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Colegdo PASSO-A-PASSO CIENCIAS SOCIAIS PASSO-A-PASSO Diregao: Celso Castro FILOSOFIA PASSO-A-PASSO Diregdo: Denis L. Rosenfield PSICANALISE PASSO-A-PASSO. Directo: Marco Antonio Coutinho Jorge Ver lista de titulos no final do volume Rossano Pecoraro Filosofia da historia 4@ y ZAHAR Rio de Janeiro Introduséo © elemento essencial e constituinte da “filosofia da his- t6ria” — em seu diferenciar-se da historiografia, do histori- cismo, da andlise ou da narragdo metddica de fatos e ages humanas etc. — a questo do sentido, da finalidade (télos) da historia, Embora a expressio seja relativamente recente (foi usada pela primeira vez em 1765, pelo fildsofo francés Voltaire, em Filosofia da histéria), reflexdes de grande al- cance sobre a historia, o seu sentido ea sua finalidade sur- giram tanto na Antiguidade cléssica como na Idade Média ena Renascenga. No entanto, é inegivel a importancia das teorias modernas desenvolvidas por autores como Kant, Hegel, Marx, cuja influéncia induziu varios comentadores a restringir um tanto arbitrariamente o Ambito de estudo da filosofia da hist6ria as doutrinas dos séculos XVIII e XIX, Essa tendéncia, se por um lado faz voltar a atens: para a centralidade de pensadores ¢ obras da Modernida- de, por outro nfo dé a devida estima nem as teorias das épocas precedentes nem as reflexdes da atualidade sobre a ctise da filosofia da historia. ‘Além disso, hé outro problema preliminar que deve ‘ser enfrentado. Trata-se de uma sobreposicao de planos 7 Copyright © 2009, Rossano Pecoraro Copyright desta edicio © 2009: Jonge Zahar Editor Lida. rua México 31 sobreloja 20031-144 Rio de Janeiro, RI tel: (21) 2108-0808 / fax: (21) 2108-0800 site: www.2ahar.com.br ‘Todos 0s direitos reservados. ‘io no autorizada desta publicagio, no todo ou em parte, constitui violacio de direitos autorais. (Lei 9.610/98) Grafia atualizada respeitando 0 novo Acordo Ortogrifico da Lingua Portuguesa. Capa: Sérgio Campante ‘Composigdo: Futura Impressio: Sermograf ‘CIP-Brasil. Catalogagio na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, R) Pecoraro, Rossano, 1971- P386f Filosofia da histéria/Rossano Pecoraro. — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009, (Passo-a-pasto; 88) ISBN 978-85-378-0157-4 1. Histria — Flos Sumario Introdugao As origens da quéstao A Providéncia e o sentido da histéria Tuminismo e secularizagio As grandes teorias da Modernidade ‘A negacao do sentido histérico A crise das filosofias da histéria Leituras recomendadas Sobre o autor lL 21 27 Al 46 63 conceituais bastante evidentes na literatura critica sobre © tema que nao favorece a compreensio das suas princi- pais diretrizes, uma vez. que nao separa a filosofia da hist6- ria —enquanto reflexdo tedrica em torno da questdo do seu sentido ~ da hist6ria entendida como curso dos aconteci- mentos € objeto de estudo dos historiadores. A partir dat surgi uma série de leituras, quase sempre em desacordo entre elas, nao s6 em relacdo a linha interpretativa adotada como a escolha de obras ¢ autores que formariam 0 canon da disciplina, Interpretagdes que ressaltam a proximidade da l6gico, a filosofia moral ou 0 método analitico (sobretudo speculativa da hist6ria” da “filosofia cri- » € ha varios estudos de “filosofia analitica muito mais amplo, no qual, porém, a investigago filos6fica a historia, em seu significado proprio, enfraquece-se por ser considerada em sua conexéo com a ciéncia hist6rica, a antropologia, a sociologia. Ndo que tudo isso néo tenha importincia. Ao contrario, demonstra a riqueza e 0 rigor epistemol6gico do trabalho filoséfico. Entretanto, cremos gue é possivel, decerto de maneira introdutéria e prelimi- nat, tragar com mais precisio e clareza o campo de acto da “filosofia da hist6ria’, compreendida como disciplina autono- ma que trata da questiio do sentido da histbria. Esta é a finalidade principal do presente ensaio. Para alcangé-la, comegaremos pela origem da interrogagao acerca do télos da histéria, Em seguida, nos dedicaremos ratura de lingua inglesa, na qual, outrossim, se dife- ° a descrigao da concep¢ao linear (providencialista e crista) em sua contraposicao a visdo ciclica da histéria, caracteris- tica da tradicdo grega, e 4 exposicéo das grandes teorias da Modernidade, cujo nascimento esté estreitamente ligado a um radical processo de secularizagio, ou seja, a laicizagao das crengas ¢ das doutrinas teolégicas do cristianismo ¢ 4 sua conversdo em principios filos6ficos, juridicos etc. (a ideia de progresso substitui as de Providéncia e salvacao, mas sem questionar a visdo linear do tempo e da historia). Por fim, trataremos da crise ou mesmo da negacao radi- cal das metafisicas ¢ otimistas filosofias da hist6ria, que, de Schopenhauer, dos tebricos alemaes da histéria e de Nietzsche, estende-se até a chamada “pés-modernidade”. As origens da questo O significado origindrio do termo “hist6ria” € descrigao, relato, narracdo de acontecimentos. Essa atividade, como nos revela a raiz indo-europeia do vocibulo, esté relacio- nada - como explica Remo Bodei em A histéria tem um sentido? (2001) - ao “ver”, ao estar presente, ao testemu- nhar acontecimentos que nao necessariamente pertencem a um passado distante, longinquo. Ao contrério, para os rafia ocidental, Herédoto e Tuci- dides, um acontecimento ¢ hist6rico (e néo arqueolégico) apenas quando € narrado ou registrado por alguém que esteve presente, que 0 viu pessoalmente. Isso significa que a hist6ria nada mais é do que histérias, meros relatos de uma 10 Rossano Pecoraro série de fatos isolados, limitados quanto ao tempo e ao es ago e explicados segundo crengas ou critérios especificos de cunho épico-religioso (Herédoto) ow politico-militar (Tuctdides). £ evidente que s6 uma radical transformagao dessa visdo poderia efetivar a passagem da historia para a filosofia da historia, isto é, da simples narracao de acon- tecimentos para a ideia de um sentido, para a criagéo de um paradigma explicativo/hermenéutico da matéria bru- ta constituida pelas ages humanas. ‘A aurora dessa transformagao se dé nas reflexdes do historiador grego Polibio (século I a.C.),0 primeiro a falar explicitamente em “hisi6ria universal’, na qual confluem as varias hist6rias particulares, os fatos das virias partes do mundo até entao isolados uns dos outros. Orientados pela perspectiva de um futuro que nao se confunde com 0 pas- sado (portanto, de um horizonte nao fechado, que possui um sentido € um objetivo), os acontecimentos histéricos convergem, agora, para um tinico fim, vale dizer, 0 domi- nio do Império Romano sobre 0 mundo. A contribuigéo de Polfbio é, sem diivida, significativa. Entretanto, no que diz respeito a reconstrugao hist6rico-conceitual objeto de nosso estudo, nao deve ser superestimada, pois atribui um papel hegem6nico ao Acaso (ou Fortuna), toma em con- sideragdo exclusivamente os acontecimentos politicos, pri- vilegia, apesar de tudo, 0 passado ¢ o presente para inter- pretar, ou melhor, prever o