uma revisio da literatura. O objetivo é tentar mostrar pontos de contato entre esses dois conceitos para, entio, distingui-los. Este artigo esti dividido em quatro segdes, além desta Contextualizagao. Inicialmente, abordo o conceito de dialogismo e, em seguida, o conceito de polifonia. Posteriormente. busco distinguir esses dois conceitos. Por fim, apresento breves consideracées finais & guisa de fechamento deste trabalho. BAKHTIN E 0 DIALOGISMO © coneeito de dialogismo é fundamental para se compreender a obra de Bakhtin porque pemeia a sua concepeo de linguagem e, quem sabe, mais do que isso, sua concepedo de mundo, de vida (BARROS, 2003, p. 2). No entanto, antes de conceituar dislogismo na obra de Bakhtin, é importante entender © conceito de discurso na obra do fildsofo russo, tendo em vista que esses dois conceitos estio intrinsecamente relacionados. Para Bakhtin, discurso 2 lingua em sua intearidade concreta ¢ viva e nio a lingua como objeto ‘especifico da linguistica, obtide por meio de uma abstragdo zbsolstamente neceisiria de alguas sepectos da vida concreta do diecuno. Mae sic justamente esses aapectes, abstraides pela linguistica, os que tém importincia ‘primordial para noses fs. (GAKHTIN, 2098, p 207) Nesse trecho, Bakhtin apresenta a sua concepedo de discurso, ou seja, a “linguagem em agi" tambem faz uma critica a Saussure, 0 qual entendia a lingua como um sistema de formas, estavel e imutavel, abstraide das relacdes sociais, (BAKHTIN, 1986, p. 85). Para Bakhtin, a verdadeira substncia da lingua é constituida Justamente nas relagdes sociais, via interacdo verbal, realizada por meio da enuacia¢ao ou das enunciagdes (ibid, p. 123). A partir disso, o discurso (a lingua em sua integridade concreta e viva) ndo é individual porque se constréi entre, pelo menos, dois interlocutores que, por sua vez, so seres sociais; € se constr6i como um “didlogo entre discursos", ou seja, mantém relagbes com outros discursos que o precederam (BARROS, 1996, p. 33). E aqui que entra o dialogismo, entendido como a condi¢ao do sentido do discurso (BARROS, 2003, p. 2) No entanto, é importante ressaltar que 0 conceito de dialogismo em Bakhtin no esté atrelado 2 ideia de um didlogo face a face entre interlocutores, mat sim entre discursos, 4 que “o interlocutor s6 existe enquanto discurso” (FIORIN, 2006, p. 166). Florin acrescenta também que por isso “todo enunciado possui uma dimensio dupla, pois revela duas posigées: a sua e ado outro” (ibid., p. 170). Além disso. é importante destacar que o termo diélogo/dialogismo é utilizado de trés modos diferentes na obra de Bakhtin, conforme afirmam Morson e Emerson (2008). © que pode causar certa confusdo para quem procure compreendé-los. Por isso, a seguir. destaco essat tds diferentes acepges antes de definir dialogismo e monclogismo. termo didlogo/dialogismo é utilizado em Bakhtin CCaders do I, Boro Alegre, 36, ju de 2008. Duponivl am: bp: mw ster fg be cdernsedl 3 MARCUZZD, Pala Didlogo incouctuse: os coucelts de dalogino « polifala ua obra Ge Mall Babin como uma descrigio da linguagem que toma todos o: enuaciados, por defirisio, dialégicos; como fermo para um tipo eapecifico de emnciado, ‘posto a outros entnciados, monolégicos: e como uma visio do mundo e da vverdade (seu conceito global). (ibid, p. 506) Embora o termo dialogo/dialogismo receba acepgies diferentes na cbra do fildsofo russo, dependendo do contexto em que é empregado, este tem uma relaco de unidade na medida em que engloba a ideia de Bakhtin sobre linguagem c, mais do que isso, homem e vide (BARROS. 1996. p. 26). carter dialdgico é 0 fato unificador de todas as atividades linguageiras (FARACO, 1996, p. 122). Além disso, esse conceito define o ser humano, pois o outro é imprescindivel para sua concepeao: € impossivel pensar no homem fora das relagdes que o ligam ao ovtro (ibid., p. 122). Assim, para Bakhtin, a alteridade é a condicdo da identidade: os outros constituem dialogicamente 0 eu que se transforma dialogicamente num outro de aovos eus (ibid., p. 125), no sentido de que uma pessoa deve passar pela consciéncia do outro para se constituir (id., 2008, p. 43). No entanto, neste trabalho, procuro enfatizar a segunda acepeio apontada por Morson e Emerson (2008) — as formas de discurso dialégicas ¢ monolégicas -, tendo em vista que esse € 0 vies do campo de estudos linguisticos A auisa de definicao, 0 monologismo se refere a um discurso tinico, definitivo e uniforme. 0 monologismo ado deixa revelar os outros discursos que permeiam a pratica discursiva. Na analise de Bakhtin sobre os romances, aqueles considerados monolégicos. apresentam uma tinica voz, a do proprio autor do romance. No universo monolégico. as personagens no tém mais nada a dizer, pois ja disseram tudo, e o autor, de sua posicdo distanciada € com seu excedente de visio, ja disse a tltima palavra por elas e por si (BEZERRA, 2008, p. 192). Desse modo, nas obras monolégicas, 0 poder dircto de significar pertence exclusivamente ao autor (MORSON: EMERSON. 