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Por que Psicologia e Odontologia? ‘A realidade do outro ndo esté naquilo que ele revela a voct, mas naquilo que ele néo pode revelar. Portanto, se vocé quiser compreendé-lo, escute nao o que ele diz, mas 0 que ele nto diz.” Kalil Gibran Introdugao Definigao A Psicologia aplicada 4 Odontologia nao é mais uma especialidade odon- toldgica, nem um ramo da Psicologia. E uma atitude geral que postula uma viséo integrada do homem, na sua unidade corpo-mente, considerando seu ambiente fisico e seu meio sécio-cultural. Entende-se por ambiente fisico varidveis tais como: clima, altitude, alimentagao, habitag4o, transporte, poluigao ambiental, etc. O ambiente sécio-cultural envolve consideragées acerca de: crengas, edu- cacao, lazer, religido, cor, nacionalidade, emprego, estado civil, sexo, idade, familia, status sécio-econdémico, profissional, etc. Estes aspectos permitem uma visio mais abrangente do paciente com o seu meio, bem como suas relagoes com essas varidveis. Portanto, psicologia aplicada a odontologia é a aplicagao dos conhecimentos da psicologia para um melhor e mais completo tratamento odontoldgico. Psicologia e Odontologia Por que Psicologia na Odontologia? Para se estabelecer uma relagio odontdlogo-paciente satisfatdria, o primeiro necessita saber 0 que pode ocorrer ao corpo do individuo quando seu estado emocional esté alterado e 0 que pode ocorrer ao estado emocional ¢ ao comportamento desse individuo quando seu corpo adoece. Deve-se ter uma nogao clara de que o homem é um ser biopsicossocial € que qualquer alteracéo em uma dessas unidades alterard as outras. Nao se pode tratar apenas a boca de um paciente, sem se levar em conta a unidade. Jé ¢ notério o fato de que nao hd, nem pode haver uma separago entre a psique € o soma; o que um experimenta 0 outro exprime, Para tanto, para que se obtenha um bom tratamento, é neces- sdrio conhecer 0 todo e ter em mente que alterag6es ao nivel do corpo ¢ dos processos mentais ocorrem em termos fisiolégicos ou funcionais, simultaneamente. O cirurgido-dentista necessita saber se os fatores psicolégicos estao modificando a “doenga” ¢ influindo no paciente e caso estejam, de que forma e em que extensiio. ‘Além dos conhecimentos de Psicologia propiciarem um melhor e mais completo entendimento do paciente e do que ele apresenta, em algumas dteas especificas da Odontologia existem disturbios psicoggnicos que interferem ¢ agravam determinadas doengas sintomas, ¢ nao se pode esquecer das doencas psicossométicas. Sem esse conhecimento, o cirurgiao-dentista (CD) terd maiores difi- culdades em tratar o seu paciente, pelas seguintes raz6es: 1. 2 Por desconhecimento dos aspectos emocionais que agravam ¢ ocorrem simultaneamente com a doenga. Por nao conseguir ver seu paciente como uma totalidade que abrange a psique (aspectos emocionais) e 0 soma (corpo). E, por conseguinte, nao conseguir observar e “perceber” o que esté di- ficultando o desfecho satisfatério do caso. Mesmo que o procedimento esteja técnico e cientificamente correto, o resultado alcangado pode nao ser 0 esperado. Em nenhum momento pretende-se sugerir que os conhecimentos da Psicologia podem substituir 0 dominio técnico, porém insistimos em que 4 Por que Psicologia e Odontologia? esse conhecimento ¢ essencial para desenvolver uma Odontologia clinica com éxito. Este livra tem por finalidade elucidar o camprometimento emacional nessas doengas. Onde se Aplica? A Psicologia aplicada 4 Odontologia se aplica a todas as especialidades odontolégicas que abrangem desde o clinico geral até os especialistas em suas respectivas dreas de atuacao. Nio se deve deixar de comentar que se aplica também 20 préprio CD, tanto no que diz respeito as suas tensées profissionais, quanto a sua petso- nalidade ¢ seu comportamento frente aos pacientes. E comum ouvirmos que um determinado CD consegue tratar com éxito um paciente que com outros profissionais nao obteve sucesso. E fato que este CD captou e teve um maior conhecimento a respeito do problema desse paciente que o outro, portanto, maior habilidade em tratd-lo. Quem Aplica Psicologia na Odontologia? Psiclogos ¢ cirurgioes-dentistas Quando e Por que o CD a Aplicara? O CD aplicaré conhecimento bésicos de Psicologia em todas as drcas ¢ em sua rotina didria, Esses conhecimentos propiciaraéo um melhor ¢ mais integrado relacionamento profissional-paciente, permitindo um diagndstico global que envolve sintomas somaticos ¢ psicoldgicos que necessitam ser correlacionados ¢ avaliados. O Odontélogo verificard o resultado de tais aplicagées, conhecendo quais 0s disturbios psicogénicos que podem agravar certas doengas ¢ suas possiveis implicag6es tanto no tratamento quanto no préprio paciente. E também saberé como lidar com essas implicagées, quando e como encaminhar ao psicélogo para um tratamento integrado. Psicologia e Odontologia OCD deve ter dare quando ¢ como encaminhar, pois quanto maior for sua convicgio da necessidade do tratamento complementar, mais légica ¢ convincente serd sua explicacao ao paciente. Um CD com dtvidas, transmite-as ao paciente e acaba influenciando sua atitude e decisao. Quando e Por que o Psicélogo a Aplicard? Desde que 0 odontdlogo tenha conhecimento dos fatores emocionais que interferem em determinadas doengas, este far 0 encaminhamento ao psicdlogo para um tratamento conjunto. O psicélogo é 0 profissional indicado para tratar distuirbios de compor- tamento que interferem no corpo, pois tém sua