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DIALOGAR COMA ANSIEDADE Weslo) 0 CUIDADO ea ae | ,, A ansiedade “Aquele que aprendeu corretamente como Ser ansioso aprendeu a coisa mais importante.” (KIERKEGAARD, APUD May, 1977, P. 90) DEPOIS DE FUNDAMENTADO meu olhar no que diz Tespeito a psico- patologia, éhora de comecar a delinear uma descrig&o e uma com- preensao da ansiedade. Nao vou diferenciar aqui a ansiedade da angustia, pois entendo que essa particularidade tem mais perti- néncia em um trabalho de filosofia do que em um, como este, que mira a psicoterapia. Acompanho Kurt Goldstein (2000, p. 230), que afirma usar a palavra “ansiedade” em correspondéncia ao ale- mao Angst. Nesse aspecto, May (1988, p. 122) discorre sobre a dificul- dade do idioma inglés, que nio tem uma boa tradugio para Angst, “palavra usada por Freud, Kierkegaard, Goldstein, Binswanger (con- forme suas tradugées do alemao)”, e dé a entender que, na falta de uma boa palavra, traduz-se o termo por anxiety, o que nao é exata- mente correto. Isso obriga a que se tome o sentido da palavra ansie- dade em sua base ontoldgica, compreendendo-a “como uma amea- $a ao proprio ser”. Aqui também me utilizarei desse caminho, mesmo acreditando que o idioma portugués tem riqueza suficiente Para se aproximar do alemao. Fago isso também para entrar em Consonancia com o uso do termo “ansiedade” no DSM-5 e nas prin- Cipais referéncias da area e da Gestalt-terapia. Do que falo quando me refiro A ansiedade? Ha dois prismas a responder a essa pergunta, um mais descritivo e outro mais preensivo. Vou passar pelo descritivo para depois me dedi- ‘ao compreensivo, de base ontoldgica. a 31 Digitalizado com CamScanner ENIO BRITO PINTO Aansiedade é uma vivéncia de sobressalto, Ou, como ag fing ter; pela expectativa de algum perigo que se revela indeterminna’ impreciso, e diante do qual 0 individuo se julga indefeso” Tate _se de um estado de certa agitacdo - podendo chegar a muita mn tacao - € inquietude e se baseia em algo que poderfamos 1 0 diciondrio Houaiss, “um estado afetivo penoso, carac ramente chamar de medo antecipado. E acompanhada de mudancas neurovegetativas e hormonais ligadas a tensao, como alteracdes no ritmo cardfaco, no sono e no apetite, aumento da sudorese, agitagao psicomotora, sensa¢ées de opressao no peitoe de falta de ar, além de outros possiveis sinais, vivéncias que tém diferentes intensidades para diferentes pessoas e, na mesma pes- soa, diferentes intensidades a cada situag4o ansiogénica. A ansie- dade pode também derivar de consumo de medicamentos ou outras substancias, além de ser sintoma de algumas patologias. E interessante também notar que os sinais corporais da ansie- dade sao praticamente os mesmos do medo, embora se trate de duas vivéncias diferentes, ainda que comumente interconectadas. Como ja vimos, o DSM-s traz uma lista de transtornos de ansieda- de e, além disso, a descreve como fator importante em varios so- frimentos emocionais e patologias que, se nao sio transtornos de ansiedade, tém nela fator relevante. Destacam-se, nesses casos, 0S ttanstomos de humor, nos quais a presenga de ansiedade, geral- a a Patolégica, é facilmente notada e praticamente obrigaté- dep acogee clinica cre) fe Por exemplo, uma Nivea ne are associada a aes ae rolégica, 2m tanto e quand ela ¢ parte den tansorny ene » OU seja, us a: 3 lando ela é © principal fendmeno de um sofrimento e quando Senate ‘undaria, embora importante. Entendo que o DSM-5 fay 32 a Digitalizado com CamScanner DIALOGAR COM A ANSIEDADE bem essa diferenciagao e sugiro sua leitura. Tomo tal decisio nio porque essa diferenciacao nio seja importante, mas porque pre- tendo me dedicar a compreender a ansiedade como vivéncia com sentido, uma compreensio mais titil ¢ produtiva para os: psicoterapeutas. Essa compreensio & qual me dedicarei mais de- talhadamente a partir de agora abarca a ansiedade em suas duas formas de se fazer presente, seja como transtorno, seja como sin- toma de transtorno, segundo o DSM. Em qualquer das duas possibilidades, a compreensio tedrica da ansiedade varia muito, dependendo da visio de ser humano de cada autor ou da abordagem em psicologia, com sua conse- quente visio de satide ¢ adoecimento. E por isso que comecei este livro com um capitulo no qual me posiciono diante desses temas e da ansiedade, pois ali esto os fundamentos mais signi- ficativos para o olhar que desenvolvo aqui. Minha compreensio da ansiedade nesta obra tem como um dos pontos basicos o fato de que ela é inerente ao ser humano, ou seja, € uma defesa que trazemos em nds e com a qual desde muito cedo temos contato, Nao hd ser humano sem ansiedade. A vivén- cia dela é que varia segundo cada pessoa e cada situagio, o que nos possibilita falar em ansiedade saudavel (“ansiedade normal” Para May e “existencial” para Tillich, também chamada de funcio- nal em Gestalt-terapia e em psiquiatria biomédica) e em ansieda- de patolégica (“neurética” para May, “patolégica” para Tillich ou disfuncional), dependendo de como ela é vivida. Para May (1977, P.185), “a ansiedade neurdtica é simplesmente 0 resultado a longo Prazo da ansiedade normal nio enfrentada”, 0 que é um étimo Ponto para se refletir. Aansiedade é uma das forgas naturais de que o ser humano para lidar com a realidade e com os sofrimentos e Digitalizado com CamScanner ENIO BRITO PINTO fios do cotidiano. Ela provoca uma prontidjo Psicossa, ca para lidar com © fato Seance ameagador, competéncia protetora da integridade do ser que, qu dosada, ¢ eficiente e fundamental suporte para o cuida o crescimento existencial, a necessaria autoatualizacio ¢ ale, como mundo cotidiano presente, lugar onde a vida de fato acon. tece. A ansiedade defende o ser e seus valores mais caros, No psicopatologizado mundo atual, em vez de ser compreendid, como defesa - como 0 que de fato é -, a ansiedade, saudavel o, patologica, é cada vez mais vista como defeito, problema, sinto. ma a ser eliminado. Isso me preocupa, pois corremos 0 risco de propor guerra Aquela que é a habilidade humana mie de todos o cuidados. Muitas vezes é como se manddssemos matar o mensa- desal iti. Bera lando bet do Pessoa geiro porque a noticia que traz nao é agradavel. Isso me parece t4o importante que dedicarei um capitulo deste livro ao tema. Se aansiedade pode ser vivida tanto de forma saudavel como de forma patoldgica, que critérios temos para diferencid-las? Em primeiro lugar, o fator mais importante para que a ansiedade seja vivida como saudével ou nao é a qualidade do contato que a pes- Soa tem consigo, com o ambiente e com o fendmeno potencial- mente gerador de ansiedade. O didlogo com a ansiedade a cada nova situacao vivida se da a partir do autossuporte e do suporte ambiental, uma vez que ninguém vive sozinho ou independente do outro € do campo. Dessa forma, se a Pessoa confia em seu autossuporte e no suporte ambiental do momento, pode correro HSCO € crescer, ¢ af temos a ansiedade existencial ~ Confia em que tem recursos suficientes para comegar €m que, uma vez iniciado o proce compasso com o campo, novos recur: © individuo algo novoe ibera desenvolver, em hecessérios pg © Pata dar ‘abo da tarefa a que se Propde. No autossuporte, dois fatores se = _ til Digitalizado com CamScanner DIALOGAR COM A ANSIEDADE destacam: a confianga em si e nas possibilidades de futuro ¢ a historia dos didlogos com a ansiedade ao longo da vida. No su- porte ambiental também encontramos principalmente dois fa- tores - um, histérico, diz respeito 4 forma como, sobretudo na mais tenra idade, 0 mundo foi apresentado para a pessoa pela familia e pela sociedade; outro, a como o campo favorece a lida coma ansiedade no momento presente. Darei como exemplo uma situago que vivo com relativa frequéncia e provoca ansiedade: uma palestra para um publico pouco conhecido. Desde a preparagao do tema, 0 cuidado com 0 bom embasamento das ideias que sero apresentadas ¢ com a coeréncia interna do texto, bem como com sua clareza, sao pro- vidéncias que tomo com um nivel bem aceitavel de ansiedade. Esta vai se ampliando a medida que se aproxima 0 momento de até que entro no que Perls, Hefferline e m de “excitagdo do crescimento is, Hefferline e Goodman, com- do de ansiedade razoavel, comegar a atividade, Goodman (1997, p- 45) chama criativo’. Diferentemente de Perl: preendo o fendmeno como um esta ue chamamos de existencial ou normal, uma ansiedade paralisante porque confio suficiente- pacidade de lidar que s6 nao se encami- "mente nos meus conhecimentos ena minha caj oe de dar conta de eventuais problemas que porven- |. Antes de comecar a palestra procuro sempre CO- rificar OS recursos audiovisuais de que dispo- em busca de igar e vel o um pri es, Comeco a palestra em um estado ), nao raro com medo também. medida que 0 minha ansiedade tende a baixar. Para que jontade, preciso, além de autoconfianga, ais de que estou sendo compreendido, imeiro contato com 0 ambiente de ansiedade B35 Digitalizado com CamScanner ENIO BRITO PINTO ental. Durante toda a palestra minha ans, o suporte ambien ba, pois 0 didlogo com ela é um dos dag oscila, mas 40 ee aatividade até o fim em bom i autossuportes eee eee aplateia. TM oferecendo never’ nesse exemplo eu tratei do suporte ambien Chen won éxito do momento em que aansiedade gy. imediate outro tipo de suporte ambiental, talvez até mais impor. A ak suporte dado pela familia e pelo ambiente desig muito cedo, basico para que a essa desenvolva o autossuports, Esse tipo de suporte ambiental é bastante complexo, com muitas varidveis a ser observadas - da forma como a mie acolhe o bebe maneira como a familia confirma, ou nao, as escolhas da crianca e do adolescente. Em virtude dessa complexidade, o tema merece. tia, por si s6, um livro, o que nao seria possivel agora. No entanto, neste momento, devemos ter em vista algumas premissas acerca de como o suporte ambiental nos primeiros anos de vida Pode fa. vorecer, ou nao, a viveéncia predominante de ansiedades saudaveis, E do espaco doméstico e intimo, sobretudo no primeiro ano de vida - época da relacio primal, conforme Neumann -,quea -ctianga recebe com maior poder de formacio as nogoes a partir das quais constréi e expressa sua autoconfianga no correr da - Arelacdo materna € crucial no come¢o, ou, como diz Neu- (1995, p. 19) ao se Teferir ao contato com a mae, é impor- -lembrai ey €“o maternal em termos genéricos que se no, 4, ; fundamento indispensavel da vida da crianga”. Para 3 Pela Contengao, pela alimentacao, LO ac i j = Neen afetivo da crianga. Ele comple- oe 5 mae na relacio coma crianga no pri- ae iO i re : Moonscientemente € vitalmente ne- 0 dese *nvolvimento Normal do filho”. » a " 7 O _ Digitalizado com CamScanner ternagem se dj Ger DIALOGAR COM A ANSIEDADE Ao longo da infancia e da adolescéncia, a educagio fami- liar, informal, amorosa (ou nao) possibilita a incorporagao de yalores, simbolos, conceitos, preconccitos ¢ ideologias, incor- poragao esta que € reforgada pelos dérgios culturais encarrega- dos de complementar a familia na tarefa educacional - como é o caso da escola ¢ das religiées, entre outros. No inicio da vida, 6 papel da familia é apresentar o mundo ao filho, mas quem vai constituir-se ~ ¢ constituir o seu mundo - é a crianga, que