2008. p. 255). Assim, essas obras podem transmitir a positdo do autor de varias maneiras. As veres uma dada personagem ode expresséla; outras vezes a verdade do autor pode Sispersar-se por uma variedade de personagens. Em algunas obras, ela pode no receber exprestio direta ou explicita; alo cbstaste, a verdade do autor permeia toda a estrutura da obra, que nao pode ser compreendida sem ela (ibid, p. 254), 34 0 dialogismo é explicado por Bakhtin a panir da andlise dos romances de Dostoiévski. Nesses romances, nao ha o apagemento de vozes em detrimento da voz autoritaria do autor. Como afirma Bakhtin: Assim, pois, nas obrat de Dostoigveki alo hd um diseuno definitive, cconcluide, determizante de uma vez por todas. (..) A palavra do herdi e @ palavra sobre o herdi sio determizadas pela atitude dialdgica aberta face a si mesmo e 20 outro. (..) No mundo de Dostoiévski ado ba discurso sélido, motto, acabado, sem resposta, que ja promuaciou sua ultima palavra (BAKHTIN, 2008, p. 291-292) Desse modo, as obras do romancista russo so dialogicas, na medida em que resultam do embate de mmitas vozes sociais (BARROS, 2003, p. 5-6). Conforme destaca Faraco (1996, p. 124), essas vozes so manifestagdes discursivas sempre relacionadas a um tipo de atividade humana e sempre axiologicamente orientadas — apresentam uma atitude valorativa dos participantes do acontecimento a respeito do que CCaders do I, Boro Alegre, 36, ju de 2008. Duponivl am: bp: mw ster fg be cdernsedl 4 MARCUZZD, Pala Didlogo incouctuse: os coucelts de dalogino « polifala ua obra Ge Mall Babin corre em relacZo a0 objeto do enunciado, em relacdo 20s outros enunciados, em relacdo aos interlocutores (RODRIGUES, 2005, p. 161). Bakhtin destaca que essas relagdes dialdgicas entre discursos ‘no so linguisticas no sentido rigorcso do termo. Podem ser situadas na metalinguistica, subentendo-a como um estudo ~ ainda nlo-constituido em disciplinas paricolares definidas ~ daqueles aspectos da vida do discurso que ultrapassam — de modo ebsolutamente legitimo — 0s limites da linguistica As pesquisas metalinguistcas, evidentemente, nfo podem ignorar a linguistica e devem aplicar os seus resultados. A linguittica e a metalinguistica estudam ‘um mesnio fexdmene concreto, mito complexe © multifacctice — 0 discwrso, ‘mas estudam sob ciferentes aspectos e diferentes angulos de visio. Devem ccompletar-se mutuamente e nao fundir-se. (BAKHTIN, 2008, p. 207) Para Bakhtin, as anilises dialégicas nao so linguisticas no sentido rigoroso do termo porque 2 Linguistica se dedica 20 estudo da “linguagem” propriamente dita, com sua légica especifica na sua generalidade, como algo que toma possivel a comuaicago dialgica (BAKHTIN, 2008, p. 209). De acordo com 0 filésof russo, na lingua vista como objeto dz Linguistica a partir da perspectiva saussuriana, no ha e nem pode haver quaisquer relagdes dialégicas, pois elas sfo consideradas impessiveis entre os elementos no sistema da liagua (entre os morfemas, a3 ppalavras, as oragSes, ets), entre oo elementos da lingua ao texto ¢ mesmo ‘entre os elementos do “texto” e os textos no seu enfoque “tigorosamente linguistico”. (RODRIGUES, 2005, p. 130) Para o estudo das relagdes dialégicas, Bakhtin propde entdo 2 Metalinguistica, uma nova ciéncia criada pelo fildsofo para dar conta da analise dessas relagées. No entanto, conforme afirma Brait (2006, p. 58), embora ofereca uma ética diferenciada, Bakhtin nio exclui a Linguistica na andlise dessas relagdes. Ao contrario, Bakhtin recomenda aplicar os seus resultados (ibid, p. 58). A Linguistica se encarregaria de fazer uma analise interna, ou scja, da lingua, enquanto 2 Metalinguistica se encarregaria de fazer uma andlise externa, j3 que as relacSes dialégicas sdo entendidas por Bakhtin como extralinguisticas. Conforme explica Brait (ibid.. p. 58) 0 trabalho metodol6gico, analitico e interpretative com textos/discursos se 4, como se pode observar nessa proposta de eriacdo de uma nova dsciplina, (ov conjuato de disciplinas, herdands de Linguistica a possbilidade de esmiugar campos seminticos, descrever e analisar micro e macro orgautzagbes simtaicas, reconhecer, recuperar e snterpretar marca € articalagées enunciativas que caracterizam o(3) discurso(s) e indiciam sua heterogeneidade coastitutiva assim como a dos sujeitcs ai instalados. A partir do didlogs com 0 cbjete de andlise, chegar ao invsitedo ce eva forma de er discursivamente, & sua maneira de participar ativamerte de exferas de produgao, circulagio e recepgao, encontraado sua identidade nas relades dialégicas estabelecidas com outros discurscs, com outros sujeitos. Desse modo, conforme afirma Faraco (1996, p. 121), Bakhtin € © primeiro pensador contempordneo a tratar e analisar a linguagem sem a necessidade de divorcié- a da materialidade da vida social. Isso é possivel a partir das concepgdes de Bakhtin acerca do discurso e, principalmente, do dialogismo. CCademes do I, Pore Alesre, 36, jo de 2008. Disponivel em: bp: ww seer utes brieademosdol 5

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