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\3 i Fi ik} Hl a i i é 3 E 3 iyatattse \Wionerecttet (Gtganizadora) Jorodos Res Sivajinion = Dein Myicenicel Viste Ania Maria G2sasanta Renato. DalilaAncradeWliveita aVfarth clolerel@ Auistisce Coby foie senent) — iltici (© 2008 by Ivanise Monfredini Direitos desta edigSo reservados & Xam VM Editora e Grafica Ltda. Proibida a reproducao total ou parcial, por quaisquer sem autorizagio expressa da editora, meios, Edigdo e capa: Expedito Correia Revisio: Estela Carvalho Editoracdo eletrénica: Xamé Editora Dados Internacionais de Catalogaséo-na-publicacao (CIP) trabalho e profissao do- redini (organizadora) 7 [et ale}. - 169 Politicas educacionais, cente / Ivanise Monfre Soso dos Reis Silva Junior «.- ‘Sao Paulo : Xam&, 2008+ 159 p. 7 23 om. tnclui bibliografias. ISBN 978-85-7587-093-8 Professores - Forma- II. Silva Junior, 1. Educagao e Estado. 2. gio. I. Monfredini, Ivanise. Joao dos Reis. ep 379 Xamd VM Editora e Grafica Ltda. Rua Itaoca, 130 - Chécara Inglesa CEP 04140-090 - So Paulo (SP) - Br: ‘Tel.: (011) 5072-4872 Tel/Fax: (011) 2276-0895 ca he uandau@vamaeditora.com-br Sumario Prefacio, 7 Trabalho do professor na escola publica - breves consideracées Joo dos Reis Silva Jiinior, 19 Cultura escolar e profissio docente: o Instituto de Educacao de Minas Gerais Leila Alvarenga Mafra; Ana Maria Casasanta Peixoto, 61 Gestéo escolar e trabalho docente nas redes publicas de ensino em Minas Gerais Dalila Andrade Oliveira; Maria Helena G. Augusto, 83 A reforma do ensino técnico da década de 1990 e a pratica de professores na sua implementagao Celso Joao Ferretti, 101 O regime de progressio continuada: as praticas escolares implementadas e as conseqiiéncias para o trabalho e a profissao docente Toanise Monfredini, 115 Significado e sentido do trabalho docente: as contradigdes no trabalho e sua relagio com os quadros de adoecimento psiquico Sonia Regina Landini, 139 Prefacio Trabalho docente, politicas educacionais e instituigao escolar Deise Mancebo* tanto nos preparativos mentais do trabalho, sejam eles cientificos ou apenas empirico-praticos, quanto na sua execucao efetiva, nos encontramos sempre diante de uma completa cadeia de decis6es alternativas.' Prefaciar 0 livro organizado por Ivanise Monfredini foi uma tarefa prazerosa! Dele participam importantes autores do cenério nacional, que pesquisam e analisam o tema do trabalho docente hé alguns anos. Sao pesquisadores experientes, atuantes em programas de pés-gradua- ao de diversas instituigdes de ensino superior e em grupos de pesqui- sa também distintos, mas que, contrariando os isolacionismos to co- muns nos ambientes académicos, estabelecem intercambios periédicos &, por essa raziu, nav fui dificil perceber um percursu tedrico e meto- dolégico comum aos textos. Comecar com Lukécs é, portanto, oportuno, pois a produgao teérica desse autor constitui-se no fio condutor dos artigos desta coletanea. Coe- rentes com essa linhagem teérica, os autores problematizam a escola e seus professores, ressaltam as dimensdes das relagées, dos valores, das identidades e da cultura que ai transitam — ademais, aspectos que tém “Doutora em Histéria da Educacio pela Pontificia Universidade Catélica de Sdo Paulo (PUC- $P), com pés-doutorado pela Universidade de Séo Paulo (USP). Professora titular e pesqui- sadora do Programa em Politicas Piblicas e Formagio Humana da Universidade do Estado {do Rio de Janciro (PPFH/Uer) e do Programa de Psicologia Social da mesma universidade. E-mail: . ' LUKACS, G. Per una ontolosia dell‘essere sociale, Roma: Riunit 1981. p. 138, 8 |WANISE MONEREDIN (ORG) ~ POLITICAS EDUCACIONAIS, TRABALHO E PROFISSKO DOCENTE provocado um certo encantamento em muitas pesquisas educacionais con- tempordneas -, mas sem perder de vista a questo do trabalho, O trabalho é tomado dentro da perspectiva marxiana como um pro- 10 de objetivagio que tem como base a aco consciente do homem frente as necessidades e as condigdes concretas, processo no qual também sao construfdos aspectos fundamentais de sua postura subjetiva e formas por meio das quais 0 sujeito do proceso de trabalho define atitudes em rela- 40 a si mesmo. Conforme desenvolvido no artigo de fechamento da coletanea, escrito por Sonia Regina Landini, 0 trabalho humano “é um processo que contém em si as formas por meio das quais os homens se auto-realizam, transfor- mam conscientemente o mundo objetivo ea si mesmos, ativando uma série de conexdes que expressam a materialidade e a subjetividade” (p. 148). ‘Todavia,o trabalho docente problematizado pelos autores ao longo do livro é 0 que se apresenta neste conturbado inicio de século, quando, Deum ado, ha a exigéncia de estabilizagao, de implicagio do sujeito no processo de trabalho, por intermédio de atividades que requerem autonomia, iniciativa, responsabilidade, comunicagio ou intercompreensio. Por outro, verifica-se um processo de instabilizagio, precarizagio dos lagos empregaticios, aumento do desemprego prolongado e flexibilidade no uso da forga de trabalho. Em duas pa- lavras, perenidade e superfluidade. E esse movimento é global e mundializado.? Assim, contraditoriamente, além do potencial emancipador, criadore humanizador do trabalho, os autores desta coletanea evidenciam as facetas de exploragio e alienagio daquele, o qual degrada e provoca infelicidade e doengas, e assinalam a ruptura entre trabalho como expressao da reali- zagio humana e trabalho como mercadoria. No caso do trabalho dos professores, tema central do livro, 0 proceso também se instala contraditoriamente de modo que, ao lado da possibil dade de os docentes organizarem autonomamente suas priticas e defini- rem os meios para a consecugio de seus objetivos, assiste-se também & imposigao, dentro das escolas, de um proceso gerencial de trabalho que tem levado progressivamente a perda de autonomia, a desqualificagao e perda do controle tanto do proceso quanto do produto do trabalho’. * ANTUNES, R, SILVA, M.A. M. Apresentagio. In Paulo: Expresso Poptilar, 2004, p. 10. » APPLE, M. Educagio e poder. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989, (O avesso do trabalho. 3. ed. Si0 PREFACIO Outra preocupagao que percorre fertilmente a maioria dos textos re- fere-se &s politicas formuladas recentemente para a educacdo, remeten- do-se as reformas educacionais propostas no pais nos tiltimos anos e ana- lisando seus reflexos sobre o trabalho docente. A exposigao e analise de algumas reformas, mesmo que nao-exausti- vas, so absolutamente pertinentes! Afinal, encontramo-nos num clima nacional de reformas no campo educacional cuja “amarragao” geral, da parte do governo federal, reside no Programa de desenvolvimento da educa- ¢a0 (PDE)', cujo texto arrola proposicées que contemplam aspectos e seto- res diversos do campo educacional como: financiamento, avaliagao, for- magio de professores, educagao profissional, informatizagao, ensino su- perior, condiges de infra-estrutura e de servigos que visam a otimizacao do funcionamento da inStituigéo escolar, assim como propostas pedagé- gicas com a finalidade de melhorar a qualidade da educagao. Einegavel que o programa traz algumas intengGes positivas, como, por exemplo, a criagao de condigdes favoraveis ao acesso e permanéncia dos alunos na escola, a proposicio de aumento de vagas no ensino superior, 0 enriquecimento e institui¢ao de bibliotecas escolares. Todavia, ha também muitos aspectos que tém sido objeto de questionamentos da academia e de movimentos sociais ligados aos profissionais de educacao. Relacionada di- retamente ao trabalho docente pode-se destacar, primeiramente, a proposi- Go de incrementar a formagio inicial e continuada de professores a distan- cia, desconsiderando que a formagao de professores nao se esgota nas aqui- sigdes de cardter cognitivo e técnico ~ que duvidosamente poderiam ser desenvolvidas pela modalidade & distancia -, mas demandam a constitu gio de valores, atitudes e habilidades, cujo cultivo implica a relagao nao s6 com os encarregados da formacao, mas com os préprios colegas. O estabe- Iecimento do piso nacional de salario dos professores (e seu progressivo aumento) também é motivo de discérdia, pois, embora tal medida possa ser satisfatéria para alguns segmentos do professorado nacional, é insatisfatéria para a maioria do pais, além de no se fazer acompanhar por outros procedimentosnecessérios & melhoria da qualidade do ensino, como €0 caso das condigdes objetivas do trabalho docente’. BRASIL, Ministério da Educagio. Plano de desenvolvimento da educagio (POE). Brasilia, DD, 2007, Disponivel em: . Acesso em 15 jan. 2008. * COMAITE EDITORIAL. Editorial. Educagio de Sociedade, Campinas, v.28 n.99, p.323, maio/ ‘eo, 2007, 10 !VANISE MONFREDINI (ORG) - POLITICAS EDUCACIONAIS, TRABALHO E PROFSSAO DOCENTE ‘Além disso, o PDE configura-se como um conjunto de mais de trés dezenas de agées voltadas para dimensies especificas e tépicas da educa- ‘cdo e, por seu cardter tempordrio, compensatério e emergencial, pretende uma intervengao pragmatica no campo educacional, que deixa intocados 0s determinantes da baixa qualidade do nosso ensino, a qual o préprio programa se propée a erradicar. No que tange especificamente ao traba- Iho docente, a raiz das problematicas postas ~a criagao de condigdes de trabalho dignas e permanentes—néo sao atacadas, o que compromete até mesmo a edicao das medidas emergenci Ao tratarem de outras reformas educacionais levadas a efeito no Esta- do de Minas Gerais nos anos 1990, Dalila Andrade Oliveira e Maria Hele- na G, Augusto demonstram o que se quer destacar: [-Jo acréscimo de tarefas, projetos, atividades, disciplinas, contetidos, carga hRordria e programas, além do excessivo niimero de alunos em sala de aula ~ somados &s varias turmas, turnos e escolas onde lecionam - desgastam e exau- rem as energias dos professores. Diante dessa situacio, estes ficam impossibili- tados de refleti sobre o sentido e 0 andamento de sua pratica, o que provoca ‘uma relagdo de alienago com seu trabalho [..1”. (p. 98) A primeira impressio do PDE, portanto, é de uma fragmentaco conceitual profunda; todavia, concorda-se com editorial da revista Educa- io & Sociedade quando adverte que sua segmentagao é sé aparéncia, pois ‘A costurar e cimentar tais agdes existe uma concepeao que privilegia bandei- ras presentes nos principais documentos que fundamentaram as reformas educacionais desencadeadas na década de 1990, as quais conferem primordi- falmente & educagiio papel de formagio de recursos humanos para 0 setor produtivo e, portanto, servem [supostamente] de alavanca para o crescimen- toecondmico.* Assim, o PDE surge na esteira de politicas implementadas no pais a partir da itima década do século pasado, num contexto de reestruturagao do capitalismo que, na realidade (brasileira e da América Latina, pelo menos), resultou em reformas ao nivel do Estado, alterando substantiva- mente as relacées entre este, a sociedade e as instituigdes escolares. Para sua andlise, bem como a de reformas educacionais que precederam o pro- grama e dos impactos que podem provocar sobre o trabalho docente, muitos aspectos precisariam ser considerados na esteira das profundas transformagées econémicas, sociais, politicas e culturais das diltimas dé- cadas. Os autores desta coleténea nao problematizaram especificamente © PDE, mas justamente outras reformas que o precederam (muitas das quais ainda em curso), destacando, com maior ou menor detalhamento, outras transformacées pertinentes a andllise critica da realidade educacio- nal: uma nova estrutura de poder internacional prépria da etapa atual de reestruturacao do capitalismo; os processos de reforma dos Estados nacio- nais e as novas fungGes que estes assumiram no contexto da globalizacéo; 0s processos de individualizacao e polarizacao social que multiplicam os eixos da desigualdade; a crise do modelo da sociedade salarial e a flexi bilizagao das relagdes de trabalho; as mudangas na estrutura social e no modelo produtivo; a mundializacao da cultura eo impacto das novas tec- nologias da informacao e comunica¢ao; a crise institucional da escola e do projeto moderno que orientou a institucionalizagao dos sistemas edu- cativos centralizados e as novas demandas que se formulam as escolas e aos docentes. Mas, ha outro nivel de preocupagao que também transparece nos arti- gos desta coletiinea: a anilise das politicas em termos de formagio e tra- balho docente realiza-se a partir das condigées efetivas nas quais os pro- fessores desenvolvem cotidianamente sua tarefa. Assim, a maioria dos autores refere-se a pesquisas cuja base empfrica poe em relevo 0 conjunto das atividades e das relagdes que se tecem em torno do trabalho real, ou informal, aquele que os professores desenvolvem nos recdnditos das es- colas e que Ihes permite enfrentar, individual e coletivamente, as dificeis exigéncias da vida cotidiana nestas instituiges. Sem desprezar a andlise da gestéo formulada pelas politicas educacionais, veiculadas, mais ou menos intensamente, pelos dirigentes; o trabalho prescrito que sai das secretarias de Estado, e que é dependente de um tipo de conhecimento abstrato e