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ATIVISMO MATERNO E “MATERNIDADE SOLO”

Sabrina Finamori1
Thais Teles Rocha2
Mayara Achilei 3

Resumo:

Este paper visa apresentar os resultados parciais da pesquisa “Maternidades solo”, que tem por
objetivo refletir sobre a relação entre parentalidades e conjugalidades a partir do ativismo de mulheres
que se autodenominam “mães solo”. Tendo em vista a carga histórica associada ao termo “mãe
solteira”, a adesão à expressão “mãe solo” propõe desvincular a relação parental da conjugalidade à
qual usualmente aparece vinculada. Reunidas em torno de coletivos feministas ou grupos virtuais,
essas mulheres têm produzido, a partir de suas próprias experiências, reflexões sobre os sentidos
sociais da maternidade e de suas práticas cotidianas, feito reivindicações de direitos e denunciado
discriminações sofridas por elas ou seus filhos. Sugerimos que essas discursividades trazem à tona
uma pauta que vai além das críticas às persistentes desigualdades de gênero no processo reprodutivo,
colocando também em questão a ideia de que as crianças seriam responsabilidade apenas de uma
família. No limite, o que parecem anunciar é que uma real igualdade de gênero não será alcançada
apenas com a divisão igualitária de tarefas parentais no âmbito doméstico, mas com uma partilha
social do processo reprodutivo que transcenda o par conjugal ou a rede de parentesco, estando
presente em todos os ambientes de uma sociedade e incluindo nessa divisão de tarefas tanto as pessoas
que têm como também aquelas que não têm nem desejam ter filhos(as).

Palavras-chave: Maternidade, parentesco, gênero, care.

Introdução

Em 2020, vivemos a maior emergência sanitária global de nossa geração com a pandemia de
covid-19. No Brasil, a despeito de um governo marcado por posições contrárias a políticas sociais, as
pressões levaram à criação de um pacote de medidas emergenciais para contenção da crise. Entre
essas medidas estava o auxílio emergencial, um dispositivo de proteção social que visava abranger
pessoas com trabalhos informais ou desempregadas com renda familiar de até três salários mínimos.

1
Professora do Departamento de Antropologia e Arqueologia e do PPGAN/UFMG, em Belo Horizonte- Brasil,
pesquisadora do GESEX. Agradeço ao CNPq pelo financiamento concedido à pesquisa “Maternidade solo”:
parentalidades, conjugalidades e noções de família. E-mail de contato: sabrinafinamori@gmail.com.
2
Graduada em Antropologia pela UFMG e graduanda em Arqueologia pela mesma instituição em Belo Horizonte- Brasil.
Pesquisadora do Gesex, foi bolsista CNPq do Projeto Maternidade Solo de 2018 a 2019. Contato:
rocha.thaisteles@gmail.com
3
Mestranda em Antropologia no PPGAN/UFMG, pesquisadora do GESEX em Belo Horizonte-Brasil. E-mail de contato:
mayaachilei@gmail.com.

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Implementado em abril, o auxílio emergencial de seiscentos reais, que ganhou a alcunha de
coronavoucher, trouxe uma novidade – distinguia entre seus beneficiários as “mulheres provedoras
de família monoparental”, nos termos da lei4, que teriam direito ao recebimento de duas cotas do
auxílio. Bastante polêmica, a distinção desse grupo específico gerou controvérsias variadas, da
desigualdade promovida em relação à monoparentalidade masculina às acusações de fraudes
cometidas por pais, que mesmo não sendo os principais responsáveis, incluíam o Cadastro de Pessoa
Física (CPF) dos filhos em seus pedidos, impossibilitando que as mães dessas crianças obtivessem o
auxílio dobrado5.
Neste cenário de crise global e de insuficiência das políticas públicas, outras ações foram
propostas por grupos de ativismo materno. É a partir das ações de um desses movimentos, o “segura
a curva das mães”, que abordaremos a questão central deste paper, parte de nossa pesquisa mais ampla
sobre monoparentalidade feminina, a saber: a reivindicação de grupos de autointituladas “mães solo”
em torno de uma partilha social do processo reprodutivo.
Nossa pesquisa sobre “mães solo” iniciou-se com um mapeamento sobre produções virtuais
que acionam essa terminologia, de uso bastante recente em língua portuguesa, para descrever as
experiências monoparentais femininas em oposição à estigmatizada expressão “mãe solteira”.
Focando-se sobretudo nas produções de duas das mais representativas figuras desse campo, a designer
Thaiz Leão criadora do projeto “A Mãe Solo” presente no Facebook, Instagram e em livros e a
cineasta Helen Ramos idealizadora do canal de Youtube “Hel”, a questão que temos levantado diz
respeito às problematizações propostas nestas produções em torno das relações de gênero no âmbito