origem no emocional. Quais Sao os Requisitos Necessérios para um Psicélogo Atuar nesta Area? O psicdlogo deverd ter nogées basicos de Odontologia para compre- ender, avaliar e tratar as queixas do paciente. As nogdes compreendem anatomia, fisiologia do aparelho mastigatério e conhecimento das doengas que tém um comprometimento emocional; sua etiologia, manifestagao clinica e evolugao. E importante que o psicélogo tenha, também, algumas informagies de Fonoaudiologia, para avaliar algum camprometimento nessa 4rea ¢ possa, assim, encaminhar ao profissional especializado. Exemplos Em um paciente com GUNA, 0 psicélogo deverd saber que esta afec- 40 é agravada quando o paciente encontra-se sob situagao de estresse ¢ o odontélogo devera saber se nesse paciente 0 estresse esta agravando a afeccao. Em um paciente com disfungéo da ATM, o psicélogo deverd saber o que € ATM, disfungéo da ATM, sua etiologia, sinais e sintomas, mtisculos que atuam nessa regiao. 6 Por que Psicologia e Odontologia? Ja em um paciente com queixa de sucgao do polegar, o psicdlogo deve saber que este habito interfere nos maxilares e na posigo dos dentes, po- dendo causar problemas de acluséa, etc No caso de prétese, deve-se ter nogées sobre o que ¢ uma prétese fixa, semovivel, parcial e total. Como se pode discutir com um candidato a prétese total se nao se sabe o que significa. Como Tratar um Paciente Encaminhado pelo CD? Em primeiro lugar, 0 tratamento nao consiste numa psicoterapia propriamente dita, em que sao analisadas todas as situag6es trazidas pelo paciente. Neste caso, 0 paciente nao veio procuré-lo com essa finalidade. Ele veio para ser atendido por um profissional que nao é um odontélogo, mas que atuard paralelamente a este. Em segundo lugar, o paciente quer saber qual a relagdo entre 0 seu “problema” e o psicélogo. Nem sempre esta relacéo estd clara, portanto, deve-se esclarecé-la, usando os conhecimentos de Odontologia ¢ Psicologia, 0s quais nos referimos anteriormente, para se poder estabelecer as relacoes entre a sintomatologia fisica e os componentes emocionais agravantes. Terapia Centrada na Disfungao (TCD) Acredita-se ser de vital importancia esclarecer que 0 tratamento consiste em uma Terapia Centrada na Disfungao (TCD). Na TCD a prioridade esta no componente emocional que esté agravando a sintomatologia fisica, muitas vezes até causando-a; uma vez que o paciente tenha aprendido a lidar com as situagdes que lhe trazem tensao, ou melhor, quando tiver eliminado a queixa, o tratamento estar4 conclu{do. Quando o aspecto psicolégico nao interferir mais negativamente com © corpo, é bem provavel que o paciente aprendeu a lidar com suas emogoes e cognigées. Entretanto, isto no significa que ele estard apto a lidar com todas as areas de sua vida, mas que est4 apto quanto ao problema da disfun- cao. Caso 0 paciente sinta necessidade de prosseguir a terapia abrangendo Psicologia e Odontologia outras Areas, 0 psicélogo deve comunicar ao CD, avisando-o que quando o problema da disfuncio, habito ou qualquer que tenha sido o motivo do encaminhamento, sen trabalho terminon eem seguida, caso o paciente apte por prosseguir o processo psicoterapéutico, poderd fazé-lo com este ou. com outro psicélogo. De um modo geral, os pacientes que optam por prosseguir, permanecem com o mesmo profissional. As fungées do psicélogo ¢ do odontdlogo, com relago a cada espe- cialidade da Odontologia, seréo melhor explicitadas nos préximos cap{- tulos. Capitulo 2 Mitos e Esteredtipos na Agao Profissional em Psicologia e Odontologia Vera Liicia Galli Mitos e Esteredtipos na Agao Profissional em Psicologia e Odontologia (...) Restam outros sistemas fora do solar a col- onizar. Ao acabarem todos 56 resta ao homem (estard equipado?) a difictlima dangerostssima viagem de si asi mesmo: por 0 pé no chito i experimentar do seu covacio 7 colonizar civilizar Aumanizar 0 homem descobrindo em suas préprias inexploradas entranbas a perene, insuspeitada alegria de con-viver Carlos Drummond de Andrade Num universo composto por muitas galdxias, integrantes de um planeta chamado terra, existimos, como seres humanos. O homem, descendendo em linha direta de seus antepassados animais, distingue-se dos outros seres vivos, que com cle coabitam no universo, pelo dom da palavra ou linguagem articulada, por possuir ¢ utilizar a razao, por ser dotado de sentimentos, ul Psicologia e Odontologia desejos e necessidades, por fazer escolhas e eleger valores, por viver em sociedade e por ser finito. Em todas as culturas, transpondo barteiras temporais, culturais e geogré- ficas, é inerente ao ser humano a necessidade de entender sua origem ¢ a do Universo. Em fungio das caracterfsticas que possuimos, procuramos obter informagGes ¢ criar idéias sobre nossa realidade, produzindo conhecimento, sendo esta uma maneira de travar relacionamentos, sentir, experimentar, reconhecer e conviver. Talvez o leitor se pergunte, a essa altura, qual a relagao que existe entre 08 aspectos acima descritos e a Odontologia. Serao pertinentes perguntas da criagao do Universo quando, no dia-a-dia, as dtividas sobre de onde viemos e para onde vamos, enquanto profissionais, estao restritas a chegar até o consultério, atender ao paciente, enfrentar o transito, freqiientar cur- sos de especializagao e voltar para casa ou, como alunos, a assistir as aulas, submeter-se &s provas ¢ participar de campeonatos? Sem pretender fornecer aqui uma tinica resposta, temos observado, na convivéncia com os dentistas, que algumas