de autoridade oficial, institucional, os textos também estabele- cem com clareza a defasagem e/ou contradigdes constatadas, jé hd muito, entre uma filosofia da administragao enunciada, nao raramente também contraditéria, e 0 que os atores sociais fazem na pratica; entre o trabalho prescrito e 0 trabalho real; entre o que postulam os “inventores” e as in- vengées feitas pelos que atuam. Ao discutir a reforma postulada para o ensino técnico na década de 1990, Celso J. Ferretti parte de quatro teses que bem sintetizam 0 que se esté auerendo destacar: 12 |VANISE MONEREDINt (ORG) ~ POLITICAS EDUCACIONAIS, TRABALHO E PROFSSKO DOCENTE 1) na condigdo de pertencentes 4 mesma rede, cada escola desenvolve um ethos que é resultante do entrecruzamento da cultura prépria da rede e de suas apro- priagdes dessa cultura, determinadas pela sua histéria particular; 2) 0s proce- Gimentos que cada escola adota para a implementagao da reforma séo deter- minados, em grande parte, pelas apropriagdes acima, assim como as “objetivagdes decorrentes; 3) apropriagdes e objetivagées so constituintes e re- sultantes do trabalho humano, do qual 0 trabalho do professor constitui um aspecto; e 4) o trabalho do professor realiza-se no Ambito do cotidiano da ins- 10 escolar. (p.102) Por outro viés, Leila Alvarenga Mafra e Ana Maria Casasanta Peixoto desenvolvem percurso similar, a0 analisarem a cultura escolar ea necessida- de de se aprofundarem as investigagSes sobre os processos microssociais de escolarizagao, as formas de integracao ‘sociocultural no interior das escolas. Todos 0s autores lembram-nos, portanto, que a gestéo do trabalho € operada sempreno ambito de uma relagao de forgas e de antagonismos de interesses, além de se tratar de uma rela¢do entre sujeitos socioculturais, imersos em distintos universos de historicidade e cultura, implicados em enredos individuais ¢ coletivos. Assim, a pratica do professor tem uma intencionalidade que o leva a escolhas dentro de um horizonte de possibili- dades constituido pela regulamentacao do Estado e a condensagao histori- caque, na pritica, pde diferentes tempos histéricos da instituigao escolar de forma simultnea, como Joao dos Reis apresenta em seu texto. Deve-se destacar ainda que o aprego a teoria, presente em todos os textos da coletanea, néo conduziu seus autores ao caminho do academi- cismo abstrato e universalista que despreza 0 que provém do empirico, do local, do concreto. A opcao pela pesquisa empirica, mais acentuada- mente qualitativa, possibilitou um resultado singular, revelando a rique- za de experiéncias que se pode coletar dentro e fora da escola, o que difi- cilmente seria captado por instrumentos de coleta mais rigidos. Sob o titulo “Trabalho do professor na escola piiblica ~ breves consi: deragdes’, Jodo dos Reis Silva Jinior, da Universidade Federal de S40 Carlos (Ufscar), desenvolve um denso debate tedrico. Inicia com uma contextualizagio dos governos de Fernando Henrique Cardoso e Lula da Silva, destacando os impactos que as politicas adotadas por estes pro- vocaram no campo educacional. Para 0 autor, a I6gica mercantil perma- nece e mais, o trabalho do professor sofre uma intensificagéo, em especi- al na educagao superior, em face do lugar estratégico que as universida- 4. ial e no processo de producéo {ROMMON NE alee eanctn Ac 13 TPREFACIO de conhecimento-mercadoria, isto 6, aquele que agrega maior valor aos, produtos consumidos no mercado. Em continuidade, o texto aborda 0 trabalho do professor da escola publica e sua pratica cotidiana na insti- tuicao escolar, reforcando a idéia de que a natureza do trabalho do pro- fessor, do processo educativo na instituigéo escolar e sua cultura mos- tram-se tinicos, de modo que as categorias dai decorrentes ndo podem ser emprestadas mecanicamente de teorias generalistas produzidas com base no trabalho material capitalista, menos ainda de teorias pedagégi- cas que no tenham como materialidade a historia ea cultura. Desenvol- ve, entao, uma importante discussa0 sobre a cultura da instituigao esco- lar publica no contexto atual, de ultraliberalismo econdmico, que con- cretiza um processo de mercantilizagao das esferas piiblicas objetivado pela reforma gerencial do Estado, que acaba por produzir uma cultura escolar mercantilizada, mesmo que jamais tout court. O autor termina problematizando o trabalho do professor da rede pitblica, concluindo que “ai nao ha mais-valia, 0 trabalho nao é produtivo, mas imaterial e se encontra na esfera estatal e publica, por mais eficaz que seja a estratégia neoliberal”. (p.47) Em “Cultura escolar e profissao docente: o Instituto de Educagio de Minas Gerais”, Leila Alvarenga Mafra e Ana Maria Casasanta Peixoto, ambas da Pontificia Universidade Catdlica de Minas Gerais (PUC-MG), expdem resultados da pesquisa levada a efeito pelas autoras e outros pesquisadores mineiros sobre o Instituto de Educagéo de Minas Gerais (lemg) e a formagao de professores 14 desenvolvida entre os anos de 1930-1970. As autoras puderam localizar no Iemg tanto a preocupacao coma profissionalizacio da professora —estimulada especialmente a par- tir da Reforma Francisco Campos, dentro de um idedrio em que se s0- bressafam os aspectos racionais, cientificos, técnicos e metodolégicos da formagio — como a intengao de sua formagao sociocultural, com énfase na educago morale civica, na socializagao da mulher e professora, ocor~ rida em grémios Iiteroculturais que mantinham “o controle sobre 0 com- portamento da professora e da mulher, estimulando seu lado materno e missiondrio ¢ enaltecendo a importancia dos atributos afetivos e emoci- onais no desenvolvimento das praticas culturais, da pratica docente e no convivio social”. (p. 78) No artigo “Gestao escolar ¢ trabalho docente nas redes puiblicas de ‘ensino em Minas Gerais”, Dalila Andrade Oliveira e Maria Helena G. 14 IANISE MONFREDINI (ORG) - POLITICAS EDUCACIONAIS, TRABALHO E PROFISSAO DOCENTE Augusto, ambas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), apre- sentam os resultados de pesquisa desenvolvida pelas autoras com o objeti- vo de identificar e analisar as mudangas ocorridas na organizagao do tra- balho na escola em relagao ao exercicio das atividades docentes nos anos 1990 em Minas Gerais. Assim, apés caracterizacao do Estado de Minas Gerais e do municipio de Belo Horizonte, as autoras tratam das reformas educacionais nas redes publicas de ensino de Minas Gerais, suas motiva- es eas medidas tomadas para sua implantacao, para discutir, ao final, 0 trabalho docente, as relagdes de trabalho, as praticas pedagégicas viven- ciadas no contexto escolar, as condigées de trabalho e as respostas dos ptofessores as exigéncias das reformas. O trabalho conclui mostrando uma contradigo central nas reformas analisadas: 1 por um lado, 0s professores so muito visados pelos programas das refor- mas educacionais como agentes centrais da mudanca [sao] responsabilizados pelo éxito ou insucesso dos programas; por outro, as medidas de natureza eco- némico-administrativa, que propdem a racionalizagao dos servicos ¢ 0 contro- le dos gastos na érea puiblica, interferer nas condigoes de trabalho dos profes- sores (p. 96) ‘As autoras evidenciam, por fim, o imenso distanciamento entre as exigéncias expressas nas prescrigdes e as reais condigdes de trabalho ofere- cidas. “A reforma do ensino técnico da década de 1990 ea pratica de profes- sores na sua implementaco” é 0 tema abordado por Celso Jodo Ferretti, professor da Universidade de Sorocaba (Uniso) e pesquisador da Funda- do Carlos Chagas-SP. O autor destaca, ao longo do texto, as contradigdes presentes na formulagao e execugao da reforma, tomando como categori- a analiticas centrais os conceitos de cotidiano, apropriagio e objetivacao, conforme a perspectiva ontolégica marxiana, com destaque as formula- Ges de Agnes Heller. A referéncia empirica de onde parte a discussao refere-se a uma pesquisa recentemente concluida, da qual o autor foi um dos participantes’, realizada em uma unidadé escolar de uma rede puibli- cade ensino técnico que tem seus cursos direcionados principalmente ao 7A pesquisa, intitulada “Competéncias e pritica social: 0 trabalho como organizador e estruturador das reformas educacionaisbrasileiras no ensino médio ena educagao profissio- nal de nivel téenico e sua concretizacio nas instituigSes escolares nos primeiros anos do século XXI", fol financiada pela Fapesp e coordenada por Jodo os Reis Silva Jinior. 15 PREFACIO “setor tercidrio”. Dentre outras andlises, o autor constata que, a despeito dea gestio pedagégica da rede ter um cardter centralizador, “a existéncia de um conjunto de orientagdes, de instrumentos e aces de controle nao tem o poder de conformar inteiramente as praticas escolares, embora te- nha muita ascendéncia sobre elas” (p. 107). Neste sentido, Ferretti verifi- cou desdobramentos contraditérios do proceso gestiondrio institucional, como: a) pequeno acesso dos professores 4 documentacio oficial sobre a reforma; b) qualidade do ensino rebaixada pela diminuigéo do tempo dos cursos; ¢) preparo insuficiente dos professores para atuar de acordo com 0s principios da reforma; d) relagées contraditérias entre a implementacao da reforma e a pratica docente, em especial no que tange a apropriagao do conceito de competéncias, advogado pelos formuladores da reforma. Na convivéncia com os professores, o autor detectou, em mais de uma opor- tunidade, concepgdes e praticas marcadas pela alienacao tanto quanto outras voltadas para sua negagao. Assim, as objetivagdes docentes verificadas nas praticas cotidianas revelam que os professores enveredam or ages que negam a reforma e, contraditoriamente, promovem a for- magio dos jovens na perspectiva da qualificagio substancialista, com a qual as competéncias podem ser identificadas no que diz respeito a estrei- tae direta relagio entre qualificacao do trabalho e do trabalhador. O texto “O regime de progressao continuada: as praticas escolares implementadas e as conseqiiéncias para o trabalho ea profissao docente”, escrito por Ivanise Monfredini, da Universidade Nove de Julho (Uninove), discute a implementacao de reformas no Estado de Sao Paulo. Parte da consideracao de que, mesmo que se [.-limponham mudaneas a revelia dos sujeitos que atuam nas escolas ~ como foi o caso do regime de progressao continuada -, estas podem ser subverti- das pelas condigées objetivas de trabalho, pelas caracteristicas do alunado que freqiienta a escola e pelos significados historicamente constituidos que se impéem como referéncia a partir dos quais o professor realiza alternativas (p.116). texto inicia com breve recuperagao histérica na qual a autora desta- caa mudanca quanto a fungao ptiblica que caberia a escola, de selegao da futura elite dirigente, para a formagio da populacao em geral, bem como quanto ao que se exige do professor, pois, no mesmo ritmo em que cres- ceu a quantidade de professores, deterioraram-se as condigGes de traba- Ihonas escolas e os vinculos de emprego. Assim, conforme a autora, atual- mente, diante das condig6es objetivas de trabalho, verifica-se o aprofun- 16 :VANISE MONFREDINI (ORG) - POLITICAS EDUCACIONAIS, TRABALHO E PROFISSAO DOCENTE damento da contradigao entre as possibilidades postas no trabalho e a possibilidade do exercicio da profissdo; ao mesmo tempo que esto presen- tes, em parte, as condigdes para que o professor aprofunde o significado social da escola — pela oferta de educagao de qualidade a populacao antes excluida -, ele se defronta concretamente com condigées que impedem esse processo. Em consequéncia, deparamos com professores “desistentes em exercicio”, ou seja, professores que, exercendo continuamente suas rotinas diérias, “desistiram” de realizar a significacao posta para suas ati- vidades, desestimulados diante das condigées de trabalho. Em “Significado e sentido do trabalho docente: as contradigées no trabalho e sua relagdo com os quadros de adoecimento”, Sonia Regina Landini, da Universidade Federal de Sao Carlos (Ufscar), analisa as con- digdes de trabalho no capitalismo contemporaneo, suas conseqiiéncias para o trabalho docente e as formas de reac que tém levado a crescentes indi- ces de adoecimento mental. Landini realiza um levantamento dos princi pais estudos sobre satide e adoecimento docente, no qual, dentre outros aspectos, destaca o conflito cotidiano vivido pelos professores entre o que é exigido, o que desejam e o que realmente é possivel fazer diante dos obstaculos, das condigées e da organizagio atual do trabalho na educa- sao. Na busca do significado e sentido do trabalho docente, conclui que ‘uma caracteristica marcante da atualidade da sociedade capitalista reside num processo contraditério no qual motivasées genéricas e singulares se ‘opdem. “O trabalhador no domina o produto de seu trabalhonem o pro- cesso de trabalho, e ainda menos a compreensio de seu préprio trabalho, em termos singular e genérico.” (p. 150) Além disso, € processado “um afastamento das condigSes auténomas de trabalho, associado a mecanis- mos de intensificagao das tarefas administrativas e burocraticas.” (p. 151) ‘Mesmo considerando que a ago do professor caracteriza-se por certo gratt de autonomia, pelo dominio do contetido e pela possibilidade de escolhas sobre como levar a cabo os processos de ensino e aprendizagem, a autora destaca que as pressdes decorrentes das atuais politicas “levam o profes- sor a realizar seu trabalho de modo cada vez menos consciente e mais marcadamente pragmitico, alienando-o, afastando-o do dominio do pro- cesso e do produto de seu trabalho”. (p. 152) Por fim, deve-se destacar que este livro é uma contribuigio para todos os que se interessam pela relevancia do trabalho na vida social, j4 que as anilises elaboradas extrapolam as fronteiras do trabalho docente—seu foco pez TPREFACIO ~einformam fenémenos que atingem, em maior ou menor grau, a socieda- de como um todo. Esta contextualidade deu-nos um desenho preciso do que se vem passando no duro universo pesquisado pelos autores. Apesar de esta nao ter sido a t6nica, os textos também nao se eximi- ram de mostrar novos caminhos possiveis para esses campos. Fica, no entanto, para cada leitor, o desafio de desenvolver novas pesquisas, mo- mentos de suspensao nos quais se possa reelaborar outro cédigo de socia- bilidade, outro cédigo de civilidade e de relagdo com o piblico, no qual se possa construir o dissenso, desafiando o paradigma do pensamento tini- co, para indagar outros saberes, outras praticas, outros sujeitos, outros imagindrios capazes de conservar viva a chama de alternativas para essa ordem social de hegemonia do capital? e de construir um sentido social e ético para a educacao, para as escolas e para o trabalho docente’. "LANDER, E. Conhecimento para qué? Conhecimento para quem? Reflexes acerea da .geopolitica dos saberes hegeménicos. In: GENTILL,P.