4
BRASIL. Lei nº 13.982, de 2 de abril de 2020. Disponível online: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-
2022/2020/lei/l13982.htm. Aceso em 21-12-2020.
5
Um projeto de lei que alterava alguns itens da lei de auxílio emergencial, aprovado no Senado (PL nº 873, de 2020),
previa a mudança do termo “mulher provedora” para “pessoa provedora”, abarcando, desse modo, também pais. O trecho
foi vetado e a secretaria-geral da Presidência da República justificou o veto nos seguintes termos “A propositura
legislativa, ao ampliar o valor do benefício para as famílias monoparentais masculinas, ofende o interesse público por
não se prever mecanismos de proteção às mães-solo, que se constituem a grande maioria das famílias monoparentais,
em face de pleitos indevidos, e atualmente recorrentes, realizados por ex-parceiros que se autodeclaram provedores de
família monoparental de forma fraudulenta, cadastram o CPF do filho, e impede, por consequência, a mulher
desamparada de ter acesso ao benefício.” (https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Msg/VEP/VEP-
268.htm). Foge ao escopo deste paper aprofundar a análise em torno das perspectivas do atual governo federal sobre
maternidade solo. Vale, no entanto, explicitar que muitas das posições esboçadas, seja por meio de declarações ou de
ações diretas, têm sido alvo de controvérsias públicas (ver, por exemplo: SOARES, Jussara. Mourão diz que comentário
sobre lares só com mãe e avó é 'constatação'. O Globo. 18 set. 2018. Disponível online:
https://oglobo.globo.com/brasil/mourao-diz-que-comentario-sobre-lares-so-com-mae-avo-constatacao-23079070.
Acesso em 21-12-2020). Sobre as fraudes de pais em relação ao auxílio, ver, por exemplo: PAULUZE, Thaiza. Mães
solo têm auxílio emergencial de R$ 1.200 negado e acusam ex-companheiros de fraude. Folha de S. Paulo. 29 abr. 2020.
Disponível online: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/04/maes-solo-tem-auxilio-emergencial-de-r-1200-
negado-e-acusam-ex-companheiros-de-fraude.shtml. Acesso em 21/12/2020.

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parental e também sobre o que chamaremos aqui de uma reivindicação por uma partilha social do
processo reprodutivo. Essa partilha se traduz tanto pela reivindicação de políticas públicas
direcionadas à maternidade e infância como também pela proposta de reflexões sobre os sentidos
sociais mais amplos em torno da responsabilização social sobre a infância. Essas dimensões se
aprofundam nos desdobramentos do trabalho de Thaiz Leão. As tirinhas feitas nos primeiros meses
de vida de seu filho, retratam com humor crítico sua experiência de maternidade, colocando em
questão a imagem romantizada da maternidade e os padrões de gênero. À medida que suas postagens
sobre as dificuldades da maternidade vão se popularizando, ela se torna também uma espécie de
referência para mulheres que buscavam auxílio jurídico, que relatavam violências ou mesmo que
queriam desabafar ou expressar o quanto se sentiam representadas pela forma como ela abordava sua
experiência materna. Seu ativismo ganha, mais recentemente, outros contornos com sua participação,
a partir de 2019, na Frente Parlamentar pela Primeira Infância na Assembleia Legislativa de São Paulo
(ALESP) e com a fundação do Instituto Casa Mãe, uma plataforma que capta recursos e promove
programas de apoio à maternidade e infância. Durante a pandemia do covid-19, a Casa Mãe e o
Coletivo Massa deram início a um mapeamento de mulheres em situação de vulnerabilidade que
cuidam de crianças ou idosos. Nomeado de “Segura a Curva das Mães”, o projeto captou recursos,
via doações, para um auxílio emergencial complementar. Para além do auxílio financeiro, que
representa apenas uma das necessidades, o projeto trabalha com os conceitos de apoio integral e
criação de comunidades de cuidado, oferecendo apoio psicológico, pediátrico, suporte jurídico, apoio
pedagógico escolar e não-escolar, apoio à gestação, parto e pós-parto, rede de proteção e segurança
contra a violência de gênero, apoio ao luto característico das perdas familiares durante a pandemia;
bem como o estabelecimento de vínculos e redes de apoio regionais através de grupos de WhatsApp
divididos por estado, cidade ou região, a depender do número de mães inscritas. É, então, a partir
desse contexto que abordaremos aqui o maternativismo em torno da “maternidade solo” no cenário
da pandemia.

