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Gênero

Trans e
Multidis ciplinar

Alfrancio Ferreira Dias


Ana Claúdia Lemos Pacheco
(orgs.)
©2013 Alfrancio Ferreira Dias; Ana Claúdia Lemos Pacheco (orgs.)
Direitos desta edição adquiridos pela Paco Editorial. Nenhuma parte desta obra
pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar,
em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação, etc., sem a
permissão da editora e/ou autor.

D5431 Dias, Alfrancio Ferreira; Pacheco; Ana Claúdia Lemos (orgs.)


Gênero Trans e Multidisciplinar/Alfrancio Ferreira Dias; Ana Claúdia Lemos
Pacheco (orgs.). Jundiaí, Paco Editorial: 2013.

244 p. Inclui bibliografia. Inclui gráficos, imagens e tabelas. Vários autores.

ISBN: 978-85-8148-222-4

1. Contemporaneidade 2. Multidisciplinar 3. Sociedade 4. Gênero . I. Dias,


Alfrancio Ferreira II. Pacheco; Ana Claúdia Lemos

CDD: 302

Índices para catálogo sistemático:


Interação Social 302
Sociologia Da Educação 370.19

IMPRESSO NO BRASIL
PRINTED IN BRAZIL
Foi feito Depósito Legal

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SUMÁRIO
PREFÁCIO..........................................................................................................7
CAPÍTULO I - OS ESTUDOS DE GÊNERO COMO MODELO DE
LEITURA.........................................................................................................11
Carlos Magno Gomes
CAPÍTULO II - QUERO MARCAR, RISCAR, PERFURAR MEU
CORPO! TATUAGENS E PIERCINGS COMO REPRESENTAÇÃO
DE MASCULINIDADE E FEMINILIDADE.........................................21
Fabiana Maria Gama Pereira
CAPÍTULO III - UMA PERSONAGEM DE MUITAS FACES: UM
OLHAR SOBRE O FILME MADAME SATÃ DE
KARIM AÏNOUZ...............................................................................................37
Alberto da Silva
CAPÍTULO IV - “LEI DAS EMENDAS VAGINAIS”
REVISITADO...................................................................................................47
Braulino Pereira de Santana
CAPÍTULO V - VOCÊ COLOCARIA UMA ALIANÇA? SOLIDÃO,
HOMOFOBIA E CONSUMO NO VÍDEO “SINGLE MAN DANCES
TO SINGLE LADIES”..................................................................................65
Aroldo Santos Fernandes Júnior
CAPÍTULO VI - REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO SOBRE
O TRABALHO E A APOSENTADORIA DE DOCENTES DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE.........................................83
Maria Helena Santana Cruz
CAPÍTULO VII - AS REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO SOBRE
A VALORIZAÇÃO DAS QUALIFICAÇÕES/COMPETÊNCIAS
DO TRABALHO DOCENTE.....................................................103

Alfrancio Ferreira Dias


CAPÍTULO VIII - TRABALHO DOCENTE, FAMÍLIA E VIDA PESSOAL
– PERMANÊNCIAS, DESLOCAMENTOS E MUDANÇAS
CONTEMPORÂNEAS..........................................................................................119

Silmere Alves Santos

CAPÍTULO IX - EDUCAÇÃO INFANTIL E RELAÇÕES DE GÊNERO:


ESTUDO EM UMA CRECHE NO MUNICÍPIO DE VITÓRIA DA
CONQUISTA-BA....................................................................................................137

Benedito G. Eugenio e Eliane R. Mascarenhas

CAPÍTULO X - O NÓ QUE NOS UNE – POSSIBILIDADES E SABERES


DOS(AS) JOVENS NOS ESPAÇOS DAS ONGs.............................................147

Maria da Anunciação Silva

CAPÍTULO XI - A TRAJETÓRIA DE UMA INTELECTUAL NEGRA:


UMA VOZ SUBALTERNIZADA?......................................................................161

Ana Cláudia Lemos Pacheco

CAPÍTULO XII - TRADIÇÃO, SEXISMO E MASCULINIDADE


SUBALTERNIZADA NAS IRMANDADES NEGRAS..................................175

Joanice Conceição

CAPÍTULO XIII - MULHERES QUE LABUTAM NO RECÔNCAVO DA


BAHIA........................................................................................................................191

Maria de Fátima A. Di Gregorio

CAPÍTULO XIV - MEU MUNDO É MELHOR ASSIM, DE TERESA


CRISTINA: NOTA DE PESQUISA SOBRE O SAMBA CARIOCA E
MULHER..................................................................................................................207

Núbia Regina Moreira

CAPÍTULO XV - “DE NADA TENHO MEDO”: TENSÕES E


CONFLITOS DAS RIXOSAS E TURBULENTAS..........................................223

Mariana Emanuelle Barreto de Gois


LISTA DE FIGURAS

IMAGEM 1 .......................................................................................................................25
IMAGEM 2 .......................................................................................................................25
IMAGEM 3........................................................................................................................28
GRÁFICO 1......................................................................................................................32
IMAGEM 4........................................................................................................................33
TABELA 1.........................................................................................................................56
TABELA 2.........................................................................................................................57
TABELA 3.........................................................................................................................58
IMAGEM 5........................................................................................................................67
IMAGEM 6 .......................................................................................................................67
IMAGEM 7........................................................................................................................71
IMAGEM 8 .......................................................................................................................73
IMAGEM 9 .......................................................................................................................76
IMAGEM 10......................................................................................................................80
TABELA 4.......................................................................................................................106
TABELA 5.......................................................................................................................108
TABELA 6.......................................................................................................................139
TABELA 7.......................................................................................................................139
IMAGEM 11 E 12..........................................................................................................143
IMAGEM 13 E 14..........................................................................................................144
IMAGEM 15....................................................................................................................144
IMAGEM 16 E 17...........................................................................................................145
MAPA 1............................................................................................................................192
IMAGEM 18....................................................................................................................229
TABELA 8.......................................................................................................................237
TABELA 9.......................................................................................................................238
TABELA 10.....................................................................................................................239
PREFÁCIO
No Brasil, os estudos que abordam as relações de gênero acompanham os di-
ferentes momentos dos movimentos feministas, os quais, a partir dos anos 1980,
começaram a criticar a condição da mulher no Brasil, isso porque o país começou
lentamente a sair dos chamados “anos de chumbo” da Ditadura Militar iniciada em
1964. Desde então, as mulheres brasileiras já se mobilizavam contra o custo de vida,
por creches e, timidamente, buscavam uma maior abertura política. Contudo, na
década de 1990, a atenção da universidade para a questão social das desigualdades de
gênero tornou-se mais nítida, expressando-se, por um lado, no aumento numérico
da produção científica nesse campo e, por outro, no interesse em abrir espaço para
cursos de pós-graduação lato sensu.
É importante destacar que o conceito de gênero foi construído por estudio-
sas da língua inglesa, como, por exemplo, Gayle Rubin1, antropóloga e feminista.
Refiro-me, claro, a um dos seus textos “clássicos”, The Traffic in Women. Mas se o
Traffic é mundialmente considerado um trabalho pioneiro e marcante no campo dos
estudos de gênero, um segundo escrito, Thinking Sex2, que discute especificamente a
diversidade sexual e pensa as relações entre sexualidade e gênero, não é tão conhe-
cido no Brasil. Rubin procurou responder teoricamente à recorrência “da opressão
e subordinação social das mulheres” com base em um diálogo crítico com a teoria
antropológica de Lévy-Strauss, com a psicanálise freudiana e com o marxismo. Em
decorrência desse debate, a autora reitera a ideia de que gênero é uma divisão dos
sexos imposta socialmente e produzida nas relações sociais da sexualidade, as quais
compõem o que ela denomina de “sistemas de sexo/gênero”.
Por sua vez, a historiadora Joan W. Scott3 introduziu o conceito de gênero na
História com o seu famoso artigo “Gender a Useful Category of Historical Analy-
sis”, publicado em 1986 na American Historical Review e traduzido em 1990 no Brasil.
Scott dialoga com autores pós-estruturalistas, como Michel Foucault e Gilles De-
leuze, e critica com eles a ideia iluminista da existência de um sujeito único universal
com características biológicas consideradas a-históricas, que fundamentam os dis-
cursos da dominação masculina. Ao propor o uso da categoria Gênero para a análise
histórica – e, por decorrência, para as Ciências Sociais –, pretende compreender e
explicar significativamente o caráter relacional, transversal e variável dessa categoria
analítica. Gênero é uma categoria de análise histórica, cultural e política, e expressa
1. Gayle Rubin.. The traffic in women. Notes on the “Political Economy” of Sex. In: Rayna Reiter. (ed.)
Toward an anthropology of women. New York: MonthlyReview Press, 1975.
2. Id. Thinking sex: Notes for a radical theory of the politics of sexuality [1984]. In: Henry Abelove;
Michèle Barale; David Halperin. (eds.) The lesbian and gay studies reader. Nova York: Routledge, 1993.
3. J. Scott. Gender and the politics of history. New York: Columbia University Press, 1988.
______. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, 20 (2), p.71-99, 1995.

