You are on page 1of 6
ra uma vez uma ilha. Era uma grande ilha — suficientemente gran- de para que sua populagao heterogénea pudesse ser agrupada em varias comunidades numa variedade de locais com diferentes topografias, mas nao tao grande para que qualquer parte dela nao fosse conhecida por todas as outras partes e, é claro, todas compartilhavam as praias que a contornavam. A ilha era muito agraddvel e todos pareciam contentes por estar nela. Como ocorre com as ilhas, ela era rodeada pelo desconhecido. Com excegiio de pequenas balsas e canoas que eram usados para pescar e velejar ao longo das praias, ninguém nunca deixou a ilha ou sequer pensou em fazé-lo. Todos os habitantes da ilha eram descendentes de ndufragos. Entretanto, a meméria do naufragio que os colocou na ilha era muito fra- ca. Nenhuma hist6ria era contada sobre ele. Aquilo nao estava registrado nas hist6rias. Oficialmente, era negado, porque pareceria prejudicar a con- veniéncia e a integridade do lugar. Esses ilhéus eram um povo curioso e inteligente. Eles haviam iden- tificado, estudado e classificado todas as. plantas e os animais. Eles haviam examinado as rochas e mapeado as colinas e os c6rregos. Eles sabiam os nomes € os locais de nidificagdo de todas as aves. Eles estavam familia- tizados com os rituais de acasalamento dos mamiferos e os cuidados que eles dispensavam aos filhotes. Eles sabiam quando as flores desabrocha- vam e durante quanto tempo, quais castanhas eram boas para comer, quais raizes tinham propriedades medicinais. A terra que estava sob seus pés era apreciada e compreendido — denominada. Dava-lhes um profundo senso de orientagio e satisfacao saber como chamar tudo que eles viam. Enquanto faziam isso, eles também tiveram 0 cuidado de transmitir esse conhecimento de geracao para geragao. Eles haviam aprendido como ensinar as mentes jovens a compreenderem 0 que os mais velhos compre- endiam. Seu sistema escolar era maravilhoso: eles falavam de maneiras explicativas e orientadoras, para que nao houvesse qualquer deslize entre a ignorancia jovem e conhecimento maduro. O desenvolvimento de uma linguagem para esse propésito foi uma grande conquista, pois envolvia sutilezas muito maiores do que as envolvidas em distinguir variedades de pardais — eles tinham de levar em conta sentimentos, 0 crescimento lento € incerto de ideias, a expressiio de atitudes dificeis de transmitir. Mas eles o fizeram. Nao havia conflito de geragGes na ilha. Eles exerciam uma grande habilidade em falar uns com os outros sobre 0 que eles sabiam do mundo e em usar essas conversas para levar as crescentes capacidades para a linguagem dos jovens até ao nivel dos mais velhos. Eles eram bons também em usar essa linguagem uns com os ou- tros — esposas com maridos, empregadores com empregados, irmios com irmas. Mesmo com todas as complicagGes de autoridade, amor e rivalidade, nunca havia mal-entendidos na ilha. Eles eram capazes de dizer exatamente 0 que queriam dizer e ouvir com preciso 0 que era dito. E claro que disputas e brigas de vez em quando, sendo as pessoas © que sao, mas isso ocorria porque elas nfio concordavam em alguma coisa. Nunca se ouviu dizer que alguém saiu dessas brigas dizendo: “Ela simplesmente nao me entende” ou “Por que ele n&o entende?”