(Org.). Universidades na penumbra: neoliberalismo e reestruturagio universitéria. Sio Paulo: Cortez, 2001. p. 45-71, » MANCEBO, D. Reforma da educagio superior: 0 debate sobre a igualdade no acesso. In BITTAR, Matiluce; OLIVEIRA, Joie Ferreiea de; MOROSINI, Marilia. (Org.). Educagio su- perior no Brasil: 10 anos pés-LDB. Brasilia, DF: Inep, 2008. p. 85-70. Trabalho do professor na escola publica - breves consideragdes" Joao dos Reis Silva Junior" Introdugio Vimos armar-se no transito da segunda metade dos anos 1980 ao ini- cio deste século uma intensa transformacao das instituig&es republicanas por meio de reformas com origem no Estado, eventualmente como decor- réncia da reestruturagao produtiva realizada no Brasil no inicio do perio- do. Empresérios, politicos ¢ intelectuais em suas diversas instancias e universidades uniram-se em torno deste movimento como se ele fora 0 caminho tinico para a salvagao nacional, no contexto da integracao orga- nica do pais & perversa mundializacéo do capital num duplo proceso: sua expansao e sua entrada nos intersticios das relagdes sociais que ainda preservavam algum traco de condigao humana, num intenso processo de mercantilizagao da vida humana. “Bote texto @ uma sntese das discusses reallzndas tendo em vista o aprofundament teéricode quatro pesquisas: A qulificagio como relagaoeconstrugio soci dstntaslitras da obra deMarerealizadana Pontificia Universidade Calica de Sio Paulo (PUC-SP) 0b coordena- S80 de Joo dos Reis Silva Kniorecontando com Celso Joo Ferret e Jorge Luis Cammarano Gonziler: “A construgio social da qualiicagio profissiona”,realizda na Fundagio Carlos ‘Chagas e coordenada por Celso Joao Ferret, com a equpe constituida por Dagmar Zibas, Gisele Labo Tarte e Jodo dos Reis Siva Jnior,“Competenciasepritcs social: 0 trabalho como organizador estratirador das reformas educacionaisbrasieras no ensino médio ena ‘ducagioproissional denivel tenia esa concretizagio nasinslitigbes escolares nos prmei- ros anos do século XX’, realizada por oso dos Res Silva Jnr (coordenador) e Celso Joso Ferret e“Mercantilizaio da esfera pica e universdace: nova idntidade universitiia © trabalho docente das es da Regiso Sudeste”, tendo como pesquisndores Valdemar Spuissardi (coordenadr) ¢ joo dos Reis Silvano, todas com financiamento da Fundasso de Apoio& Pesisa do Estado de Sio Paulo (Fapesp ¢ do Conselho Nacional de Desenvolvimento ieni- fio eTeenolégico(CNPa), no periodo de 1998 2007. f, portant, im texto dataco, ~ Professor e pesqusador do Departamento de Educagio e do Programa de Pés-Graduasio em Ealucagio da Ufecar, 20 |ANISE MONFREDINI (ORG) - POLITICAS EDUCACIONAS, TRABALHO E PROFISSKO DOCENTE O governo de Fernando Henrique Cardoso teve no centro de suas propaladas propostas politicas a construgao e o fortalecimento da cidada- nia ¢ o aumento das possibilidades de emprego. Esse projeto tornou-se publico por meio de discursos dos reformadores ou de seus arautos com grandes espacos e tempos na midia, mediante o alardear da construcao do novo cidadao brasileiro, cujo perfil teria como pilares 0 modelo da competéncia, da empregabilidade e da participacao politica e social nos rumos do pais, contraditoriamente em meio a uma intensa mudanga institucional e & construgao de uma nova organizacao social, isso induzi- do por um novo paradigma de Estado, cuja racionalidade encontrava-se vazada por valores mercantis. Tratava-se, sem dtivida, de um projeto politico muito convincente, nao fosse a conjuntura mundial e brasileira, neste dltimo caso, com seus tracos acentuados na segunda metade da década de 1990: 1) a dissemina- go do novo paradigma de organizagao das corporagdes em nivel mun al, 2) a desnacionalizago da economia brasileira, 3) a desindustrializagao brasileira, 4) a transformagao da estrutura do mercado de trabalho, 5) a terceirizagao ea precarizacao do trabalho em fungao de sua reestruturacdo, 6) areforma do Estado e a restri¢ao do publico conjugada com a amplia- a0 do privado, 7) a flexibilizagao das relagdes trabalhistas, 8) 0 enfraque- Cimento das instituigGes politicas de mediagio entre a sociedade civil e 0 Estado, especialmente dos sindicatos, centrais sindicais e partidos politi- cos, 9) 0 transito da sociedade do emprego para a sociedade do trabalho e 10) a tendéncia ao desaparecimento dos direitos sociais do trabalho. Num movimento de atualizacao de sua teoria da dependéncia, Fernando Henrique Cardoso, em sua pratica politica & frente da Presidén- cia, governou conforme o capital financeiro internacional, preocupando- se tangencialmente com o capital nacional industrial e com o fortaleci- mento de um capital produtivo brasileiro. Por outro lado, por conta da desmobilizagao da sociedade civil ocorrida na década de 1980, gerenciou (mais do que governou) o pais desconsiderando aquela, ou a consideran- do de forma parcial em face de sua fragil organizacdo, além de incentivar aemergéncia das organizac6es nao-governamentais (ONGs) e, neste’ mo- vimento, a formacao e expansio do “terceiro setor”. Neste mesmo movi- mento, Cardoso consolidou o hiperpresidencialismo como forma de go- verno, isto 6, uma hipertrofia do Executivo em detrimento dos demais voderes da Reptiblica. Desta forma. tornou fragil ao maximo o capital 21 TAO DOS REIS SILVA JUNIOR - TRABALHO DO PROFESSOR NA ESCOLA FUBLICA: nacional, destacadamente o industrial, redesenhou a sociedade civil, ins- tituindo as ONGs e o terceiro setor como interlocutores principais, trans- ferindo deveres do Estado e direitos sociais subjetivos do cidadao para a sociedade civil, porém, sob seu controle. Esse movimento produziu um novo paradigma de politicas piblicas: as politicas publicas de oferta a serem executadas no ambito da sociedade civil, em geral por ONGs e empresas privadas do terceiro setor, movimento que, ao lado das reformas institucionais executadas, redesenhou nossa so- ciabilidade e criou condigdes para a produgao de um novo paradigma poli- tico orientado pela instrumentalidade, adaptagao e busca do consenso, tra- 0 politico assumido pela atual cultura politica defendida pelo presidente Lula por meio de seu pacto social. O quadro se completa quando se observa a submissio de Lula as agéncias multilaterais, a ponto de chegarmos a0 final do primeiro semestre de 2002 gastando varios salarios minimos de RS 200,00 por segundo para pagar, com o superdvit primério, somente os juros de nossa politica e impagavel divida externa. Esta politica monetéria teve continuidade no primeiro mandato de Lula, com um aumento das cifras do pagamento dos juros da referida divida, girando ao redor de R$ 150 mi- Indes, em vez de R$ 120 milhdes no perfodo FEIC. Em nossa anilise & época, Lula assumia a Presidéncia da Reptiblica do Brasil em tal contexto, com esmagadora maioria de votos ea confianga de todo um povo e das agéncias multilaterais que tanto influenciaram Fernando Henrique Cardoso, tendo como plataforma eleitoral o jé referi- do pacto social. Nesse quadro conjuntural, indagava-se: como as rupturas e continuidades daquela proposta politica nos ajudariam a compreender a vitéria da coligagao centrada em Lula na mais importante eleicao presi- dencial brasileira? E como tais respostas nos auxiliariam no entendimen- to da ldgica que orientaria a esfera educacional brasileira, na producio cientifica e na inovacao tecnolégica? Em face de sua prépria trajetéria, de sindicalista a presidente da Re- piiblica do Brasil, em seu primeiro mandato Lula sempre esteve préximo da sociedade civil organizada por meio de movimentos sociais, que pro- curavam estabelecer condigdes para um paradigma de politicas piiblicas de demandas sociais. Em 2002, analisdvamos seu itinerdrio desde a emer- géncia do Novo Sindicalismo, no final da década de 1970, passando pela criagao do Partido dos Trabalhadores (PT), até 1998, quando foi derrotado ‘em primeiro turno por Fernando Henrique Cardoso, 22 |VANISE MONFREDINI (ORG) ~ FOL{TICAS EDUCACIONAIS, TRABALHO E PROFISSKO DOCENTE. Entendiamos, entio, que neste momento o PT parecia redesenhar-se numa direcdo mais pragmatica no jogo politico eleitoral brasileiro, como. indica, por exemplo, sua aproximagao com o pensamento nacional das bases empresais. Qual nos parecia ser, ento, a nova equasio politica do partido, que Ihe traria a vitéria nas eleigdes presidenciais de 2002? Tal equacao parecia centrar-se na continuidade dos mesmos padrées de FHC no que se refere ao capital financeiro nacional e internacional, dai porque Ifamos reiteradamente na midia os elogios das agéncias multilaterais & politica econémica do governo Lula, bem como em relacao aos expedien- tes utilizados para a contengao da inflagao, especialmente o aumento da taxa basica dos juros. Por outro lado, ainda que com uma redesenhada sociedade civil, Lula procurava 0 diélogo para governar, mostrando, nes- te caso, uma ruptura com FHC. Nesse mesmo movimento, parecia apro- ximar-se do capital nacional, buscando, de um lado, o fortalecimento do capital produtivo industrial amalgamado com o capital financeiro ja ternacionalizado, e de outro, e com isso, o crescimento econémico brasi- leiro (“o espetaculo do crescimento”). Isto para, com base num status po- litico e econdmico mais forte, buscar reverter o quadro de submissao a0 capital financeiro nacional e internacional produzido pelo monetarismo de Pedro Malan. Nessa base parece residir a I6gica do pacto social de Lula, com conseqiiéncias para a politica de ciéncia, tecnologia e inovacéo tecnoldgica e, sobretudo, para a esfera educacional. Ledo engano. Lula nao conseguiu em seu primeiro mandato realizar © propalado espeticulo do crescimento, menos ainda diminuiu nossa subsungao av capital financeiro internacional e, embasado na sociedade civil reorganizada por FHC para fortalecer as politicas afirmativas, apro- veitou-se do novo paradigma de politicas piiblicas emergente com a re- forma do Estado e sua matriz tedrica, ideolégica e politica. Este movimento proporcionou-lhe a producao de programas focais, além de Ihe conferir popularidade suficiente para vencer com tranqiiili- dade as eleicdes de 2006, e eventualmente isso teria ocorrido no primeiro turno nao fossem os escandalos que atropelaram seu governo no tiltimo ano e um certo tom de convencimento, captado de alguma forma pelos eleitores. Seu opositor era muito fragile pouco confidvel aos olhos do cleitor, eno segundo turno das eleicdes presidenciais obteve um nimero de votos menor do que no primeiro. Isto implica dizer que parte dos votos dados a Geraldo Alckmin no primeiro turno migrou para Lula no segun- 23 0K0 D0s Rats s.va JUNIOR ~ TRABALHO DO PROFESSOR NA ESCOLA PUBLICA: . do turno, numa clara demonstragao de fragilidade do candidato do PSDB, de um lado, e de outro, sinalizava a Lula para que tivesse maior sensibili- dade com seus préprios eleitores. No inicio de seu segundo mandato, Lula fez. um estratégico acordo com 0 Partido do Movimento Democratico Brasileiro (PMDB), que Ihe garantiu uma folgada governabilidade com apoio do Congreso Nacional em suas duas casas. Na articulagao com o PMDB, duas foram as moedas de troca: ministérios e estatais. No Ministério da Educagao Lula nao ou- sou: Marta Suplicy foi pensada, mas acabou com o Ministério de Turismo, num proceso de perda de prestigio da ex-prefeita de Sao Paulo. Estrate- gicamente, Lula admitiu o fracasso de seu governo na esfera educacional, chegando a dizer que o Brasil ¢ um dos piores pafses nessa esfera. Prefe- riu, entdo, manter 0 