jA tem, como instrumentos para tanto, disposicao corporal, dispo- sigao psiquica, constelagao hereditdria e individualidade presen- tes em sua unidade organismica. Ha, no meu modo de ver, dois fatores, entre muitos outros, que, como suportes ambientais, s4o imprescindiveis para facilitar o desenvolvimento de um autossuporte que amplie as habilida- des necessdrias para dialogar com as ansiedades vividas em todas as etapas da vida. O primeiro deles e mais importante ¢ 0 amor explicitado, ou seja, aquele que nao deixa nos filhos a dtivida so- bre a existéncia relativamente incondicional desse sentimento, o que favorecerd na crianga o desenvolvimento da confianga de que a propria existéncia tem sentido. A boa educagio é erética, favo- rece uma relacdo erotizada com o mundo e com as pessoas. A erotizacao da vida é que da a ela um sentido. Erotizagao no aspec- to mais amplo da palavra, aquele que vem da busca do amor e do Prazer, permitindo e favorecendo o gosto de saborear, dai a possi- bilidade da sabedoria. O verdadeiro desejo de saber é erdtico. O segundo fator tem relago com a curiosidade, outra virtu- de humana que nio é bem compreendida por nossa cultura. Como jé vimos, ¢ tarefa bisica de pais e mies apresentar o filho & € ea realidade ao filo desde que ele nasce. Também des- de sua vida, a crianga explora esse mundo que Digitalizado com CamScanner ENIO BRITO PINTO Ihe é apresentado, buscando uma forma Propria de lida, on Be interferir nele de manera pessoal e tinea Isso ¢ tae ve a avida, tarefa que se inicia ja ae no ttero Matem 5 ty como base para ser saudavel uma atitude Curiosa acerca dy encontra pelo caminho. O processo educacional tradicio, dea inibira curiosidade infantil desde o ae © a0 longo de tos a vida dos individuos, pois somos uma eee QUE Se basein fortemente na ordem, no controle, na previsibilidade - atitudes contrérias a um olhar curioso para o mundo, dado que este é car. ese Nal ten, tegado de excitagao e de desejo de aprender, puerta (e Necessita) lidar com incertezas, dialoga melhor com a ansiedade. Esse olhar curioso para o mundo, quando bem acolhido e incentivado, abre as portas para a amplia¢ao da autonomia - ca- Pacidade que a pessoa tem de se guiar principalmente pelas pré- Prlas regras, ainda que com o cuidado de dar aten¢ao ao am- biente e a seus limites, Desse modo, filhos para a autonomia, esto atent bre o mundo ¢ o incentivam ao maxi quando os pais educam os ‘0s ao seu olhar curioso so- imo. A educacio para a au- tonomia compée um Suporte ambiental que facilitarg os dialo- idade. Para essa educacio, cjam Permedveis a mudan- lades e de Mudar Comporta- eM Que estes ja ng ‘ige-se dos pais plasticidade, que s SS, capazes de experimentar novid. Tentos e valores assim que descobr: dem mais as necessidades atuais, Ei io respon- debons didlogos com a ansiedade, 'm resumo, Pessoa, °due €um Pouce ran, infe- 40 menor sinal de Curios di Postas, jé lhe sejam q a mpedindo a exploragio; ou eng 9 defi- 'S Capazes izmente, Q mais comum é que, da crianga,j8 the sejam dadas res nigGes da tealidade, j Sejam estipuladas i | Digitalizado com CamScanner ~~ DIALOGAR COM A ANSIEDADE rem obedecidas), além de intimeros “deverias” ¢ “niio deverias” oct deveria ser ou fazer assim, vocé nao deveria ser ou fa er | assim), OS quais podem se tornar introjecdes cristalizadas e, des- sa forma, dificultar 0 processo de autoatuali cdo. Inibem-se, assim, 28 possibilidades de perguntar e de desobedecer, tio basi- cas para que conhegamos 0 mundo e nele dialoguemos com nos- sas ansiedades. Nao quero com isso fazer crer que a boa relacio prescinda | de regras. Nao é isso. Toda convivéncia humana precisa de regras que Ihe sirvam de parametro e de limite, e a relacao entre pais e filhos nao ¢ diferente, antes pelo contrario. O que quero dizer que a telagdo familiar boa e encorajadora nao conhece regras imutdveis, permeavel a mudangas em sua estrutura dependen- do de cada circunstancia, convive de maneira saudavel com as ansiedades. Em outros termos: a boa relacao familiar é aquela essencialmente dialdgica, ou seja, é feita entre as pessoas. Quan- do estou numa relagao dialdgica, eu dialogo com o outro, ougo suas necessidades e ponderagoes, ougo minhas necessidades e ponderacées e, junto com ele, respeitando os limites de cada um, estabelego atitudes, deveres e responsabilidades compativeis com as possibilidades, o que favorece para a crianga ou 0 jovem aautoestima necesséria para os didlogos com a ansiedade ao lon- go da existéncia e para a consequente autonomia. A atitude que cria as melhores possibilidades de suporte ambiental para que a crianga aprenda a dialogar bem com a ansiedade é a mesma que favorece a abertura as to necessirias possibilidades de desobe- diéncias derivadas da condugo auténoma de si. A relagao entre iedade, autonomia e (des)obediéncia serd tema do Capitulo 4. Saudével ou nao, a ansiedade surge quando ha a vivéncia de ago de ameaca ao ser ou a algum valor associado a ele. 39 Digitalizado com CamScanner ay asia de nao ter habj. ENIO BRITO PINTO Outra fonte relevante de ansiedade é a fant inada situagio (G lidade ou recursos para manejar determinada situacio (Golds mbém leva & ameaga ag tein, 2000), 0 que, no fim das contas, (a ce eu nao conseguir lidar com determinada ¢ rei mais a pessoa que julgava s ivas pessimistas, as quais, por Ao pela qual a ansiedade de nao contato, embora td sempre baseada em ser, ja citada, pois, wean importante tarefa, nado \- siedade sempre deriva de expectati sua vez, sao um salto para 0 futuro, ie se fundamenta em e gera uma espécie i st vivida como contato, na medida