Maternidades e ativismos
Andrea O´ Reilly (2010) aponta o quanto as temáticas abordadas em estudos sobre
maternidade têm se tornado mais complexas e variadas nas primeiras décadas do século XXI.
Retomando trabalhos clássicos sobre maternidade, como Of Woman Born, de Adrienne Rich (1986),
que estabelecia a distinção entre a experiência e a instituição da maternidade e Maternal Thinking de
Sara Ruddick (1989), que traz o conceito de prática materna, a autora aponta que uma das novas

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dimensões que emergem na virada do milênio em estudos sobre maternidade é a da agência, que vem
à tona junto com um vigoroso movimento de mulheres nos Estados Unidos cuja pauta é o potencial
emancipatório da maternidade. Numa ótima síntese a este respeito, ela sugere que se a maternidade
patriarcal caracteriza a criação de filhos com um ato privado e apolítico, a agência materna coloca em
primeiro plano, a dimensão político-social do trabalho materno. Uma questão que resta é responder o
que é necessário, nos âmbitos individual e cultural, para permitir que as mulheres se engajem neste
processo de resistência. Concordando com essa questão, buscamos explorar as formas de
implementação de agência materna por meio das ações de mães solo engajadas em movimentos
feministas focados na maternidade.
No Brasil, as pesquisas sobre maternidade e militância enfocam campos bastante variados,
levantando uma diversidade de discussões. Uma questão presente nas pesquisas da década de 1980
dizia respeito à militância de mulheres de camada popular, no período da ditadura militar,
demandando saúde, educação e melhor infraestrutura em seus bairros. Nos termos de Sonia Alvarez,
“´maternidade´, não cidadania, fornecia o principal referencial de mobilização para participação das
mulheres na organização dos movimentos sociais urbanos”6 (ALVAREZ, 1990, p. 50). Esse
referencial teórico foi usado por outras pesquisas, que em contextos distintos reforçaram essa mesma
conclusão e, ao mesmo tempo, foi também criticado como uma matriz explicativa que deveria ser
revista em relação a práticas contemporâneas (BONETTI, 2007). Neste último sentido, a pesquisa de
Bonetti (2007) mostra como o seu campo de pesquisa contesta a noção de maternidade militante ou
de politização da maternidade, argumentando que, para as suas interlocutoras, a militância está
associada a uma dimensão de ascensão social e que a maternidade por vezes era um impedimento (e
não um incentivo) a este projeto. As experiências que narra também contestam a noção de
supermadre, segundo a qual as mulheres fazendo política estariam simplesmente em uma extensão
das atividades de cuidado que desenvolviam, em prol de uma conjugação entre gosto e sobrevivência
como mobilizadores para a militância.
Nas primeiras décadas do século XXI uma dimensão importante na abordagem acadêmica
sobre ativismos maternos têm sido os movimentos de mães de vítimas de violências institucionais
(LEITE, 2004; BRITES e FONSECA, 2013) e, em particular, da violência policial perpetrada em
nome da guerra ao tráfico (VIANNA e FARIAS, 2011). Pautas identitárias também permeiam formas
específicas de ativismos, como é o caso do Mães pela Diversidade, que atua na questão LGBT