ministro Fernando Haddad na pasta, que havia pre- parado um programa ~ Programa de Desenvolvimento da Educagio (PDE) ~para recuperar a qualidade da educagio. A época Haddad admitia que o problema do acesso havia sido equacionado no governo de Fernando Henrique Cardoso. Quando se analisa a conjuntura atual, o que se observa na esfera edu- cacional consiste em dar nova forma a educagao, o que poder melhorar a qualidade da educagao brasileira, porém com a mesma substancia histéri- ca que teve lugar no primeiro mandato de Lula e nos dois mandatos de FHC. Esta reconfiguracdo, que recebe 0 apoio de grande parcela da es- querda politica e académica brasileiras, nao parece fugir, em ultima ins- tancia, das orientacdes da Organizacao das Nagdes Unidas para a Educa- ao, a Ciéncia e a Cultura (Unesco) e do Banco Mundial, além de incorpo- rar 0 que foi criticado durante os iiltimos 12 anos. A orientacdo mercantil permanece; em acréscimo, 0 trabalho do pro- fessor sofre uma intensificagio, em especial na educagio superior, em face do lugar estratégico que as universidades e as instituiges escolares da educagao basica passam a ocupar com a atualizacao do pacto social e no processo de produgio de conhecimento-mercadoria. Isto é, aquele que agrega maior valor aos produtos consumidos no mercado interno ou para exportacao. Tal quadro parece induzir pesquisas voltadas para a intervengao ime- diata, deixando em segundo plano as pesquisas de natureza diagnéstica levadas a cabo de forma reflexiva e no tempo de maturagao do pesquisa- dor. Doutra parte, o PDE volta-se para a educagao basica e trata a educa- 24 |WANISE MONFREDINI (ORG) ~ POLITICAS EDUCACIONAIS, TRABALHO & FROFSSKO DOCENTE ao de forma integrada em seus niveis e modalidades, traco positivo do programa. Temas como a “profiss4o docente”, a “valorizacao da profis- so do magistério com piso salarial minimo”, a “avaliagéo e ranqueamento da instituigao escolar”, as “novas pedagogias orientadas pelo pragmatismo © 0 neopiagetianismo”, dentre outros, voltam a cena do debate. Porém, sem que se volte a critica do que ja fora consolidado com as reformas educacionais dos tiltimos 12 anos. A anomia intelectual e politica parece consolidar-se no mandato do presidente Lula da Silva. E o que parece sobrar de positivo, como hipstese, ¢0 inicio de um proceso de consolida do das instituigGes liberais burguesas, superando parcialmente o patri- monialismo que permeia a cultura brasileira desde antes do “descobri- mento” do Brasil, quando, em 1400, Portugal experimentou um precoce capitalismo sem, no entanto, possuir instituigdes liberais que sustentas- sem um pacto social de natureza liberal. Diante do acima exposto, parece apresentar-se como problema politi- coa busca da reconstrugao da esquerda brasileira, e, no ambito educacio- nal, de uma forma precisa de investigar a instituigao escolar, sua cultura orientada por valores mercantis e o ator central do processo educativo: 0 trabalhador professor e seu trabalho no universo da cotidianidade, uma ‘vez que no universo da formulagao de politicas e reformas oficiais de toda natureza, tudo é sedutor e parece resolver os problemas estruturais na esfera educacional Nesta mesma direcao, Celso Joao Ferretti e eu realizamos a pesquisa intitulada “Competéncias e pratica social: 0 trabalho como organizador e estruturador das reformas educacionais brasileiras no ensino médio ena educagao profissional de nivel técnico e sua concretizagao nas instituicdes escolares nos primeiros anos do século XI’, financiada pela Fundacao de Amparo a Pesquisa do Estado de Sao Paulo (Fapesp), numa instituigao escolar profissional de nivel técnico, tomando como objeto o trabalho do professor no universo da cotidianidade. No relatério final para aquela fundagao de fomento, chegamos a vari- as conclusées; dentre elas, 0 que mais nos impressionou foi o fato de que as politicas, reformas e mudangas educacionais no plano da formulago raramente alteraram o trabalho do professor no seu conteiido. Os profes. sores encontravam na cultura da instituicdo estratégias de resistencia & reforma do ensino profissional. Quando ha mudangas na forma e contetido do trabalho do professor, elas sio sempre apropriadas e objetivadas por meio deuma multiplicidade 25. TOAO DOS REN SLVA JUNIOR TRABALHO DO PROFESSOR NA ESCOLA PUBLICA: de influéncias deste trabalhador na instituigao, em razo de sua histéria de vida e sua trajetéria no trabalho, de um lado, e de outro, pela cultura da instituicao escolar. A cultura da instituicao escolar é aqui entendida como um complexo difuso e contraditério que se pde na pratica escolar cotidiana do trabalhador, condensando, na mesma pratica, diferentes tempos histéri- cos da instituigao estudada. Por isto, passados aproximadamente seis me- ses da data de entrega do relatdrio e feita sua releitura de forma mais dis- tanciada, busco aqui produzir alguns supostos tedricos que deram base & pesquisa ja referida para o entendimento da realidade da instituigao esco- lar, recortando as dimensées da cultura escolar, do trabalho do professor ¢ da profissdo docente. Para este desafio, tomamos como supostos tedricos a Escola de Budapeste, por meio da obra de seu maior representante: Lukacs, sem, contudo, deixar fora deste construto as contribuigdes de Marx. O trabalhador professor da escola puiblica e sua pratica cotidiana na institui¢ao escolar Compreender o trabalho do professor no contexto da pesquisa pu- nha-nos o mesmo itinerario de compreensao do trabalho de qualquer tra- balhador. Entendiamos ser esta tomada de posicao um diferencial em re- ago as pesquisas, por exemplo, sobre formagao docente inicial nos cur- sos de licenciatura ou a formago continuada deste trabalhador. Noentanto, se isto consistia e consiste num diferencial que considera- vamos positivo, ao mesmo tempo, por ser diferente e novo, trazia em si seus préprios desafios, tais como a especificidade do processo educativo e, conseqiientemente, a especificidade do trabalho imaterial no capitalis- mo. Tal questéo remeteu-nos ao estudo mais aprofundado sobre trabalho material e imaterial ocorrido no movimento educacional na década de 1980, tempo em que se chegou 4 iminéncia de ruptura entre os sindicatos relacionados ao setor privado e as associagdes ligadas ao funcionalismo estatal puiblico, Marx discute a possibilidade ou nao da generalizacao do modo capita- lista de produc&o nas modalidades ndo-materiais de produgao (MARX, 1980, p. 403-404). A partir dessas consideragées, e identificando o trabalho educa- cional com a forma de produgao nao-material na qual 0 produto nao se separa do processo produtivo, Saviani (1984, p. 81-82) argumenta: De fato, a atividade educacional tem exatamente esta caracteristica: 0 produto no & separado do ato de produgio. A atividade de ensino, a aula, por exemplo, & 26 IVANISE MONFREDINI (ORG) ~ POLITICAS EDUCACIONAIS, TRABALHO E FROFISSAO DOCENTE alguma coisa que supe a0 mesmo tempo a presenga do professor ea presenga do siuno, hrs} oatodedralas incopariel da prodact dese aoe do cons mo desse ato. A aula é, pois, produzida e consumida ao mesmo tempo: produzida pelo professor e constmida pelos alunos. Conseqtientemente, “pela natureza da Coisa”, isto é em razio da caracteristca especifica inerente a0 ato pedagégico, 0 ‘modo de produgio capitalista no se d ai, seno em algumas esferas. ‘Ao analisar 0 papel do educando no proceso educativo na institui- sao escolar, Paro (1988) observa a peculiaridade deste fato, detalhando & sua maneira as reflexes de Saviani. O aluno, na condigao de participante do proceso, é, ao mesmo tempo, objeto de trabalho humano (do profes- sor) esujeito do ato formacional escolar, ou seja, ele é co-produtor do pro- cesso educativo. Isto empresta as atividades desenvolvidas na escola, em especial a aula, uma singularidade que se revela imprescindivel para entendimento, também, da especificidade do trabalho do professor. Sendo 0 aluno co-produtor e consumidor do produto realizado na escola, ele traz para o processo sua singularidade, produzida pela sua histéria de vida. Assim, para que aprenda ele “deve apresentar alguns pré-requisitos minimos, relativos tanto a sua satide fisica e mental quanto a uma prontidao afetiva, intelectual e cultural” (PARO, 1988, Pp 143). ‘O mesmo se pode dizer do trabalho do professor, isto é, sua pratica é prenhe de sua histéria de vida, por isso ele traz para seu trabalho muitas das apropriagGes feitas em diferentes épocas em instituigSes variadas e diferentes da instituicao escolar. Isto torna a pratica escolar que concreti- za trabalho do professor muito complexa, posto que ela condensa dife- rentes épocas da histéria de vida do professor, que se expressam na objetivacao de seu trabalho em uma instituigao escolar. Breves consideragées sobre a cultura escolar Em acréscimo, esta instituigao tem uma cultura que também é a condensagao de diversas épocas histéricas através das quais foi-se cons- truindo sua existéncia no tempo presente, em seu universo da cotidia- nidade. Se Saviani e Paro muito contribufram para o entendimento do traba- Iho do professor nas décadas de 1970 e 1980, & necessério dizer que as mudancas sisteméticas no processo de trabalho no final dos anos 1980, e ‘com maior énfase no final daquele século eno momento atual, fazem-nos repensi-lona condigao de trabalho imaterial predominantemente impro- dutivo eno proceso de producdo pedagdgico tal como proposto por Paro. 27 OKO DOs REIS SILVA JUNIOR ~ TRABALHO BO PROFESSOR NA ESCOLA PUBLICA Marcio Pochmann discorre sobre as modificagdes nas formas de pro- ducao de valor pelas modificagdes ocorridas e a ocorrer em face da nova proporcao da renda com origem no trabalho material e no trabalho imaterial, bem como suas conseqiiéncias, Para cada “R$ 1 de riqueza gera- da no mundo a partir do esforco fisico do trabalho do homem em 2006, havia R$ 9 de responsabilidade do trabalho de natureza imaterial.” (POCHMANN, 2008) Sua afirmagao considera “a composigio do PIB (Pro- duto Interno Bruto) acrescido do. conjunto de ativos financeiros em circu- lacao no planeta, que permite associar o trabalho imaterial as atividades tercidrias da estrutura de producao de riqueza” (POCHMANN, 2008). Para ele, portanto, ainda que se considere esta proporgio, a produgao do valor encontra-se no setor industrial, num hibridismo com as muitas formas de exploracao do trabalho imaterial na acumulagio flexivel. Oautor acrescenta que em 1950, por exemplo, a cada R$ 10 de rique- za gerados no mundo, somente R$ 4 provinham do trabalho imaterial” (POCHMANN, 2008) Isto é, em um perfodo menor que 30 anos "a rique- za associada ao trabalho imaterial cresceu quase 10%, em média, ao ano, enquantoa do trabalho material aumentou a metade disso” (POCHMANN, 2008). Disto decorre que ha profunda mudanga no processo de circulagio de mercadorias e realizagio do valor, com conseqiiéncias para o trabalho ‘imaterial. “Nesse sentido, o PIB dos paises torna-se mais leve e com elevada produtividade, tendo o trabalho imaterial como principal forga geradora de riqueza no mundo” (POCHMANN, 2008, p.3). Isto é, contrariamente A &poca de Marx, o trabalho imaterial torna-se mais factivel de tornar-se produtivo, “O que exige, em contrapartida, amplos e constantes investi- mentos em infra-estrutura, em ciéncia e em tecnologia aplicada” (POCHMANN, 2008, p.3). O que isto significa dito de forma mais direta? Que a ciéncia,a tecnologia e as inovacdes tecnol6gicas tornam-se impres- cindiveis no momento atual para a “potencialidade renovada de fantasti- ca ampliago da riqueza a partir da base industrial consolidada pela es- trutura produtiva existente” (POCHMANN, 2008, p. 3). Isto impée, para ‘© centro das mudangas a que assistimos nos tiltimos 40 anos no mundo e a partir da década de 1980 no Brasil, que a sociabilidade deva ser alterada na diresao de uma “sociabilidade produtiva”. Para isto, de um lado as. instituig6es escolares ~ que sao o lugar privilegiado da educagio basica — so chamadas para o lugar central no proceso de construcao desta socia- 28 IVANISE MONFREDINI (ORG) - POLITICAS EDUCACIONAIS, TRABALHO E PROFESSAO DOCENTE bilidade; de outro, as universidades sao postas no centro do processo de formagio de professores e de produgio de ciéncia, tecnologia e inovacao tecnoldgica, modificando profundamente a natureza da instituigao uni- versitaria, das instituigdes escolares da educagao basica e do trabalho do professor. Voltemos ao excelente artigo de Pochmann: em 2006, “a cada dois ocu- pados no mundo, um encontrava-se relacionado ao trabalho material, enquanto em 1950 eram trés em cada quatro que trabalhavam”. Como haviamos destacado que o fenémeno nao se pée apenas para o Hemisfé- rio Sul, Pochmann argumenta que nas “economias capitalistas avancadas, s6 um a cada trés ocupados desenvolve trabalho material”. ‘A demanda intensificada do trabalho imaterial constitui-se numa con- tradicao, dado que pressupée um real crescimento da economia por meio de investimento de capital produtivo, ainda que amalgamado ao capital financeiro, que se pde na condi¢ao de macrogestor da economia mundial e das mudangas que vém sofrendo a classe trabalhadora e 0 