formas de conhecimento, presentes desde a existéncia dos povos primitivos — entre elas 0 mito e 0 senso comum —, permanecem atuais, “atravessando” a comunicagao do cirurgiao-dentista com os psicélogos ¢ com seus pacientes ¢ interferindo previamente na mesma. As caracteristicas que possuimos, fazem com que procuremos nos re- lacionamentos e nas coisas que existem no mundo um referencial seguro, conhecido. Utilizando um exemplo: se experimentamos uma fruta, sem nunca té-la visto ou saboreado, procuramos aproximé-la daquelas que conhecemos: tem a cor da fruta tal, lembra sabor daquela outra, parece uma mistura das duas, tem o cheiro desta outra... Experimentar ou no a fruta é uma questo de gosto; porém, também nos relacionamentos hd uma tendéncia em procurarmos, as vezes, aproximar as pessoas das caracteristicas que nos sao conhecidas e que nos agradam ou desagradam, de maneira a nos sentirmos seguros. Dessa forma, 0 objetivo deste capitulo é estimulé-los a observar e refle- tir sobre as questées algumas manciras que cncontramos para conhecer as pessoas ¢ a influéncia que esas maneiras exercem nos relacionamentos profissionais ~ a seguir desenvolvidas. 12 Mitos e Esteredtipos na Agdo Profissional em Psicologia e Odontologia Algumas Formas de Conhecimento: Senso-comum, Mitos e Ciéncia Conhecimento Ingénuo — Bom Senso O conhecimento ingénuo € 0 discurso com o qual estamos habitua- dos nas realizages rotineiras, aquilo que “aprendemos com a vida”, sem, necessariamente, refletir sobre isso. Surge do confronto que estabelecemos com a realidade e daquilo que podemos aprender em nosso cotidiano, sem um planejamento rigoroso, embora seja capaz de guiar-nos na busca de elementos indispensdveis para a sobrevivéncia. F fortuito, casual ¢ assis- tematico, geralmente obtido pelas observagbes efetivadas pelos sentidos pelos valores de quem o produz (Souza, 1995). A musica de Almir Sater e Renato Teixeira “Tocando em Frente” traduz como o bom senso pode ser uma importante referéncia para o ser humano, na medida em que se utiliza da experiéncia e com ela aprende a apreciar a vida: “Ando devagar porque jd tive pressa E levo esse sorriso porque ja chorei demais Hoje me sinto mais forte, mais feliz, quem sabe, Eu sé levo a certeza de que muito pouco sei, Ou nada sei Conhecer as manhas e as manhés O sabor das massas ¢ das magis E preciso amor pra poder pulsar E preciso paz pra poder sorrir E preciso chuva para florir Penso que a vida seja simplesmente Compreender a marcha e ir tocando em frente (.. Todo mundo ama um dia, todo mundo chora Um dia a gente chega eno outro vai embora Cada um de nés compée a sua prépria historia E cada ser em si carrega o dom de ser capaz De ser feliz.” 13 Psicologia e Odontologia O conhecimento ingénuo pode, por outro lado, ser utilizado de uma forma estereotipada, generalizando ¢ impossibilitando a observagao do fendmeno que se apresenta caracterizando-se, neste caso, como senso co- mum, Como exemplo, temos os ditos populares, tais como: “Mais vale um passara na mao do que dois voando”, “Quem ama o feio, bonito lhe pare ce”, “Filho de peixe, peixinho é”; ditados que adquirem valor de sentenga, homogeneizando as pessoas. No contato com os dentistas, temos percebido 0 uso recorrente de algumas frases que traduzem o conhecimento ingénuo ou senso comum. Assim, € bastante divulgado que “O dentista é também amigo do paciente”. Embora, eventualmente, o(a) dentista possa ser amigo(a) do paciente, esta nfo é uma condigao para que seja profissional. Essa frasc, além de conter um conhecimento ingénuo, contém também um mito de que ser préximo e solidario as necessidades do paciente significa ser “amigo”. Aessa frase, aliam-se algumas outras: “Todos nés, seres humanos, temos a Psicologia da vida’, como se viver, fosse suficiente para “adquirir Psico- logia’; “Eu dei uma de psicélogo, conversei bastante com ela(ele) e lhe dei alguns conselhos”, como se “conversar” fosse condigao para ser psicélogo ¢ “dar conselhos”, tarefa do psicélogo. Nesses casos, a Psicologia aparece vinculada a uma generalizacao, possivel de ser utilizada por todos, indis- criminadamente, por observagées e aprendizados vividos ou por intermédia de um bom “bate-papo”. No outro caso, os métodos, as teorias e as técnicas psicoldgicas ficam associados a “conselhos”. Dessa forma, também se di- vulga 0 mito de que Psicologia nao é uma ciéncia, na medida em que sao excluidos os aspectos técnicos/tedricos da formagao do profissional, ficando 0 psicélogo reduzido a uma condigao banal. O bom senso pode ser um importante instrumento, caso possamos refletir sobre ele e/ou aprender com a experiéncia, como no caso da miisica de Almir Sater. Contudo, caso seja utilizado como “verdade”, ou seja, como algo aplicavel a quaisquer ocasiées, antecipa a possibilidade de observar e aprender com a diversidade de experiéncias com as quais nos deparamos nas relagdes que estabelecemos. Além disso, 0 exercicio da profissio, seja de odontslugo vu psicdlogo, n4o comporta somente o bom senso que podemos desenvolver; nao é posstvel realizar uma exodontia utilizando somente bom senso ou realizar uma psicoterapia somente com conversas. 