6
No original: " Motherhood," not citizenship, provided the principal mobilizational referent for women's participation
in urban social movement organizations” (ALVAREZ, 1990, p. 50).
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(NOVAIS, 2018). Ou, ainda, movimentos pela reivindicação de políticas públicas para filhos com
diagnósticos de autismo, que têm uma atuação historicamente importante na garantia de direitos
sociais desse grupo (LOPES, 2019).
Outras perspectivas que discutem a relação entre maternidade e política apontam a ingerência
do Estado na vida dos cidadãos, sobretudo mulheres, através de políticas centradas na maternidade,
tal como o trabalho de Meyer (2005). A autora discute a noção de politização da maternidade, que se
refere à ampliação de políticas estatais, concentradas na área da saúde, de gestão da maternidade, que
tornam o “ser mãe” uma tarefa árdua e complexa, segundo ela. Nesse sentido, Meyer (2005) destaca
o conceito de “risco”, pois as políticas de Estado operam discursivamente um conceito universal de
mulher, mas, de fato, as políticas visam impactar (e controlar) grupos sociais específicos. Diante
disso, é importante destacar a respeito de políticas de Estado centradas na maternidade que, por vezes,
as mães passam a ser vistas como agentes da política, e o campo político enxergado como uma
extensão das atividades de cuidado endereçadas socialmente a mulheres. O ativismo de mães solo
aqui analisado, por outro lado, destaca o protagonismo e autonomia maternas, em ações que,
inclusive, contestam a ação estatal. Assim, falar de politização da maternidade no contexto que
analisamos significa se referir ao movimento ativo, às ações políticas, de mães solo demandando e
atuando diretamente na formulação de políticas públicas e na reivindicação de novos sentidos sociais
a respeito das configurações familiares.
Mais recentemente, uma dimensão bastante importante dos ativismos maternos (presente
também em outros movimentos sociais) tem sido a centralidade das redes sociais. Os espaços virtuais
têm se configurado como fundamentais na organização, criação de redes de comunicação, espaços de
compartilhamento de experiências, acolhimento mútuo e atuações políticas, transcendendo, muitas
vezes, as formas usuais de ação dos movimentos sociais mais tradicionais ao alcançar grupos mais
heterogêneos em torno de pautas comuns. Entre as primeiras questões que se difundem de modo
muito acentuado em torno de movimentações online está o parto humanizado (PULHEZ, 2015) e,
posterior a isso, há também uma profusão de outras pautas focadas em problematizar a experiência
materna, em seus variados aspectos como a sobrecarga de trabalho, direitos e formas de criação de
filhos/as (MEDRADO e MULLER, 2018). O debate que trazemos aqui, sobre maternidades solo,
surge também neste contexto em que o ativismo social não necessariamente está ligado a formas
tradicionais de movimento social, mas ao que Alvarez (2014) tem denominado como um fluxo
horizontal de discursos e práticas.

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Assim, o início de nossa pesquisa esteve centrado em mapear conteúdos virtuais sobre
monoparentalidade feminina que evocavam e difundiam a terminologia “mãe solo” em oposição à
expressão altamente estigmatizada socialmente “mãe solteira”, problematizando, ao mesmo tempo,
as relações parentais e a divisão desigual de tarefas a partir de uma perspectiva feminista. Acabamos
por nos focar mais centralmente no trabalho desenvolvido pela designer Thaiz Leão, pela
popularidade que atinge e também pelos desdobramentos que sua produção sobre o tema teve,
confluindo em outras formas de atuação, bastante centrais para a compreensão dos ativismos
maternos contemporâneos, tais como as plataformas de financiamentos coletivos e, no âmbito da
política representativa, os mandatos coletivos. É sobre um dos projetos nos quais Thaiz Leão está,
atualmente, envolvida que trataremos aqui a discussão sobre ativismo materno.