. Eles nao realizavam semindrios para aprimorar as habilidades de comunicagao. Entre eles, isso nao existia. r Essa perfcia em linguagem atingia sua demonstragao mais impres- sionante em seu discurso politico e comunitério. Eles tinham uma cons- tituic&o e outros documentos ptiblicos que todos compreendiam: vastas areas de experiéncia e relacionamentos sociais foram resumidas em pala- vras e frases para que todos tivessem uma boa ideia do que estava acon- tecendo. Eles eram capazes de falar sobre grandes temas como justia, virtude, paz e até mesmo felicidade, e cada um sabia de que 0 outro estava falando. Quando a maturidade em desenvolvimento da populagao neces- sitava de alguma alteragdio em suas expectativas ou percepgdes comuni- tarias, eles eram capazes de decretar aquilo legislativamente em palavras que expressavam um consenso das sdbias percepgdes da comunidade. Ocasionalmente, eles se reuniam e comemoravam essas formulagées ver- bais em desfiles e piqueniques. Aquela era uma ilha muito simpatica, especialmente se vocé se preocupava com a linguagem. Os cientistas pareciam estar a par de tudo que estava acontecendo e o descreviam com precisao. Estar nas escolas era uma delicia, com professores e alunos em didlogo amigdvel e pra- zeroso. As familias se compreendiam, mesmo quando nao se gostavam. Ao ouvir conversas e discuss6es ocorridas em camaras governamentais e salas de reunides de empresas, a clareza e elegAncia com que a lingua era falada era impressionante. (Uma das omissdes marcantes do uso da palavra na ilha ocorria na publicidade e nas relagdes ptiblicas. Fato curioso: nesse povo que se co- municava tao bem que nao havia indtistria da comunicagao. Uma vez que tudo era bem identificado e havia uma troca de informagGes aberta, ho- nesta e precisa em todos os niveis da sociedade, aparentemente nao havia necessidade de alguém dizer algo num tom de voz que nao fosse normal no curso natural de um encontro. Como resultado, embora fossem usadas extremamente bem, as palavras nao eram usadas com tanta frequéncia; assim, a pratica da lingua inclufa muito mais siléncio do que o experimen- tado pelos nao-ilhéus). Certo dia, uma garrafa verde chegou 4 praia na crista de uma ondae caiu na areia. Um ilhéu estava 14 e pegou-a. Ele notou um pedago de papel dentro dela, tirou-o e leu: “A ajuda est chegando”. Estranho. Ele nunca havia lido ou ouvido algo parecido. Todas as suas necessidades estavam supridas. O mundo-ilha era totalmente feliz e autossuficiente. O ilhéu nunca havia suposto precisar de ajuda. Ao mesmo tempo, a mensagem de quatro palavras tocou nele algum nivel de consciéncia que ele sabia denominar. Ele ficou intrigado. Olhou todo o horizonte, doce e inexpres- sivo como sempre, e nada viu de diferente. Ele enterrou o papel biode- gradével na areia, jogou a garrafa num barril de reciclagem na borda de uma duna, voltou para casa e nada disse sobre aquilo a pessoa alguma. Algumas semanas depois, caminhando na mesma praia, o homem pegou outra garrafa. Também nessa garrafa havia uma mensagem, que dizia: “A ajuda chegaré em breve, nao desista”. Duas vezes nao é um acidente. Ele contou a um amigo. Eles foram 4 praia juntos. Ha muito eles apreciavam a sensagao da areia, a curva e a cor das conchas, as retumbantes ondas ritmicas; mas, agora, eles se viram procurando garrafas. Ocasionalmente, encontravam uma, como sempre com a mensagem absurda: “A ajuda saiu ontem”; “Anime-se, a ajuda certamente chegara”. Absurda, porque eles nao precisavam de ajuda. Nao obstante, manha apds manhi eles estavam ali, procurando, lendo aqueles fragmentos de mensagens que lhes diziam algo que eles nunca souberam querer ouvir. A noticia se espalhou. Espe- cialmente nas manhas de domingo, muitas pessoas se reuniam na praia, atentas as ondas, imaginando se a proxima traria uma garrafa com uma mensagem dentro. Semanas se passavam sem uma garrafa sequer e, em seguida, duas ou trés davam 4 praia juntas. A maioria das pessoas nao conseguia entender 0 porqué da agitagio. Com uma ilha cheia de livros bem escritos, diciondrios cuidadosamente editados e manuais claramente redigidos, eles tinham informagGes e expli- cagGes para tudo que jé haviam visto e com que tiveram de lidar. Por que alguém perambularia