trabalho ma- terial e imaterial. No entanto, no pélo antitético a este apresentado surge uma deman- da reformista posta pela prépria substancia hist6rica do capitalismo. No plano da economia, a necessidade de continuo processo de ensino e apren- dizagem, como se pode observar no centro da Declaragio mundial sobre ‘educagio para todos (ORGANIZACAO DAS NAGOES UNIDAS PARA A EDUCACAO, A CIENCIA EA CULTURA, 1990). Esta data é significativa, um ano apés a derrubada do Muro de Berlim —cujos fragmentos foram e ainda sao vendidos como souvenir a turistas ~, e mostra de forma solar 0 carter ideoldgico daquele evento histérico: a vitoria do capitalismo libe- ral, da democracia e da reptiblica burguesa, ao mesmo tempo buscando legitimar cientificamente 0 evento politico. Por que vou tao longe se tao-somente quero tecer breves consideragies sobre o trabalho do professor da educagio basica e superior? Para tentar mostrar que o momento de mundializacao do capital, no plano econdmico, exige uma nova sociabilidade do ser humano. Lembremos Gramsci, em seu primoroso texto Americanismo e fordismo, ao falar sobre a passagem para 0 fordismo e inspirado em Trotski, afirma que somente haverd sucesso nas atividades do trabalhador no novo paradigma de organizagao do trabalho se um novo ser humano pensar, sentir e viver em conformidade com as novas relagGes sociais que derivariam das novas formas de relacdes de pro- dugdo. O que Gramsci nos indica naquela mudanga da forma histérica do 29 00 DOS REIS SILVA JUNIOR ~ TRABALHO DO PROFESSOR NA ESCOLA PUBLICA: capitalismo é a necessidade da construcao de uma nova sociabilidade para 0 cidadao europeu em um continente cuja densidade histérica ¢ infinita- mente maior que a que era a dos Estados Unidos. Isto nos est posto h4 quatro décadas em nivel planetario e hé trés décadas para o Brasil. Em decorréncia deste movimento, tornamo-nos 0 pais das reformas na década de 1990, como objetivo de mudanca de nossa sociabilidade para a produgio de uma "sociabilidade produtiva”, para 0 que so centrais a esfera educacional, a instituigao escolar e a université- ria, mas, sobretudo, o trabalho do professor. Com base em pesquisas de longo prazo sobre emprego e desemprego no capitalismo e com uma visdo particular da esfera educacional, Pochmann (2008) toca em pontos importantes para o entendimento das mudangas nesta esfera de formagao humana - a educacao-e para as pro- fundas alterages que ja se estao realizando no trabalho do professor, tam- bém imaterial e superqualificado. Acrescento outros tracos as boas anéli- ses feitas, para compreendermos as mudangas nas instituigdes escolares de educagao basica e nas instituigSes universitarias no Brasil. ‘A compreensio das mudancas da identidade da instituicao escolar ~ lugar da pratica da educagao basica -, da instituigao universitéria e do trabalho do professor (cujo trabalho é imaterial e superqualificado) deve ocorrer por meio do entendimento de dois grandes eixos, dentre outros: 0 primeiro consiste na reforma do Estado posta em movimento em 1995 € em curso até os dias atuais; o segundo realiza-se nas mudangas na produ- 0 e valoragao do capital. Oprimeiro realiza-se por meio das reformas das instituigdes republi- canas, da reorganizagio da sociedade civil eda mudanga da sociabilidade, do ser humano neste momento do capitalismo; o segundo tem como prin- cipais orientacdes, de um lado, a reestruturagao produtiva, que teve seu inicio sistematizado no Brasil na primeira metade da década de 1980, e de outro, a transformacio radical no trabalho imaterial e superqualificado, no contexto da acumulagio flexivel. Esta tiltima condensa as formas “pretéritas” e atuais de exploragao do trabalho, atualizadas por novas ¢ eficientes formas de controle e valoriza- ao do capital, o que consiste na grande e mais relevante inovacao deste modo de producao para se perpetuar. Em acréscimo, diminui o seu custo (0 trabalho vivo) e, em conseqiién- cia, realiza o desemprego e a reorganizagao do mercado de trabalho mate- SO) !VANISE MONFREDINI (ORG) - POLITICAS EDUCACIONAIS, TRABALIIO E PROFISSHO DOCENTE rial e imaterial, bem como a desorganizagao das formas de representagao da classe trabalhadora. Jé foram obedecidas as diretivas, de forma servil a0 ardil que os intelectuais tornados simples académicos, profissionais e anémicos assumiram num processo insidiosamente engendrado pelo Es- tado e envolve um complexo de sujeitos da sociedade civil. Os dois eixos por meio dos quais ¢ possivel compreender mudangas da identidade instituigao escolar e universitaria e do trabalho do profes- sor encontram-se na necessidade de mudanga da sociabilidade para a manutengdo das margens de produtividade do capital. O primeiro eixo encontra-se mais relacionado 4 necessidade de reformas das instituicdes republicanas brasileiras, e para tanto a matriz é a reforma do Estado. O segundo eixo a que aludimos em pardgrafo anterior articula-se mediadamente & reestruturagao produtiva. Esta nova taxonomia institu- cional legalizada pelo novo ordenamento juridico colocaria em curso no pais um extenso e intenso movimento de reformas com 0 objetivo de pro- duzir um novo pacto social pragmético e a “sociabilidade produtiva”. A ciéncia, a tecnologia e a inovacao tornaram-se meios de producao, mu- danga que produziu a mercantilizagao das instituigGes de ensino superior (ES) e alterou qualitativamente o trabalho do professor pesquisador, um trabalho imaterial superqualificado. Em acréscimo, o resultado do traba- Iho do professor pesquisador (formulador das bases teéricas para as re- formas da educagao) colocaré em movimento por meio das reformas da educagio basica a formacao de um novo tipo de professor. Estabelecem- se, neste ponto, as relagdes entre a educagao superior ea educacao basica. As bases teéricas orientardo as novas politicas de formacao de professo- res, tal como vimos, com base em paradigma reducionista. 0 humano subsumido pelo mercado. Destaca-se, ainda, o aumento da expectativa de vida do trabalhador, a descentralizacéo do proceso de trabalho em varios lugares (em lugar de uma tinica unidade produtiva) e o trabalho domiciliar. Por outro lado, € imprescindivel considerar as reformas relativas ao trabalho, que dimi- nuem os direitos sociais sobre o trabalho, a necessidade de qualificagao continuada pela vida toda, que novamente feforga a produgao cientifica pragmatica e o aumento do trabalho imaterial e produtivo. Tudo isto mo- difica a identidade das IES, as relagbes entre Estado ¢ instituigdes, mas sobretudo o trabalho do professor. Sobre as transformages no trabalho material ou imaterial no Brasil, ver Antunes (2006), livro em que o autor mostra, por meio de pesquisas 31 040 DOS REIS SILVA JUNIOR - TRABALHO DO PROFESSOR NA ESCOLA PUBLICA: empiricas na maioria dos setores empresariais, como se verificaram as transformagées para a exploracao nos dois tipos de trabalho e como a acumulagao flexivel intensificou e precarizou o trabalho material e imaterial. O aumento da possibilidade de exploragao do trabalho abstrato na condigao de acumulacao flexivel consiste no “aciimulo dos modos de pro- dugio servis pré-capitalistas” (LAZZARATO, 1997, p. 11) e leva ao limite da auto-exploracao o trabalhador orientado pela nova sociabilidade pro- dutiva. Esta é a novidade mais profunda da acumulagio flexivel. No ambito objetivo das relagGes sociais, a mais-valia “se esconde sob a ilusio de uma sociedade de produtores independentes de mercadorias, uma sociedade de vendedores de trabalho materializado. Uma sociedade sem vendedores de forga de trabalho, posto que o contrato de compra e venda de forga de trabalho esta metamorfoseado num contrato de fornecimento de mercadorias.” (LAZZARATO, 1997, p. 34) Em acréscimo, “A exploragao do aspecto intelectual do trabalhador, no capitalismo contemporaneo, éuma afirmacao da existéncia de uma ‘subjetividade produtiva’, relativamente diferente da ‘subjetividade operaria"” (LAZZARATO, 1997, p. 104). Em pesquisa realizada por COLI (2006), ha interessantes andlises conclusées sobre o trabalho do corista do Teatro Municipal de Sao Paulo. Este trabalho é, tal qual o do professor, um trabalho imaterial, superqua- lificado. Sobre este trabalho e suas conseqiiéncias com a reestruturacio do trabalho imaterial, muito préximo ao do professor, afirma a autora: No contexto do trabalho imaterial, 0 contrato trabalhista nao estabelece uma relacdo imediata entre “produtividade” e “improdutividade” ; a0 contrario, es- tabelece novos parimetros para a exploragao da forca de trabalho vivo, que "Gomari desiuar ee ator su contbugio tric empiri sobre abso materia, ‘Guese pd com mailavisldadea partir de 1970, O tera eid tna na dada de 196010 Sin debated solos do talks na Pranga encontou ec aa no qu cou Conheeilo como ncomaismc opetssmo Apssrdassimetias que eneontocom Lazarato Nope ests eortent parece smaner um Lislogo sco com os autores que fomam a Ssalcdigadeccondmica pare andise da reproduy socal qual entende Luks. Are produgio soc! tem suterami eativa dads matralidade da econo, ainda que esta ESfreboonmena condo coca seprodusio socal jamais vena ae histoscamen- Seidel economia Tao os daroe isto temosconvigg. Mas, para ai autores tudo ‘Siavindicarque come debate sobre produtvidade do tabalo imate tse marie [tires cenalisade da categoria tabalho tomada mo ara por ukSes em sua Onaogia dar sce a algo ciclvelsugerndo Certo conservadorsno Em rio dst, procur serra epresio“socablidade produia” em ver e-subevidede produtva VANISH MONFREDINI (ORG) - POLITICAS EDUCACIONAIS, TRABALHO E PROFSSKO DOCENTE hoje é redimensionado por novas formas de controle do capital, essencialmen- tea partir de sua subjetividade criativa e participativa no processo de produ- io. Em dimensao nao inédita, no caso do artista em geral, altamente qui ado, isso se aprofunda por meio de elementos como a intensificacio do traba- Iho, a precarizagao das relagdes de produgio (carreira, prestacio de servigo, etc.) no interior das instituigdes 8s quais prestam servicos. Em resumo, um trabalho que ja dependia da subjetividade produtiva do trabalhador resulta, ro atual processo de estratégias de mudangas no trabalho produtivo, em pro- funda sujeigdo da subjetividade do artista [do professor] aos meios e controles do capital. (COLI, 2006, p. 317) Talvez resida ai eventual chave de leitura para construirmos uma ca- tegoria que o empiriconos cobra para melhor entendermos o trabalho do professor na educagio basica e na educagao superior. Isto indica a neces- sidade de ampliagao da produgao de estudos e pesquisas de natureza em- pirica e teérica, especificidade do trabalho imaterial e superqualificado do professor. Ha pouco sobre isto e somos induzidos a fugir deste campo estruturado de pesquisa que articula, de um lado, trabalho e educagio, e de outro, as politicas e reformas educacionais, Cultura escolar A forma de apreender-se a contribuicao da instituigéo escolar com base na Escola de Budapeste e da sociologia que decorreu desta escola filoséfica consiste em apreender-se a cultura escolar e os mecanismos que se engendram nesta instituigao pelos seus construtores no cotidiano. Esta esfera ineliminavel da vida humana (a cotidianidade) apresenta-se na es- cola de forma fragmentada, heterogénea, a exigir resposta imediata do professor, dos alunos, gestores e funcionarios, sem que eles consigam re- fletir e estabelecer os necessérios nexos para realizar seu trabalho com 0 objetivo de elevacao de nossa condigao humana, sob os limites postos pela histéria no momento de seus trabalhos. Impoe-se a necessidade do estabelecimento de nexos entre a especifi- ca forma fenoménica escolar, na condigao da trama social no émbito institu- cional de forma imediata, e sua correspondente substancia historica. Desta maneira, os saberes mobilizados pelos professores colocam-se no mesmo plano aparente do fluxo histérico (a forma fenoménica), des- considerando a substancia histérica, tal qual propde Lukacs em sua gran- de Ontologia do ser social, especialmente no capitulo IV da primeira parte, “Os principios ontolégicos fundamentais de Marx”. 