7
Maria Helena Santana Cruz

relações de poder, o que possibilita utilizá-la em termos de diferentes sistemas de


gênero e na relação desses com outras categorias, como raça, classe ou etnia, bem
assim levar em conta a possibilidade da mudança.
Com uma perspectiva de resgatar a mulher e seu papel nas diferentes sociedades,
os estudos de gênero, particularmente, crescem no Brasil em qualidade e quantidade
durante os últimos 20 anos. Muitas pesquisadoras já demonstravam preocupação
pela temática feminista, e os principais trabalhos versavam acerca das discrimina-
ções a que estão expostas as mulheres nos espaços de trabalho, sejam domésticos ou
extradomiciliares, apontando tanto os agentes causadores quanto as consequências
de agressões, além de elaborarem estratégias para superá-las. Nesse sentido, arguo
que o conceito de gênero não pode ser empregado como sinônimo de “mulher”.
Existe consenso de que as relações de gênero são relações de poder e, como tal, es-
truturam as relações sociais em todos os espaços da sociedade. Também há consen-
so na percepção de que para se construírem relações mais igualitárias entre os sexos,
as raças e as gerações, é preciso trabalhar com um marco conceitual que de fato dê
conta dessa complexidade. De fato, no ideário feminista, sempre esteve presente a
preocupação em desencadear ações objetivando a criar posições identitárias capazes
de integrar equitativamente homens e mulheres na sociedade.
Este livro, uma coletânea de textos organizado por Alfrancio Ferreira Dias e
Ana Claudia Lemos Pacheco, retrata o movimento dos(as) acadêmicos(as), trazen-
do-nos questionamentos sobre as várias experiências refletidas. O espírito crítico
que permeia as argumentações dos(as) autores(as) aponta, aberta ou veladamente,
limites e oportunidades, bem como oferece os aportes construtivos importantes
para enriquecer nossas práticas e para as necessárias adequações e mudanças de
rumo de projetos e políticas neste campo de reflexões. Através dos capítulos, orga-
nizados em três partes, desfilam diferentes contextos e situações etnográficas que
vão compondo o mosaico da sociedade brasileira.
Vistos em seu conjunto, os capítulos proporcionam ao leitor um manancial de
temas sobre as relações sociais de gênero, deixando entrever a riqueza desse campo
de reflexão e sua capacidade de integrar diferentes domínios e de abrir o leque para
uma multiplicidade de enfoques empíricos, deixando ao leitor pistas para retomar as
questões teóricas à luz das diferentes realidades aqui tratadas. Em todas as experiên-
cias relatadas faz-se presente o imaginário que revela o desejo de sermos outros(as)
em outro mundo.
Maria Helena Santana Cruz4
4. Doutora e mestre em Educação pela Universidade Federal da Bahia; realizou estágio de pós-doutorado
em Sociologia da Educação (UFS); é professora associada da Universidade Federal de Sergipe (UFS) dos
Programas de Pós-Graduação em Educação (NPGED), Sociologia (NPPCS) e Serviço Social (PROSS);
integra a coordenação do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher e Relações de Gênero (NE-
PIMG) é líder do Grupo de Pesquisa (CNPq): “Educação, Formação, Processo de Trabalho e Relações de
Gênero” na mesma instituição. E-mail: helenacruz@uol.com.br

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PARTE I –
GÊNERO, CORPO E
LINGUAGENS
CAPÍTULO I
OS ESTUDOS DE GÊNERO COMO
MODELO DE LEITURA

Carlos Magno Gomes1

As questões de gênero ampliam os debates em torno dos modelos de leitura


quando pensamos na valorização das subjetividades das identidades de gênero e no
repúdio à violência contra a mulher. Tal reflexão pode ser iniciada pelo debate acer-
ca da importância da Lei 11.340/06, que cria mecanismos de coibição da violência
doméstica e familiar contra a mulher. Conhecida como Lei Maria da Penha, essa lei
prima pela valorização dos direitos humanos e pelo respeito à dignidade da mulher.
Partindo de tal meta, apresentamos um modelo de leitura de textos literários que
retomam reflexões sobre a opressão e a violência contra a mulher com o intuito de
formar leitores(as) críticos(as) e inclusivos(as), tendo como corpus a ficção de autoria
feminina no Brasil2.
Por meio de uma proposta interdisciplinar de leitura, exploramos a perspectiva
estético-cultural do texto literário com suas diferenças ideológicas do contexto de
produção e recepção. Assim, o processo de leitura deve estar voltado para explorar
a capacidade de o/a leitor/a fazer intervenções sociais, uma vez que “a leitura crítica
é condição para a educação libertadora, é condição para a verdadeira ação cultural
que deve ser implementada nas escolas” (Silva, 2005, p. 79).
A abordagem cultural de leitura ressaltada pelas questões de gênero tem como
meta revisar as diferentes formas de assédio e opressão contra a mulher no texto
literário, pois, apesar dos avanços dos direitos femininos, a sociedade brasileira ainda
apresenta um alto índice de violência contra a mulher. Os dados oficiais denunciam
que cerca de cinco mulheres são agredidas a cada minuto no Brasil. Com o objetivo
de mudar esse quadro, a Lei 11.340, de 2006, tenta “criar mecanismo para coibir a
violência doméstica e familiar contra a mulher” (Brasil, 2006). Essa lei faz uma ho-
menagem à farmacêutica Maria da Penha Maia que lutou para processar seu agres-

1. Professor adjunto de Teoria e de Literaturas de Língua Portuguesa do campus de Itabaiana/UFS. Profes-


sor do mestrado em Letras da UFS. Doutor em Literatura pela UnB (2004), com pós-doutorado em Letras
Vernáculas pela UFRJ (2007).
2. Este capítulo traz resultados da pesquisa de pós-doutorado “Ensino de Literatura e Estudos de Gênero”,
desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (Pós-Lit) da Universidade Fede-
ral de Minas Gerais (UFMG) sob a supervisão de Contância Lima Duarte.

11
Carlos Magno Gomes

sor, o ex-marido Marcos Antônio Herredia, que apesar de tentar matá-la duas vezes,
deixando-a paraplégica, teve direito a viver em liberdade.
Com essa Lei, a impunidade masculina passa a ser vigiada pelo poder público.
Além de condenar toda forma de violência doméstica, o Estado procura amparar as
vítimas garantindo segurança, saúde, alimentação e cultura. Tanto o poder público
como as instituições que cuidam dos direitos da mulher defendem que a principal
forma de integrar a mulher que sofreu violência passa por garantir-lhe direito “ao
trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar
e comunitária” (Brasil, 2006). Para isso, a Lei tenta garantir assistência às mulheres,
como atendimento médico, “entre outras normas e políticas públicas de proteção, e
emergencialmente quando for o caso” (Brasil, 2006).
Desse modo, a Lei Maria da Penha traz um avanço ao considerar que sua apli-
cação independe da orientação sexual da mulher e encaminha a vítima a buscar seus
direitos e a ter outra chance na sociedade. Todavia, para sua consolidação, as autori-
dades estão preocupadas com a divulgação dos avanços legislativos que ela traz. Para
isso, o governo promove assistência social para as mulheres e seus filhos vítimas da
violência, assegurando “discussões, oficinas sobre as bases da violência e estimular
os laços de confiança e solidariedade entre as mulheres” (Coelho; Silveira, 2007, p.
2). Outra forma de divulgar as conquistas dessa lei está na sua popularização. Tal es-
tratégia pode ser iniciada com formação crítica de leitores (as) no espaço da escola.
Em busca de uma proposta inovadora, defendemos o modelo cultural de leitura
como uma opção política de interpretação de textos literários e de consolidação
dos direitos humanos. Esse modelo privilegia as questões identitárias por meio da
recepção textual, sem deixar de lado o campo ideológico do texto, pois “estes não
ficam de fora nessa troca que não é apenas intelectual, mas que joga com crenças
e valores e trabalha com a sensibilidade e a imaginação” (Chiappini, 2005, p. 170).
Essa abordagem é sustentada pelas reflexões heterogêneas dos estudos de gêne-
ro na educação que abordam múltiplos discursos e diferentes histórias em conflito.
Assim, as tensões sexuais e as questões de raciais também podem ser incluídas no
debate sobre como as subjetividades do sujeito contemporâneo, visto que “as iden-
tidades sexuais e de gênero têm o caráter fragmentado, instável, histórico e plural”,
pois somos sujeitos de muitas identidades, ora atraentes, ora descartáveis, ou seja,
transitórias e contingentes (Louro, 2001, p. 12).
Os estudos de gênero nos dão base para o questionamento da identidade tra-
dicional, quando problematizam o deslocamento da mulher no espaço da família
opressora. Nessa perspectiva, a leitura se torna eficiente quando identifica as re-
presentações literárias como um questionamento social dos espaços da mulher na
sociedade. Sabemos que as identidades de gênero são parte da cultura e estão mar-
cadas pelas formas como usamos nossos corpos discursivamente, pois “a identida-
de, como a de gênero, a sexual, ou qualquer outra, é produto tanto da cultura e do

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Gênero Trans e Multidisciplinar

discurso, quanto da natureza que nos identifica na materialidade do corpo” (Funk,


2011, p. 67).
Outro aspecto importante está no fato de a pedagogia inclusiva tratar o texto
como mais uma das representações culturais e, como tal, deixa de lado as questões
estéticas para priorizar o potencial ideológico das representações de gênero. Dentro
dessa estratégia de leitura, valorizamos as questões sociais para que o(a) leitor(a)
destotalize as interpretações historicamente impostas para retomá-las “dentro de
um referencial alternativo” (Hall, 2003, p. 402). Neste contexto, com uma prática
pedagógica da diferença opta-se por um processo de leitura capaz de explicitar a
opressão e o preconceito que a sociedade patriarcal impôs historicamente à mulher.
Partindo dessa consciência crítica, a leitura deve levar em conta que a formação
de leitores(as) não é uma ação isolada, nem exclusiva da escola. Esse processo tem
interferências externas, como concepções de grupos sociais dominantes, no ato da
construção dos sentidos da leitura. Portanto, a formação do(a) leitor(a) está relacio-
nada diretamente às ideologias vigentes no contexto da leitura e à autonomia do(a)
leitor(a) é vista como uma saída para leituras já construídas pelos valores sociais
vigentes, pois ele(a) passa a ser um(a) coautor(a) dos sentidos do texto a partir de
seu campo social, podendo “intervir, invadir o que lhe estava vetado” (Zilberman,
2001, p. 103).
Por essa perspectiva, o modelo cultural de leitura se posiciona contrário a “unili-
nearidade” dos modelos tradicionais e da noção transparente de comunicação, pois o
“sentido sempre possui várias camadas, de que ele é sempre multirreferencial” (Hall,
2003, p. 354). Tratando-se do conteúdo ideológico que a escrita carrega em uma
sociedade, a formação do(a) leitor(a) pode ser vista como uma garantia de emanci-
pação do cidadão, pois a leitura pode ser transformada em um ato de reflexão sobre
os espaços de dominação e suas formas de normatização impostas pela sociedade.
Direcionada para explorar os conflitos identitários de gênero, a abordagem cul-
tural da leitura deve passar pela valorização do debate sobre as questões identitárias
da mulher e suas conquistas no mundo contemporâneo, pois se espera que o proces-
so de leitura seja transformado em instrumento de conscientização e libertação de
leitores atuais (Zilberman; Silva, 2005, p. 115). O modelo proposto alarga a fronteira
textual pela politização da leitura que passa a valorizar das alteridades em jogo, visto
que “a leitura favorece o mergulho de um sujeito no interior da identidade do outro,
amalgamando-os, durante seu decorrer, num único ser” (Zilberman, 2001, p. 50).
Ao questionar o hegemônico, este modelo inclui questões de pertencimento
identitário e suas tensões no roteiro de sua interpretação para identificar a camada
ideológica do texto, visto que reconhece que o texto, como produto cultural, traz
discursos já circunscritos e socialmente regulados coletivamente. Com a valorização
da recepção crítica e a proposta de análise ideológica que sustentam as representa-
ções identitárias de gênero, reconhecemos que “as experiências conseguidas através