em que & P : das melhores formas de diferenciar a an- diz respeito A maneira como esse uma antecipagéo. Uma siedade saudavel da neurética salto é dado. O contato ea ansiedade UMA DAS CARACTERISTICAS MalS interessantes € paradoxais da ansiedade é 0 fato de que ela ¢ fruto de um contato com 0 futuro, ou, melhor dizendo, do contato com uma fantasia referente ao futuro, fantasia esta que muitas vezes é vivida como se realidade fosse. Mas isso nao a torna menos importante, pois contato com a fantasia também é contato. Quero discutir brevemente 0 con- ceito de contato para a abordagem gestiltica, pois entendo que essa discussdo favorecer4 a compreensio da ansiedade como ba- sicamente fundamentada no contato com a fantasia. Embora aparentemente simples e trivial em nosso cotidia- conceito de contato adquire especial complexidade e signi- b 0 olhar gestdltico, sobretudo em fungao dos estudos ps0 desenvolvidos pela psicologia da Gestalt, uma Gestalt-terapia. Se no dia a dia de nossa lingua 0 oA possibilidade de comunicacao, de toque, de 40 Digitalizado com CamScanner | —— I DIALOGAR COM A ANSIEDADE tiguidade ¢ de conexao, para a abordagem gestéltica seu sig- con! ; do inclui esses elementos e vai além deles, nifica . . . Como questéo mais basica, ao pensarmos na existéncia hu- mana, podemos entender que o contato é inerente a vida; em outros terms, sO ha vida quando ha contato, sé ha contato quando ha vida. Entendo, ao contrario de outros Gestalt- -terapeutas, que esse contato se da em dois niveis, um conscien- te e outro inconsciente, e que ambos podem ser simultaneos - enquanto escrevo este texto, tenho consciéncia do computador minha frente, mas nao tenho consciéncia de minha respiragao, de meus batimentos cardiacos, da intensa luta pela vida que se trava em meu organismo em constante autorregulagaio e troca com o ambiente - embora tenha com esses eventos um contato, ainda que eles neste instante no se tornem figura para minha percep¢ao. Aquilo com que tenho contato sem me dar conta, que chamo aqui de contato inconsciente, sao estimulos que nao deixam o fundo mas interferem no ritmo de formagio figural - como se nota, por exemplo, a diferenga de disposigao e de humor durante o dia quando temos uma boa noite de sono. Consciente € aquilo de que me dou conta neste momento, ao passo que in- consciente é 0 de que nao me dou conta agora, incluida af a maior parte da minha sabedoria. O contato consciente depende do ritmo de formagio figural, “é a formagdo de uma figura de interesse contra um fundo ou contexto do campo organismo/ ambiente” (Perls, Hefferline e Goodman, 1997, p. 45); 0 contato inconsciente é uma das bases para essa formagio figural, é parte do fundo do qual se destaca a figura. . No que diz respeito ao contato consciente, ele segue uma @ que nos foi ensinada pela psicologia da Gestalt, a qual diz @ percepcdo consciente é seletiva e¢ limitada, isto é, s6 ay Digitalizado com CamScanner $ fendmeno por Ver, ainda gue de um fendmeno pay, ara s jt i es aul i outro em fragdo de segundos ~ muitos acidentes automobilisy, desconsideram esse limite cos sao provocados por pessoas que que podem te! mo tempo. Em " por vez. Ainda com rela¢ao a0 contaty consciente, aquilo que é difuso, que se mantém praticamente er percebido - por exemplo, pouco sem alteragdes, deixa de s ee depois de colocarmos os éculos ou a roupa J# nao nos damos conta deles, pois se trata de um contato repetitivo, que rapida. na nao consciente. £ importante frisar que 0 conta. nte pode se tornar consciente, a depender das ne- s circunstancias. ente, trés tipos de cont 1988), € esse é um pon demos ter contato com NOsso Corpo, sas fantasias, os dois primeiros por ele, nariz, boca, olhos, ou- EN1o BRITO PINTO contatamos conscientemente um possamos transferir nossa conscién a rato com O © humano e imaginam r conti elular ¢ ansi tros termos, co com o transito ao mes! cu Ntata- mos apenas uma figura mente se to! to inconscie! cessidades e das | Ha, basicam' consciéncia (Stevens, estudo da ansiedade. Po« com o ambiente e com nos: meio de nossos érgaos de percep¢ao (p o terceiro por intermédio da imag 10 se dé através da propriocep¢ao ~ sensibilidade ue nos orientam a respeito de nosso tato que podem vir to importante no vidos etc.), inagao. O contato ‘com nosso corp’ gue fornece sensagdes ql equilibrio, de nossos movimentos visi uma, 0 que acontece em nosso corpo a cada mome! como ambiente nos d4 noticia de nossa relaco, a cada }, com o exterior, pessoas e coisas. O contato com nossas se d4 no terreno do imagindrio, aqui concebido em sua : mais ampla: tudo que no est presente no aqui eagoran” corpo ou no ambiente é fantasia, Assim, o almogo que tive 0% tem agora é fantasia, é lembranca; igualmente é fantasia, Pa" a - * Digitalizado com CamScanner cerais e musculares - em nto, O con mo- 42 — I DIALOGAR COM A ANSIEDADE abordage™ gestaltica, o amanha (que ainda nio existe) e todas as nossas abstragdes. O que pode ser chamado de contato transpes- soal (efetuado com 0 sagrado, com o mistério, com aquilo que esté no campo da religiosidade) também se dé no terreno da fan- tasia, haja vista que nao é concreto. E especialmente no contato coms fantasias que nossas ansiedades fazem morada, ainda que possam se apoiar também na percepcao corporal e no encontro como ambiente. Apoiada na fantasia, a ansiedade sempre se sustenta na possi- bilidade de nio ser, na possibilidade de nao contato. Essas possibil dades existem porque somos seres destinados 4 morte; porque ne- nhuma das nossas habilidades tem a garantia de constancia; porque nosso ambiente sempre pode ser transtornado