destino dos Estados, funda-se em urtia concepgo de tempo e de histéria ciclica, petidica, com fases de nascimento, desenvolvimento, declinio e desa- parecimento que se alternam e se repetem ao infinito. Filosofia da historia " Essa visdo — que o pensamento grego sucessivo (Pla- tao, Aristételes) ndo modifica em sua esséncia e que seré retomada, como veremos, por alguns importantes pensa- dores (Vico, Nietzsche, Spengler) ~ é suplantada pela ideia crista, “sistematizada” por santo Agostinho e Joaquim de Fiore, de uma temporalidade linear, progressiva, orientada, Trata-se, ao mesmo tempo, da inauguragio e do apogeu da grande estacio das filosofias da hist6ria. A secularizagao das concepgoes religiosas e teol6gicas (a historia como de- signio providencial de Deus, cuja finalidade ¢ a salvacéo) ao longo da Modernidade nao faré outra coisa sendo con- firmar, como mostraram Karl Léwith (O sentido da his- toria, 1949), Jakob Taubes (Escatologia ocidental, 1947) e Emil Cioran, a fundamental importancia ea vasta influen- cia dessa concepgao. A Providéncia e 0 sentido da historia A nogio classica de tempo enquanto ciclo, eterno retorno sem principio nem fim, baseada na observagao do cosmo, na revolugdo dos corpos celestes, na alternancia infinda de fendmenos naturais, a tradigao judaica contrapoe uma visdo linear da temporalidade A qual Deus garante inteli- gibilidade, finalidade, ordem, salvagao. A teologia da his- t6ria surge da experiéncia de Israel, da logica da promessa, da esperanga no advento do reino de Deus, no fim e no cumprimento da criagdo, do tempo e da histéria. Nos pri- meitos séculos da era crista as doutrinas realcaram ora a urgéncia da consumagao escatolégica com o retorno de Cristo a terra para reinar ao longo de mil anos que serao seguidos pela ressurreigdo, pelo jufzo universal e, final- mente, pelo reino de Deus (milenarismo patristico), ora 08 aspectos religiosos e politicos derivantes da cristianiza- 40 do Império Romano que aparece como a realizagao, 0 cumprimento da historia (Eusébio de Cesareia). Entre 412 € 426, santo Agostinho (354-430) escreve A cidade de Deus, verdadeiro modelo e esquema de toda concepgao crista da histéria. A obra foi provocada pela in- vasio de Roma por Alarico em 410: a capital do mundo antigo € saqueada, 0 seu povo ¢ as suas instituigdes so humilhados. O acontecimento causou um enorme impac- © to no império. Os romanos imputaram a derrota a hosti- lidade dos deuses pagios, cujo culto havia sido combatido e eliminado pelos cristaos. Uma afronta & qual Agostinho responde com a sua obra, na qual, com tons ora irénicos, ora criticos e apologéticos, reduz fortemente o papel, a fungfo ea importancia de Roma na hist6ria e rejeita toda escatologia de cunho politico baseada na centralidade atri- buida a ascensdo, & sobrevivéncia e queda de impérios € estados. A sucesso dos fatos seculares e mundanos nao fundamental na ordem das coisas iltimas. A histéria tem um comego € um fim, nasce no pecado e na culpa, consu- ma-se na salvagio ¢ ¢ universal porque é unida, controlada e ordenada por um tinico Deus para uma tinica finalidade. Ela adquire o seu sentido em virtude do plano providen- | que leva ao Juizo Final, & ressurreicao ¢ ao advento do reino de Deus. Trés s4o os pontos que devem ser destaca- dos nesse progresso rumo @ verdade instituida: o conflito entre a cidade celeste e a cidade terrena, 0 “conceito” de peregrinatio (peregrinagao), a divisio da hist6ria em seis épocas e a essencialidade da volta de Jesus Cristo a terra. ‘As duas cidades representam alegoricamente dois gé- neros opostos de homem e de amor. A cidade terrena é fundada por Caim, o fratricida. A cidade de Deus'comega com Abel, a vitima inocente. Aquela ~ como se Ié no ca- pitulo 28 do livro XIV ~ foi construida pelo amor de si proprio até 0 desprezo por Deus; esta pelo amor de Deus até o desprezo por si mesmo. A cidade terrena se glorifica em si, busca a gloria entre os homens, caminha de cabeca erguida e com soberba, lisonjeia-se na pessoa dos podero- 0s; 05 seus chefes so dominados pela vontade de aniqui- lar os seus stiditos e os sabios nao almejam outra coisa a no ser os bens do corpo ou do espirito. A cidade de Deus se glorifica no Senhor, busca a sua gléria no testemunho da consciéncia, considera Deus sua gloria e seu orgulho; 05 seus chefes e os seus stiditos se auxiliam mutuamente ea sabedoria € piedade a servi¢o de Deus na espera da recompensa na sociedade dos santos. A articulacio entre as duas cidades é fundamental para compreender o significado da reflexao de Agostinho. A hist6ria secular, empirica, na qual acontecimentos e geragbes surgem e desaparecem em um devir insensato, cabtico e confuso, desdobra-se na cidade terrena institui- da por Caim, na qual os descendentes de Abel vivem sem ser nem “fundadores” nem “colonizadores”. Fora de alego- ria: na hist6ria da humanidade se confrontam bem e mal, humildade ¢ ambigao, obediéncia e orgulho. Apenas a fé permite vislumbrar um sentido, uma finalidade, um pro- gresso rumo a salvagio eterna que consumaré e redimiré a propria hist6ria. Nesse sentido, a Cidade de Deus, apesar de nao se con- fundir com a Cidade dos homens, se configura como um curso hist6rico “concreto”, como uma peregrinagao secu- lar em direg4o a um fim nao-terreno na qual a Providencia guia a histéria rumo ao seu télos, ignorando os propésitos humanos, a contingéncia das suas acdes ¢ dos seus desig- nios. A peregrinatio se desdobra em seis fases ou idades que retomam os dias da criagdo do mundo: a primeira se estende de Adao ao Dihivio Universal; a segunda, de Noé a Abraio; a terceira, de Abraio a Davi; a quarta, de Davi até 6 Exodo Babilénico; a quinta, do Bxodo até o nascimento de Cristo; a sexta — cuja duragao é indefinida — estende-se da primeira a segunda vinda de Cristo, em um crescendo de tensdo/gScatoldgic@e progressiva realizacao de um sentido indubitavel e j instituido. Personalidade entre as mais fascinantes e complexas do pensamento medieval, Joaquim de Fiore (c.1130-1202), elabora uma teologia da hist6ria fundamentada na con- cepsdo trinitéria (as suas teorias serio condenadas pela Igteja da época) e em uma original interpretagdo dos tex- tos biblicos. O abade calabrés, cuja heranca pode ser en- trevista nas reflexdes de Vico e de Comte, nos movimentos dialéticos de Hegel e Marx ou nas teorias que defendem a ideia de progresso no devir hist6rico, distingue na hist6ria trés estados que correspondem as trés pessoas da Trinda- de. A fase do Pai, a primeira, é aquela do Antigo Testamen-, to eda submissao a Lei, que vai da criacdo até Jesus Cristo. A segunda era, que Joaquim acredita que esteja para con- cluir-se na época em que escreve, é a do Filho, do Novo Testamento, da libertagdo, da graca e da consolidacao da Igreja e das suas instituigdes. Essa era ser seguida pela era do Espirito, a terceira e iiltima da histéria humana, que representa um progresso real em relagao as outras duas € na qual as promessas de salvagao serio cumpridas e se