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Carlos Magno Gomes

da leitura facilitam o posicionamento do ser do homem numa condição especial e


impulsionam a descoberta do conhecimento” (Silva, 2005, p. 38).
Nesse sentido, cabe valorizar o espaço da escola como um lugar de transfor-
mação do(a) leitor(a), e as aulas de leitura podem se tornar um espaço de inclusão
e debate sobre as questões de gênero. Com isso, cabe alertar aos mediadores da
aprendizagem que a leitura deve proporcionar prazer e envolvimento do(a) leitor(a)
numa atividade coletiva que passa pela discussão de textos e releituras a partir da vi-
são do outro (Chiappini, 2005, p. 177-178). Por isso, ressaltamos o questionamento
da identidade hegemônica para incluir a alteridade da mulher como parte da leitura.
Nessa direção, cabe apontar os deslocamentos das fronteiras do texto, como
uma abertura da experiência de leitura para o campo social das representações de
gênero. Tal proposta segue uma abordagem ideológica como uma prática de leitura,
reconhecendo que a pedagogia interdisciplinar como sendo aquela que “interroga
um texto que se destina a uma leitura especializada, a partir dos pressupostos de
outra” (Chiappini, 2005, p. 175). Por isso, no modelo cultural está em jogo a capaci-
dade de o texto questionar a normatização das identidades dos homens e mulheres.
No processo de interpretação, o conceito de identidade cultural é fundamental,
pois sempre explicita o quanto as identidades têm fronteiras tênues e diversifica-
das que sustentam as diferenças entre homens e mulheres. Essa provisoriedade das
identidades é uma marca da leitura cultural, pois é “construída multiplamente ao
longo dos discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicas”
(Hall, 2000, p. 108).
Dessa forma, destacamos o fato de a flexibilidade da identidade de gênero ter
sido fortalecida pela crítica ao patriarcalismo como um processo sempre em mo-
vimento, que não apresenta fixidez, pois se trata de uma prática social plural. Daí a
importância de uma leitura a partir de uma posição deslocada, de um lugar de sutu-
ração, de rasuras, de um sujeito de fronteiras, para quem a leitura é capaz de atualizar
conceitos identitários nos quais a mulher é vista como “algo sempre incompleto e
em transformação” (Funk, 2011, p. 71).
Tal perspectiva de diversidade de fronteiras identitárias nos ajuda a entender como
as imposições de gênero podem ser questionadas no processo de leitura. Ao destacar-
mos o texto como um objeto estético-cultural e a provisoriedade por trás da recepção
crítica, reconhecemos que as dúvidas e questionamentos são indispensáveis para a
leitura cultural e, nesse modelo, as interpretações são escorregadias e necessitam de
um(a) leitor(a) preparado(a) para articulá-las a partir do deslocamento da tradição para
a construção de novos sentidos para velhas fórmulas de imposição masculina.
Na perspectiva educativa, destacamos o quanto a leitura cultural também nos
auxilia a democratizar o espaço da escola. Tal leitura pode auxiliar a reflexão sobre
as causas e consequências do preconceito de gênero nesse espaço que possui “uma
pedagogia da sexualidade, legitimando determinadas identidades e práticas sexuais,

14
Gênero Trans e Multidisciplinar

reprimindo e marginalizando outras” (Louro, 2001, p. 31). Com essa preocupação,


a formação do(a) leitor(a) é vista como uma atividade social para além do espaço
da escola.
O processo de leitura também leva em conta que as identidades são vistas pela
perspectiva do não uniforme, do múltiplo e do antagônico. Ideologicamente, o texto
passa a ser um meio de se pensar as normas sociais e um processo de comparação e
avaliação das posições identitárias em jogo.
Seguindo as perspectivas de gênero, o modelo de leitura deve se preocupar com
a erradicação da violência contra a mulher. Ora, se a leitura é um espaço social de
transformação do(a) leitor(a) em cidadão(ã), sua capacidade pedagógica pode ser
vista como uma saída social contra a opressão feminina. Nessa direção, os estudos
de gênero têm nos dado resultados muito importantes para entendermos como a
opressão e a violência contra a mulher são repudiadas pelas feministas e escritoras
brasileiras desde o século XIX.
Os estudos de gênero também têm contribuído para novas formas de interpre-
tação dos deslocamentos das identidades, quando pregam o gênero como fruto,
acima de tudo, da repetição de atos performáticos, e podem ser vistos como conse-
quências de um longo processo de identificação e de escolha que envolve rejeição e
aceitação das normas sociais (Butler, 2003).
Nesse rumo, as novas abordagens culturais serão usadas para valorizar as es-
pecificidades ideológicas de gênero subjacentes ao texto, pois no modelo cultural
de leitura, o(a) leitor(a) deve levar em conta o questionamento da normatização de
gênero que vai além de se ser homem ou mulher. Tais formas de interpretação re-
conhecem que o conteúdo ideológico é parte da leitura, pois “as identidades sociais
e culturais são políticas. As formas como elas se representam ou são representadas,
os significados que atribuem às suas experiências e práticas é sempre, atravessado e
marcado por relações de poder” (Louro, 2001, p. 16).
Assim, a identidade de gênero está para além de um construto social, visto que
“o sujeito não é determinado pelas regras pelas quais é gerado”, pois no processo de
construção de uma identidade, a repetição dos atos também regula essa construção.
Tal mecanismo tanto oculta, quanto expõe normas. Para Butler, “esse processo é
um meio da produção de efeitos substancializantes” (2003, p. 209). Vale lembrar
que, no texto literário, a identidade de gênero é bem mais ambígua, pois está atra-
vessada pelo dialogismo textual.
No processo de interpretação, fugir do binarismo tradicional entre o masculino
e o feminino é reconhecer o fato de que qualquer representação é uma construção
feita por meio das diferenças. Portanto, a identidade de gênero é uma construção
e um resultado de uma performance de naturalização, pois “é um ‘ato’, por assim
dizer, que está aberto a cisões, sujeito a paródias de si mesmo, a autocríticas àquelas
exibições hiperbólicas do ‘natural’ que, em seu exagero, revelam seu status funda-

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Carlos Magno Gomes

mentalmente fantasístico” (Butler, 2003, p. 211). Esse status “fantasístico” de uma


identidade pode ser percebido no choque entre a nova performance e o velho pa-
drão imposto pelo sistema patriarcal.
Na literatura brasileira, há uma tradição de a autoria feminina não privilegiar o
prisma do sujeito universal, pelo contrário, defende o lugar de fala da mulher a par-
tir das subjetividades e particulares de sua performance social. Nesse caso, a ficção
ressalta a premissa de que a mulher está em transformação em busca de se entender.
Isso é possível detectar pelo fato de a personagem feminina estar sempre se deslo-
cando para fora da casa ao questionar as fronteiras impostas a ela pela família.
Em estudo sobre a representação da mulher na ficção brasileira, Elódia Xavier
destaca a presença da violência simbólica e a falência da família patriarcal como par-
ticularidades das narrativas brasileiras de autoria feminina. Nessa literatura, ela iden-
tifica diversas formas de representação do corpo feminino questionando a opressão
masculina e pregando o direito de liberdade da mulher.
Além do espaço da casa, Xavier identifica diferentes corpos femininos explora-
dos na ficção como forma de questionamento da opressão da mulher: “disciplina-
do”, que ressalta a norma; “degenerado”, que avulta as regras de violência contra a
mulher; “liberado”, que expressa a liberdade da mulher como mentora de sua vida
social e psíquica (2007, p. 22). Com tal análise, a pesquisadora ressalta o quanto a
escritora brasileira apresenta uma ficção preocupada com a crítica ao patriarcado e
com a busca da independência da mulher.
Partindo de um estudo histórico, Constância Lima Duarte destaca que a luta da
mulher contra a violência física e simbólica sempre esteve na pauta da luta feminista
brasileira. Essa pesquisadora destaca quatro momentos históricos da relação da mu-
lher e um projeto intelectual feminista no nosso país. No primeiro, Duarte destaca
a produção pioneira de Nísia Floresta sobre os direitos das mulheres. No segundo,
a partir de 1870, há um grande número de jornais e revistas voltados para o público
feminino. O terceiro começa com a mobilização da mulher pelo voto no início do
século XX e atravessa todo o modernismo. O quarto é a mais radical, pois altera
os costumes familiares com o controle da maternidade a partir da década de 1970
(Duarte, 2007, p. 131).
Nesse contexto, o feminismo ganhou uma face mais politizada e passou a in-
tegrar os discursos de artistas em tempo de controle e de censura imposta pela
Ditadura Militar. Assim, além das questões sociais, a feminista dos anos 1970 posi-
cionou-se contra todos os tipos de censura (Duarte, 2007, p. 132).
Na ficção, quando a identidade unificada é questionada, observamos que o per-
tencimento identitário da mulher não é completo, pois parece que sempre fica fal-
tando algo. As protagonistas brasileiras estão em busca do melhor para si, que ora
encontram na família, ora encontram no trabalho. Esse pertencimento é um proces-