por fendmenos na- turais ou culturais; porque nos modificamos inevitavelmente ao passar pelo tempo, o que nos ameaga com delicadas impermanén- cias, nossas e das pessoas a quem nos ligamos afetivamente; por- que nfo temos certezas com relaco ao nosso futuro etc. Quando contatamos com consciéncia, percebemos uma fi- gura de interesse destacada de um fundo ou ambiente que a con- figura. Para Polster e Polster (2001, p. 115-6), é na fronteira de contato que a pessoa “experiencia o ‘eu’ em relagio ao que é nio ‘eu’ e, por esse contato, ambos sao experienciados mais clara- Ocontato envolve inerentemente o risco da perda de identidade ou da separacdo. Nisso residem a aventura ea arte do contato”. E nisso reside a possibilidade da ansiedade. Esse é um dos pontos mais relevantes para diferenciar ansie- de de medo, duas vivéncias parecidas, muito proximas uma da tra, mas diferentes, a primeira mais baseada na fantasia, 0 se- 0 no aqui e agora, na relago com o ambiente e com o pré- io corpo. Como exprimimos muitas coisas ¢ vivéncias com 43 Digitalizado com CamScanner Eno BRITO PINTO terminologia que nio é exata, intimeras vezes dizemos tery, quando, de fato, estamos vivendo uma ansiedade. Nossa i do do : gem tem muito mais espaco para 0 Me que para dade, de modo que € muito com : quando, de fato, vivemos ansiedade. Assim, Por exerplo, quay, do dizemos que temos medo de voar de avido, na verdade esta mos ansiosos diante dos riscos do voo que faremos futuramente, Por vezes é mesmo dificil diferenciar se estamos vivendy uma situagdo de ansiedade ou de medo. Sob o olhar Bestaltico, omedo aparece quando ha contato com um objeto que pode ser removido ou do qual se pode fugir; nesse caso, temos conscién. cia do objeto presente e concreto € de nds mesmos e, por isso, podemos escolher como nos comportar. A ansiedade nao tem exatamente um objeto; caracteriza-se mais por um vazio ou por uma ameaca vaga 4 existéncia, um contato empobrecido em ledo lingua, . 4 ansie. um dizermos que temos med, lo que nao percebemos (ou nao temos como perceber, como no caso da ansiedade do além-morte) nuangas importantes de nés mesmos ou do ambiente. Como bem afirma Tillich (1967, p. 27), “medo e ansiedade sio distintos, mas nao separados. Sao ima- nentes um dentro do outro: 0 acicate [o que incita] do medo éa ansiedade, e a ansiedade se esforga na diregio do medo”. Naan- siedade, como jd vimos, lidamos com a possibilidade da nio existéncia do todo ou de valores vividos como essenciais 4 s0- ivéncia do todo. Segundo Goldstein (2000, p. 231), “deve~ enfatizar que tanto Kierkegaard quanto Heidegger cons ©medo como medo de algo, ao passo que a ansiedade, ‘ do deles, lida com a ‘no existéncia’; suas descrig6es indi- guea ansiedade é um estado sem referéncia a um objeto” Hé alguns critérios para diferenciar ansiedade de medo, die ‘enga que é mais qualitativa que quantitativa: a ansiedade est4 —_ = 44 2 Digitalizado com CamScanner DIALOGAR COM A ANSIEDADE ada para 0 futuro, a0 passo que o medo é vivido no volt pe dade nos leva ao medo, ¢ este A ag ee ‘io, como bem preset te rrillich (1967) € Goldstein (2000), especialmente o se- aiuto inspira 0 teor deste paragrafo. O medo é provocado g oe Sado para contetidos bem definidos do ambiente, os quais re € devem) ser percebidos e removidos. Assim, no caso do dem . ; 4 i do, temos consciéncia do objeto presente e de ndés mesmos e, medo, por isso, P toys mogiio ativa que nos impulsiona a ago, ao passo que a ansiedade a tende a gerat paralisacao, impasse; a ansiedade é mais primitiva odemos escolher como nos comportar; o medo é uma que 0 medo, por isso uma de suas solugées é alcangar 0 medo e provocar ago; a vivencia da ansiedade no se tora menos inten- sacom tranquilizacées racionais, diferentemente do medo; na an- siedade, a pessoa sente nao ser capaz de lidar com a situacio, en- quanto no medo ha mais esperanca na lida com o perigo; a defesa mais comum ante a ansiedade é a evitacao de situagdes que imagi- namos poder provocé-la, algo como um temor que no se esgota nem se transforma em luta ou fuga, mas em evitagdes comumente vividas como sem sentido, embora irresistiveis. Nesses casos nao hd exatamente uma fuga, mas um impasse: a pessoa evita 0 conta- to com o que pode provocar a vivéncia da ansiedade e ao mesmo tempo deseja tal contato como meio para transformar a ansiedade em medo e, af sim, reagir efetivamente no mundo. A evitagao de que falo aqui ¢ a evitagao do risco, sobretudo do risco de mudar, de descobrir novos selves, como se 0 novo viesse para substituir 0 ve- tho, e no para compor com ele. Podemos dizer que a ansiedade trafega no terreno do simbo- a €nquanto o medo transita no caminho do concreto. Ao asso 0s a ansiedade a algo concreto, diminuimos a possibilidade Compreender sua mensagem, seu pedido de transformagio. 