33. OAO DOS REIS SILVA JUNIOR ~ TRABALHO DO PROFESSOR NA ESCOLA PUBLICA A pratica, nesse ambito em que vemos a reprodugao social, estabele- ce-seno plano aparente e superficial: sio as formas culturais que embasam as relagGes sociais em movimento com a objetividade. A intencionalidade dos sujeitos da escola leva a escolha de metas nesse plano, tendo como critério de verdade a utilidade, especialmente quando nao relacionamos a degradagio social com a distribuigéo de renda, e ambas com o que olha- ‘mos a nossa volta, correndo atrés do dia de amanha sem saber a razao desse nosso automatico movimento. Isto induz a uma vida aparentemente construida no eterno presente, instituido por simbolos e signos insidiosamente produzidos que resultam noardil fenoménico, cuja assuncao realiza-se pelos seres humanos. Confor- ma-se, de maneira contraditéria, a cultura em geral ena instituicao escolar. Ao apropriar-se desta cultura, o ser humano reproduz-se e reproduz a0 género humano, reproduz os valores predominantes e também os valores relativos is contradigdes desta sociedade expressos na escola. Isto parece impedir-lhes de fugir dessa superficialidade cada vez. mais extensiva, intensiva e irracional, contudo objetiva, forma histérica que tem sua substancia também histdrica e indissociavel da primeira num proces- 50 que se realiza no dia-a-dia. Este consiste em um fluxo histdrico hetero- géneo, fragmentado e aparente, exigindo dos seres humanos as respostas a cada timo de segundo, e dé as possibilidades daquelas praticas na ins- tituicao escolar, sem Ihes permitir reflexdo adequada sobre elas, possibili- tando a superficialidade extensiva, que se configura no lugar privilegiado da alienagao. E necessario aqui discutirmos a compreensio histérica de substancia na obra de Marx, bem como a compreensio de forma histérica, suas rela- 6es e 0 peso que cada uma tem no fato social objetivo da educacao escolar. Marx deixa clara a existéncia de uma forma fenoménica e uma forma real existentes, ainda que indissociaveis e amalgamadas. Processo dinamico que se constitui no epicentro do movimento das relagées sociais concretizadas por meio da pratica social (lugar privilegiado da dimensio dinamica da existéncia, da fragmentacio, da heterogeneidade, do movimento acentua- do, do fluxo histérico visivel de forma presencial ou pelos tantos meios de comunicacao de variadas naturezas, portanto, da superficialidade e da uti- lidade como critério de verdade, na resolugao imediata dos problemas coti- dianos) e uma substéncia histérica que ¢ 0 lugar da perenidade de um mo- mento histérico longo. Isto é, forma histérica e substancia histérica ndo 34 IVANISE MONFREDIN (ORG) - POLITICAS EDUCACIONAIS, TRABALHO E PROFISSAO DOCENTE mantém entre si um grau de hierarquia ejogam o mesmo pesona existéncia do fato sociohistérico. Isto leva Marx ao enunciado: “toda ciéncia seria su- pérflua se a esséncia das coisas e sua forma fenoménica coincidissem dire- tamente” (MARX apud LUKACS, 1979b, p. 26). Hi uma diferenca entre as duas esferas, no entanto elas estdo presas de forma contraditéria num mesmo movimento histérico, 4 mesma materialidade historica. “A inter-relagao dialética entre o individuo (sujei- to de toda alternativa) e o universal (0 social mente submetido a leis) cria uma série fenoménica mais variada e multifacetada |... porque] o tornar- se fenémeno da esséncia social pode-se verificar apenas no médium, repre- sentado pelos homens, que so por principio individualizados” (LUKACS, 1979b, p. 84). Tal médium & nada mais do que a mediacio realizada pelo ser humano por meio de suas relacdes sociais, que se concretizam nas praticas que realiza em cada instituigao da qual participa. ‘As mediagSes consistem nas formas pelas quais os seres humanos pensam o mundo em que vivem, sentem-no enele atuam. Tais mediagées produzem e reproduzem a cultura da escola e suas contradigées. Isso im- plica dizer que a forma fenoménica da escola (sua cultura) produzida pe- los seres humanos em relagao organica com sua substancia histérica joga peso igual ~ e ausente de hierarquia ~ na produgao dos eventos sécio- histéricos no cotidiano escolar. A forma cultural ea substancia histérica sio objetivamente existentes e indissociaveis. A forma cultural historica tem lugar central no movi- mento do fluxo histérico aparente da escola, em que se concretizam as praticas escolares. Estas, em geral, sfo vistas, administradas predominan- temente na forma cultural, enquanto a substdncia histérica permanece na contra-luz, portanto, predominantemente velada, mas joga um peso grande no alcance eno limite das praticas realizadas no mbito da cultura especi- fica de determinada escola. O processo de formacao humana nas instituigdes educacionais Aqui se retomam as argumentagdes sabre as especificidades do pro- cesso educativo Ao considerar o conceito de produto da educacao escolar, Paro (1988) aprofunda as especificidades daquele proceso e as respecti- vas especificidades da teoria e da pratica do trabalho do professor na cotidianidade da instituigao escolar. Partindo da nao-passividade do alu- no no processo educacional, o autor indica a aula como uma atividade 35 JOA0 05 REIS SILVA JUNIOR ~ TRABALHO DO PROFESSOR NA ESCOLA PUBLICA: para a consecugao do produto escolar. O produto consistiria na transfor- magio do aluno, propiciada pela aquisigao de saber, técnicas, valores, etc. Acrescento eu, fora da aula, por muitos eventos dos quais participa sob a influéncia da cultura da escola onde se insere. E, portanto, permaneceria para além de sua fase de escolarizacao, consistindo em parte de seu ser, que estaria presente em suas atividades ao longo de sua prépria vida. Na produgio material, a divisao pormenorizada do trabalho significa a propria desqualificagao do trabalhador promovida pela ciéncia e tecnologia por meio da expropriagao do seu saber sobre o trabalho e sua incorporagio aos meios de producao, tornando-se, desta forma, proprie- dade do capital. Em razao de sua prépria natureza, no processo produti- vo escolar hé um saber inaliendvel do trabalhador: trata-se do saber e da cultura historicamente acumulados pela humanidade, que “[...] nao [permanece] apenas no ato de produzir a educagio escolar, mas ultrapas- sa esse proceso, de forma andloga & matéria-prima na produgao materi- al, que entra no processo de produeéo como matéria-prima e sai como parte componente do novo produto” (PARO, 1988, p. 198). A divisio técnica do trabalho foi engendrada com base na possibil dade de separagao entre a concepgao e execugao do trabalho humano, de maneira que se torna possivel a primeira dimensio ser desempenhada nos departamentos de projeto, de planejamento, de controle de qualida- de, ete. das empresas capitalistas, enquanto a execugao realiza-se distante da primeira, por outras pessoas, no “chao da fabrica”. Isto implica dizer que o ser e o saber, durante a concepsao do trabalho fundante na produ- Go material, podem ser separados do ato da produgao; o mesmo nao se pode afirmar sobre a matéria-prima e 0 objeto de trabalho, dado que a produgao nao se realiza sem eles. Eis ai um dos elementos que fazem a especificidade do proceso pedagégico: 0 saber nio se apresenta neste processo apenas como algo que possa ser separado ele, como concepsio; ele se apresenta também como objeto de trabalho e, como tal, é inalienavel do ato de produgio. Assim sendo, (0 ser) [..] eo saber do [tra- balho do professor] no pode ser expropriado do trabalhador, sob pena de descaracterizar-se 0 préprio processo pedagégico. (LUKACS, 1979, p. 148) Em sintese, anatureza do trabalho do professor, do processo educative na instituigao escolar e sua cultura mostram-se tinicas quando analisadas segundo os aspectos anteriormente estudados; portanto, o trabalho do professor da escola publica, sua cultura ou forma cultural, bem como as 36 IVANISt MONFREDINI (ORG) - ROLITICAS EDUCACIONANS, TRABALIO & PROFSSAO DOCENTE categorias dai decorrentes nao podem ser emprestados a teorias genera- listas produzidas com base no trabalho material capitalista, menos ainda por teorias pedagégicas que nao tenham como materialidade a historia e a cultura, segundo entendemo-la ser: uma cultura que se identifica com a condensacao das diferentes épocas da instituigao escolar em choque com as contradig6es sociolégicas do momento presente. A cultura mercantil da instituicao escolar publica atual e a discussao sobre a profissionalizacao do trabalho do professor A forma atual do capitalismo no Brasil produziu uma regulagao soci- al que procura a “nova institucionalidade”, assentada na busca do con- senso entre antagénicos por meio de politica de negociagaoe de uma bru- tal ofensiva ideolégica contra tudo o que seja aparentado com soberania popular, submetida a politica econdmica aceita desde o inicio dos anos 11990. Institucionalmente, tal forma estruturou-se no mandato de FHC, por meio de varias emendas constitucionais e regulacGes inéditas, que buscavam legalizar uma série de facilidades facultadas ao capital, e conti- nua nos mandatos presidenciais de Lula de forma acentuada. Este processo pode ganhar mais clareza se tornarmos mais explicitas as relagGes que se pdem como micleo central do titulo deste texto, por meio de um itinerério mais analitico e rigoroso do que histérico; o gover- no Lula to-somente é citado aqui como um ator que nos instiga a refletir ‘com mais rigor o que aqui foi anunciado. O entendimento das relagées pitblico-privadas torna-se complexo quando se busca relacioné-las com 0 mercantil e, sobretudo, com o esta- tal, suas atuais modalidades. Neste sentido, deve-se partir da principio de que a liberdade e a igualdade sao uma utopia iluminista e de que a propriedade privada e suas conseqiiéncias so uma dura realidade na his- t6ria do capitalismo, especialmente no contexto da insergao do Brasil na imperial universalizagao desse sistema. A discussao sobre a cultura que embasa as relagdes sociais hoje e que Ihes confere a racionalidade histdrica do momento atual deve considerar, necessariamente, pelos menos trés amplos campos: a normatizagao institucional derivada do ordenamento juridico do Estado moderno, sua organizacao especifica, que ali se origina, e a historia especifica das insti- tuigdes da sociedade. Trata-se da natureza das instituigdes que, como proprio substantivo indica, contribui para a instituigao da cultura e que 37 JOAO DOS REIS SILVA JONIOR ~ TRABALHO DO PROFESSOR NA ESCOLA PUBLICA: realiza, em parte, 0 pacto social em determinado periodo histérico, pro- duzindo em sua formacao o lugar privilegiado do ethos estatal puiblico no Ambito da sociedade civil. No momento presente, quando vemos na contradicao pitblico-priva- do aexacerbagao do segundo pélo em detrimento de seu antitético, pode- mos afirmar a existéncia de um processo de mercantilizagao do Estado modernoe, conseqiientemente, das instituigGes quenele se originam, como a instituigao escolar e sua respectiva cultura. O Estado modemo tem forma organizacional e objetivos sociais —his- toricamente a cle atribuidos — destinados & manutengao e & regulagao do pacto social desse momento da humanidade e, a0 mesmo tempo, deve constituir-se na condigao de consciéncia critica institucional desse tempo histérico, tendo em vista a contradicao nao enfatizada por Locke entre liberdade e igualdade e, de outro lado, a propriedade privada. Portanto, as qualidades que conferem identidade ao Estado moderno sio produzidas idealizadamente pela primeira vez na sua prépria origem. Isso implica dizer que, ainda que com modos diferentes de existéncia, a identidade historica de tal instituicdo deve ser buscada no institucional, em seu ordenamento juridico e em sua cultura, historicamente produzida em cada pais no capitalismo. Segundo Locke, no estado natural da humanidade todos nasceriam iguais, racionais e em liberdade; as leis danatureza encontrar-se-iam igual- mente nas maos dos individuos, nao existindo, ainda, 0 espago societal. ‘Os homens estabeleceriam sua identidade por meio da razao, com vistas, a preservagio da paz e dos direitos naturais de todos, com 0 objetivo de continuidade do género humana. Um desses direitos pensados por Locke, ainda que nao inato, seria a propriedade, pois ela seria derivada do traba- Iho, considerado por ele como uma extensao do prdprio corpo humano, do que decorreria a condicao do direito natural da propriedade. ‘No entanto, no estado natural os direitos de igualdade, liberdade e propriedade ~ dada a complexificacdo dos modos de vida dos seres hu- manos produzidos por meio do trabalho simples e de seus resultados ~ poderiam ser ameacados, porque alguns homens, favorecendo mais sie a seus amigos, poderiam acabar por provocar um claro estado de guerra. Isto contrariaria o estado natural, bem como os direitos préprios deste estado, do que Locke deduziu a necessidade de superagao, pelo homem, desse estado natural. Para ele, “é razao decisiva que os homens se retinam 38 ANISH MONFREDIN (ORG) - ROLITICAS EDUCACIONAIS, TRABALHO E PROFISSAO DOCENTE em sociedade deixando 0 estado de natureza” (LOCKE, 1991, p. 220), vi- sando ao estabelecimento de um poder politico terreno que emergisse da sociedade e a ela se submetesse a fim de eliminar-se “a continuidade do estado de guerra” (LOCKE, 1991, p. 224). Disto se poderia depreender que esse movimento, resultante no poder politico e no Estado, tem como fim tiltimo a continuidade do género humano ou o desenvolvimento his- t6rico da qualidade que haverd de o identificar: a humanidade. Nesse momento, os homens teriam feito um pacto social e criado a sociedade politica para a preservagio dos direitos naturais, ou seja, 0 pac- to social fora feito no estado natural com o objetivo de garantir os direitos de igualdade, liberdade e propriedade de qualquer individuo em socie- dade, independentemente de suas condig6es naturais, disto derivando a continuidade e a complexificagéo do género humano. Em acréscimo, nao haveria rentincia dos direitos naturais em favor dos governantes, como 0 queria, por exemplo, Hobbes: ha um pacto para a preservacao dos direi- tos de todo cidadao na sociedade ~ a constituicao do ethos publico. O po- der dos governantes do Estado e de suas instituicées, portanto, derivaria