16
Gênero Trans e Multidisciplinar

so de articulação e de sobredeterminação do que há em demasia ou do que há em


muito pouco em suas identidades.
Na literatura brasileira, temos uma sequência de obras que nos ajudam a inter-
pretar como a opressão e a violência contra a mulher se manifestam no cotidiano da
mulher: seja dentro de casa, por meio da opressão do patriarcado, seja no trabalho,
por meio do assédio sexual. Esses dois tipos de violência ainda são muito comuns
na sociedade brasileira neste início de século, por isso precisamos de políticas públi-
cas que busquem aniquilar a violência contra a mulher.
Nos textos ficcionais, a opressão feminina foi denunciada pelas escritoras de
forma mais incisiva no decorrer do século XX. Em O quinze (1930), Rachel de Quei-
roz narra a história de Conceição, que busca se libertar da opressão do casamento,
ao rejeitar o destino de mulher. Em 1944, Clarice Lispector irrompe com os roman-
ces tradicionais ao lançar Perto do coração selvagem, obra que descreve uma protagonis-
ta que não aceita o padrão. Por sua vez, Lygia Fagundes Telles lança Ciranda de Pedra
(1955), obra que retrata um patriarca castrador que expulsa a esposa louca de casa e
impõe um padrão de comportamento para todos na família.
A luta da mulher para se libertar do destino de mulher, o casamento, faz parte
das abordagens ideológicas da ficção de Clarice Lispector e presentes na coletânea de
contos de Laços de família (1960). Nessa obra, a mulher tenta abandonar desesperada-
mente o espaço da casa para vivenciar sua liberdade, no entanto, ainda não encontra
saída. Nas décadas de 1970 e 1980, a mulher passa a ganhar novos espaços na socie-
dade e, na ficção brasileira, passa a ser representada com os desafios da vida fora da
família em As meninas (1973), de Lygia Fagundes Telles, A força do destino (1977), de
Nélida Piñon, As parceiras, de Lya Luft, e As doze cores do vermelho (1988), de Helena
Parente Cunha. Apesar de serem protagonistas independentes, a maioria dessas per-
sonagens é cercada por homens incomodados com a liberdade da mulher moderna.
Como desafio, elas questionam as regras de dominação e submissão da mulher
ressaltadas pelas instituições sociais Família, Igreja, Escola e Estado, pois sugerem
que a submissão feminina é uma construção cultural padronizada. Dessa forma, a
opressão feminina é debatida como parte de uma sociedade e, “em parte, constru-
ída na fantasia ou, ao menos, no interior de um campo fantasmático” (Hall, 2000,
p. 109). Além dos discursos institucionais, o machismo, no caso brasileiro, continua
sendo um fantasma para as mulheres que buscam sua liberdade de homens escravi-
zados pela fantasia de dominador. Tal forma de rebaixar o corpo da mulher é muito
comum nas sociedades patriarcais e é respaldado pela cultura cristã que desvaloriza
o corpo da mulher independente “com o desprezo pelo corpo cresceu também o
desprezo pela mulher” (Xavier, 2007, p. 132).
Dentro desse contexto, observamos que o aprisionamento vivenciado pela mu-
lher nas relações afetivas pode ser visto como diferentes formas de assédio moral
em que a integridade física e psicológica da mulher está em crise. Tais escritoras

17
Carlos Magno Gomes

lançam obras que debatem o lugar da mulher na sociedade industrializada diante


da crise do casamento e da vida profissional. Essas autoras trazem reflexões sobre
a crise feminina entre realizar-se na maternidade, sem deixar de lado sua vida pro-
fissional. Normalmente, no espaço da casa, a mulher é oprimida por um marido
castrador que a impende de trabalhar e ter liberdade. Com esses temas, a literatura
de autoria feminina pode ser usada como textos motivadores para o debate sobre a
violência contra a mulher na sociedade brasileira.
Com isso, a escritora brasileira coloca-se na contramão da cultura hegemônica,
no caso o patriarcado, pois se apropria de diversos símbolos da modernidade para
mostrar o quanto as identidades de gênero são provisórias. Na ficção, a representa-
ção da mulher incorpora diferentes problemas que surgiram com a modernização
da sociedade brasileira. Com o crescimento das cidades e com a entrada da mulher
no mercado de trabalho, novos conflitos surgiram no seio da família brasileira. Tais
problemas também passaram a ser incorporados pela autoria feminina.
Nessa direção, os estudos de gênero têm um leque de abordagens muito amplo,
pois precisam partir de relações tradicionais entre homens e mulheres para incor-
porar as tênues fronteiras sexuais dos novos sujeitos da pós-modernidade. Nesse
contexto, os estudos de gênero reconhecem o quanto a identidade é ambivalente e
paradoxal, pois “mesmo que uma identidade sexual – como ser mulher, ser homem,
ser lésbica, ser gay – tenha servido de base para importantes comprometimentos
políticos, tais identificações são precárias e contingentes em termos culturais e his-
tóricos” (Funk, 2011, p. 67).
Então, ao fazer uma leitura motivada pela Lei Maria da Penha, observamos as
possibilidades de questionamento sobre as formas de violência contra as mulheres
e as novas possibilidades das identidades de gênero. Com isso, podemos fazer um
paralelo com nossa sociedade, na qual alguns homens ainda perdem a razão quando
são rejeitados por uma mulher. Isso acontece quando não reconhecem as escolhas,
a liberdade e a independência das mulheres como parte dos direitos humanos e do
respeito à dignidade humana.
Como visto, a formação de um leitor preocupado com as questões de gênero faz
parte de uma proposta estético-cultural de leitura contra o preconceito, opressão e
violência contra a mulher ainda presentes na sociedade brasileira. Mesmo na atualida-
de, com tantos direitos conquistados, as mulheres ainda são vítimas da irracionalida-
de dos homens que deixam seus instintos animalescos transparecerem em momentos
de delírios e alucinações que são suficientes para pôr fim na vida de companheiras.
Nessa direção, a Lei Maria da Penha pode ser vista como um novo horizon-
te cultural e serve também como instrumento de democratização da dignidade da
mulher que se opõe a tudo que é inescrupuloso, como chantagem, assédio moral,
violência física e simbólica. Todas essas formas de violência devem ser banidas da
moderna sociedade brasileira e como uma proposta democrática de questionamen-

18
Gênero Trans e Multidisciplinar

to dessa situação, o ensino de leitura deve também incluir tais preocupações como
parte da pedagogia inclusiva. Com isso, a abordagem cultural a partir dos estudos de
gênero pode explorar o caráter educativo por trás dessa Lei.
Assim, a leitura e a formação crítica do(a) leitor(a) é parte de um modelo cultu-
ral de leitura que dialoga com políticas públicas que devem ressaltar a proteção da
mulher, “garantindo-lhe fortalecimento e respaldo dos poderes públicos, aí sim, fa-
zendo valer a Lei em toda sua plenitude” (Silveira; Coelho, 2007, p. 2). Dessa forma,
ao priorizar a revisão da representação da mulher, estamos promovendo a formação
de leitores(as) críticos(as) capazes de mudar as interpretações sobre a submissão
feminina e os estereótipos de gênero, pois no “processo contínuo de significação do
mundo cultural e ideológico, que está sempre significando e ressignificando – esse
processo é sem fim” (Hall, 2003, p. 362).
Como visto neste capítulo, a revisão cultural questiona a memória coletiva das
representações de gênero impostas pelo sistema patriarcal. Daí a importância de um
modelo cultural de leitura que valorize a revisão das identidades de gênero, visto
que o leitor crítico é um coautor, um invasor com sua imaginação e experiência
para atualizar os significados do texto. Portanto, ao priorizarmos a formação de um
leitor cultural pelo viés de gênero, leituras passam a ser vistas como um processo de
instauração de sentidos que variam e revisam os já construídos.
Então, com o modelo cultural de leitura, temos a oportunidade de alargar os
horizontes interpretativos dos textos e fugir da “comunidade interpretativa” (Hall,
2003, p. 379) que aprisiona a mulher às representações patriarcais de submissão,
instalando novos sentidos, pois esse modelo amplia nosso espaço de ação ao nos
sugirir ferramentas adequadas contra o preconceito. Por tal viés, o modelo de leitura
aqui proposto “produz uma ruptura no interior das vivências do sujeito, apontando-
-lhe as possibilidades de outro universo e alargando suas oportunidades de compre-
ensão do mundo” (Zilberman, 2001, p. 55).
Tal processo de ressignificação parte da abertura do leitor de se identificar
“com” e “através” do outro representado no texto, isto é, a alteridade da mulher é
explicitada no texto analisado pelo caráter ambivalente das representações de gêne-
ro. Essa revisão não deve ser vista como um ato isolado de leitura, mas como uma
nova dinâmica da sociedade brasileira, pois ressalta a condição coletiva da leitura e
sua condição de ser historicamente construída como parte da vida em comunidade
(Silva, 2005, p. 85).
Portanto, o modelo de cultura de leitura valoriza a participação do(a) leitor(a),
que “é responsável pela atualização dos textos” (Zilberman, 2001, p. 88). Com a
inclusão do tema do pertencimento identitário, esse agente da leitura vai aos poucos
percebendo que o texto literário revela diferentes abordagens dos problemas sociais
que devem ser historicamente situados, mas que, principalmente, devem ser com-
parados e problematizados a partir da recepção atual. Com isso, pensamos em um
ensino de leitura que explore as contribuições dos estudos de gêneros e da recepção
crítica para tornar o ato de ler um ato social.