4s Digitalizado com CamScanner oN Esse 6, para mim, um dos pontos mais INEETESSANtes doc. 1 dos de mais dificil compreg, EN1o BRITO PINTO olhar fenomenoldgico, ¢ talvez ut ‘ a area da satide, quer Sea pelos jg, sdo, quer seja pelos colegas d: 30 modo de falar COtidiang gos. De fato, como jd vimos, em nos aptendemos desde muito cedo a nao ‘ fe medo, ¢ aprendemos também a nos ref an de, Assim € que dizemos ‘tenho medo q, vivéncia de ansieda : rdade, a possibilidade deum adoecimen. lade, pois € uma ameaga vaga. Pens, ezes em que dizemos “tenho medg" diferenciar a ansiedade do rir como medo a tog, adoecer”, quando, na vel to mobiliza nossa ansied: mesmo que na maioria das v estamos vivendo uma ansiedade. Lembro-me de que, ha algum tempo, conversava com uma colega sobre essa diferenca entre ansiedade e medo, e ela, para exemplificar, deu como exemplo a possibilidade de que um lego entrasse na sala onde est4vamos. Disse ela: “Nossa adrenalina dis. pararia, os batimentos cardfacos acelerariam, haveria uma série de respostas corporais que caracterizam a possibilidade da luta ou da fuga. Isso é ansiedade”. Eu rebati: “Nao, isso € medo! O ledo € algo que posso remover ou de que posso me distanciar ativamente (atacar, nem pensar!). O ledo é concreto, é real e esta ali agora na frente da gente”. A resposta corporal é semelhante, mas a possibi- lidade vivencial, o sentido do vivido, so muito distintos. E muito diferente 0 manejo do medo do manejo da ansiedade em psicote- tapiae em todo ato de assisténcia A satide, e até mesmo no cotidia- no, pois quando em contato como medoa pessoa esta pronta pata aco protetora, ao passo que quando ainda na ansiedade elaesté Presa a evitacées ou impasses, Em terapia, ao lidar com o medo pieroemos esclarecimento, apoio e encorajamento, ao pass0 i? na lida com a ansiedade buscamos compreensio e meios pal transformar a ansiedade em medo, ajudando o paciente a lutar" 46 dl Digitalizado com CamScanner yr | DIALOGAR COM A ANSIEDADE CO medo é um sentimento ativo, ¢ sob 6 comando dele a fugit. oe sd ‘ose transforma em agio cuidadosa. evitagi . Lembro-me de uma cliente que teve uma crise de ansiedade 130 logo sentou-se na poltrona do aviao no qual faria uma via- gem relativamente curta - viagem que nao queria realizar, mas 0 fazia por imposigao de “deverias” (regras introjetadas e cristaliz das), como era habitual nela. Aos poucos, conseguiu conter a an- siedade com técnicas que conhecia, sobretudo por meio da res- piragaoe da presentificagao, e venceu a crise. Chegando em casa, atribuiu a ansiedade a algo concreto, 0 aviao, e af j4 comegou uma nova ansiedade, um temor de passar mal na préxima via- gem aérea, que faria em poucos dias. Ela chamou essa vivéncia de medo de avido, como o faria a maioria das pessoas. Quando, em terapia, percebeu que nao se tratava exatamente de um medo, mas de ansiedade, devagar foi se abrindo para dialogar com a sensa¢do em vez de se deixar tomar por ela. Revivendo a situac4o, notou que ao chegar ao aeroporto estava mais ansiosa que o normal, sentindo certa culpa por viajar de volta para Sao Paulo quando desejava e podia adiar a viagem, o que nao fizera para atender as expectativas que imaginava que certas pessoas teriam sobre ela. Entéo compreendeu que aquela ansiedade, em nada relacionada de fato com a viagem de avido, mas & lida com as relacdes interpessoais, Ihe pedia a ousadia de quebrar aquele tipo de “deveria” - ajustamento anacrdnico por meio do qual ela Priorizava excessivamente as outras pessoas, muitas vezes em detrimento de si. Com isso, ela honesta e corajosamente se pro- Pés a tentar um novo e melhor equilfbrio entre atender-se e atender os outros, ritmo que imediatamente comegou a adotar e mhecer, enfrentando a cada situagdo o medo de ser rejeitada Seja, transformando em medo o que era ansiedade e a7 Digitalizado com CamScanner | ENIO BRITO PINTO reender € S€ encantar, ey dizendo novos “naos”. Nao sem se surp! 4 ansiedade normal de embarcou para a proxima viagem com @ quem voa numa aeronave. 0 diélogo coma ansiedade: alguns aspectos ‘edade e medo, precis devido lugar e deixar dialogar com ela ¢ a. Para tanto, deve. o ENTRE ansi ade em seu 0 patologia, ese manifest le — ou esta fortemente ALEM DESSA DIFERENCIAGA mos, para colocar a ansied de entendé-la apenas com compreendé-la a cada vez qui e deriva d mos lembrar que ela sempr ’ a - expectativas pessimistas, ou seja, a em ameagas ou riscos NO futuro e buscam mobili- vara lidar com essaS supostas ameagas. A presenca simistas € tipica da ansiedade: ha sempre um ma possibilidade de aniquilagéo, um risco de istencial, a possibilidade de uma punigao loloroso vazio, uma dofda solidao, um io saber assustador. Essas fantasias dade patolégica praticamente nte a propria pessoa re- pre o vividoe os pensamen- associada tos que preve zara energia P de fantasias pes: futuro temido, u! perda de sentido ex) desproporcional, um d adeus insuportavel, um na m a ser vividas na ansie dades, ainda que racionalme lades imaginadas. E que nem sem| de modo harmonioso. que as expectativas catas- me parece que tende: como fatali jeite as possibilid: o pensado se encontram Embora Perls (1977), p. 3) afirme tr6ficas (que aqui chamo de pessimistas, dado que pesse caso Perls - e também Goldstein [2000] - exageram) sio pepelos quais “nos impedimos de viver, de ser” @ que, nesses , “estamos continuamente projetando no mundo fantasias é loras, e estas fantasias nos impedem de assumir riscos is que sio parte e parcela do crescimento € do viver: 48 —d Digitalizado com CamScanner DIALOGAR COMA ANSIED ADE geredito que tais fantasias podem ser um de entos para diferenciar a ansied, fantasi hOssos melh ° Nores, i mi lade ga jnstrur _ ; ade saudavel da Patoldgi. ca, SC 88 las repetidamente nos impedem de a e assumir riscos, como diz Perls, ou se nos conduzem a comport: + 5 . famentos temerdrios, estamos diante de ansiedade Patoldgica, a * gera impasses e evitagdes, podendo também gerar eee com este, atitudes temerdarias; a2 entanto, se elas nos possibili. tam corter riscos de forma corajosa, estamos diante de ansiedade saudavel. Em outras palavras, a maneira como lidamos com nos- sas expectativas pessimistas diz respeito 4 maneira como esse salto para 0 futuro pode ser dado e também as suas posstveis consequéncias. E preciso notar que o problema nfo sio as. expec- tativas pessimistas, mas sim a forma como elas sio