Segura a curva das mães

Para além da emergência sanitária, a pandemia do novo coronavírus impactou a sociedade de


maneira multidimensionada e seletivamente distribuída, principalmente no que tange aos grupos mais
vulneráveis. Especificamente em relação às maternidades e infâncias brasileiras, é importante
destacar a redução das redes de apoio, sejam estas formais ou informais, o fechamento de escolas e
creches (públicas e privadas), a precarização do trabalho, o agravamento dos índices de desemprego,
o risco maior de demissão enfrentado por mulheres que são mães, a perda de moradia, a insegurança
alimentar, fome e miséria, bem como a sobrecarga dos sistemas de saúde. Em outras palavras, se
antes da pandemia, a desigualdade na distribuição de papéis de cuidado já sobrecarregava mulheres
e mães em suas múltiplas jornadas de trabalho, com a deflagração de uma crise sanitária global e o
confinamento de múltiplas jornadas de trabalho no espaço doméstico, a sobrecarga é ainda maior e
as políticas públicas vigentes não acompanham esses contextos.
Com o avanço da pandemia, se tornou relativamente comum dizer que o isolamento social
deve ser adotado como um pacto coletivo para segurar a curva de transmissão da covid-19. O projeto
“Segura a Curva das Mães”, de autoria de Thaiz Leão (criadora do projeto “A mãe solo” e uma das
fundadoras do “Instituto Casa Mãe”) e Thaís Ferreira (fundadora do coletivo Massa), tem como
objetivo apoiar mães e famílias chefiadas por mulheres com envio de renda emergencial direta de
R$150,00 (cento e cinquenta reais), cestas básicas e formação de redes de apoio mútuo online.
Conforme aponta o suplemento Aspectos dos Cuidados das Crianças com menos de 4 anos de
idade, da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2015, 84% das crianças de até 4
anos têm mulheres como principal responsável dentro do domicílio. Em 45% destes casos, essas
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mulheres têm emprego. Segundo dados da pesquisa ‘Mulheres Chefes de Família no Brasil: Avanços
e Desafios' de Suzana Cavenaghi (2018), vinte e nove milhões de famílias são chefiadas por mulheres
no Brasil, representando crescimento de 105% deste modo de arranjo familiar, de 2001 a 2015. Dentro
da categoria, estão as “mães solo”, caracterizadas pela pesquisa como “arranjo monoparental
feminino” representam 15,3% de todos os arranjos familiares no país.
Diante de um cenário de expressivo predomínio da feminilização do cuidado, “Segurar a
curva” das mães é, também, achatar a curva da vulnerabilidade, fortalecendo condições mínimas para
a prática de isolamento social dentro dos lares brasileiros, segurando, por conseguinte, a curva de
transmissão e de casos de covid-19. É, principalmente, segurar uma curva ascendente de
encadeamento de vulnerabilidades causadas e agravadas pela pandemia, especificamente nos lares
chefiados por mulheres. É agir de maneira a reduzir os impactos multidimensionais sofridos por mães
que cuidam sozinhas, ou majoritariamente, de suas famílias, dentro de um contexto que acirra, ainda
mais, os abismos sociais estruturados na desigualdade de classe, gênero, raça e de acesso a recursos
e direitos no país. Em outras palavras, segurar a curva das mães segura a curva de toda a sociedade,
ao passo em que cuidar de quem cuida, é ampliar o alcance do próprio cuidado.
Para distribuir o apoio, o “Segura a Curva das Mães” promoveu um mapeamento de mães e
famílias que aconteceu em 20 estados brasileiros através da circulação de formulários online de
cadastro, alcançando 1732 mães em 24 estados e 529 repasses financeiros até setembro de 2020. É
importante ressaltar, também, que esses formulários contemplaram múltiplos modelos de
maternidade e/ou exercício do cuidado, como avós, tias, irmãs e demais posições familiares que sejam
de responsáveis por crianças, idosos e/ou pessoas portadoras de deficiência. Além disso, o cadastro
para receber assistência poderia ser feito pela própria mulher chefe de família ou por indicação de
terceiros que possuíssem acessibilidade digital. O projeto está distribuído em três etapas:
mapeamento, conexão com projetos-ponte nos territórios onde as famílias mapeadas estão e, por fim,
encaminhamento do apoio, que pode ser financeiro ou não. Os dados dos questionários respondidos
foram qualificados por critérios de emergência baseados na renda per capita na unidade doméstica,
quantidade de pessoas na mesma casa, quantidade de cômodos na casa, acesso a saneamento básico,
nível de exposição ao contágio durante a pandemia de coronavírus, uso de medicação contínua,
quantidade de crianças, gestantes, idosos e/ou pessoas portadoras de deficiência. As doações foram
captadas através de contribuições de empresas privadas e vaquinhas online para pessoas físicas e
seguem abertas até a data de envio deste paper. Além da captação de doações diretas à vaquinha do