19
Carlos Magno Gomes

REFERÊNCIAS

BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Trad. de Renato Aguiar. Rio de Janeiro:


Civilização brasileira, 2003.
BRASIL. Lei nº 11.340, de 07.08.2006, cria mecanismos para coibir a violência do-
méstica e familiar contra a mulher. Lex – Coletânea de Legislação e Jurisprudência:
edição federal.
CHIAPPINI, Lígia. Leitura e Interdisciplinaridade. In: CHIAPPINI, Lígia. Rein-
venção da catedral: língua, literatura, comunicação: novas tecnologias e políticas
de ensino. São Paulo: Cortez, 2005, p. 169-181.
DUARTE, Constância Lima. Pequena história do feminismo no Brasil. In: CAR-
DOSO, Ana Leal; GOMES, Carlos Magno. Do imaginário às representações
na literatura. São Cristóvão: Ed UFS, 2007.
FUNK, Susana. O que é uma mulher? In: Cerrados, Brasília: Pós-graduação em
Literatura, 2011, p. 65-74.
HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.).
Identidade e diferença. Petrópolis: Vozes, 2000.
______. Da diáspora – identidades e mediações culturais. Tradução de Adelaine
La Gaurdia Resende et al. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
LOURO, Guacira. Pedagogias da sexualidade. In: LOURO, Guacira. O corpo
educado: pedagogias da sexualidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. 2. ed.
Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 07-34.
SILVA, Ezequiel Theodoro da. O ato de ler: fundamentos psicológicos para uma
nova pedagogia da leitura. São Paulo: Cortez, 2005.
SILVEIRA, Maria Lúcia; COELHO, Sônia. O sexismo e a resistência à aplicação
da Lei Maria da Penha. Folha Feminista, São Paulo: Sempreviva Organização Femi-
nista SOF, n. 66, p. 02-03, novembro de 2007.
XAVIER, Elódia. Que corpo é esse? O corpo no imaginário feminino. Florianópolis:
Ed. Brasil, 2007.

ZILBERMAN, Regina. Fim do livro, fim dos leitores? São Paulo: Senac, 2001.

______; SILVA, E. T. (orgs.). Leitura: perspectivas interdisciplinares. São Paulo:


Ática, 2005.

20
CAPÍTULO II
QUERO MARCAR, RISCAR,
PERFURAR MEU CORPO!
TATUAGENS E PIERCINGS COMO
REPRESENTAÇÃO DE
MASCULINIDADE E FEMINILIDADE
Fabiana Maria Gama Pereira1

1. O CAMPO ETNOGRÁFICO: OS ESTÚDIOS DE


TATUAGEM

A cultura do body building se fundamenta na concepção de beleza e forma física.


Nos últimos anos se incorporaram a essa peculiar forma de manifestação cultural
a body art e a body modification2. Alguns dos adeptos transformam completamente a
imagem, fazendo disso, entre outras coisas, um estilo de vida (Goldemberg, 2002).
Complementando esse raciocínio, pode-se constatar através de pesquisas em-
píricas, que atualmente é forte o apelo estético para que as pessoas tenham seus
corpos de acordo com os padrões socialmente impostos: sarados, musculosos e
delineados (Pereira, 2003). Mas concomitante com esse mercado voltado para o
consumo de padrões estéticos hegemônicos, há também indivíduos que por razões
diversas buscam um caminho “alternativo”, quanto ao gosto e escolha de suas pre-
ferências estéticas (Pereira, 2007).
Durante a 1ª convenção internacional de tatuagem e body piercing de Recife, re-
alizada em 2003, houve oportunidade da pesquisadora se iniciar nesse universo,
chamando a atenção em especial para a diversidade entre gerações e estilos estéticos
que se misturavam naquele cenário, o que parecia ser indicativo de uma mudança
significativa no campo da harmonia das representações corporais. A partir desse pri-

1. Universidade Federal de Pernambuco, doutora em Antropologia, pesquisadora do Programa Nacional


de Pós-Doutorado CAPES, Núcleo de Estudos em Religiões Populares (NERP).
2. O termo “body modificacion” se refere a uma longa lista de práticas que inclui piercing, tatuagem, branding,
cutting, binding e implantes para alterar a aparência corporal. A lista pode se estender e incluir também o
chamado body building, a estética anoréxica, nas quais a superfície do corpo não é diretamente alterada com
instrumentos de corte, pois neste caso é modificado por meio de exercícios e dietas (Featrerstone, 2000).

21
Fabiana Maria Gama Pereira

meiro contato, buscou-se pouco a pouco uma inserção nos estúdios de modificação
corporal, estabelecendo vínculos com técnicos e eventuais usuários.
Alguns circuitos urbanos na cidade do Recife permitiram uma maior intimidade
com determinadas pessoas, posteriormente complementada com as observações
nos bairros da Boa Vista e de Boa Viagem, nos quais há uma maior concentração de
estabelecimentos especializados nessas técnicas. Na Boa Vista, a pesquisadora rea-
lizou observações em três estúdios, onde os técnicos se dedicavam a serviços mais
tradicionais (tatuagens e piercings). Já em Boa Viagem, foi possível frequentar o body
art, que além de ser um local especializado nas técnicas tradicionais, também se volta
às inovações da body modificacion, ou seja, ali são realizadas intervenções consideradas
por alguns de seus frequentadores como “radicais”, haja vista não se tratar apenas
de fazer um desenho no braço ou um “furinho no nariz”, mas de práticas ou experi-
ências que demandam intervenções extremas, como por exemplo, as escarificações3.
Lugares de sociabilidade e de consumo estético, esses espaços, formam redes
entre pessoas que partilham de interesses comuns que, nesse caso, se voltam, sobre-
tudo, para a experiência estética da modificação corporal. A partir do momento em
que se começa a trabalhar nos estúdios, os técnicos passam a se conhecer, formando
uma rede de contatos, tanto entre os tatuadores4 quanto entre os piercers5 bem como
com os usuários6.
Os interiores dos estúdios foram os locais que permitiram um contato mais
intenso com esse universo, pois lá era possível ter acesso aos informantes; lugares
onde se penetrava em seus cotidianos, sendo mais fácil estabelecer vínculos os quais
permitiram chegar a outros adeptos. A regularidade e a intensidade dessas visitas
possibilitou a inserção nas redes de relações.
Através das observações diárias nos estúdios, nas convenções e até mesmo nas
residências de algumas pessoas, foi possível perceber o quanto alguns papéis e prá-
ticas sociais, relacionadas com este universo, estão atreladas às categorias de gênero,
se destacando neste sentido, o tatuador como figura masculina e central que ocupa
um lugar de destaque. Para entendermos esta afirmação, analisaremos a inclusão da
3. O termo escarificação vem do inglês “scar” e significa cicatriz. Diferentemente da tatuagem e do pier-
cing, é uma técnica que consiste em cortar a pele, geralmente com um bisturi seguindo a forma de um
desenho. Sarada a ferida, volta-se a abri-la várias vezes, com o objetivo de que a cicatriz chegue a ser bem
visível, o desenho ressalte sobre a pele e não se apague com o passar do tempo.
4. Definem-se como técnicos ou especialistas em pigmentação da pele, enfatizando geralmente o labor
artístico, criativo e artesanal com que tratam suas realizações.
5. São técnicos cuja principal atividade é perfurar a pele e introduzir objetos decorativos geralmente guiados
por experimentos estéticos.
6. É a categoria mais complexa de se definir, pois os usos que fazem das intervenções corporais variam,
podendo ir desde uma simples marca, como linguagem identitária, até a adoção de um estilo de vida e de
estética corporal alternativas, dependendo da atividade que ocupa, do gênero, da posição social, dos inte-
resses, dos valores no contexto social de origem e da faixa etária.

22
Gênero Trans e Multidisciplinar

tatuagem ao ocidente, os caminhos que levaram esta técnica a se tornar um ofício e


o papel do tatuador como para além de um técnico especializado.

2. OLHA O BRAÇO DAQUELE MARINHEIRO!


E A TATUAGEM CHEGA AO OCIDENTE...
Como descrito por diversos autores, a tatuagem é uma prática milenar que está
presente em diferentes culturas. O tatuado mais antigo de que se tem registro é um
caçador do período neolítico e data de 5.200 anos a.C. Ele foi batizado de Ötzi e
encontrado em 1991 congelado entre a Itália e a Austrália com desenhos espalhados
pelo corpo (Araujo, 2005). Há descrições que demonstram o quanto esta técnica
também parece ter sido bastante significativa na China antiga, onde foram encontra-
das grafias de homens tatuados interpretados como invocação e identificação com
potências celestiais (Vázquez Hoys, 2003).
É através de viajantes e marinheiros que esta prática chega ao ocidente. No
diário do capitão Cook, de 1769, está escrito:

(...) homens e mulheres pintam o corpo, na sua língua, diz-se “tatuou”, isso se
faz injetando cor negra sob a pele de tal maneira que a marca fique indelével. Mr.
Stainsby, eu próprio e alguns outros submetemo-nos a operação e tivemos os
nossos próprios braços marcados: a marca deixada na pele não pode ser apagada,
é dum belo azul violeta, bastante semelhante à marca deixada pela pólvora. (Cook
apud Le Breton, 2004, p. 40 – 41)

Em função da atração que despertavam, as pessoas tatuadas se apresentavam em


espetáculos circenses nos quais contavam estórias de perseguições e caça. As marcas
no corpo serviam para ilustrar tais contos que, muitas vezes, eram puras criações.