vividas. Ter expectativas pessimistas é tipico do humano e é sabedoria, pois elas podem gerar cuidado e atitudes preventivas. Como ja vimos, uma das principais dificuldades para dife- renciar o medo da ansiedade € 0 fato de que as reacdes corpo- rais sio muito semelhantes. O mesmo vale para as reacdes cor- porais devidas as boas expectativas, os estados desejosos. Vou contar uma historia que vivi recentemente. Estavamos, em meu grupo de pesquisa, lendo e discutindo um texto que eu acabara de escrever sobre ansiedade e transito religioso quando uma colega estranhou uma afirmagao minha de que toda ansiedade est ligada a expectativas pessimistas. Ela argumentou que se sentia ansiosa cada vez que ia viajar, casos em que tinha expectativas otimistas. Argumentei com ela que, embora possa haver predomindncia de expectativas positivas, sempre hd também expectativas pessimistas em viagens ~ € sio elas, por exemplo, que nao nos deixam esquecer © passaporte, quando é 0 caso, Mas essa expectativa pessimista pode ser 49 Digitalizado com CamScanner = EN10 BRITO PINTO insignificante nesses casos. Entao, se nao ha Preponderéncig cn ansiedade, mas do desejo, por que temos praticamente a ™esm, vivéncia corporal? Acredito que isso se deve a um limite huma. no: 0 corpo reage praticamente do mesmo modo ao desejo, 5 ansiedade e ao medo. Ha descarga de adrenalina, o Coracio bate mais rapido, o sangue vai mais paraa periferia do corpo, as Pupi- las se dilatam, os labios se avermelham etc. A diferenga, entio, serd o sentido dado a essa reagdo corporal, a qual, alias, se Tepete também em grande parte na raiva- Quando essa reacao € ligaday ansiedade, isto é, as expectativas pessimistas, ha preparacio para a aco; quando ligada ao medo, hé a¢do de luta ou de fuga; quan. do ligada ao desejo, preparacéo para 0 contato amoroso e/ou prazeroso. O corpo reage quase da mesma forma para vivéncias diferentes. O que faz diferenga mesmo é contato corporal sufi- ciente para discriminar as nuangas € os sentidos. Na ansiedade, temos uma vivéncia de tensdo entre 0 mo- mento atual e o momento futuro, que sera saudavel ou naoa depender de como a pessoa lida com essa capacidade (tao huma- na!) de tentar prever o futuro. Se prevé como hipétese, ha ansie- dade saudavel, ao passo que, se prevé como certeza (ainda que racionalmente entenda que toda certeza voltada para o futuro é absurda), ha ansiedade patoldégica. Certa vez, perguntaram 4 Perls se o passado também traz ansiedade, e sua resposta foi lim- Pida: “Se vocé sente ansiedade pelo que fez, nao é ansiedade pelo gue vocé fez, mas ansiedade pela punig&o que vird no futuro” | @erls, 1977b, p, 73). _ Um dos elementos diferenciais da qualidade da ansiedade frutos, suas consequéncias ~ se ela gerar cuidado, é sa" ar evitacao ou atitude temerdria repetidas, é patolO- 1840 como hipétese gera cuidado, enquant0 # 50 d Digitalizado com CamScanner yr DIALOGAR COM A ANSIEDADE previsio como certeza produz controle, impasse, evitacao. Lembro-me de um cliente que atendi ha um bom tempo, um professor universitario. Seu sonho era fazer pés-doutorado na Europa, mas ele tinha certeza de que nunca conseguiria realiz4- Jo, pois a universidade jamais lhe daria essa oportunidade. Pro- yocado em terapia a trocar 0 “jamais” por “talvez”, ou seja, a tro- car a suposta certeza por uma hipdtese, algum tempo depois ele se encorajou e solicitou a bolsa, recebendo, para seu espanto, a resposta de que em dois anos a oportunidade lhe seria oferecida e ele estudaria fora do Brasil. O movimento do cliente foi o de trocar a ansiedade patoldgica pela saudavel, a qual em pouco tempo abriu espaco ao medo e, através dele e com ele, & coragem para a ago cuidadosa, no caso o pedido de bolsa da forma como ele o fez. Antes de trocar o “jamais” por “talvez”, ele, como todo mun- do que passa por situacdes assim de maneira evitadora, ficava entre trés possibilidades mais provaveis de defesa pouco salutar: poderia se impedir de pedir, e ai mesmo é que nio receberia 0 curso (evitagao); poderia negar a possibilidade da recusa e, assim, solicitar de forma inadequada ou mesmo exigir 0 curso (onipo- téncia); ou poderia fugir da conscientizacao do risco e dizer que tal curso, mesmo que lhe fosse oferecido, nio seria assim tao im- Portante (deflexdo). Observe-se que esse cliente nio abandonou a ansiedade, ele 4Penas a colocou a seu lado, como aliada que lhe proporcionou dado e tato ao fazer 0 pedido de bolsa, prescindindo da se- a defesa pouco salutar que descrevi. A consciéncia intensa Seu desejo de fazer o curso nao permitiu a defesa defletora. Vivéncia de meu cliente, 0 fato de ele ter transformado a € de fonte de paralisagao em fonte de cuidado, mostra Digitalizado com CamScanner EN1o BRITO PINTO que a ansiedade é inerente ao humano. Ela pode ser oy se t = aera iza oop patoldgica, mas vivencid-la nao caracteriza por si $6 paty May Bia, apenas vivacidade. Ansiedade e vida cotidiana Quals sKO AS CARACTERISTICAS mais importantes da ansiedag, mos aqui? Vamos tomé-las, a principio e Tesumida. os quais descreverei a seguir, nao ser éncias vao ser patoldgicas ou sadias 3 e e de suporte ambiental que a de que fala mente, em seis aspectos, antes lembrar que essas viv depender do grau de autossuport pessoa tiver. Os seis critérios mais importantes para estudarmos aansiedade so, no meu modo de ver, 1 as relagGes interpessoais; a temporalidade (o tempo vivido); a espacialidade (0 espaco vivido); a corporeidade (0 corpo vivido); o dar-se conta (conscientiza¢ao); a vida afetiva. an rwn Para cada um desses aspectos, darei exemplos de situagées ansiogénicas que me parecem