14 Mitos e Esteredtipos na Agio Profissional em Psicologia e Odontologia Mitos e Estereétipos Mitos No infcio da civilizagao, cncontramos o mito como primcira forma de conhecimento, quer enquanto origem quer enquanto fundamentagao de todo outro conhecimento. O mito foi a forma encontrada pelo homem primitivo para compreender a realidade daquilo que via e nao conseguia explicar, buscando conferir significado e ordem no caético e desorganizado. O mito ¢ utilizado para explicar o inicio da historia de uma comunidade, a origem do mundo e do homem sobre a terra, sendo vinculado a lendas, narrag6es fantasiosas e mégicas de personagens herdicos. Embora tais consideragées acerca do mito sejam importantes, principal- mente no que se refere aquela que ressalta a necessidade do homem buscar explicagées acerca do desconhecido, a énfase que serd dada aqui diz respeito a definicao de mito desenvolvida por Roland Barthes. Barthes! considera 0 mito como um sistema de comunicagao que se caracteriza pela forma como a mensagem é transmitida. Nao se define pelo objeto de sua mensagem, mas pela maneira como é proferido. Nesse sentido, © mito nao é 0 “teal”, mas aquilo que o representa. A comunicagao m{tica pode estar contida em diversas maneiras do homem se expressar: literatura, mtisica, cinema. Um exemplo claro dos mitos sob essa perspectiva pode ser observado em propagandas divulgadas na midia — refrigerantes vendem o mito de gente jovem, bonita, alegre ¢ dinamica; remédios vendem o mito da satide; planos de satide vendem 0 mito de hospedagem em hotel cinco estrelas; cigarros vendem 0 mito da liberdade. Na literatura, livros de auto- ajuda vendem 0 mito da felicidade. Estereétipos O ser humane em alguinas atitudes diante dos fendmenus que se apresentam. Cada um de nés encontra uma maneira de se relacionar, de ' Barthes, in Nogueira, Persio Osério- Uma trajetéria analitica: coletanea. Goiania: Dimensio, 1993. 15 Psicologia e Odontologia sentir e expetimentar 0 que existe no mundo. As atitudes, assim, referem- se a “uma disposigdo psiquica ou afetiva em relagao a determinado alvo: }). Sdo, portanto, diferentes pessoa, grupo ou fenémeno” (Amaral,199: de comportamentos, por serem anteriores a eles. Por exemplo, vamos supor que encontramos uma pessoa pela primeira vez. A atitude que teremos dependerd da nossa disposicao: nao gostar ou gostar de determinadas caracteristicas, sejam fisicas ou comportamentais; acreditar que se pode confiar na primeira impressdo ou no, o que influird no relacionamento ¢ em nosso comportamento, o qual, por sua vez, poderd ser traduzido por meio de preconceitos ¢ esteredtipos. Os preconceitos si, portanto, atitudes favoraveis ou desfavoraveis, po- sitivas ou negativas, anteriores a qualquer conhecimento. Esteredtipos sto julgamentos qualitatives, bascados nos preconceitos e, portanto, anteriores a uma experiéncia pessoal (Amaral, 1992). Exemplificando: no atendimento odontolégico a pacientes com virus HIV, o preconceito pode ser expresso por meio da aversdo: posso me contamina, corro risco de vida. O estered- tipo seria: “Quem tem AIDS é drogado, homossexual, bandido”. E 0 mit “Atender paciente que tem virus HIV € perigoso”. Os preconceitos ¢ esterestipos, dessa forma, “cncaixam” ¢ colocam num mesmo molde as pessoas, anteriormente a qualquer experiéncia vivida numa relagdo especifica ¢ em determinado momento. Mitos, esteredtipos ¢ preconceitos, embora com definicées diferentes, caracterizando-se o mito mais pela mensagem transmitida, caminham juntos e fazem parte dos relacionamentos humanos. A possibilidade de pensar sobre os mesmos no significa sua eliminagao (0 que nao seria possivel) e sim, se no uma solugao, ao menos uma claboragao e conhecimento. Mitos cm Odontologia O mito do sadismo Existem sentengas acerca de algumas profiss6es ¢ ocupages humanas que dao énfase a alguns mitos e estereotipias, tais como: “Os advogados sito ladroes”, “Os politicos sito corruptos”, “Os psicélogos sao loucos”, “Os médicos nao stio confidveis” e “Os dentistas sao sddicos”. 16 Mitos ¢ Esteredtipos na Agao Profissional em Peicologia e Odontologia O mito do sadismo, associado ao dentista, embora de uma forma um tanto caricata, fica bastante vistvel no filme “A pequena loja de horrores”. Um dos petsonagens que se destaca no filme ¢ 0 dentista. Logo no infcio de sua apresentagao, canta a seguinte muisica: “Quando eu era pequeno, gostava de puxar o rabo do gato, atirar pedras (...). Ai minha mie me disse: Meu filho, vocé tem futuro; vd ser dentista. Dentista...”. No decorrer do filme, 0 ipaciente aparece sendo “torturado” pelo dentista, o qual demonstra prazer com tal situagao. Dessa maneira, 0 exercicio da profissao fica associado a uma caracterfstica de personalidade do profissional — s4dico — e & imposi¢ao de um poder — 0 dentista dominador e 0 paciente dominado. O que podemos observar é que, conforme os profissionais ficam aflitos, desejando ‘“néo ser sddicos” ¢ “nito exercer o poder’, essas recomendages também se tornam mitos obstrutivos, desencadeando reag6es e nao agoes. Dessa forma, o mito impée a necessidade do dentista se colocar como muitos personagens, que nao ele mesmo — “e dentista é como um pai, um jogador de futebol, um professor” —, para evitar a associagao. O mito do dentista—psicdlogo “Cadeira de dentista é igual ao diva do analista” — essa frase é bastante divulgada no meio odontoldgico. Vem associada ao mito de que o dentista, por ouvir os problemas do paciente durante o tratamento odontolégico, é seu analista, Aqui, além do senso comum de que basta ouvir alguém para ser psicélogo, interfere uma postura mitica de que o dentista possa suprir uma posstvel demanda psicanalitica do paciente, sendo posstvel ser dentista eanalista (que exige uma formagio especffica) ao mesmo tempo. O dentista nao é psicélogo nem analista de seu paciente. O fato de se utilizar de algu- mas técnicas psicoldgicas, conhecer métodos ¢ teorias da Psicologia, nao 0 qualifica como psicélogo de seus pacientes, embora possa instrumenté-lo, auxiliando na relagao com seus pacientes. ? Vide capitulo 3 — Formagao de vinculo. 