consumaré o fim providencial de amor, paz ¢ justigax O Comentario ao Apocalipse oferece uma bela ima- gem dessa visio. O primeiro dos trés estados — escreve Joaquim — foi sob o tempo da Lei, quando 0 “povo do Se- nhor, ainda pequeno em relagio ao tempo, servia sob os principios deste mundo, sem conseguir obter a liberdade do Espirito”. O segundo estado foi sob o Evangelho, “certa- mente na liberdade em comparacao ao passado, mas néo na liberdade em comparagio ao futuro”: O terceiro estado, que se instituira no fim dos séculos (0 milénio), seré ca- racterizado pela destruigao do “pseudoevangelho do filho da perdicao e dos seus profetas” e por um tempo de plena liberdade, concérdia e graca. Em outros termos, Joaquim considera_o curso_da historia como uma sequéncia. ordenada ¢ ininterrupta de acontecimentos que ¢ marcada por transigdes para épo- cas_superiores, cada qual possuindo a sua prépria verda- de, embora uma supere e suplante a outra ao longo do caminho em diresao ao fim pteestabelecido. Essa visio altera profundamente alguns pontos centrais da teologia 1 Rossano Pecoraro da historia de Agostinho, Com efeito, uma vez recusada a centralidade da figura’de Cristo em prol da dinamica trinitéria, 0 curso histérico ndo & mais considerado um processo que ser encerrado pelo segundo advento do fi- Iho de Deus, mas, sim, um caminho progressivo que se concluiré com a vit6ria da justiga e do amor. Joaquim, portanto, introduz a ideia de um sentido interno a hist6- ria que se fundamenta na encarnacéo, no mundo secular, de todas as figuras da Trindade, Sao elas, presentes em toda a parte, que garantem a inteligibilidade do curso his- t6rico ¢ o desdobramento do plano providencial até a sua efetiva realizacao. . A excecio de Joaquim de Fiore e de alguns debates menores, o interesse da Idade Média pela teologia da his- Loria € muito escasso. S4o os ataques dos avErFoIsiaal que, retomando a filosofia de Arist6teles, defendem a tese da perenidade do mundo e do tempo, a provocar a primeira grande crise na concepgao providencialista crista. Na Re- nascenga, 0 modelo ciclico de hist6ria volta a ocupar um lugar fundamental. A critica da visio linear deve menos ao renovado interesse pelo pensamento da Antiguidade (Po- , por exemplo) do que a afirmagio da centralidade do homem no universo A concepsao linear retorna ao auge no final do sécu- Jo XVII com a obra de Jacques Bossuet (1627-1704). No Discurso sobre a hist6ria universal (1681), 0 teblogo e bis- po francés retoma as teses de Agostinho e sentencia que a hist6ria da humanidade é orientada pela Providéncia direcionada para uma tinica finalidade. O curso dos acon- iosofia da historia 7 tecimentos ou seja, que se referem a um de- terminado povo ou a uma certa época, nao deixa de ser importante no esquema tracado por Bossuet. No entanto, Para compreender verdadeiramente 0 seu significado é necesséria uma perspectiva de maior alcance que permi- ta “ver, de imediato, toda a ordem do tempo”. A historia universal ~ nao s6 no sentido de histéria religiosa, como no de hist6ria secular, politica e social 4 é compreenstvel apenas dentro de um modelo providencial que conduz a redengio da humanidade pela morte de Cristo: “Tudo de- pende das ordens secretas da Divina Providéncia’, senten- cia Bossuet na terceira parte de sua obra. foco da extraordinéria etintempestiva reflexio so- brea historia do filésofo italiano Giambattista Vico (1688- 1744) pode ser encontrado na seguinte definigio de sua obra-prima: a Ciéncia nova (publicada em 1725) € “uma teologia civil racional da Providéncia divina”. Ou seja, éa cigncia da hist6ria cujo sentido é garantido pelo principio da identidade entre verdadeiro (verum) e feito (factum) uma vez que 0 universo histérico é composto por institui- Ges, leis, mitos, linguagens, Estados criados pelo homem, €evidente que ele pode conhecer a sua légica e o seu sen- tido. © autor conhece a sua obra; o verdadeiro é o criado, © feito (factum). Objeto de estudo e descricao €, portanto, mundo das nagdes e ndo o mundo fisico, a natureza: em ambos a Providéncia opera, intervém e guia, No entan- to, se 0 mundo fisico foi criado por Deus ¢ os'seus desig- nios sio impossiveis de serem conhecidos pelo homem, o mundo das nagGes, ao contrério, é um fato, uma criacdo humana, logo, pode ser objeto de um verdadeiro conhe- cimento, ou seja, de uma ciéncia que “nos conduz a Deus como Providéncia etern: “ Vico harmoniza dialeticamente concepgdes aparen- temente contraditérias entre si. A Providéncia é 0 método da Ciéncia nova, Ela explica a heterogeneidade dos fins das agdes humanas, a racionalidade dos acontecimentos seculares. Antes de Kant e Hegel, Vico formula a ideia de ‘que_as_agdes_humanas, mesmo parecendo entregues 40 cas; a0_acaso, a0 absurdo, resuiltam em algo muito maior, possuem ordem ¢ finalidade que vai além do contingente ¢.do imediato, Em outros termos, a Providéncia divina € a forga imanente que fundamenta ¢ orienta 0 movimen- to da historia usando homens e nagdes para a realizacdo de seus préprios designios. Para o pensador italiano néo existe um mundo civil que nao tenha sido fundado em al- guma forma de religido, seja ela paga ou crista, verdadeira ou falsa, monoteista ou politeista. Nos alvores da hist6ria, todas as nagdes comegaram com 0 culto de alguma divin- dade da qual os primeiros sdbios e sacerdotes extrairam normas ¢ leis. No entanto, conforme a interpretacao de Vico, a caracteristica essencial da natureza divina é a Providéncia, ou seja, a “adivinhagao”, a capacidade de prever e tornar compreensivel aquilo que a divindade oferece ao homem. A Providéncia é “a mente legisladora dos individuos’, que, de maneira natural e sem mediacado, age sobre eles; € a legislacao divina que produz 0 mundo civil ¢ garan- te a Gnica coisa que 0 homem ama: a salvagao. Esse vicio egoistico é transfigurado em virtude pelo plano providen- cial divino. Ao avangar na histéria 0 homem continuaré amando apenas a sua salvagao, mas, ap6s casar-se, ter filhos, entrar na vida civil, formar cidades ¢ nagdes, ele estendera esse amor as coisas conquistadas. Em todas es- sas circunstancias (que incluem conflites, guerras, pazes, aliangas, comércios etc.), “o homem ama principalmente a propria utilidade”, O que o mantém e o preserva nessas otdens civis nao é, porém, um princfpio ou uma lei que provém delas, mas, sim, a Providencia, que, ao satisfazer 05 interesses individuais, conserva o mundo das nacdes. ‘Essa complexa dialética entre mundo civil e Provi- déncia, fatos humianos e finalidade divina, objetivos in dividuais ¢ fins universais permite langar as bases do co- nhecimento cientifico da historia, que nada mais ¢ do que © propésito diltimo da especulacao viquiana. Para fazer justiga a sua importancia é preciso lembrar que a ideia de estabelecer o mundo civil, o curso dos acontecimentos hu- manos € a hist6ria das nagdes como contetido proprio de uma determinada ciéncia era algo muito revolucionério ¢ desafiador para o comego do século XVIII. Vico foi