da sociedade, por outorga desta, do que decorreria a submisséo do poder politico e do Estado moderno ao povo, ao piiblico, isto é, A sociedade, sempre tendo como objetivo reiterar e intensificar a continuidade do gé- nero humano. Nesse momento, institucional, com o traco histérico des- se tempo, fora produzido pelos e para os seres humanos e concretizado pelo pacto social. No Estado modemo esté toda a origem histérica do institucional e do politico de qualquer instituigao ou organizacao da sociedade atual. Aexis- téncia humana e suas necessidades decorrentes em sociedade precede- ram a produgao histérica do Estado moderno e de suas instituig&es para a construgao, regulagao e consolidagao do pacto social. Convém aqui desta- car desde logo que o puiblico identifica-se com a sociedade, de um lado, dando origem ao poder politico que se materializard no Estado e, de ou. tro, que o pitblico torna-se o pélo antitético do privado no ambito da soci- edade e do Estado. Disto se pode concluir, com Locke, que a natureza institucional do Estado moderno e do poder politico por ele exercido emer- ge da sociedade e a ela deve submeter-se. Por essa razio, desde a criagao do Estado, e particularmente do Estado moderno, existe uma contradi¢éo entre 0 ptiblico ¢ 0 privado em qualquer esfera de atividade humana, es- pecialmente no interior do préprio Estado e de suas instituigdes. Tal con- 040 DOs RIS SILVA JUNIOR ~ TRABALHO DO PROFESSOR NA ESCOLA PUBLICA tradigao histérica deriva, de um lado, da outorga das atividades de legis- lar, julgar e executar, que so individuais no estado natural, para a esfera normativa do pacto social, o Estado; de outro, da instituicao mesma que sustenta o pacto social por meio do poder politico que é o Estado. Assim, pode-se apontar para um duplo movimento que produziria a indissociavel contradigao piblico-privado na sociedade e no Estado mo- derno. Isto implica afirmar a predominancia de um pélo da contradigao ~ © pliblico —ou de seu antitético - 0 privado — em fungao de como se orga- nizam a sociedade, o Estado eas relacGes entre eles mediadas pelo poder politico com base na natureza e na economia. No entanto, como seu lugar éasociedade, seu ethos deve ser, segundo a doutrina liberal classica, predo- minantemente péblico. Nesse quadro configura-se o pacto social e seu produtor, 0 cidadao, bem comoa qualidade de ser cidadao: a cidadaniae, em acréscimo, como ele deve pensar, agir e organizar-se para realizar a fungao precipua do Estado moderno, do institucional, do poder politico e da cultura que sedimentam e consolidam o pacto social na modernidade*. Estabelece-se, assim, nesse modo de produgao da vida humana, com mui- tas formas histéricas diferentes, uma contradigio que permeard todas as atividades dos individuos no ambito da sociedade e do Estado, realizadas na esfera da politica, destacando-se neste momento a contradigao entre 0 piiblico e 0 privado, dada a organizagao social, o termo publico. Na modernidade, portanto, nao cabe pensar no fim do pitblico ou do privado, mas organizar a sociedade para que a contradigao entre o piblico ¢ o privado seja sempre superada por meio da politica em diresao aquele, 0 piiblico, “em prol do bem piblico” (LOCKE, 1991, p. 229), isto é, da socie- dade, paraa realizagio de seus objetivos de origem, dentre eles a intensif- cagdo da qualidade de existéncia a continuidade do género humano. ‘Assim, posto que o piblico se identifica com a sociedade, com a orga- nizagdo do Estado e com o poder politico exercido pelos governantes, cabe a sociedade, na perspectiva liberal, segundo Locke, cuidar para que 0 po- der politico a ela se submeta e que 0 pélo publico da contradicio seja sempre 0 mais forte em razo de suas caracteristicas de origem histérica. : ro das Na vdizlidade dessa filosofa politica no fim do mercanilisno enicio da conse bases econdmicas do xptalisme, a potcacntrolaria a economiaes propriedadeprvada Nese momento no vn densa sta para ogumontarac sobre a onto tre igualdadee iberdade « a propriedade privada, siposto que, quase cem anos depo, Rousseau fomara pera explicara Gesiguldade social entre os homens 40 ANI MONFREDIN (ORG) ~ FOLITICAS EDUCACIONAIS, TRABALIIO E PROFISSAO DOCETE Se 0 contririo ocorrer, sera por vontade politica da sociedade, que pode nao estar tendo clareza da constituicao histérica de sua vida cotidiana em sociedade. Pode estar embasando seu modus vivendi numa visaéo de mun- do que mais oculta do que revela o Estado como uma instituigao auténo- ma sem sua Ancora na propria sociedade, na economia e na natureza, Porém, analisando 0 capitalismo quase um século mais tarde, Adam Smith (1993) mostra, em A riqueza das nacoes, que o Estado capitalista, para além de representar 0 capital mediante uma autonomia politica relativa, sempre teve um papel econémico, sem o qual o capital jamais se reproduzi- tla plenamente de forma privada, isto é, pela “mao invisivel do mercado”. Smith mostra 0 papel politico, mas também 0 econdmico e o belicoso do Estado modemo, antevendo o século da social-democracia e dos pre- sentes diagnésticos e solugdes neoliberais, ao mesmo tempo em que ofe- rece a chave para desvendar periodo do liberalismo classico, isto é, a contradicao entré a igualdade, a liberdade e a propriedade privada. Se- gundo Smith, a primeira das despesas do Estado moderno é com a Defe- sa, em seguida, com a Justiga, para a garantia da propriedade privada, 0 gue resulta na desigualdade social entre os homens e no aflorar dessa contradicao. Isto é, sua teoria econdmica somente se sustenta se existir um Estado com tais fungdes. Aqui se poe o embriao da mercantilizagao da politica no capitalismo. Diante da inevitével desigualdade social desta condigio, o autor afirma a necessidade inarredavel do ordenamento juri- dico burgués, dando a forma burocrética a politica ea dimensio ideoldpi ca do capitalismo. ( terceiro aspecto a que Smith faz referéncia ¢ a despesa do Estado Para com servicos ou mesmo instituigdes que possam interessar a uma ou varias unidades de capital: “a criagao ea manutengao dos servigos publicos que facilitam o comércio de qualquer pais, [..J, boas estradas, pontes, ca- nais navegiveis, etc., exigirio variadissimos niveis de despesas nos dife- rentes periodos da sociedade” (SMITH, 1993, p. 335). A educagao é tam- bém, para Smith, parte de tais despesas: um servico ptiblico, Trata-se do Estado que, em sua origem, submete a dimensio piblica a esfera privada em beneficio desta tiltima, Smith desvela no ambito da economia o fetiche do Estado liberal e torna clara a contradigao entre o piblico e o privado Presente nas relacdes econémicas e sociais. Mostra, assim, a tendéncia his- torica de intensificagdo da dimensao estatal mercantil que faz com queo Estado dirija suas politicas publicas para o pélo privado da contradicio, 41 O40 DOs KEES SILVA JUNIOR ~ TRAWALHO Do FESSOR NA ESCOLA PUBLICA: dada a materialidade da economia. Ao examinar-se esta obra tendo em vis- taaandlise do momento atual, vé-se que existe uma linha de continuidade: as mudancas na forma de Estado estao a servico do capital. Novamente enfatizamos que a historia da modernidade é também a histéria de formas fenoménicas que fortalecem o pélo privado da contradicao, portanto, um Proceso de acentuagao do processo mercantil no ambito politico. Em seu As lutas de classe na Franca (MARX, 1983) e no 18 Brumério de Luiz Bonaparte (MARX, 1983), dentre outras obras, Marx deixa clara sua concepgao de Estado ao analisar a tiltima fase da revolucao: o bonapartis- mo. O autor realiza seu intento mostrando a tomada de consciéncia de classe quando da Constituicao Republicana, texto do ordenamento juridi- co que torna explicito para os trabalhadores que nao se tratava da mudan- ga do regime, mas da transformacao do modo de produgao. Em seguida, no periodo da Repiblica Burguesa, elucida as contradigées entre os sep. mentos da burguesia, que buscavam ter sob seu poder 0 politico e 0 eco- némico. Isso possibilitou o golpe de Luis Bonaparte (coup de main) e com ele a producao de uma autonomia relativa do Estado, com destaque para o Poder Executivo. Fiz esse paréntese para mostrar 0 embriao das relagées entre a economia, a sociedade e o Estado. Por sua vez, na Itélia do inicio do século XX, num momento histérico em que se concretizava a existéncia de partidos bem organizados, de for- tes sindicatos, a existéncia do sufragio universal, a grande imprensa ea operaria, o pensador Antonio Gramsci, em debate com Lénin e nele tam- bém inspirado, vislumbrava, diferentemente de Marx, diante de uma di- ferente forma histérica, uma nova esfera: a sociedade civil, constituida de contradigdes entre capital c trabalho, entre piblivo e privado e que expan- de a nogao de Estado tal qual proposto, com base na filosofia da praxis (expresso por meio da qual Gramsci denominava o materialismo histéri- co), quenos ajuda a melhor compreender a existéncia da contradigao refe- rida por Locke e suas derivagées. Isso permite, tal qual concebe o pensa- dor liberal inglés do século XVII, trazermos elementos para analisar as relagdes entre a contradicéo piiblico/privado e a modalidade da dimen- sao estatal no presente momento. Nos Cadernos do circere (GRAMSCI, 2000), Antonio Gramsci elabora uma concepgao ampliada de Estado, na qual este é explicitado como espaco de luta politica em razao de conter ele- mentos do Estado restrito, bem como da sociedade civil e de representan- tes do capital e do trabalho em ambas as esferas. 42 VANISH MONBREDINE (ORG) - POLITICAS EDUCACIONAIS, TRABALHO F PROFISSA0 DOCENTE As modificagées das esferas publica e privada mantém relagdes entre si, influenciadas, com mediagées, pela realizagao do valor na esfera da circulagao de mercadorias. O valor produzido no ambito da producao é poténcia, podendo realizar-se ou ndona esfera da circulagao de mercado- rias, o que teria levado Marx a dizer que a burguesia necesita revolucio- nar-se sempre para se manter. Hé, portanto, uma defasagem entre a pro- dugao e a realizagao do valor. Por outro lado, ademanda do capital é dife- rente da demanda da classe trabalhadora. O foco: daquele sao os meios de produgao; o desta séo os produtos necessarios para sua prépria reprodu- Go, mediante seu trabalho alienado, a reprodugao do capital, bem como a reprodugio das contradigdes da sociedade capitalista. Isto, segundo Marx, provocaria crises ciclicas de superprodugao de capital nas suas diversas formas (matéria-prima, forca de trabalho, produto acabado, capital finan- ceiro, etc.), 0 que significa, a médio prazo, queda da producao, divida interna, inflacdo e desemprego, além de alta tributacao. A base econémica das teses da social-democracia e do Estado de bem. estar social, de acordo coma Teoria Geral de Keynes, iniciou seu declinio na década de 1970. As teses social-democratas transformaram-se em face do esfacelamento econémico, como se pode observar nos governos Margaret Thatcher na Inglaterra e Francois Mitterrand na Franca, sendo que o segundo anunciou em 1982 uma série de medidas em beneficio dos trabalhadores, caracteristica das politicas de bem-estar social, mas termi- nou aderindo a privatizagao, pois nao havia mais recursos para o financi- amento dessas politicas.