17 Psicologia e Odontologia O mito de que o dentista vai perder seu paciente se 0 encaminhar para o psicélogo No contato que temos, como psicdlogos, com profissionais da drea da satide — dentistas, fonoaudidlogos e médicos —, é comum ouvirmos algu- mas frases como: “Zém um paciente que eu pensei em encaminhar para o psicélogo, mas...”. O “mas...,” em geral, vem como restri¢io ao seguinte argumento: “Ele (0 paciente) pode acreditar que estou chamando-o de louco, que tem problemas”, 0 qual se vincula aos mitos (esclarecidos neste capftul) de que o psicélago é médico de loucos e de que as pessoas que vio ao psicdlogo sao frageis ¢ inseguras por nao conseguirem resolver seus problemas sozinhas. Por outro lado, subjacente a esses mitos, parece haver um outro: o medo do dentista de perder seu paciente, quando hd a necessidade de encaminhé-lo também para um tratamento psicoldgico. Exemplificando: hd pacientes que vao ao dentista e ficam conversando sobre seus problemas pessoais, dizendo que gostam muito de ir ao consultério para conversar com 0 profissional, por se sentirem compreendidos. Com o decorrer do tempo, o dentista observa que essas conversas comecam a interferir no tratamento odontolégico, por vezes impossibilitando-o; percebe, entdo, que algo nao vai bem ¢ que seu paciente apresenta dificuldades, na medida em que os limites em relacio ao tratamento odontoldgico sao desrespcitados. Muitas hipéteses podem ser levantadas sob essa perspectiva: 0 paciente pode estar vivendo uma relacao transferencial? com o dentista. algumas intervengées podem estar gerando muita ansiedade... de qualquer forma, o dentista tem consciéncia das dificuldades de seu paciente; porém, sem que © possa perceber, 0 mito permeia sua aco, ¢ 0 profissional se utiliza de intimeros artificios para tentar controlé-lo, sendo que somente entao, esgotados todos aqueles ao seu alcance, encaminha-o ao psicdlogo. Esse exemplo nao tem o intuito de servir de modelo, mas, sim, pretende revelar que a influéncia dos mitos acima relatados interfere no que seria 0 reconhe- cimento de limites de atuagao do profissional. O mito tem como objetivo, nesses casos, manter uma teoria de que encaminhar 0 paciente para o psicdlogo significa que o(a) dentista nao é * Vide capitulo 3 — Formagio de vinculo. 18 Mitos e Esteredtipos na Agao Profissional em Psicologia e Odontologia competente o suficiente para tratar de seu paciente, ou que est4 a chamd-lo de louco, desequilibrado ou problematico. Embora seja cumum, na dca odontoldgica, um especialista cm cn- dodontia encaminhar seu paciente, caso haja necessidade, para o perio- dontista ou o ortodontista e/ou, na 4rea médica, um pediatra encaminhar seu paciente para o cardiologista, 0 nefrologista ou o neurologista, o mito obstrui tal possibilidade em relagao ao psicdlogo, por todos os aspectos que vimos acima desenvolvidos. ‘A. compreensio dos mitos aqui examinados pode auxiliar o dentista a ter claro o papel do psicdlogo. Hé ocasi6es em que hd necessidade de encaminhar o paciente seja para um tratamento psicoterapéutico,* seja para uma terapia centrada na disfungao.° O objetivo é que o psicdlogo colabore para que 0 paciente integre aspectos de seu desenvolvimento, 0 que, provavelmente, ird se refletir no tratamento odontoldgico. Nesses casos, 0 psicélogo é um companheiro de viagem do dentista, contribuindo naquilo que lhe € espe- cffico, ou seja, satide mental, para o bem-estar de seu paciente, o qual, por sua vez, deseja e merece ser visto sob seus diferentes aspectos. Como ilustracao dos fenémenos miticos acima expostos, um tratamento odontoldgico ocortido no NIAPE,‘ no ano de 1996 e 1997, ilustra como 0 mito pode ou no impregnar a relacéo com o paciente. Como proceder ao receber uma crianga que tem “o deménio no corpo”? D., uma crianga de nove anos, foi recebida na clinica para tratamento, com um diagnéstico impreciso. Sua mae chegara hd pouco tempo do sertao da Bahia; quando Id morava, lenara D. aa médico, porque “cata muito, caia it toa’, e este passara um remédio; 0 que ela sabia, era que D. tinha epilepsia. Durante o ano letivo de 1996, 0 contato das alunas com D. foi bastante dificil. No inicio do tratamento, D. cuspia nas alunas, dava pon- tapés, gritava palavroes, atirava o que porventura lhe estivesse ao alcance das miios ¢ se ugitava na cudeira odontoligica. A psicbloga da equipe foi 4 Vide tépico de Psicologia ¢ Psicandlise, neste mesmo capitulo. > Vide capitulos 9 e 12 — Stress e Disfungio de ATM. 6 NIAPE ~ Nuicleo Integrado de Atendimento Preventivo ao Paciente Especial da UNIP - Universidade Paulista. 