contra acorrente em uma época dominada pela doutrina de Des- cartes, pelo desprezo da hist6ria, da tradigao e do pasado, € por uma visao hegeménica de cunho iluminista na qual asunicas verdadeiras ciéncias eram a fis emiAtii Ora, de que modo esse conhecimento cientifico se articu- a? Quais sao os esquemas que o sustentam? O ponto de partida ¢ a identidade entre verum e fac tum; 0 mundo civil € criado pelo homem, origina-se da 20 Rossano Pecoraro mente humana. Os principios da nova ciéncia residem na natureza da mente humana, comum a todos os individuos €, portanto, analisavel com proveito. A primeira cziteza, clara e distinta, que 0 seu estudo revela é que a razio se desenvolveu por iltimo, sendo precedida pela imaginacio (ou fantasia) e pelo sentido. No plano do mundo civil essa constatagio “psicolégica” se converte em modelo hist6rico mediante a distingao de trés épocas ou idades pelas quais todas as nacées esto destinadas a passar (e que, como vimos, sao orientadas pela Providencia). A pi “época dos deuses’, teocratica, na qual os homens “sentem. sem compreender”, acreditam viver sob 0 governo divino “tudo lhes ¢ ordenado pelos auspicios ¢ ordculos”. A se- gunda € a “época dos herbis’, dos mitos e da imaginacio, ccuja caracteristica essencial ¢ 0 dominio das “comunidades aristocraticas’, dos “gentios maiores” que impdem, do alto, leis de origem mitolégica aos “plebeus”. A terceira é a “épo- ca dos homens” e da razo, na qual todos se reconhecem iguais por natureza e, portanto, conseguem fundar “as pri- meiras comunidades populares e depois as monarquias”. Vico rejeita a concepsao linear, retilinea de tempo. A filosofia cla hist6ria se funda em uma visio ciclica ira é a circular, na sucessio de corsi (0 curso dos acontecimentes do mundo das nagGes, que se desdobra através das trés idades) e ricorsi (0 “te-curso”, o movimento para trés, a a primeira época, apés a dissolugao da razdo da idade dos homens). Essa concepc20G2 Alea) porém, nao exclui a ideia de progresso. Ao cont rio, LS a Filosofia da historia a a passagem da idade dos deuses para a idade dos homens é um avango, um desenvolvimento em sentido favoravel do género humano, que, de “ferino’, torna-se “racional”, £ mister ressaltar que a visdo de Vico ¢ rigorosamente determinista, pois 0 curso dos acontecimentos, a transi¢ao de uma época para outra ¢ inevitavel. Trata-se do modelo da “historia ideal eterna’, no qual se refletem fatalmente todas as historias empiricas das varias ages. Por fim, a ideia de um tempo’ciclico orientado por um plano providencial no significa a negacao da finalidade, do sentido da hist6- ria. Pelo contrério, em uma época na qual a sociedade se torna téo supercivilizada a ponto de os homens nao con- seguirem mais se entender e a razdo, enquanto célculo ¢ busca de utilidade, transforma-se em opress4o dominio, (“poética’, como diz Vico), salva o homem da autodestrui- ‘fo racional. lluminismo e secularizacao Corrofda pelos ataques dos pensadores renascentistas, dos chamados “libertinos eruditos” e de Descartes, a filosofia da hist6ria crista entra definitivamente em crise em meados do século XVIII com a afirmagao do Iuminismo. Voltaire (1694-1778) é usualmente considerado o primeiro expo- ente da época das Luzes a sclapar as suas bases. No entan- to, como frisa 0 neokantiano Ernst Cassirer em A filosofia do Iuminismo (1966), esse papel pertence a Montesquieu (1689-1755), cuja obra é a “primeira tentativa decisiva de fundar uma filosofia da hist6ria” dominada e validada por um “princfpio rigorosamente intelectual”, que se opde tanto a visio linear crist’ quanto A concepgao ciclica, Nas Consideragdes sobre as causas da grandeza ea decadéncia dos romanos (1734), Montesquieu investiga os acontecimentos humanos que a primeira vista se apresentam casticos, con- fusos ¢ absurdos, com 0 propésito de detectar um plano racional que os explique e os ordene. A ideia de causalidade 6 nesse sentido, fundamental. O pensador francés parte da andlise dos fatos hist6ricos para chegar a descoberta das re- ages causais a eles subjacentes, as quais, uma vez compre- endidas em sua légica interna, constituirao o téo almejado “principio intelectual” da historia. Ao contrério de seus contemporineos, e de uma for- ma bastante surpreendente, Montesquieu nao esté preo- cupado com a ideia de progresso. Nao hé diregao deter- minada previamente nem fim a ser alcangado. O curso dos fatos humanos é descontinuo, irregular, desordenado, A histéria dos povos e das nagdes (0 centro de gravidade da reflexio é sempre a histéria politica) desdobra-se por fases, ora de grandeza, ora de decadéncia. A tarefa do fi- I6sofo da histéria 6, pois, voltar-se para o passado, exa- minar minuciosamente os acontecimentos, individuar as suas conexdes e, finalmente, detectar as leis causais que os regem e os explicam a fim de iluminar o presente ¢ tentar prever consequéncias futuras. ‘A Modernidade é a grande época da secularizagio. A Providencia divina é substituida pela ideia de progresso a salvagdo do homem eo Juizo Final, pela confianca na razao no seu obrar mundano. Polemizando veementemente com a apologia de Bossuet, Voltaire pretende destruir o sis- tema religioso e a interpretagao judaico-crista da historia definidos em uma carta de 1755 como o “antigo palacio da impostura’. O plano providencial é posto em xeque ¢ rejei- tado. O mesmo nao acontece com a ideia de um devir his- linear, orientado pela crenga no progresso do espi- rito humano em virtude da iniciativa de grandes homens, especialmente de soberanos (ou déspotas) esclarecidos. Voltaire comeca o seu Ensaio sobre os costumes ¢ 0 ¢s- pirito das nagbes (1756) analisando a cultura chinesa, que acabava de ser conhecida no Ocidente gragas aos relatos de missionérios europeus. O seu objetivo é claro: limitar a importincia da tradi¢ao judaica ¢ da autoridade do An- Providéncia” que “nos reduzem ao silencio”) realcando a “superioridade” da nagdo chinesa, tao antiga ¢ tao rica de contetidos filoséficos e morais quanto o Ocidente, ma vre de milagres, fabulas, promessas divinas, “supersticoes barbaras e insolentes”. A nova visio da histéria que é de- lineada no Ensaio (mas também em outros escritos, no- tadamente O século de Lufs XIV, de 1751; Céndido, 17595 Historia da Riissia sob Pedro 0 Grande, 1759; e Filosofia da hist6ria, 1765) se fundamenta em uma mudanga de pers- pectiva metodol6gica cujo eixo, agora, nao é mais a r gido € 0s acontecimentos politico-dindsticos, mas artes, os costumes, as instituig6es ¢ as realizagées do espi- humano. as AS A 24 Rossano Pecoraro Contra Agostinho e Bossuet, que pretendiam de- monstrar que a historia € a realizago dos designios da Providéncia, Voltaire afirma uma concepsao laica da his- toria na qual o centro é ocupado por uma teoria do de- senvolvimento progressivo da civilizacdo humana, Deus é eliminado da esfera de ago da hist6ria. Finalismo e neces- sidade, no entanto, nao sao questionados: eles continuam sendo os pilares de uma filosofia da histéria secularizada