ser comuns na vida cotidiana. No que diz respeito as relagdes interpessoais, a ansiedade Pode aparecer na forma de falta de confianga em si ou no out inseguranga; necessidade de controle de si ou do ambiente; te = no cou A vida cotidiana em nossa cultura é fundamer a ae a a ‘controle no qual hd suficiente clareza e énf- sai % que se espera de comportamentos & * lonamentos, 0 que acaba por tolher a espontaneidade € 52 dd Digitalizado com CamScanner a DIALOGAR COM A ANSIEDADE jiara ansiedade. Mais adiante discutirei em detalhe as rela- amp ont ansiedade e obediéncia para deixar isso mais claro. ane que diz respeito a temporalidade, o individuo em ansie- tem dificuldade de ficar no presente, vivendo um futuro dade . : mente temido; tende a ter muitas expectativas, nem sem- gerali pre realistas, como bem afirma Perls (1977b). Muitas pessoas sempre estiio de olho no relégio, preocupados mais com o tempo cronolégico que com 0 tempo vivido, o que acaba por dificultar a entrega ao presente. Voltarei a esse tema e o aprofundarei no Capitulo 7, quando tratar da espera e da esperanca. Na questio da espacialidade, a ansiedade indica inseguranca ea vivenciar uma tensio entre o agora e o depois, quanto 4 ocupago de espacos, além de temor com relagio a es- pagos novos e, por isso, pode gerar um estado de muita atengo ao ambiente. E também a ansiedade que vai dar o tom dos cami- nhos, ou seja, se eles tenderao a ser curtos ou longos: a vivéncia da distancia (do espago) nem sempre coincide com 0 espago oua distancia objetiva, de modo que um caminho objetivamente cur- to pode ser vivido, em fungao da ansiedade, como longo, ou o contrario. Exemplo disso é uma vivéncia bastante comum, a sen- sagdo de que a volta de uma viagem é mais rapida e tranquila que a ida, ainda que a estrada para ir e vir seja a mesma - é que a ansiedade da ida é diferente da ansiedade da volta. Ainda no que diz respeito espacialidade, em terapia a ocupagio de espaco de eira simbélica é um tema bastante comum, geralmente sob ueixa de que, por causa de uma viveéncia de ansiedade, a pes- 10 est usufruindo adequadamente o espago (concreto ¢ !) que poderia aproveitar. reidade, a ansiedade pode gerar uma tensio muscu- nal, As vezes cronica quando nio se dialoga com 53 Digitalizado com CamScanner —_—_~ ©. ENIO BRITO PINTO ela, um corpo sob controle e dificuldade de relaxar ed -peee | les; as tensoes. E queixa comum também em terapia ce, ac erta dig, Neu. dade de perceber ou validar nuances corporais, tais co, mentos, desejoss necessidades de toque, de carinho, ee Sent pecialmente de vivéncias que poderiam trazer um wean . um derretimento corporal indicativo de auséncia de — itagdes que encontre} cao, Em muitos casos de ansiedade patolégica, 0 que o corpo submetido 4 mascara, 0 gesto estudado 7 t4neo. Na ansiedade saudavel, hé mais o que io, embora seja mesmo ansiedade. Iss poral semelhante a do medo, to, s lad exci m seu estado natural de descarga ¢ le, Tea. limenta contramos € vez do gesto espon' poderia parecer excitaca porque esta gera uma prontidao cor como vimos, mas com sentido diferente. Na conscientizagéo, € possfvel encontrar, na ansiedade pato- o perfeccionismo, 0 temor desproporcional & rejeicao ou Jo, as expectativas catastroficas, o assim chamado do palco, ou seja, temor de ocupar um lugar que provogue aatengio de outros. O perfeccionismo 6, talvez, um dos maiores riscos de ansiedade na vida cotidiana, pois hd uma exigéncia am- biental, quase sempre introjetada, bastante forte nesse sentido. 4o demonstrem im- Espera-se que as pessoas nao errem, que nat perfeig6es, duvidas, temores, curvas, 0 que facilita uma busca ‘maisansiosa do que seria desejavel eo estabelecimento de metas onde deveria haver horizontes. Navida afetiva, quando ansiosa, a pessoa t ‘se entregar aos sentimentos e aos ambientes, sobret tem dificuldade de confiar em seus afetos ou em como eles po” dem ser recebidos pelo ambiente ~ em especial aqueles afets Ave! nossa cultura erroneamente classifica como ruins: 4 raiva,4 tristeza, 0 medo e suas combinagdes. Ha aqui uma questi? de em dificuldade de tudo porque 54 a Digitalizado com CamScanner _ DIALOGAR COM A ANSIEDADE suma importancia: nao sentimos o que queremos, mas apenas 0 que podemos; nao temos controle sobre nossos sentimentos, apel senti - nosso corpo em reagao ao vivido; quando proporcionais as situa- goes vividas, ¢ ndo cronicamente repetitivos, sio protetores, orientadores, reveladores, humanizadores, verdadeiros antido- tos pata a ansiedade patoldgica e alimento nutritivo para a sau- davel. Voltarei a esse ponto quando tratar da atual patologizacio de nosso cotidiano. Depois de todas as reflexdes deste capitulo, sabemos agora que aansiedade é inalhedvel da vida, ¢ inescapavel e sempre pes- nas sobre nossos atos, e assim mesmo nem sempre. Nao ha mento ruim, ha gestos ruins. Os sentimentos sio sinais de soal ao longo da existéncia, o que nos coloca diante da necessi- dade de buscar compreendé-la e dialogar com ela a todo mo- mento na vida cotidiana. A fim de incrementar essa possibilidade de didlogo com a ansiedade, penso que a maneira como Tillich enfoca essa vivéncia humana pode ser muito util aos terapeutas e, por via destes, aos clientes. Para Tillich (1967), a ansiedade nos ameaca de duas maneiras, uma absoluta e outra relativa, e pode ser vivida, em qualquer das duas maneiras, de forma saudavel ou patolégica, a depender de circunstancias existenciais. As refle- x6es de Tillich, instigantes e utilissimas em terapia, sio nosso Prximo tema. 55 Digitalizado com CamScanner

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