(...) Em 1828, John Rutherford chega a Bristol com a pele coberta de tatuagens
maoris que ele afirma terem-lhe sido igualmente infringidas contra a sua vontade
com dores terríveis. Constrangido a casar com a filha do chefe de quem diz ter
três filhos, consegue, após seis anos de cativeiro, escapar num navio americano.
Reencontra a sua família britânica, aureolado com o estatuto de vítima. Em breve,
consciente do seu valor simbólico e mercantil, apresenta as suas tatuagens em
público em Bristol ou em Londres. (Le Breton, 2004, p. 65-66)

A ficção da violência garante o valor das suas afirmações e justifica a razão de tais
ornamentos. A tatuagem continua a ter uma reputação duvidosa, e é contada como
consequência de uma violência física e de uma ação perversa dos “primitivos”.
No ocidente, durante muito tempo, foi uma prática quase que exclusiva de ho-
mens e para homens. Poucos são os relatos de mulheres tatuadas e, nos momentos

23
Fabiana Maria Gama Pereira

em que apareciam, sempre estavam ao lado do tatuador, como bem aponta a des-
crição a seguir:

No final do século XIX e início do século XX destacava-se Wagner Gus, artista


da tatuagem e viajante do mundo, que esteve em St. Louis (Paris) para tatuar na
Feira de 1904. Sua esposa, Maud Stevens era uma das atrações por ser uma mulher
tatuada. Antes de 1907 foi completamente coberta de tatuagens feitas por ele.7

Mas é somente a partir da década de 1920 que as mulheres tatuadas começam


a se exibir em espetáculos circenses nos Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha.
Contrariamente aos homens que costumavam relacionar a marca corporal a conte-
údos violentos, elas narravam estórias de amor e erotismo por meio dos desenhos
estampados na pele. Betty Broadbent, por exemplo, na década de 1930 apresentava-
-se em circos americanos, na Austrália e Nova Zelândia. Nos idos de 1960, uma
jovem australiana apelidada Cindy, cujo nome verdadeiro é Bev Robinson, possuía
o corpo completamente tatuado, num momento em que poucas mulheres tinham
essa marca na pele8.
Conta-se que Bev Robinson publicou um livro intitulado A história de uma jovem
tatuada, no qual relatava sua vida como mulher tatuada numa época em que poucas
mulheres eram adeptas de tal prática e, se eram, tinham algo pequeno e escondido.
Segundo relatos, seu sucesso foi tão grande que ela montou um negócio relacionado
com as tatuagens. Por outro lado, a verdadeira história mostra que Bev Robinson
nunca se inteirou de nada, muito menos soube de sua influência neste universo. Seu
nome foi utilizado por um fotógrafo que um dia a conheceu numa campanha para
modelos, quando ela foi fotografada9.

7. Disponível em: <http://translate.google.com/translate?hl=es&sl=en&u=http://oldschooltattooexpo.


com/bert.html&sa=X&oi=translate&resnum=6&ct=result&prev=/search%3Fq%3D%2522museum%2
Btattoo%2522%26hl%3Des%26sa%3DX>. Acesso em: 21. abr. 2007.
8. Disponível em: <http://translate.google.com/translate?hl=es&sl=en&u=http://oldschooltattooexpo.
com/bert.html&sa=X&oi=translate&resnum=6&ct=result&prev=/search%3Fq%3D%2522museum%2
Btattoo%2522%26hl%3Des%26sa%3DX>. Acesso em: 21. abr. 2007.
9. Disponível em: <http://oldschooltattooexpo.com/cindyray.html>. Acesso: 22. out. 2012

24
Gênero Trans e Multidisciplinar

MULHERES TATUADAS (acervo Amsterdan Tattoo Museum)

IMAGEM 1 - Betty Broadbent (1930)

IMAGEM 2 - Bev Robinson “Cindy” (1960)

25
Fabiana Maria Gama Pereira

É curioso que em distintas culturas, a tatuagem feminina geralmente esteja re-


lacionada com a sexualidade, beleza e sedução: em regiões da Índia, por exemplo,
as mulheres tatuam as mãos, braços, pernas e pés por meio da introdução na pele
de fluido de petróleo, misturado a óleo de quinino com leite e, algumas vezes, urina
(Gentil Garcia, 2003). Também com finalidade estética, em alguns lugares do Japão
é comum às mulheres Aïnous tatuarem os lábios deixando-os salientes e maiores
(Ramos, 2001).
Já no ocidente, inicialmente houve um rechaço para com a tatuagem. Os trata-
dos de beleza do século XVI mencionavam a forte repulsa por parte de religiosos
pela cosmética de um modo geral. Nessa época o tema do enfeite evocava a pros-
tituta, que quando era retratada sempre levava a pele avermelhada nas bochechas,
os cabelos soltos, despenteados e desarrumados. Mas apesar dessa rejeição pela
tatuagem, na Idade Média as mulheres nobres empregavam severos métodos para
perder sangue e ficar com o aspecto de palidez. Sangrias, laxantes, esfregamento das
extremidades do corpo, ventosas na nuca e nos ombros, escarificações, sanguessu-
gas nas bochechas, na ponta do nariz ou na testa, etc. Sobre as francesas se dizia:

nacen con esa blancura que conservan absteniéndose del vino, bebiendo mucha
leche, recurriendo a sangrías muy frecuentes, a lavativas y también a otros medios:
por lo tanto no hay que maravillarse de que sus mejillas sean rosadas y sus senos
de color de lirio. (Locateli apud Vigarello, 2005, p. 78)

Criação divina, o corpo humano era associado ao sagrado. Marcá-lo era passá-lo
ao profano, ao proibido, pecaminoso e sujo (Douglas, 1966). Mexer na carne signi-
ficava contaminá-la. Dessa forma, a pele, invólucro protetor, deveria está coberta
para nem mesmo receber os raios do sol.
Os cristãos acreditavam que o homem era criado por Deus a sua imagem e
semelhança e, segundo o Gênesis, não se poderia mexer no corpo para preservá-lo
à eternidade. A integridade do organismo era um dos atributos para guerreiros e
sacerdotes; ser santo era ser total, ser uno. Quem tocava o corpo humano era dis-
criminado, pois infringia um tabu cristão, de forma que no século XII o Concílio
de Trento proibia os médicos monásticos de proceder à sangria, prática corrente na
época, já que violava os limites da carne.
Conforme a Bíblia faz referência: “Não fareis incisão no corpo de um morto
nem fareis em vós próprios tatuagens”(Bíblia apud Le Breton, 2004, p. 26).
Acreditava-se também que o Diabo marcava com um sinal a testa de bruxos récem-
-iniciados, conforme atestam pinturas do século XVIII. O Islamismo também pro-
íbe a tatuagem. No Alcorão está escrito: “A tatuagem é uma marca satânica, causa
maldição, as abluções rituais não tem efeito nenhum sobre a pele tatuada” (Vázquez
Hoys, 2003, p. 523, 524, 530).

26
Gênero Trans e Multidisciplinar

3. A TRAJETÓRIA DO TATUADOR
Durante muito tempo, a tatuagem no ocidente se relacionou com os universos
considerados marginais: dos ladrões, assassinos, prostitutas e delinquentes (Le Bre-
ton, 2004).
As primeiras propostas de interpretação científica a respeito das marcas corpo-
rais partem da escola positivista italiana com Cesare Lombroso, em 1876, em seu
livro El hombre delincuente. Lombroso desenvolveu todo um postulado pautado na
criminalística e apoiado pela antropologia, psicologia, medicina, sociologia e direito
para explicar o que estaria por trás daquele que busca uma tatuagem. Em sua opi-
nião, havia uma conduta antissocial, fundamentalmente as que eram consideradas
como delitos, tentando explicar assim as causas ou os fatores que levavam o homem
a se tornar um delinquente (Alvarez Licona, 1998).
Os métodos usados para tatuar eram, inicialmente, ditos “pré-históricos”, con-
siderados não higiênicos e inadequados pela propensão à infecção:

(...) no século XIX os médicos assinalavam inflamações, gangrenas, transmissão


de sífilis, erisipelas, fleimões, adenites, etc., por causa de instrumentos não este-
rilizados que serviam em todos os clientes ou às mãos sujas dos tatuadores que
trabalham muitas vezes nos bares. (Le Breton, 2004, p. 223-224)

No início do século XX, os bons tatuadores “eram aqueles que só faziam uma
picada na pele, ao passo que os inábeis chegavam a fazer até três para que a tatuagem
ficasse nítida, o que resultava em um extravasamento de sangue” (Da Cruz Ribeiro,
1912, p. 47).
Como se pode perceber, os procedimentos empregados na tatuagem eram bas-
tante rudimentares e muito dolorosos, mas ao que parece a valorização da dor para
esses grupos estaria relacionada a sinais de resistência, virilidade e sedução.
Inicialmente bastante marginalizado, o tatuador trabalhava nas ruas ou em qual-
quer lugar onde houvesse pessoas interessadas, e costumava levar consigo seu mate-
rial de trabalho, que consistia na máquina de tatuar, agulhas, tintas e rolos de papéis
com desenhos muitas vezes confeccionados por ele ou copiados de outros tatuado-
res, usados para atrair os clientes e motivá-los a se tatuarem.

(...) Conta-se que nesta época, no Rio de Janeiro, um tal Madruga é o chefe dos
tatuadores e que quase todos os seus auxiliares são crianças vagabundas, que visi-
tam prostíbulos, quartéis, fundos de tabernas e todo lugar que reina a ociosidade,
em busca de clientes. O tal Madruga tem no seu corpo todo a idealização do seu
cérebro doentio, desde a simples tatuagem religiosa ou amorosa, até as eróticas ou
extravagantes. (Da Cruz Ribeiro, 1912, p. 7)

27
Fabiana Maria Gama Pereira

Dos poucos registros a respeito de tatuadores e de tatuagens encontrados no


Amsterdan Museum Tattoo, os mais antigos são os desenhos pintados em papel
pelo tatuador Lew Alberts em 1905, nos quais se chama a atenção para o fino de-
talhe do traçado, havendo destaque para figuras que representam morte ou pecado:
caveira, diabo e serpente. Em 1935, os desenhos de Charlier Wagner enfatizavam as
imagens tatuadas na época pelos marinheiros, pela presença do navio, de mulheres
quase dentro d’água e de morte, simbolizada pela figura feminina que chora diante
de um túmulo.
Como se pode perceber, esses registros apontam para símbolos que evocam
diretamente a história da tatuagem no Ocidente, vinda através dos marinheiros (ho-
mens) que muitas vezes nem voltavam porque eram mortos em viagens, ressal-
tando-se aí o choro da mulher que perde o companheiro, o símbolo da morte, do
pecado, da relação de atração e traição entre a mulher e o mar, etc. Neste sentido,
a mulher (frágil, sofredora e passiva, que aguarda o marido voltar vivo de suas via-
gens) fica nesse lugar de esperas e incertezas como relação ao marinheiro (homem,
aventureiro, corajoso e forte) que se arrisca em águas turbulentas e se aventura em
outros mundos, o que ele registra tanto em sua memória como em sua pele.
Os primeiros registros de tatuadores ocidentais que comercializaram a tatuagem
e fizeram dela um tipo de trabalho datam do final da década de 1930 aos anos 1950.
Milton Zeis já anunciava como se poderia ganhar dinheiro sendo um tatuador, ven-
dendo instruções feitas por ele sobre todo processo de tatuar, dos procedimentos
aos materiais: tintas, agulhas, máquinas e papéis para desenho. Em 1940, nos Es-
tados Unidos, o tatuador Percy Waters comercializava desenhos em uma folha de
papel que vendia a outros tatuadores10.