na qual o papel da Providéncia é assuinido pelo desenvol- vimento da razio humana, Trata-se da “saida do honiem do estado de minoridade que ele deve imputar a si mes- mo’, como escreve Kant no ensaio Resposta @ pergunta: 0 que é 0 Iluminismo? (1784), em direcdo a um fim deter- minado, ou seja, a um progtesso para o melhor, decerto repleto de obstéculos, regressdes e estagnagées, entretanto, gradual ¢ inevitavel, vale dizer, necessario, Eem dois ensaios de 1750 (Discurso sobre as vantagens que o cristianismo trouxe para 0 género humano e Discurso sobre os progressos sucessivos do espfrito humano) que o po- Iitico e economista francés Turgot (1727-81) desenvolve a sua tcoria da histéria, O reconhecimento da contribuigéo do cristianismo para a “caminhada gloriosa” rumo a per- feigao alia-se a uma visio laica e secularizada da condigéo humana e do seu sentido. O curso da histéria € guiado por uma ideia de progresso inabalavel que a andlise dos acontecimentos passados revela de uma forma suficiente- mente clara. Nesse processo, o cristianismo tem um papel fundamental: os seus princfpios de caridade e bondade mitigaram os impulsos ferinos da espécie humana contri- Filosofia da hi 25 buindo, destarte; para a instauragio e manutengao de uma sociedade civil. Com base nesses pressupostos, Turgot es- boga uma filosofia da hist6ria dominada pela ideia de um Progresso constante ¢ glorioso, em “direcdo a uma maior perfeigao”, no qual as paixdes e as ambicdes humanas tem um papel importante, j4 que concorrem para “multiplicar ideias, aumentar conhecimentos ¢ tornar as mentes mais perfeitas’, Amigo de Turgot, D’Alembert ¢ Voltaire, participante da Revolugao Francesa no partido girondino, o matemiti- 0, politico e economista Condorcet (1743-94) realiza ple- namente os propdsitos iluministas de uma visio nao reli- giosa dos acontecimentos humanos. A histéria universal é caracterizada por dez fases ou épocas. Em sua sucesso do pior para o melhor elas representam o progresso acumu- Iativo da razdo humana, cuja finalidade € a emancipacio do homem, a sua completa libertagao social e politica. A grande inovagdo de Condorcet consiste na tentativa de aplicar modelos mateméticos a ciéncia histérica, a politi- caea moral, a fim de individuar “constantes” capazes de explicar um mundo sujeito a variagdes imprevisiveis. 0 instrumento fundamental dessa “matematica social” € 0 cdlculo das probabilidades. Os fendmenos humanos sio analisados e formalizados para ¢laborar médias estatis- ticas que permitam formular previsdes suficientemente confidveis. Em sua obra mais célebre, Esbogo de um quadro his- t6rico dos progressos do espirito humano, publicada postu- mamente em 1795, Condorcet exalta a revolucao, conside- rada o apogeu de'um processo de emancipagio comesado com a Reforma protestante ¢ a invengao da imprensa, € enfatiza a harmonia e ¢ 0 progresso moral ¢ politico de homens ¢ nagdes. Ape- nas quando a cigncia e a técnica de cada época ou fase se tornam fatos coletivos, acessiveis a todos ou pelo menos a uma grande maioria de cidadaos, o progresso social do homem se torna possivel e duradouro. A longa marcha tente entre o progresso cientifico do espirito — tragada por Condorcet com otimismo, es- peranga ¢ fervor quase religioso — pode se deparar com sstagnagdes ¢ retrocessos ¢, durante o seu desenvolvimen- na barbdrie ou to, alguns povos correm 0 risco de reca atingir somente os primeiros niveis do progresso civil € moral. Entretanto, a sua finalidade (ou seja, a liberdade e a emancipagao) est garantida por uma visio cientifico- matematica que, na realidade, nao vai muito além de uma confianga em um plano providencial a priori. Por fim, um aceno aos pensadores escoceses do sé- culo XVII (Adam Ferguson, Adam Smith, John Millar), cujo objetivo era‘superar o nivel de anélise meramente politica dos acontecimentos humanos. As suas pesquisas se concentraram, portanto, na histéria da sociedade ci- vil tendo como escopo principal a individuayao de “leis” (econdmicas, geograficas, demograficas, naturais) capazes de explicar as varias fases ¢ formas da evolugao humana. A Logica, 0 sentido dos acontecimentos, reside nas proprias agdes humanas, nos interesses individuais ¢ coletivos que as orientam, Nao ha mais um Deus. No entanto, de acordo com as ideias desses pensadores, um designio providencial de cunho econémico, uma verdadeira lei invisivel do mer- cado e do capital, garante que, a0 cuidar dos seus interes- ses, 08 homens consigam satisfazer também os interesses dos outros. Trata-se de um aperfeigoamento progressivo caracterizado por quatro grandes estados (selvagem, bar~ baro, agricola, comercial) cujo elemento diferenciador ¢ a maneira com a qual os homens obtém o seu sustento ao longo dos séculos. As grandes teorias da Modernidade E entre o final do sééulo XVIII e 9 meado do século XIX’ que surgem as influentes filosofias da histéria de Kant, Herder, Comte, Hegel, Marx. © fulero das reflexdes de Immanuel Kant (1724- 1804) é a ideia de um progresso cultural da espécie huma- na rumo ao melhor, tao inevitavel quanto necessirio, de um fio condutor a priori capaz de orientar 0 curso obscu- ro € contraditério dos fatos histéricos. O filésofo alemao expoe ¢ “fundamenta” a sua concepgao basicamente nos escritos Ideia de uma histéria universal de um ponto de vis- ta cosmopolita (1784) e O conflito das faculdades (1798), Ciente de que progresso algum poderia realizar-se pelo desenvolvimento das (dibias) qualidades prerro- gativas humanas (“de uma madeira téo retorcida, da qual ohomem ¢ feito, nao se pode fazer nada reto”; a conduta humana mostra-se em seu conjunto entretecida “dle toli- ce, capricho pueril c, frequentemente, também de malda- 28 Rossano Pecoraro de infantil e vandalismo’, escreve no cnsaio sobre a Ideia de uma hist6ria universal), Kant confia no “propésito da natureza’, no seu “plano obscuro” que a espécie humana realizaria ao longo da prépria histéria, mesmo sem ter ne- nhuma consciéncia de estar trabalhando para isso. Ela € © instrumento mediante 0 qual a natureza realiza o seu propésito, o seu fim. Para explicar essa passagem crucial 6 filésofo recorre a uma nogdo que se tornard célebre: a “in- socidvel sociabilidade” do homem, isto 6, 0 feroz antago- smo que a natureza utiliza para alcangar o seu objetivo. Com efeito, é a oposi¢ao entre a tendéncia a associar- se ea separar-se que, despertando todas as suas forcas.