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projeto, se tornar madrinha ou padrinho de casos específicos de maior urgência também é uma forma
de apoiar o projeto
O “Segura a Curva das Mães” também mapeou projetos parceiros de alcance local e regional,
de modo a capilarizar outras formas de auxílio disponíveis em cada cidade, formar parcerias e fazer
a ajuda chegar mais rápido em locais de difícil acesso. A aliança entre redes de coletivos, ONGs e
ativistas criaram pontes que conectam mulheres que podem ajudar às mulheres que precisam de ajuda.
Para se tornar um projeto parceiro ou até mesmo se associar enquanto voluntária, é preciso se
cadastrar no mapeamento inicial e passar por uma breve capacitação como orientações sobre o escopo
do projeto, as necessidades das mães e os alcances possíveis em cada contexto.
De abril a novembro de 2020, Thaís Rocha uma das autoras deste artigo, fez parte do eixo
parceiro, em Belo Horizonte, Minas Gerais, chamado “BH também segura a curva das mães”. O
projeto-ponte foi o Ishtar - Grupo de apoio à gestação e ao parto ativo, formado por doulas e ativistas
pela humanização do parto. A conexão particular entre a pauta da humanização do parto e a
necessidade de apoiar mães e famílias em condições de vulnerabilidade, neste eixo específico,
resultou em uma rede local formada por uma maioria de doulas, advogadas e psicólogas como
articuladoras locais do “Segura a Curva das Mães”. Este fator não parece ser mero acaso, dado que
uma das demandas dos feminismos maternos contemporâneos é a denúncia de violências a que são
submetidas as mulheres-mães na gestação e no parto.
Dentre as principais tarefas das chamadas apoia-doulas de BH, estava a busca ativa de
amadrinhamento ou apadrinhamento direto para os casos mais vulneráveis, direcionamento de
doações de itens de primeira necessidade (mantimentos, gás de cozinha, itens de higiene), bem como
a escuta de mães que precisassem de acompanhamento psicológico, jurídico ou de outras questões de
saúde, para si mesmas outra pessoa da família (crianças, idosos, gestantes e etc). Todas as questões
foram geridas virtualmente, via grupos de WhatsApp entre apoiadoras regionais e mães assistidas e
apoiadoras regionais e coordenação geral.
Para além de demandas organizacionais, os grupos virtuais assumiram o lugar de troca de
experiências e de afeto entre mães, onde muitas relataram dificuldades no recebimento do auxílio
emergencial do governo federal, desemprego, bem como os desafios da maternidade em aspectos
diversos como a sobrecarga de trabalho doméstico e o cuidado de crianças neuro-atípicas em plena
pandemia. Em janeiro de 2021, devido à escassez de doações e quando já não havia mais previsão de
novos repasses às famílias, a equipe de coordenação do projeto anunciou a “Pesquisa do Segura a
Curva das Mães” divulgada em nível nacional para todas as mulheres que foram assistidas. Os

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objetivos apresentados são: aperfeiçoar as estratégias de funcionamento do projeto, compilar e
divulgar dados sobre experiências reais de maternidade, assim como subsidiar demandas formais de
apoio social efetivo para as mães, principalmente durante a pandemia.

Conclusões

Nenhuma criança é meramente problema privado de seus pais. (KITTAY, 2010: 410,
tradução nossa) 7.

A gente vai viver a gravidade, vai viver os tempos, vai chover pra todo mundo, vai. A criança
também é uma imposição do mundo, você pode escolher não ter filho, você pode escolher
não ter uma criança na sua casa, você pode escolher o diabo que for, mas você vai ter que
negociar consigo mesmo, o quanto você vai pagar essa dívida em relação a essa criança
aqui, porque essa criança aqui é você, essa criança aqui é a galera que está em volta, essa
criança aqui vai ser quem vai te atender quando você estiver idosa, é isso que vai acontecer,
essa criança tem função social inclusive para você. [Thaiz Leão, entrevista concedida no
âmbito da pesquisa, em 2019].