IMAGEM 3 - Desenhos do tatuador Charlie Wagner (1935)

10. Disponível em: <http://www.amsterdamtattoomuseum.com/>. Acesso em: 22. out. 2012

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Gênero Trans e Multidisciplinar

A tattoo prosperou na década de 1970 e aos poucos foi saindo das ruas e se in-
corporando a lugares comerciais próprios11. Pouco tempo depois o piercing passou
a fazer parte deste universo e com ele houve algumas transformações, sobretudo no
que se refere aos usos que estão associados a essas práticas. Apesar de o piercing ter
surgido no Ocidente quase um século depois da tatuagem, há dados de povos que
furavam o nariz com troncos de madeiras há cerca de 4.500 anos (Lautman, 1994).
Perfurar o corpo é um tipo de prática bastante antiga em outras culturas:

Una exploración de nuevas sensaciones a base de imperdibles en las cejas, argollas


de ombligo, bolas en las partes (Palang). Los Veddas de la India se traspasaban
el cuerpo cinco mil años antes de Cristo. Los Nunivak de Alasca se perforaban
diversas partes para ser animales, no para imitarlos superficialmente. Como los
Matis de la Amazonia peruana y brasileña, que se llenan la nariz de agujeros para
meter ahí púas finísimas: buscan tener los mismos bigotes de jaguar. En el pier-
cing destacan numerosas tribus de Papuasia que estiman las perforaciones del
cuerpo humano con propósitos ornamentales. Se pasan colmillos de cerdo por
el tabique nasal, o últimamente bolígrafos, y usan latas de caballa como pulseras.
Por el choque cultural, algunos Masai llevan carretes fotográficos en las orejas y,
si les caben, que a veces es posible de tanto estirar el lóbulo, hasta latas de piña.
(Pancorbo, 2006, p. 417)

Apesar das conotações próprias do piercing, se comparado à tatoo ele ainda é


como “prática inferior”, sobretudo porque não demanda tanta técnica e, segundo
alguns tatuadores entrevistados, “qualquer pessoa é capaz de aplicá-lo, basta um pouco
de treinamento”.
Como já foi colocado, nesse universo o tatuador é a figura central e quase tudo
gira em torno dele. Sua função vai mais além da tatuagem, pois geralmente ele admi-
nistra seu próprio negócio, ou seja, o estúdio de tatuagens e body piercing.
O que chama a atenção é que em volta destes tatuadores, considerados os verda-
deiros mestres da body art, estão os piercers. Enquanto a tatuagem é descrita como um
tipo de arte, o piercing está muito mais relacionado com a sedução e a sexualidade,
sendo comum encontrá-los expostos em vitrines ao lado de brinquedos eróticos,
preservativos, etc.
Diferentemente de quem usa o piercing por vaidade e estética, a pessoa que
decide colocar um desses objetos no pênis, na glande, na vagina ou nos mamilos e,
em certos casos, na língua, tem como objetivo principal proporcionar e intensificar
as sensações de prazer durante a relação sexual. Em alguns contextos, esses tipos
de piercings são considerados bastante ousados, já que deixam de ser apenas um
adorno estético para se tornar uma espécie de jogo daqueles que procuram cumpli-

11. Atualmente há muita inspeção nos estúdios de tatuagens, o que levou a uma mudança significativa na
maneira de trabalhar com a técnica, sobretudo no que se refere à higiene e transmissão de doenças.

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Fabiana Maria Gama Pereira

cidade erótica. Apesar de a sexualidade ser um fenômeno biológico, o erotismo faz


parte do humano e, por meio dessa capacidade, o indivíduo é levado a buscar um
objeto para o converter em objeto de desejo. As partes do corpo que atuam como
estímulos eróticos são em grande medida sociais e estão influenciadas pela moda.
Certa vez, mostrando alguns de seus piercings, Bruno (21 anos), um recepcio-
nista do estúdio de tatuagens e body piercing na Boa Vista, abre a boca e aponta para
a língua. Em seguida diz:

Tenho esse na boca porque eu gosto. Os outros seriam mais uma forma de estimular sexualmente.
E isto eu gosto muito... sexo. Então, porque não fazê-lo? Por exemplo, eu faria um na sobran-
celha ou aqui (aponta ao canto da boca), mas não por conta da bobagem que tá todo mundo
fazendo. Me parece bem, na parte sexual (faz um gesto em direção ao seu pênis, como se estivesse
se referindo ao prazer genital). Se eu tenho uma namorada, eu daria a ela o maior prazer sexual
possível. Igual comigo, se eu quero ter mais prazer sexual, pode ser com o piercing. Eu também re-
corro a essas coisas, porque eu acho que é sadio. Se você tem um namorado que sexualmente é bom,
então queres que esteja contigo, também tens que dar algo, sabes... E também todos temos gostos,
fantasias e coisas que gostamos de provar. E por que não? Por que negar à tua namorada ou a
quem quer que seja, não sei, algum gosto? Algum desejo? Tem que ensinar a ela a jogar também.

Segundo a literatura especializada, a prática não é exclusiva do Ocidente. No sul


da Índia acredita-se que o verdadeiro prazer não pode acontecer se não houver a
perfuração do pênis. Depois de furado com um instrumento pontiagudo, o jovem
permanece na água até parar de sangrar. Para evitar infecção deve ter relações se-
xuais intensas por toda a noite. Nos locais perfurados são introduzidos pedaços de
junco cada vez maiores, sendo a ferida lavada com mel. Atualmente, essa experiência
também tem sido praticada em algumas cidades europeias, norte-americanas e cana-
denses (Pancorbo, 2006).
De acordo com o que foi observado durante a pesquisa de campo, também é
possível constatar que há uma relação entre os significados associados ao piercing
genital e o gênero. Para os homens, de uma maneira geral, era sempre mais fácil falar
a respeito e, em geral, seus discursos apontavam para uma relação desses adornos
com os signos associados à masculinidade, como “força” e “potência sexual”. Já
com relação às mulheres, parecia haver alguns tabus, inclusive por parte de piercers do
sexo feminino, que mesmo lidando com este tipo de prática diariamente, sentiam-se
envergonhadas quando se tratava delas mesmas, como dizia Andrea (19 anos), piercer
de um estúdio em Boa Viagem:

(...) é engraçado porque quem vai fazer fica morrendo de vergonha. Eu queria fazer um,
mas eu tenho vergonha de fazer. Eu, namorando com Vinícios (se referindo ao tatuador
com quem mantém uma relação afetiva), não tenho coragem de fazer... não sei, é

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Gênero Trans e Multidisciplinar

porque é tão constrangedor, você pensar que vai ficar pelada com a perna aberta pra colocar
um piercing (risos).

Ao mesmo tempo em que ela se refere naturalmente ao uso destes adornos por
parte de homens, demonstrando inclusive que já tem suficiente experiência nes-
ta prática, com relação às mulheres se recusa a perfurá-las nas partes íntimas, por
sentir-se insegura: “Se chegar uma mulher pedindo pra eu colocar um piercing genital, eu não
vou fazer. Eu não tenho prática, tenho medo de pegar um vaso que não pode”. Como já obser-
vou Pierre Bourdieu (1982), é prática corrente os indivíduos se identificarem com
os seus grupos de referência. A eleição de amigos, namorados, geralmente se faz
no mesmo grupo e, no caso dos tatuadores e piercers, muitas vezes se dá no próprio
local de trabalho.
Dentro do estúdio de tatuagem a cabine onde os técnicos trabalham é o local
onde se pode ter um maior acesso à intimidade dos interlocutores, é onde passam
grande parte dos seus dias trazendo para dentro de tais espaços memórias de suas
vidas, de seus cotidianos: fotos, músicas, objetos pessoais, etc. Na cabine, tatuadores
e piercers assumem o controle da situação: são eles que ditam as regras. Mas para
além da questão do poder coloca-se a sexualidade, as modificações corporais mos-
tram a nudez. Naquelas salas privadas vivenciam momentos íntimos e secretos, em
geral, irreveláveis, e que guardam para si. Ali, o técnico tem contato com peles e par-
tes íntimas, manuseia seios, ventres, bocas, vaginas e pênis. Nesse sentido, trata-se
de um trabalho delicado, em que há o contato físico com o corpo do outro, lugar de
sua intimidade, conforme aponta Paulo (40 anos), tatuador da Conde da Boa Vista:
“Eu levo tanto tempo trabalhando nisso. Quando eu comecei sim, eu tinha aquele negócio. Pô, vou
tatuar uma bundinha, vou tatuar um peitinho... pô eu era novo, tinha aquela ideia. Hoje em dia
eu já tatuei tanto que já me tornei um ginecologista”.
Na opinião de Le Breton (2004), a relação é algumas vezes vivida sob a forma
de um contato sexual sublimado, citando alguns autores que comparam a tatuagem
a um ato sexual entre um parceiro ativo e outro passivo, que se conclui através da
injeção de tinta na pele. Segundo o autor, há relatos que chegam a descrever casos
de amor entre o tatuador e seu cliente, inclusive citando homens em que a tatuagem
os levou a um orgasmo.
De acordo com o que foi observado empiricamente, a entrada das mulheres nes-
te universo se dá geralmente a partir da relação afetiva com o técnico. Muitas vezes
trabalham inicialmente como recepcionistas e, com o tempo, vão aprendendo a per-
furar através do piercing12. Algumas interlocutoras que se tornaram piercers também
acham que, nesse universo, muitas passam a ser conhecidas e ter visibilidade por

12. A grande maioria passa a trabalhar como piercer, sendo ainda muito pequeno o número de tatuadoras.

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Fabiana Maria Gama Pereira

intermédio de um homem e não pelos seus próprios méritos, até porque, segundo
elas, muitos dos técnicos não admitem que elas se sobressaiam mais do que eles.
No grupo aqui estudado, constituído por 64 pessoas que fazem uso de tatua-
gens, piercings e, em alguns casos, de intervenções corporais consideradas radicais,
verificou-se uma predominância de homens (62,5%) em relação a mulheres (37,5%).