por uma praia gelada de manha, esperando por uma mensagem enigmiatica a respeito de coisa alguma? Porém, aqueles que se encontravam na praia compartilhavam uma curiosidade e admiragao dificil de descrever, que era nova para eles no uso da linguagem. Naquelas mensagens das garrafas estavam sendo usadas pa- lavras de maneiras que eles nunca haviam experimentado — para mostrar nao o que existia, mas 0 que nao existia. Alguém estava dizendo algo que eles nao entendiam e nao se dignava a explicar, informar ou convencer. Curiosamente, esse uso da linguagem de uma maneira que eles nao enten- diam exerceu sobre eles uma atragfo mais forte do que a linguagem que eles entendiam. A linguagem nao era a mais racional das atividades huma- nas? Como ela poderia prender sua atengio tao eficazmente quando nao os estava fazendo compreender? Eles nao estavam aprendendo coisa alguma com as mensagens. Eles estavam sendo abordados por alguém desconhe- cido que Ihes estava dizendo algo de que eles nao sabiam necessitar. O mundo era maior, aparentemente muito maior, do que qualquer coisa para aqual a sua linguagem ja fornecera evidéncias. E talvez suas vidas fossem maiores do que aquilo a que a linguagem da ilha dava expressao. Era isso © que os atrafa de volta 4 praia naquelas manhas e mantinha sua atengdo nas ondas ritualizadas contra o horizonte enigmatico. As mensagens das garrafas haviam agitado neles algo que eles nao sabiam existir — uma sensagdo de que a vida poderia ser muito mais do que a linguagem da ilha havia expressado, de que havia mais fora da ilha do que dentro dela. Do outro lado daqueles mares, alguém estava Ihes dizendo alguma coisa que soava como a diferenga entre a vida e a morte ou, pelo menos, entre ser ajudado e ser indefeso. Eles quiseram saber 0 maximo possfvel sobre isso. Os rabiscos estranhos incorporaram poder e passaram a significar muito mais para eles do que todos 0s livros, notas e boletins que mantinham o sistema de comunicagdes de sua ilha operando com tao impecdvel eficiéncia. Contudo, é da natureza dessas palavras nos dizer nao 0 que existe, mas 0 que nao existe — pelo menos, o que ainda nao reconhecemos como existente. E do talento dessas palavras nos trazer uma mensagem além dos limites de nossa compreensio, nao melhorar os nossos sistemas de comunicagiio. E do cardter dessas palavras nos alcangar desde além dos horizontes de nossa capacidade e invadir 0 que haviamos suposto ser uma ilha autossuficiente em discurso. Pouco importa que a mensagem seja fragmentada. Pouco importa que nao consigamos descobrir todos os referenciais. Pouco importa que n&o consigamos organizd-la para formar algo sistematicamente completo. O que importa é que ela nos liga a um mundo maior, talvez um. continente. O que importa é que ela anuncia ajuda para sair de uma mera exis- téncia numa ilha’ — eficiente, suave, cientifica, harmoniosa — na qual 0 individuo conhece tudo, exceto a si mesmo. E ao seu Deus. O que nao devo fazer é levar a mensagem da garrafa e inseri-la no ca- télogo da biblioteca. O que no devo fazer é tirar a mensagem para fora da garrafa e estudar a garrafa, analisar sua composi¢aio quimica e reconstruir a técnica de sopro de vidro que lhe deu forma. O que nao devo fazer € uma comparagao redutora da mensagem na garrafa as concisas notas da ilha e, condescendentemente reescrevé-la porque “nao se comunica muito bem”. Na maioria das manhds, em muitas das praias da ilha, hd pessoas ca- minhando, com a imaginagao atenta, procurando garrafas com uma men- sagem dentro. Nas manhas de domingo, elas se retinem em algumas praias designadas e leem umas as outras, 0 que foi recolhido ao longo dos anos. Muita gente da ilha ainda tem de descobrir 0 porqué de todo o rebuligo.

You might also like