Se por um lado a construção de redes autônomas de apoio mútuo entre mães revela que
existem outras perspectivas para a maternidade e para o compartilhamento de cuidado, além do núcleo
familiar, por outro, ressalta a invisibilidade desses sujeitos nas políticas públicas de educação, saúde,
trabalho, economia e assistência social. Horizontes como o do projeto Segura a Curva das Mães”
revelam a potência da autoorganização materna tanto em ser apoio mútuo quanto em gerar seus
próprios indicadores sociais e terminologias já que, mesmo que diante de suas especificidades, não
aparecem como sujeitos de direitos específicos. A divisão cartesiana entre a vida pública e privada
causa a distorção de que o cuidado das crianças pertence à esfera doméstica (majoritariamente
feminina) e por isso, não seria de responsabilidade coletiva, ao passo em que o Estatuto da Criança e
do Adolescente atribui à família, ao Estado e à sociedade a responsabilidade de priorizar as crianças
em todas as circunstâncias.
Neste período tão peculiar que vivemos, nós três, autoras deste paper, experienciamos a
pandemia de modos muito particulares. Ao longo deste ano, a partir de nossas próprias experiências,
múltiplas e diversas, como mães de crianças pequenas e pesquisadoras de questões relativas à
maternidade, algumas dimensões fundamentais da maternidade vieram à tona de modo pungente,
entre elas: as desigualdades sociais mais amplas que reverberam em seu exercício e uma questão
central, que diz respeito à importância continuada da problematização política sobre a privatização
de questões sociais, como o cuidado de crianças.

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No original: “No child is simply the parent´s own private matter” (KITTAY, 2010: 410).
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Se a proposição da terminologia “mãe solo” condensa uma crítica às formas de se nominar
experiências maternas, suas intenções e impactos políticos vão além, mostrando que formas de
categorizar o mundo produzem também efeitos sociais concretos. Desse modo, colocam em xeque as
noções normativas de família e a divisão de gênero em relação aos cuidados de crianças mas, mais
que isso, reivindicam uma partilha social do processo reprodutivo que transcenda a dimensão da
conjugalidade ou mesmo da família extensa, levando a questão para o âmbito político-social mais
amplo.
Sendo a maternidade solo o mote central tanto deste movimento quanto da controvérsia
instaurada a partir do auxílio emergencial, conforme mencionamos no início, no caso das ações deste
movimento, as problematizações que levanta e a abrangência que atinge vão além da experiência
monoparental feminina, trazendo também à tona questões mais estruturais relativas ao modo como
maternidade e cuidado são atravessados por relações interseccionais de gênero, raça e classe. Nessa
direção, as ações enfocadas aqui, do movimento desenhado na pandemia “Segura a Curva das Mães”,
repõe essa discussão e nos permite também refletir, de modo ampliado, sobre o cuidado, a
interdependência das relações humanas e o valor social imputado a quem cuida.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 12 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2021, ISSN 2179-510X
Maternal activism and “sole materhood”

Abstract: This paper aims to present the partial results of the research "Solo Maternities", which aims to reflect
on the relationship between parenthood and conjugalities based on the activism of women who call themselves
"solo mothers". Given the historical burden associated with the term “single mother”, adherence to the
expression “solo mother” aims to unlink the parental relationship from conjugality to which it usually appears
linked. Gathered around feminist collectives or virtual groups, these women have produced, from their own
experiences, reflections on the social meanings of motherhood and their daily practices, made claims of rights
and denounced discrimination suffered by them or their children. We suggest that these discursivities bring to
light an agenda that goes beyond criticizing the persistent gender inequalities in the reproductive process, they
also calling into question the idea that children would be the responsibility of only one family. In the limit,
what they seem to announce is that real gender equality will not be achieved only with the equitable division
of parental tasks at home, but with a social sharing of the reproductive process that transcends the marital pair
or the kinship network, being present in all dimensions of a society and including in this division of tasks both
those who have children and those who do not have or wish to have children.
Keywords: Motherhood. Kinship. Gender. Care.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 12 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2021, ISSN 2179-510X

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