19 Psicologia ¢ Odontologia solicitada pelas alunas, que relataram ser 0 comportamento de D. reflexo da md educagiio recebida. Diziam as alunas: “A mie tinha que dar umas boas palmadas na D.., af ela teria jeito. Parece endemoniada, possufda, nado tem condigées de ser tratada.” ‘E muito dificil estar com alguém tao agressivo. Ela bate, cospe ¢, principalmente, xinga. Ela deve saber 0 que csté fazendo, caso contrario nao falaria esses palavrées.” A possibilidade das alunas irem percebendo suas atitudes, e 0 mito — D. era a possuida — que impossibilitava a percepedo de quaisquer outros aspectos da mesma, foi revelando seus sentimentos bastante contradithrias: desejo de cuidar x raiva pelos ataques recebidos; desafio x impoténcia. Algumas providéncias préticas foram executadas: 0 encaminhamento de D. ao hospital para elaboragao de um diagndstico correto, algumas inter- vengdes da psicéloga junto & mie de D.; bem como a utilizagio da técnica de dessensibilizagiio sistemdtica,’ para aproximagiéo de D. do instrumental odontoldgico. Nos encontros que sucederam, aos poucos, as alunas puderam ir aceitando as limitagoes de D. e compreendendo suas préprias limitagoes para o tratamento odontolégico (que se restringiu a profilaxia e cuidados preventivos) diante do quadro que se apresentava, No ano de 1997, uma nova dupla de alunas estava encarregada do tratamento de D. Antes de atendé-la, entretanto, solicitaram 0 auxilio da psicdloga da equipe. Acreditavam ser muito dificil atender a D. Perguntei entéo como sabiam, de antemio, que seria dificil, a0 que responderam que ela era “a possuida”. O mito acerca de D. havia sido veiculado de um ano para o outro, encaixando-a estereotipadamente numa relagdo preestabelecida. Ao refletirmos sobre esses aspectos, as alunas iniciaram 0 contato com D., que resultou, ao final do ano letivo, bastante satisfatdrio, na medida em que scu comportamento modificou-se visivelmente: j4 no atirava objetos, podia permanecer por um maior tempo na cadeira odontoldgica e aceitar os limites colocados pelas dentistas. 7 Vide capitulo 5 — Técnicas de controle do comportamento, 20 Mitos e Esteredtipos na Agao Profissional em Psicologia e Odontologia As estereotipias e comunicages miticas na clinica odontoldgica sao perceptiveis sob varios rétulos: “V., a menina que niio pode ser anestesiada’, “S., a garota que nao pode ser tratada por mulheres, s6 gosta de homens’, “E, o menino que é traumatizado e tem medo de fogo”, “R., 0 menino que tem medo de lnva”, o que pode se tornar um fator obstrutive e impeditivo go tratamento odontolégico e & relagao dentista/paciente. Mitos em Psicologia O mito de que o Psicélogo vai “analisar e interpretar” as pessoas Hé uma tendéncia, nos relacionamentos humanos, das pessoas consi- derarem que o psicdlogo exerce sua profisséo em tempo integral, indepen- dente do contexto. Assim, se estamos numa festa ¢ olhamos para alguém, vem a associagao imediata: “Serd que ela acha que sou louco, porque estd othando para mim desse jeito?” Ou entao: “Voce é psicdloga? Sabe, eu tenho uma sobrinha que esta com problemas...” E. como se tivéssemos 0 poder de “atravessar” com o olhar — como um raio X — ou tivéssemos uma bola de cristal nas mos, que mostrasse a pessoa sob todos os seus aspectos: emogies e segredos inconfessdveis, inclusive a ela mesma, bem como as solugées para isso. O mito, aqui. confere ao psicdlogo um poder magico, onipotente ¢ onisciente acerca do outro, sem que existam as condig6es para que eventu- almente tais atribuicgGes possam ser vistas, interpretadas ¢ claboradas, como numa andlise, por exemplo. Na clinica odontolégica, tais atribuigées de poder podem ser observadas nas ocasides em que as perguntas do psicdlogo ao profissional sao compre- endidas como afirmagées ¢ julgamentos e nao como dtividas e hipéteses. Assim, as simples frases: ‘por qué?” ou um “imagino como voce esteja se sen- tindo” podem ser ouvidas como: “ela sabe do que se trata, estd me testando, invadindo minha intimidade’. O mito, nesses casos, influi previamente na relagdo dentsta/psicélogo, delegando ao tlumo um poder que nao possui, dificultando o vinculo entre ambos. * Vide tépico sobre Psicandlise, neste mesmo capitulo. Pricologia e Odontologia O mito do “psicdlogo-bombeiro” e de que 0 ‘psicélogo é sb para pacientes diftceis e que néo cooperam” Na clinica odontolégica com atendimento em equipe multipro- fissional, na qual o psicélogo esté inserido. hd alguns episddios em que ele € solicitado, os quais funcionam como a siene que aciona o bombeiro em situag6es de emergéncia: crianca que chora, grita, agride, faz birra, recusa-se a ser anestesiada, precisa submeter-se a uma cirurgia ¢ est4 muito ansiosa, etc. A associacao do psicélogo a situagdes emergenciais alimenta © mito do psicdlogo-bombeiro, ou seja, aquele que ird “apagar o fogo” que ameaga a relagao dentista/paciente, impedindo a destruigao. E provavel que isso esteja vinculado aquilo que podemos chamar de “emocées pior sentidas”, ou seja, em geral, avaliamos algumas reagées humanas como negativas, em fungao da angwistia que sentimos, desejando que alguém reverta a situagao. Por exemplo: se ouvimos uma crianga chorar na rua, imediatamente olhamos para a mae ou a pessoa que a est4 acompanhando € a associamos 4 megera da histéria: cla nao deve ter dado de comer @ crianga, deve té-la maltratado, nao deve colocar limites. Por que nao faz a crianga parar de chorar? No caso do tratamento odontolégico com equipe multiprofissional, choros, gritos, birras e recusas também parecem vir associados a maus tatos, mvbilizando o dentista a solicitar 0 auxilio do psicélogo, como se este pudesse dar conta do problema, atribuindo-lhe o poder de julgar o que é certo ¢ 0 que é errado, cessar o desconforta e encontrar a solugéo para algo que diz respeito a relagdo dentista/paciente ali, naquela circunstancia especifica. E claro que, quando prevalecem tais situacées, hé 0 desejo de que al- guém possa por ordem na desorganizacio que se instala? e que o psicdlogo possa sim, contribuir com algumas orientugées. Embora existam algumas técnicas psicolégicas que podem auxiliar o profissional, como as técnicas de modificacéo de comportamento."