* Nesse ponto, o Estado de bem-estar social nao tinha mais interesse histérico para o capital e suas politicas foram substi- tuidas pelas famigeradas propostas neoliberais. Ainda que sob diferentes formas histéricas de estrutura do Estado e de formas de apropriagio do excedente de capital, tal qual Marx anuncia- va, © processo de mercantilizagao da democracia representativa liberal foi-se tornando cada vez mais acentuado e explicitot. * As politicas de bem-estar social ou qualquer outra sio financiadas pelo fundo piiblico do Estado. Sio elas que provéem os bens de consumo para a reprodusio social do trabalhador, Em decorréncia do exposto, eno plano global da economia, nao é trabalhador,o consui. dor, mas o Estado gastando o montante do fundo piblico. Dai dizer-se que o Estado coloca- se como consumidor no lugar do trabalhador, ‘ Bvidentemente nio estamos esquecendo, aqui, de relevante dimensio politica representada pelo agudo enfrentamento, ao longo de todo o século XX, de diversas concepgoes de Estado, 43 OA0 Dos Ris SLv8 JUNIOR - TRABALHO DO PROFESSOR NA ESCOLA PUBLICA, Logo, o mundo vai passando por reformas do Estado e das instituigSes que dele derivam, sendo que a busca de novo pacto social pragmatico e de nova forma histérica do capitalismo atualiza a contradicio puiblico/privado Por meio do movimento de reformas das instituigdes republicanas, A di mensio central estatal/mercantil acentua-se ainda mais. Fez-se necessario ancorar o montante de capital da esfera financeira na materialidade do ca. pital produtor de valor e de mercadorias, o capital produtivo, Por outro lado, esta dimensao estatal/mercantil tem escamoteado a contraposigao estatal/publico versus privado/mercantil. De acordo com Emir Sader (2003), a esperteza da estratégia neoliberal consistiu em acentuar a suposta contraposicao estatal/privado, em lugar da oposigao real piblico/ Privado e, neste caso, em especial o pélo privado/mercantil (SADER, 2003, P.3). Esse deslocamento seria extremamente favordvel aestratégia neoliberal, Para que esta estratégia tenha éxito, demoniza-se o estatal como sendo o exclusivo reino da ineficiéncia, da burocracia, da corrupcdo, da opressio, da extorsio (de impostos) e da mé-prestagao de servigos, e sacraliza-se o privado como sendo 0 reino exclusivo da liberdade, da criatividade, da imagina¢ao e do dinamismo. Com esta contraposicao, aparentemente cor. reta, tira-se de cena um termo essencial, isto é, 0 puiblico, tal como concebi- do por Locke. A grande arma da estratégia neoliberal, segundo Sader, foi transformar um campo de disputa hegemSnica, hoje “hegemonizado pelos interesses privados”,o estatal, num simples pélo de uma contraposigio com © privado, que, por sua vez, nao se constitui em exclusiva esfera dos indivi. duos, mas 0 é também dos interesses mercantis, como tantas operacées de privatizacao muito recentes, ditas de desestatizagio, o tém demonstrado. A “universalizacio dos direitos”, conclui Sader (2003, p. 3), compe a verda- deira esséncia do piblico, enquanto a “mercantilizagao do acesso a0 que deveriam ser direitos: educacio, satide, habitacio, saneamento bisico, lazer, cultura”, corresponde a esséncia do mercado ou do privado/mercantil. Esta éamatriz que orientou o movimento reformista das instituig6es republica- nas e da institui¢ao escolar. Vale destacar, aqui, que esta astuta estratégia liberal, se entendida segundo as produgdes do campo marxiano, jamais lograra éxito tal qual preconizaram Hayek e Friedman; ao contratio, acaba. de maneiras de. do excedente econdmico, de incessantes reestruturagés © 7 antes reestruturagSes ocorti- as nas bases ténicas de producio, na prépra estrutura de organizagio da classe trabalha 44. IVANISE MONPREDINI (ORG) ~ FOLETICAS EDUCACIONAIS, TRABALHO E PROFISSAO DOCENTE ré coma liberdade e a igualdade e provocara degradagio social, violéncia, enfim, a completa destruicdo do proceso civilizatério burgués tal qual estamos vendo. {As politicas paiblicas passam, no pais e no exterior, por um processo de mercantilizacao ancorado na privatizagao/mercantilizacao do espago pit- blico (processo que ja se punha de forma embrionaria desde os primérdios do capitalismo) e sob o impacto de teorias gerenciais préprias das empre- sas capitalistas imersasna suposta autonomia ou real heteronomia do merca- do, hoje coordenado por organismos multilaterais a agirem em toda exten- sio do planeta. Quando titular do Ministério da Reforma do Estado e da ‘Administragao Federal (Mare), Luiz Carlos Bresser Pereira assim argumen- tava sobre a necessidade de uma “nova administragao publica”: A abordagem gerencial, também conhecida como “nova administrag3o pibli- ca”, parte do reconhecimento de que os Estados democraticos contemporaneos rio sio simples instrumentos para garantir a propriedade e os contratos, mas formula e implementam politicas publicas estratégicas para suas respectivas sociedades, tanto na rea social quanto na area cientifica e tecnolégica. E para 10 & necessario que o Estado utilize praticas gerenciais modemas, sem perder de vista sua fungio eminentemente publica. (PEREIRA, 1996, p. 7) Depois de analisar os condicionantes histéricos dos paradigmas de administracao publica jé existentes ~0 patrimonialista eo burocratico-,e de os criticar, Pereira assim se manifesta sobre o que propée para a admi- nistragao do aparelho de Estado em construgao: ‘Como a administragao piiblica burocrética vinha combater o patrimonialismo e foi implantada no século XIX, no momento em que a democracia dava seus pri- rmeiros passos, era natural que descontiasse de tudo e de todos — dos politicos, dos funciondrios, dos cidadaos. Jé a administragio gerencial, sem ser ingénua, parte do pressuposto de que jé chegamos a um nivel cultural e politico em que o patrimonialismo est condenado, que o burocratismo esté condenado, e que & possivel desenvolver estratégias administrativas baseadas na delegagio de au- toridade e na cobranga a posteriori de resultados. (PEREIRA, 1996, p. 272) Opropésito do ex-ministro torna-se explicito nessa légica da reforma do Estado, tanto no que se refere as instituigGes jé citadas quanto em rela- cio & esfera piiblica: em sua visio, tratava-se de introduzir na esfera soci- al, mediante a construgio de um pacto social pragmatico, a racionalidade gerencial capitalista e privada, que se traduz.na redugdo da esfera piblica ou na expansio da privada. Mas, sobretudo, o que é observado consiste 45 YOAO Dos kits SLvA JUNIOR - TRABALIIO DO PROFESSOR NA ESCOLA PUBLICA. na acentuagao da dimensao estatal/mercantil (e privado/mercantil) com. sua racionalidade organizativa. E com base nessa anilise da realidade, que contextualiza as politicas piblicas recentes, em especial as sociais, e na reflexao exigida pela materialidade histérica que envolve tanto a contradigao ptiblico/privado quanto a dimensao central e mercantil do Estado moderno, que se pode compreender melhor a racionalidade politico-administrativa dos gover- nos FHC e Lula Este processo realizou-se nas esferas federal, estadual e municipal, no primeiro caso por meio do governo FHC e no segundo pe- los governos do PT. Hoje, apresenta sua horrenda nudez sem mediagao alguma, fato que jé se anunciava oficialmente em 2002. Evidencia a composigao analitica até agora exposta a Carta ao povo brasileiro, que se traduziu também pelo Pacto pela cidadania‘, no contexto atual da universalizagao do capitalismo — que se da especialmente pelo deslocamento do capital para esferas outrora organizadas, ainda que par- cialmente segundo a légica piblica -, contexto em que se intensifica a dimensio estatal mercantil propria do Estado moderno. Portanto, além de tais cuidados, a andlise das politicas sociais deve ser feita integrada a (e como decorréncia de) outras realidades ou medidas que reorganizam a nova forma histérica do Brasil, tais como a atual reestruturagéo produti- va, a presenga do terceiro setor, a nova politica econémica e a cultura po- litica que da sustentagdo ao que tem sido alardeado como pacto social, ste documento, datado de 22 de julho de 2002, contendo dez compromissos basicos do futuro governo Lula, romperia com o programa partidirio debatido no tiltimo congresso do partido em Olinda (dezembro de 2001) e inauguraria “uma perspectiva mais técnica da con- Guglo da politica econdinia, objetivando a ciaydo de um ambiente seguro para os investi- ‘mentos produtivos, Nao hi, assim, qualquer sugestio de alteracZo profunda da estrutura produtiva, © que inclui a estrutura fundiaria do Pais, a adogdo de impostos progressivos, iscriminagao dos investimentos piiblicos a partir de crtérios socias.[..]. Em suma, teria rnascido um novo paradigma econémico petista (ou lulista) a partir de enti.” (RICCI, 2005) “No momento em que 0 pacto social volta & agenda do Pais, recordo-me da viagem que ‘organizei para Israel, em 1997, pelo PNBE (Pensamento das Bases Empresariais). Reunimos, de forma absolutamente inimaginavel para época, dez empresirios, 0 presidente eo secre- tério-geral da CUT, Jair Meneguelli e Gilmar Carneiro, e Luiz Antonio de Medeiros, pres dente de uma central sindical rival. Fomos para conhecer 0 pacto social israclense que aca- bou coma inflacio de 0% a0 més, Lembro-me do papel fundamental de Lula, que, apostan- do desde aquela época na construgio de um pacto social, empenhou-se comigo para quebrar resistencias e preconceitos.[..] Portanto, quando falamos de pacto social, falamos de um processo permanente que envolve toda a sociedade numa série de negociagSes e acordos sobre diversos assuntos que interessam & comunidade.” (GRAJEW, 2002) 46 IANISE MONFREDINI (ORG) - POLITICAS EDUCACIONAIS, TRABALITO E PROFISSAO DOCENTE além da reforma do Estado, das leis da parceria piblico-privado, dos fun- dos setoriais, da inovagao tecnolégica. Da sucinta andlise anterior, pretende-se contribuir, por meio do rigor da teoria, para o desvelamento do ultraliberalismo econémico praticado pelo governo Lula, com caracteristicas reformistas, messianicas e eminen- temente autoritarias sob a aparéncia de uma legitima democracia. Trata- se, por um lado, da situagio referida acima sobre a organizagio da socie- dade civil, que se estrutura de forma predominante por meio de ONGs e do terceiro setor, dispensando as mediagGes politicas dos partidos, sindi- catos, centrais sindicais, etc.; por outro lado, os intelectuais no governo ou fora deles parecem fazer malabarismos retéricos nos jornais e em seus artigos tedricos para legitimar 0 governo do presidente Lula. O exposto acima possibilita mostrar 0 acentuado processo de mercan- tilizagao do Estado moderno e de suas instituigSes, para o que nos interes- a, a instituigo escolar. Esta realidade tem duas conseqiiéncias relevantes para nossos objetivos. A primeira é que ocorre de um lado uma precarizagio do trabalho do professor das instituig6es piblicas, e de outro, hd um cho- que entre a cultura de uma escola determinada (com um alto grau de densi- dade hist6rica, e por conseguinte, tem 0 estatal/puiblico como um forte tra- 0 de sua cultura institucional), e os novos tracos mercantis produzidos pela reforma do Estado e da educacao publica. A segunda sao as conseqii- Encias destes fatos nas abordagens da pesquisa educacional. Tal situacao de mercantilizagao e de precarizagao do trabalho do professor induz muitos pesquisadores a levantarem a hipétese de uma profissdo para o trabalha- dor da educacao ptiblica, esfera em que o capitalismo nao se realiza plena- mente, como jé visto. Em acréscimo, emergem pesquisadores levantando a hipétese da proletarizacao do professor da escola puiblica em qualquer de seus niveis e modalidades. Ledo engano das duas correntes, se pensarmos a mercantilizagao embasados no que ja discutimos anteriormente sobre a especificidade do trabalho do professor. Sendo vejamos. Qual é materialidade de uma profissao? Ora, de imediato é possivel responder tratar-se do trabalho, de um lado, e de outro, a organizacao trabalhista na forma de sindicatos ou associacées, no contexto das contra- digdes entre capital trabalho e sua forma de reprodugao social, que carre- ga em si as contradigdes de sua produgio, ainda que seja autdnoma em relagao a esfera que lhe dé sustentacdo: a economia No entanto,'se analisamos esta imediata resposta de forma mediada nossa andlise requer mais rigor. Mesmo que num contexto de mercan- AT OA DOs REIS SLvA JUNIOR ~ TRABALIIO DO PROFESSOR NA ESCOLA PUBLICA: tilizagdo como mostramos acima, o trabalho imaterial, como comércio, servicos, educacio, etc., nao é trabalho produtivo, nao produz mais-valia, a distribui na sociedade segundo a légica do capital, ainda que na esfera privada. Desta forma, a profissao nestes setores cuja base consiste no traba- Iho imaterial privado permanece na franja da reproducio social irredutivel a economia. Noentanto, quando se analisa o trabalho imaterial estatal piiblico acen- tua-se o que dissemos acima. O que da materialidade a uma profissio é 0 trabalho. Se o trabalho é 0 trabalho do professor da escola publica, pode- mos dizer que ele é imaterial; por conseguinte, j4 mostramos que af as relagées capital/trabalho nao se realizam plenamente. Em acréscimo, a regulagio entre capital e trabalho nao se poe neste caso. Por quenao? No caso do trabalho na esfera privada, mesmo que imaterial, hd uma relagao entre o capital mercantil eo trabalhador, suas condigdes de trabalho, salé- rio, etc. pela mediagao de um sindicato. Mas neste campo de andlise a educago puiblica ¢ um direito, nao um servigo mercantil, e por tudo que jé fizeram nao conseguirao — a nao ser por uma lobotomia ou por uma revolucao genética —retirar do ser profes- sor sua historia de vida e sua trajetéria de trabalho; e jamais, como jé ar- gumentamos, retirar o saber sobre como contribuir para a formacao do aluno na aula ou nos momentos formativos fora da sala de aula com a orientagéo da cultura escolar. De outra parte, a luta pela educagao publica éa luta por um direito e nao pela mercadoria forga de trabalho ou educa- So, portanto, tem seu alvo no governo que se encontra na instituicéo mor da Repubblica: o Estado. Dele, as associagdes vao reivindicar em tltima instncia mudangas de politicas em relagao a organizagio da escola e sua fungao social e em relagao ao salariv. Poréi, indago: de onde vem o sala- rio dos trabalhadores da educagio piiblica? Vem do fundo puiblico fede- ral, que é constituido pelas contribuigdes e impostos que a sociedade civil paga para viver em sociedade e com os direitos da cidadania, dentre eles oda educagio publica. Assim, o trabalho do professor é prestagao publica de servigos educacionais pelo Estado para atender aos direitos do cida- dio, Ai nao ha mais-valia, o trabalho nao é produtivo, mas imaterial e se encontra na esfera estatal e ptiblica, por mais eficaz que seja a estratégia neoliberal, como jé analisado. Assim, rigorosamente nao se pode falar em profissao do professor na educacao, trata-se do magistério puiblico, que realiza um direito subjetivo do cidadao e dever imprescindivel do Estado moderno e republicano.

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