¢ alimentando os motivos mais diversos (“busca dé proje- 40”, “ansia de dominacdo’, “cobiga” etc.) leva 0 ser huma- no a superar a tendéncia a preguica ¢ ao isolamento, a fim de proporcionar-se uma posigo entre semelhantes ‘que ele “nao atura’, mas dos quais “nfo pode absolutamente prescindir”. Kant tem em mente a fuindagho de um modo de pensar que, com o tempo, seja capaz de transfigurar as tudes ¢ informes disposigbes naturaié da espécie humana para o juizo moral em verdadelros “ptinetpios praticos” © objetivo? Transformar um acordo “éxtorquido patologica- mente em uma sociedade em um todo moral”. Tratar-se-ia, em suma, de um progressivo esclarecimento da sociedade humana rumo ao melhor, em que se revela a “disposi¢ao de um criador sébio”, incompreenstvel para os homens, mas que realiza o fim providencial da natureza. Ora, 0 problema decisivo colocado nos pardgrafos fi- nais do ensaio é o seguinte: a experi¢ncia pode mostrar Filosofia da historia 29 “algo” de tal curso do propésito da natureza? E a razio, fundamentando-se nos resultados da experiéncia, pode “acelerar 0 advento de uma era tao feliz. para os nossos descendentes”? Em outros termos, ¢ de forma mais clara, 4 possivel identificar no dominio da histéria uma prova, uum signo, um acontecimento real que demonstraria que na espécie humana hé um progresso para o melhor? Mal- grado todas as ressalvas, Kant responde positivamente a essas interrogagbes em O conflito das faculdades: no curso dos fatos humanos sobrevive uma experiéncia ‘hist6rica, um “elemento de fato” que indica a espécie humana o seu destiné ¢ lite revela a sua disposigao ¢ capacidade de pro- gredir em diregao ao melhor, Essa experiencia extraordi- néria, esse elemento, é a Revolugao Francesa; 0 signo que, brotando do universo dos fatos histéricos, doa forca e sen- tido a praxis humana e prova a existéncia de um projeto providencial no qual os homens podem intervir, aceleran- do a realizacao do “propésito da natureza” que vimos ser central no ensaio sobre a Ideia de uma histéria universal. Os eventos revolucionérios mostram a tendéncia da hu- manidade a progredir moralmente, a reconhecer-se como portadora de ideais mais nobres ¢ elevados. Eles nao so a causa do progresso para o melhor, mas sim um indicio, uma indicagao, 0 “signo hist6rico” do seu advento como inevitavel conclusio do devir humano. Para a correta compreensio dessa posigio, deve-se sublinhar 0 seguinte: 0 que é realmente importante para Kant nao € a revolugao em si, mas um aspecto, poderi- amos dizer, um efeito dela. O relampago que irradia luz sobre 0 caminho do ser humano e the revela a disposicéo ‘moral rumo ao progresso e ao melhor é 0 “entusiasmo” do espectador desinteressado, no envolvido nos eventos. signo, o evento extraordindrio, nao esta diretamente rela- cionado, como se esclarece no sexto pardgrafo de O confli- to das faculdades, com as ages politicas dos revol rios nem com a dissolucéo de antigos edifici co surgimento de outros. Ao contrario, ele se dé apenas “‘no modo de pensar dos espectadores”, que se revela publica- mente nas grandes revolugées ¢ cuja manifestagao de um interesse universal e desinteressado demonstra, a um s6 tempo, o “cardter universal” ¢ 0 “cardter moral” da espécie humana e que “ndo s6 permite esperar o progresso para 0 melhor, mas é ele mesmo um tal progresso”. A simpatia de aspiragbes, 0 entusiasmo que as grandes revolugdes pro- vocam nos espiritos dos espectadores néo engajados, con- clui Kant, nao pode ter outra causa “sendo uma disposigao moral da espécie humana”, A centralidade dos “Espiritos dos povos” ¢ a convic- Gao de que a historia da humanidade possui uma raciona- lidade prépria so os pontos fundamentais da reflexéo de Johann Gottfried Herder (1744-1803), deserivolvida prin- cipalmente em Outra filosofia da histéria da humanidade (1744) e Ideias para uma filosofia da historia da humani- dade (obra em quatro volumes publicados entre 1784 € 1791). Observagdes empiricas e cientificas sobre o univer- 50 fisico levaram o fil6sofo e tedlogo alemao a se concen- trar nas leis evolutivas que dirigem o curso dos aconteci- mentos humanos. Desde a juventude ele se interrogava a respeito de uma questio essen filosofia, a sua cién-ia ea sua racionalidade, entio também aquilo que nos interessa e nos atinge mais diretamente, ou seja,a historia da humanidade, deve ter uma filosofia, uma ciéncia e uma racionalidade proprias. Segundo Herder, a evolugao da humanidade se d por fases. S40 0s povos em sua individualidade, os fatos locais, as produgdes populares de cada nagdo (fabulas, mitos, mi- sicas, costumes) que, ao se entrelagarem em determinadas €pocas e situagoes, dio forma ao progresso ¢ injetam sen- tido no curso dos acontecimentos histéricos, Herder rejei- ta a ideia iluminista de que seriam os soberanos ¢ os Esta- dos ~ unificadores de diferencas — a ter essa fungao. Além disso, critica duramente as Luzes por terem transformado a hist6ria em um processo centralista, unitério e atempo- ral, que dissolve a pluralidade de significados expressos por homens e nagoes que ele considera 0 tnico fator de Progresso e aperfeicoamento. Também a Providéncia, em sua acepsao teolégico-religiosa, desaparece do cenério. Os auténticos protagonistas, agora, so 0s “Espiritos dos povos”, cujas realizagdes constituem a racionalidade e 0 sentido da histéria e através dos quais se manifesta uma bondade divina ¢ orientadora & qual os designios huma- nos devem, em iiltima andlise, submeter-se. Fildsofo e socidlogo francés, Auguste Comte (1798- sea natureza tema sua da histéria cujo desfecho € uma visio mistico. que pie em seu centro o culto & humanidade (0 “Grande Ser”). sua obra-prima, Curso de ilosofia positiva (em seis 32 Rossano Pecoraro volumes publicados entre 1830 e 1842), tem como ponto de partida a andlise da situagao hist6rica, politica e econ6- mica de sua época. O diagnéstico é extremamente negati- vo: desordem ¢ anarquia dilaceram 0 mundo moderno, no qual duas correntes partidérias opostas, a revoluciondria a conservadora, tentam em vao impor uma nova e mais equilibrada estrutura social, privilegiando ora a mudan- ga € O progresso social ora a defesa da ordem. O fracasso de ambas deve-se a auséncia de principios metédicos ¢, sobretudo, a0 dogmatismo ¢ ao absolutismo que caracte- rizam as suas posigées. E necessdrio, pois, que a filosofia (e a politica) teolégico-metafisica seja substituida por uma filosofia cientifica ou positiva. Para tanto, é de decisiva im- portancia investigar a evolucdo histérica da humanidade mento humano”), a fim de individuar as leis que a orientam rumo a um objetivo final. A deducdo da “grande a todos os ramos da civilizagao ocidental ige “a evolugéo do conhecimento humano em todas as suas esferas de atividade” ~ é 0 resultado dessa investi- gagdo. A “descoberta” de Comte, na realidade, nada mais € do que a retomada de uma ideia bastante explorada, ou seja, a teoria dos trés estados, sucessivos e necessérios, do progresso da humanidade: o teolégico ou ficticio; o meta- fisico ou abstrato; 0 cientifico ou p. Na primeira época 0 homem interpreta o mundo de forma antropomérfica, tenta compreender e dominar a na- tureza através de praticas mistico-religiosas com a invoca- so de deuses, poderes miticos ¢ magicos. E a infancia da vo. | Sen RRS np ns, 33 humanidade, na qual a imaginacio e a fantasia orienta a busca dos principios absolutos de todas as coisas e os fend- ‘menos sio considerados o efeito das decisdes de um deus (monotefsmo) ou de muitos deuses (politeismo). A socie- dade funda-se no trabalho escravo ¢ na guerra, € 0 