° isso nao significa que o psicdlaga tenha © poder de saber tudo, até mais do que o prdprio dentista na relagéo que > Vide artigo de Subjetividade. " Vide capitulo 5 ~ Técnicas de controle de comportamento. 22 Mitos e Esteredtipos na Agéo Profissional em Psicologia e Odontologia tem com seu paciente, ¢ que possa consertd-lo rapidamente. Seria atribuir- Ihe, como jé dito, um poder em que o aprendizado do dentista aconteceria pela “{nformagao da autoridade”, incrementando o mito de que bastaria a esta recorter para obter as respostas, nao se permitindo 0 aprendizado pela ptdpria experiéncia. ‘Todos esses aspectos favorecem, por sua vez, 0 mito de que o psicdlogo é somente para auxiliar com pacientes dificeis e que nao cooperam, na medida em que o psicdlogo fica vinculado ao profissional que proporciona a solugdo de emergéncias ou de comportamentos dificeis no tratamento odontoldgico. Podemos observar, como psicélogos de uma equipe multiprofissional, no contato com os alunos na clinica-escola odontolégica que os conhecimen- tos das técnicas ¢ teorias psicolégicas podem ser utilizados até para que os pacientes ndo se tornem “casos dificeis”. A contribuicao do psicdlogo, nesse caso, existe tanto na orientagao no que diz respeito a utilizagdo das técnicas psicolégicas, quanto na observagio e supervisao da relagéo do aluno com seu paciente. Seu objetivo € énstrumentar o aluno, levando-o a aprender com a prépria experiéncia, na relago com o seu paciente, em determinada circunstancia e em determinado momento. O mito de que “quem precisa de psicélogo séio pessoas frdgeis e insegu- ras que nao conseguem resolver seus problemas sozinhas” Se1d possivel peusarimus ua subrevivencia de un bebé, sulto en una auto-estrada, sem alguém que possa cuidar dele, alimentar, saciar sua sede, trocar suas roupas, acalent4-lo?""A resposta é nao, néo é posstvel para um bebé sobreviver sem cuidados, sem alguém. Entretanto, conforme pensamos no adulto, construimos 0 mito de que tenha “superado” a sua infancia e se livrado dela, de modo a nao depender de mais ninguém para administrar sua vida. Essa perspectiva alimenta o mito de que as pessoas que recorrem ao psicélogo sao frdgeis e inseguras, cm contraponto, ao que parece, a um contingente de pessoas fortes e seguras, que estariam isentas das dificuldades " Vide capitulo 6 — Desenvolvimento humano. 23 Pricologia e Odontologia da vida. “Fragilidade” ¢ “inseguranga” aparecem como perspectivas ligadas a infancia e, portanto, 4 dependéncia. O mito impée, nesse caso, uma meta a ser atingida, baseada num ideal — ser forte, seguro ¢ nao ter problemas —, obstruindo 0 que pode ser uma liberdade de escolha e/ou uma necessidade, eatribui an psicélago o poder de resolver, para a pessoa, as dificuldades do cotidiano. O fato é que, como adultos, integramos nossa infincia, sob diferentes formas ¢ aspectos, enriquecendo-nos com ela, o que nao elimina momentos de fragilidade ¢ até mesmo de regressao. Podem ocorrer probleinas no desenvolvimento desse proceso ¢ assim, parafraseando Nogucira (1993:26), 0 psicdlogo nao se ocupa com os pro- blemas do seu paciente, mas sim com problemas de desenvolvimento, pois parte do pressuposto de que suas dificuldades na vida decorrem de uma perturbagido de seu crescimento mental.’ Dessa forma, buscar aux{lio do psicdlogo € crer na possibilidade de uma integragao e, conseqiientemente, de uma melhor qualidade de vida. Na realidade, dependemos, como seres humanos, das outras pessoas, em maior ou menor grau. Nem mesmo um eremita, isolado no meio de uma floresta, consegue sobreviver sozinho; depende dos animais para ter companhia, das frutas para se alimentar, da 4gua para saciar sua sede, da chuva e do sol para plantar. Hé intimeras possibilidades para que uma pessoa recorra ao psicologo, sejam elas conscientes ou inconscientes. Reduzi-las ao mito de “fraqueza e inseguranea” significa também simplificar a variedade das experiéncias humanas. O mito de que “quem vai ao psicblogo nito é normal” e de que ‘psicblogo é médico de loucos” Imaginemos uma pessoa s6, num quarto totalmente escuro. E provavel que ela vd procurando adaptar-se, por meio de todos os sentidos, & escuridao. Busca firmar o olhar, toca o solo, tateia as parcdes, espera aleangat a luz. Nesses momentos, sente-se invadida por medo/anguistia diante daquilo que nao vé e nao conhece. " Vide capitulo 6 — Desenvolvimento humano. 24 Mitos e Esteredtipos na Agao Profissional em Psicologia e Odontologia Aangtstia diante do desconhecido, do que nao é observavel, em termos mentais, é povoada pelo imagindrio. O sofrimento advém do que imagina- mos, das construgées que vamos criando € nao daquilo que de fato ocorre. Porém, se pudermos ficar no quarto escuro ¢ ir reconhecendo-o aos poucos, nao tendo medo de ter medo, poderemos entio encontrar safdas. O mundo mental também pode ser encarado como um quarto escu- ro. E provavel que, em fungao disso, associemos o psicélogo a loucura, por ser este o profissional que cuida da satide mental. Ao atribuir-lhe um poder de cura — “médico de loucos” —, as pessoas que se submetem ao tratamento psicoterapéutico adquirem uma caracteristica de doentes — “néio normais”. A necessidade de atribuir um modelo médico 20 psicélogo (médico de loucos), junta-se a atribuigéo de um padrao de satide as pessoas (nao- normal; portanto, nao-saudavel = louco). Em ambos os casos, 0 mito traduz a necessidade de conferir um padrao de normalidade as pessoas, um poder curativo ao psicélogo ¢ um temor ao desconhecido, 0 qual se reduz ao descontrole — loucura. Existe diferenca, entretanto, entre mundo mental e doenga mental," entre Psicologia, Psiquiatria e Psicandlise, bem como entre psiquiatra, psi- célogo ¢ psicanalista, como veremos a seguir. Psiquiatria A Psiquiatria é um saber medicamente institucionalizado e constituido a partir do século XVII, momento em que a loucura adquiriu um estatuto de doenga mental (Filho,1992), como resultado do encontro de um pensar médico positivo e de uma pritica de reclusdo de incapazes. O asilo, nessa ocasido, era 0 espago onde cram exercidos 0 saber, a pratica ¢ 0 objeto da psiquiatria, qual seja, a doenga mental. ‘A Psiquiatria é, portanto, uma ciéncia praticada por médicas. Vincu- lada basicamente & doenga mental, a Psiquiatria tem sido o modo como '3 Vide capftulo 8 — Desvios psfquicos. 25 Psicologia ¢ Odontologia a sociedade moderna interpreta e se relaciona com o softimento mental, sendo a loucura o mais chamativo desses sofrimentos (Serrano, 1982). As- sim, o médico psiquiatra é aquele que medica, utilizando-se de remédios neurolépticos, antipsicéticos ¢ ansiol{ticos, para aliviar o sofrimento mental. O psiquiatra nao é psicdlogo do seu paciente, Os psiquiatras podem tam- bém ser psicoterapeutas, se tiverem formagao especffica para tal exercicio. Historicamente, desde o inicio do século XIX, a Psiquiatria foi se consti- tuindo enquanto saber, por meio de diferentes caracterfsticas. Pretendemos, aqui, tragar um panorama desses movimentos, resumidamente. No inicio do século XIX, o hospicio passou a ser 0 espaco de uma pratica médica e pedagégica, cujo objetivo era a normalizagio do doente mental, por meio do tratamento moral, em nome da manutengio da ordem publica. Os isolados eram aqueles que nao eram produtivos, ficando como forga de trabalho excedente. A relagao da sociedade com o louco era uma relacao de tutela—dominacdo/subordinagao — regulamentada; 0 médico tinha o estatuto de tutor e competente em contraposigao ao Joxco, que tinha o estatuto de doente ¢ de menor (incapacitado). Em meados da década de 40 houve uma formulacio da “politica de portas abertas”, com a criagao de comunidades terapéuticas ¢ incentivo ao trabalho em equipe. Com 0 advento de novas substancias farmacolégicas, em meados da década de 50, os psiquiatras comegaram a fazer uso de drogas chamadas nentolépticos, que tém a propriedade de produzir um estado de indiferenga, reduzir os sintomas psicéticos ¢ agit predominantemente sobre estruturas subcorticais. O projeto preventivo como saber e prética na Psiquiatria instalou-se a partir da década de 60, com os pressupostos de que, por meio de partici- pagao, auto-ajuda ¢ oportunidades sociais, os problemas de satide seriam superados. A partir de entao, a Psiquiatria preventiva foi sofrendo mudangas nas instituigdes da medicina mental, com conceitos assimilados também da antropologia, sociologia, psicologia comportamental ¢ psicandlise, e com um proposta terapéutica profildtica, que aponta como objeto de interven¢ao as relagdes sociais. 26 Mitos e Esteredtipos na Agao Profissional em Psicologia e Odontologia Psicologia A Psicologia é a ciéncia que estuda os comportamentos, principal- mente do ser humano, sejam eles aqueles considerados conscientes - que envolvem experiéncias, conhecimentos, pensamentas e agdes intencionais — e inconscientes — que ocorrem num plano nao observdvel diretamente (Lane, 1982). A Psicologia ¢ uma profissao recente, sendo reconhecida nos pafses ocidentais ha pouco mais de cem anos (Vasconcelos, 1987). Em principio, ligada & Filosofia, buscou posteriormente adotar um modelo cientificista, composto por métodos, teorias ¢ técnicas psicoldgicas. A Psicologia, no 4 portanto, uma citncia médica. Existem varias vertentes da Psicologia — clinica, comportamental, social, psicanalitica, hospitalar, do desenvolvi- mento humano, comunitéria, institucional — que procurarao caracterizar o ser humano, procurando leis gerais, a partir de algumas caracteristicas da espécie, dentro de determinadas condigées socioculturais. O tratamento psicolégico néo é tratamento psiquidtrico; o psicélogo nao pode medicar. Caso 0 psicélogo perceba a necessidade de uma pessoa submeter-se a um tratamento psiquidtrico, deve encaminha-la a um psi- quiatra, para a realizacao de um trabalho conjunto. Um aspecto que dé margem a alguns mitos diz respeito a considerar tera- pia, que pode se referir a alguns cursos como tric, corte € costura, ceramica, pintura, como psicoterapia. Embora esses cursos possam ser terapéuticos, isto é, sejam meios para ocupar a pessoa e proporcionar-Ihe bem estar, nao se confundem com tratamentos psicoterapéuticos. A psicoterapia ocupa-se com os problemas de desenvolvimento da pessoa, visando a sua integracao sob os diferentes aspectos: fisico, emocional, cognitivo e social. O psicélogo, porém, nao tem uma agao estritamente psicoterapéutica, delegada ao consultétio psicolégico ¢ atendimento individual, familiar ou em grupo. Ele também esté inserido em varios contextos — hospitais, comunidades, instituigées, escolas, clinicas-escola — em equipes multidis- ciplinares e/ou interdisciplinares. Dentre as varias praticas da Psicologia, podemos observar que a Psica- ndlise gera muitas controvérsias. Desta forma, destacaremos a Psicandlise, esclarecendo, em linhas gerais, alguns aspectos peculiares a ela. 27

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