governo & rigidamente teocrético-militar. A saida dessa fase repre- senta o primeiro significativo avanco da humanidade. No estado metafsico a crenga na ago de forgas sobrenaturais pelo raciocinio abstrato. O homem menta o seu conhecimento ~ que ainda é caracterizado pela busca de critérios explicativos absolutos — nas entidades abstratas da reflexo filos6fica. Na sociedade se afirmam 0 individualismo e o egofsmo. No Ambito politico, 0 “estado dos juristas’, no qual a soberania é transferida para 0 povo em virtude da ideia do contrato social, suplanta o poder de monarcas ¢ imperadores, mas sem conseguir evitar 0 sur- gimento de conflitos entre partidos, forgas econdmicas ¢ seitas. Na época positiva, a marcha do progressivo desen- volvimento humano comega, finalmente, a consumar-se, A observacdo ¢ 0 respeito dos fatos, a adogio de um método fico a afirmagio da “fisica social” ou sociologia, que integra e completa o sistema das subs- Descartes ~,0hhomem cessa de interrogar-se em vao quanto ios absolutos e aos porqués das coisas do mundo e comeca a investigar as relacdes entre os fendmenos a fim de individuar cientificamente as leis que os regulam. No entanto, o estado positive s6 poderé alcancar 0 seu apogeu, realizando plenamente a finalidade (télos) in- trinseca da filosofia da hist6ria comtiana, quando todas as atividades humanas tiverem se convertido ao método cientifico. Adotado hé muito tempo pela matemitica ¢ pela fisica, ele € totalmente ignorado pela politica, pela economia e pela moral. Nessas esferas de agio dominam ainda os preconceitos, as superstigdes ¢ as iniciativas de- sordenadas e egoistas de individuos ¢ grupos. A misséo que Comte confia a si mesmo e & sua inovadora ciéncia (a fisica social ou sociologia) é, portanto, a de efetivat a pas- sagem para o estado positivo de todos os saberes. Uma vez alcangado o fim da prépria evolucao, o homem poder, fi nalmente, viver em uma espécie de idade de ouro, na qual todos os conflites sociais e politicos terao desaparecido e © bem-estar econdmico, social e espiritual apoderar-se-4 do mundo, Trata-se de uma visio extremamente otimista que, que institui a religiao da humanidade (quatro volumes publicados entre 1851 ¢ 1854) e Catecis- ‘mo positivista (1852) -, transforma-se em uma verdadeira religido mundana que possui o seu Deus (a humanidade, © “Grande Ser”), os seus santos (os cientistas que guia- riam 0 progresso) € 0 seu pontifice (0 préprio Comte), As ideias positivistas, especialmente a conciliagao de duas noses hist6rica e politicamente opostas, mutuamente ex- cludentes ~ vale dizer, a defesa da ordem (conservadora) ea necessidade do progresso (liberal-progressista) -, tive- ram grande influéncia na formagao do pensamento repu- blicano no Brasil. O maior exemplo é a bandeira nacional, nna qual esté esculpido o lema de inspiracéo comtiana “Or- dem ¢ Progresso”, Nesse contexto devem ser mencionadas as ideias do filésofo francés Pierre-Joseph Proudhon (1809-65), ex- pressas sobretudo nos livros O que é a propriedade (1840) € Sistema das contradigoes econdmicas ou filosofia da misé- ria (1846). Dois sao 0s pontos centrais do seu pensamen- to: a ambigua concepgdo de propriedade como “roubo” ¢ “liberdade” e a profunda rejeigao de qualquer explicasio divina e providencialista da historia humana. Quanto ao primeiro, a contradicao se dissolve diante da distincao entre 0 aspecto ofigindrio e ineliminavel da propriedade, vale dizer, a posse dos meios de produgao ¢ 0 resultado do seu exercicio, ou seja,a efetivagao de um sistema no qual a propriedade desss meios se concentra em poucas pesso- as, 0 trabalho se transforma em alienagio ¢ a propriedade (a posse) se torna renda parasitaria, fonte de sujeicao ¢ desigualdade. Essa ideia contribui para esclarecer a filosofia da his- t6ria proudhoniana, que é forjada a partir de trés “ele- meaitos” essenciais, a saber, ateismo, confianga na razio humana, crenga na poténcia emancipacionista da revolu- (0. Suprimida a interyengao divina nos acontecimentos mundanos, é 0 “intelecto coletivo” ou “universal” a guiar, agora, a marcha da humanidade em diresao a libertacao, Os avangos da histéria nao so lineares. Eles s4o provoca- dos por crises revolucionérias sucessivas (Proudhon fal 36 Rossano Pecoraro em quatro épocas), cujo fim é 0 advento de uma sociedade sem Estado regida por principios de justica, igualdade ¢ harmonia social. Histéria e historicidade s4o fundamentais no gran- dioso sistema elaborado pelo filésofo alemao Georg Wi- Ihelm Friedrich Hegel (1770-1831). Nos escritos juvenis, a influéncia dos ideais iluministas de emancipacio das trevas religiosas e politicas da tradigao se revela determi- nante, Os grandes acontecimentos da Revolugdo France- sa levam Hegel a buscar nas repiblicas da antiga Grécia © modelo de comunidade ideal (harmonica, patriética e popular) que os acontecimentos politicos e sociais suces- sivos ~ a partir da ascensdo do Império Romano, e com a fundamental e nociva contribuigio do cristianismo — te- riam destruido, abrindo caminho para o surgimento de Estados tiranicos e sociedades individualistas. Em seguida, nos anos de Frankfurt e Jena, a ideia de um retorno ou uma renovacéo da harmonia grega € abandonada e come- am a surgir os grandes temas que marcardo a tiltima fase do pensamento hegeliano: reconciliagao com o cristianis- mo, realismo politico, desconfianga para com o futuro ¢ as suas promessas de emancipagao, afirmacio do presente como momento fundamental (final) da histéria em con- traposigao tanto as nostalgias reacionérias de um retorno ao passado como aos propésitos progressistas e liberais de uma transformagdo necesséria e iminente da sociedade. Em A fenomenologia do espirito (1807), 0 maior ali- cerce do seu sistema filoséfico, Hegel se engaja na cons- trugio de uma “ciéncia da experiéncia da consciéncia” cE SR ‘EE RECA Filosofia da histéria 7 A partir da reflexao sobre os eventos hist6ricos, politicos ¢ sociais de sua época (a Revolugao Francesa, a Restauragio ¢0 dominio napolednico sobre a Europa), séo examinadas e descritas as etapas da constituicao e do desenvolvimento da consciéncia natural, desde os seus graus mais imediatos e simples até o pleno reconhecimento do saber (ou espiri- 10) absoluto, ou seja, a superacao das cisdes e a extraordi- néria sintese das verdades de todos os saberes precedentes (filos6ficos, histéricos, cientificos, artisticos). A extrema complexidade e vastidio do pensamento de Hegel - como a leitura desses poucos tracos, gerais ¢ introdutérios dei- xa facilmente intuir ~ obriga-nos a circunscrever radical- mente o terreno da nossa investigacao. Nesse sentido, duas so as obras que é preciso examinar: Lineamentos de filoso- fia do direito, de 1821, e Ligoes sobre a filosofia da historia, publicada postumamente. " Nanatureza, momento precedente ¢ inferior ao espi- rito (o homem e suas atividades), nao ha desenvolvimen- to nem progresso. A sua forma peculiar € 0 espaco, ¢ 0 seu ritmo temporal nada mais é do que repeticéo, eterno retorno do igual. Histéria e historicidade sio privilégios do espirito. No entanto, elas esto ainda ausentes no pri- meiro grau da sua articulagdo, ou seja, no “espirito sub- jetivo” que corresponde & posi¢ao do homem enquanto individuo. Apenas no apogeu da fase sucessiva, na qual 0 homem € considerado em suas relagdes familiares, sociais € politicas (0 “espirito objetivo”), € que se torna possivel uma filosofia da histéria que explique ¢ oriente 0 curso dos acontecimentos humanos, 36 Rossano Pecoraro em quatro épocas), cujo fim é 0 advento de uma sociedade sem Estado regida por princ{pios de justiga, igualdade harmonia social. Histéria ¢ historicidade sio fundamentais no gran- dioso sistema claborado pelo fildsofo alemao Georg Wi- Ihelm Friedrich Hegel (1770-1831). Nos escritos juvenis, a influéncia dos ideais iluministas de emancipagao das tuevas religiosas e politicas da tradigdo se revela determi- nante, Os grandes acontecimentos da Revolucdo France- sa levam Hegel a buscar nas repuiblices da antiga Grécia © modelo de comunidade ideal (harménica, patridtica e popular) que os acontecimentos politicos e sociais suces- sivos ~ a partir da ascensdo do Império Romano, e com a fundamental ¢ nociva contribuicao do cristianismo — te- riam destruido, abrindo caminho para o surgimento de Estados tiranicos e sociedades individualistas. Em seguida, nios anos de Frankfurt ¢ Jena, a ideia de um retorno ou uma renovacao da harmonia grega ¢ abandonada e come- sam a surgir os grandes temas que marcardo a tltima fase do pensamento hegeliano: reconciliagao com o cristianis- mo, realismo politico, desconfianga para com o futuro e as suas promessas de emancipacéo, afirmacao do presente como momento fundamental (final) da histéria em con- traposigao tanto as nostalgias reacionérias de um retorno ao passado como aos propésitos progressistas e liberais de uma transformagdo necesséria e iminente da sociedade. Em A fenomenologia do espirito (1807), 0 maior ali- cerce do seu sistema filoséfico, Hegel se engaja na cons- truco de uma “ciéncia da experigncia da consciéncia”. "la Sn SE RR NN ne RECN Filosofia da histéria 37 A partir da reflexao sobre os eventos hist6ricos, politicos ¢ sociais de sua época (a Revolugdo Francesa, a Restauragao 0 dominio napolednico sobre a Europa), so examinadas e descritas as etapas da constituigao e do desenvolvimento da consciéncia natural, desde os seus graus mais imediatos e simples até o pleno reconhecimento do saber (ou espiri- to) absoluto, ou seja, a superacdo das cisdes e a.extraordi- naria sintese das verdades de todos os saberes precedentes (filos6ficos, histéricos, cientificos, artisticos). A extrema complexidade e vastidao do pensamento de Hegel - como a leitura desses poucos tragos, gerais ¢ introdutérios dei- xa facilmente intuir ~ obriga-nos a circunscrever radical- mente o terreno da nossa investigacao. Nesse sentido, duas so as obras que € preciso examinar: Lineamentos de filoso- fia do direito, de 1821, ¢ Ligdes sobre a filosofia da historia, publicada postumamente. "Na natureza, momento precedente inferior ao espi- tito (0 homem ¢ suas atividades), ndo hd desenvolvimen- to nem progresso. A sua forma peculiar € 0 espaco, ¢ 0 seu ritmo temporal nada mais é do que repetigao, eterno retorno do igual. Histéria e historicidade sao privilégios do espirito, No entanto, elas estdo ainda ausentes no pri- meiro grau da sua articulacdo, ou seja, no “espfrito sub- jetivo” que corresponde & posi¢o do homem enquanto individuo. Apenas no apogeu da fase sucessiva, na qual 0 homem ¢ considerado em suas relacdes familiares, sociais € politicas (0 “espirito objetivo”), é que se torna possivel uma filosofia da histéria que explique ¢ oriente 0 curso dos acontecimentos humanos. Decisivo nesse processo é 0 papel do Estado moderno, a tinica instituigao capaz de realizar a plena liberdade dos individuos e de lhes confiar um destino, uma tarefa, uma finalidade universal cujo desdobramento se dé na hist6ria politica. Hegel recusa tanto 0s ideais iluministas e as teorias do contrato social como o liberalismo e todas as posicdes reacionérias que invocavam um retorno a sistemas politi- cos precedentes. Ao afirmar que “tudo o que é real é racio- nal’, 0 fil6sofo quer sublinhar que o Estado ~ se comparado com a existéncia humana ~ representa, sempre, a encarna- 40 suprema da racionalidade no mundo, que supera os interesses pessoais e promove um fim transcendente que nao pertence as intengSes individuais. Os Estados, por- tanto, so os protagonistas da “historia do mundo”, Esta nada mais é do que o eterno, imponente cenério da vida daqueles. Nas Ligdes, porém, Hegel esclarece que o Estado ex- prime o “espirito do povo”, que, historicamente, a cada vez, dé-lhe forma. Nesse sentido, a filosofia da historia pode dedicar-se apenas aos povos que, a0 longo dos séculos, representaram um momento fundamental do progresso da humanidade regido por uma rigorosa lei de sucesso ideal: cada fase é realizada por um determinado povo que, uuma vez esgotada a sua tarefa, fica relegado as margens do desenvolvirnento sucessivo, cuja frente é tomada por um povo diferente e assim por diante. Existem trés graus nesse processo. No primeiro, o mais baixo, esto os povos orientais, dominados pelo despotismo e, portanto, des- providos de qualquer tipo de liberdade. A fase sucessiva, na qual apenas alguns so livres, é representada pelos po- vos grego e romano. Com a ascensio da aristocracia eles realizam, pela primeira vez, uma forma embrion: trita de liberdade politica, que, embora insuficiente, nao deixa de ser um progresso em ditecio ao fim historia: a Europa moderna e os seus povos. Para alcancar a meta, o terceiro e mais alto grau do des espirito, sdo fundamentais os ideais de igualdade ¢ justiga do cristianismo, que, assimilados pelos povos germanicos, permitem a realizagao progressiva da plena e completa li- berdade de todos (sempre, porém, no ambito ¢ sob a sobe- rania da Lei e do Estado). O “fim da hist6ria do mundo” é pois, a consumagio da longa marcha do espirito rumo ao saber daquilo que ele é verdadeiramente ¢ a sucessiva efetivacao (ou obje- tivagdo) desse saber em um mundo no qual ele mesmo se revela, A histéria universal, escreve Hegel, ¢ a “repre- sentagao do processo divino”, do curso gradual “em que © Espirito conhece a si mesmo e a sua verdade e a realiza’ Em outros termos, uma racionalidade progressiva se ma- nifesta na hist6ria. Os materiais com os quais trabalha e os instrumentos que usa so os povos ¢ 0s individuos, que, para além de qualquer intengao consciente, tanto subme- tendo-se como resistindo a seus planos, contribuem para a realizagdo de uma finalidade universal. £ 0 que o filésofo define como “astiicia da razao”, tradugdo laica, seculariza- da ¢ imanente do conceito cristéo de Providéncia Filosofia, historia, economia, ciéncia contribuem de forma decisiva para a formacio do pensamento de Karl e res- imo da wolvimento do

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