GRÁFICO 1
80

70
62,5
60

50

40 37,5

30

20

10

0
Masculino Feminino

Contrariando a opinião da maioria das mulheres, a tatuadora Emília (23 anos)


não compartilha desse ponto de vista. Mesmo admitindo fazer parte de uma mino-
ria, se sente bastante respeitada no meio em que trabalha, pois, segundo ela, o tatua-
dor, independentemente do gênero, é reconhecido pelo seu trabalho, sendo isso que
leva a pessoa a ter reconhecimento no meio13.

13. Durante o trabalho de campo realizado, a pesquisadora teve contato com 21 tatuadores; desses,
somente 1 mulher.

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Gênero Trans e Multidisciplinar

IMAGEM 4 - Tatuador fazendo uma tatuagem num cliente e sua companheira


observando o trabalho

4. PONTUAÇÕES
O ato de marcar o corpo é uma prática exclusivamente humana e presente em
distintas culturas. Nas sociedades tradicionais a tatuagem, a escarificação, a perfura-
ção do corpo, entre outros costumes, estiveram relacionados a diferentes sentidos
e significados culturalmente atribuídos, exprimindo-se coletivamente por meio de
atividades simbólicas diversas: ritos de passagem, técnicas de embelezamento, luto,
distinção social, hierarquias, etc. No Ocidente houve uma releitura e ressignificação
das modificações corporais, visualizadas tanto através de seus aspectos negativos
quanto positivos.
No universo pesquisado, os tatuadores se constituem numa maioria. Quase to-
dos se dedicam exclusivamente à tatuagem e alguns são donos dos ateliês. Apesar de
ser um mundo masculino, há uma corte de mulheres que os rodeiam, seja trabalhan-
do em funções burocráticas, seja aprendendo a técnica de aplicação de piercings,
seja compondo o espaço de sedução.
O tatuador entra em cena primeiramente como alguém que se dedica a um cam-
po que é da ordem da marginalidade. Tentativas de análise científicas interpretaram
a tatuagem como uma técnica relacionada a indivíduos delinquentes. Aos poucos,
o tatuador vai deixando esse lugar de exclusão, ganhando espaço e visibilidade na
sociedade. Para além do técnico, passa a ser empresário.
As mulheres pouco se destacaram neste meio e, muitas vezes, estiveram ao lado
do tatuador, responsável pela arte em seus corpos. Atualmente, muitas já levam

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Fabiana Maria Gama Pereira

suas peles adornadas, mas ainda desempenham um papel secundário. A maioria se


encontra subordinada ao tatuador para quem trabalha.
O ofício de tatuar é ainda majoritariamente desempenhado por pessoas do sexo
masculino, o que comprova que o universo dos que trabalham com a modificação
corporal ainda é dominado por homens, o que não se vê tanto entre os usuários, já
que estas práticas parecem atrair igualmente pessoas de ambos os sexos. O que se
constata, por sua vez, é que a maneira de lidar com estas práticas varia, sobretudo
em função do gênero.
Riscar, marcar ou perfurar peles passam a ser a formas de se distinguir como
técnico da modificação corporal. Nos desenhos e adornos a pessoa também cons-
trói sua identidade, seja como tatuador, piercer ou adepto. Foi observando as relações
entre os atores sociais, bem como o que perpassa o ato de tatuar ou de perfurar,
que foi possível estabelecer uma relação entre a prática com as categorias de gênero.
Nesse sentido, percebe-se que apesar de haver uma mudança significativa nos
significados e representações relativos às modificações corporais, ainda é um uni-
verso cujos tatuadores são os que têm maior visibilidade. No entanto, também se
percebe que o discurso feminino entra em cena. São poucas as tatuadoras, mas elas
existem. Talvez não tenham a visibilidade do tatuador, porém nos pequenos relatos
coletados já mostram que o profissionalismo independe de gênero. A própria histó-
ria das tatuagens, rodeada de estigmas, mostra que a mulher tatuada ou a tatuadora
foi ainda mais excluída do que o homem e isso parece ainda ecoar neste meio. Mas
com um tempo a sociedade perceberá que a habilidade para trabalhar na pele é uma
qualidade que poucos possuem, sendo necessário que este tipo de arte seja mais
valorizado. Isso é o que se espera!

REFERÊNCIAS

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tudio de las estrategias de adaptación en una institución total. 1998. Dissertação
(Mestrado em Antropologia) – Faculdade de Ciências Humanas, Universidade
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Gênero Trans e Multidisciplinar

DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo. São Paulo: Perspectiva, 1966.


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LAUTMAN, Victoria. The new tattoo. New York: Abberville Press, 1994.
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porais. Lisboa: Miosótis, 2004.
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sentações do corpo feminino entre mulheres de classe média alta na cidade de Re-
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ções interetnográficas entre Recife e Madri. 208 f. Tese (Doutorado em Antropolo-
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“Stoppa tatoo da pedra”. Florianópolis: Udesc, 2001.
VÁZQUEZ HOYS, Ana Maria. Arcana mágica: diccionario de símbolos y térmi-
nos mágicos. Madrid: Universidad Nacional de Educación a Distancia, 2003.
VIGARELLO, G. Historia de la belleza: el cuerpo y el arte de embellecer desde el
renacimiento hasta nuestros días. Buenos Aires: Nueva visión, 2005.

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CAPÍTULO III
UMA PERSONAGEM DE MUITAS
FACES : UM OLHAR SOBRE O FILME
MADAME SATÃ DE KARIM AÏNOUZ1
Alberto da Silva2

Nascido em 1900, apenas doze anos após a abolição da escravatura, João Fran-
cisco dos Santos tornou-se uma figura conhecida e controvertida do Rio de Janeiro,
acumulando várias características extremamente contraditórias vistas por um olhar
mergulhado nos costumes da sociedade brasileira da primeira metade do século XX:
homem negro, viril, transformista, homossexual, cafetão, ladrão, malandro e assassi-
no. Assumindo todas essas contradições, João Francisco confundiu e embaralhou as
mentes desse período encarnando uma enigmática mistura inscrita sobre uma linha
tênue entre o que se esperava do comportamento masculino e do feminino. Nesse
ínterim, uma série de veículos construíram uma imagem mítica do travesti que, a
partir de 1938, ficou conhecido pelo nome de Madame Satã: apelido tirado de uma
fantasia com qual ele desfilara no carnaval, por sua vez inspirada na personagem do
filme homônimo, Madame Satan (1930) de Cecil B. DeMille.
Neto de escravos, João Francisco ou Madame Satã vivia em uma família pobre
de 17 irmãos no Nordeste brasileiro. Chegando ao Rio de Janeiro em 1907, após
ter sido trocado por um burro, segundo ele, por sua mãe, João se instala no bairro
boêmio da Lapa, conhecido na época pela prostituição, malandragem e pelo jogo.
Personagem controvertido e inclassificável, Madame Satã sempre incomodou os
olhares influenciados pelos modelos normativos, pois se ele assume publicamente
sua homossexualidade, participando em vários shows de travesti, ele confunde e
incomoda o que se poderia esperar do estereótipo da “bicha” frágil e afeminada,
encarnando a figura do malandro, temido por todos do bairro: além de um exímio
capoeirista, ele ameaçava seus desafetos e até mesmo a polícia com uma lâmina de
gilete amarrada em um cordão.

1. Este artigo é uma versão traduzida do francês do texto “Le Carrefour performatif de genres dans
Madame Satã de Karim Aïnouz”, publicado na revista Inveses – Littérature, Arts & Hommosexualités, n° 12,
Châtillon : Société des amies d’Axieros, 2012, p. 23-34.
2. Professor na Université Rennes 2 e na Université Paris VII. Doutor em Estudos Ibéricos pela Univer-
sité Paris IV – Sorbonne, e em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Membro do Grupo de
Pesquisa Centre de Recherche Interdisciplinaire sur les Mondes Ibériques Contemporains (CRIMIC) – Uni-
versité Paris IV – Sorbonne. alberto1789@yahoo.fr

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Fabiana Maria Gama Pereira

Segundo o jornalista Mauro Dias, Madame Satã tornou-se um herói de uma


Lapa mitológica (Dias, 2002), símbolo da boemia do Rio de Janeiro entre os anos
1940 e 1950, inspirando mesmo o compositor Noel Rosa, outra célebre figura artís-
tica e que era frequentador assíduo do bairro boêmio, que compôs o samba Mulato
Bamba. Na letra desse samba, o compositor descreve uma personagem avessa ao
trabalho: “(Vive às custas do baralho. Nunca viu trabalho), mas também corajosa e
destemida (ele sabe fazer frente a qualquer valente) e sem nenhum interesse pelas
mulheres (Mas não quer fazer fita, nem com mulher bonita)”.
Em 1974, o cineasta Carlos Antônio Fontoura dirige A Rainha Diaba, um filme
que nos remete à personagem de Madame Satã, colocando em cena uma guerra
de dois bandos, penetrando no bas-fonds do tráfico de drogas do Rio de Janeiro.
Fortemente inspirado por uma estética tropicalista-kitsch repleta de plumas e pae-
tês, Fontoura propõe um universo barroco e delirante no qual a personagem título
interpretada pelo ator Milton Gonçalves é o líder da ação marginal. Escritos pelo
dramaturgo Plínio Marcos, os diálogos no filme reproduzem uma linguagem colo-
quial da rua, dando uma dose naturalista, em contraposição a uma Rainha Diaba
que, com sua banda de travestis, impregnam e marcam o filme com uma atmosfera
anárquica e cômica. Entretanto, a personagem desta “rainha pop gay” evita as cila-
das da caricatura, pois ela se insere em uma mis en scène que privilegia os extremos e
excessos, oscilando entre o pastiche estereotipado e uma violência onipresente, uma
bela alegoria de um Brasil sob os anos de chumbo, como bem resumiu o jornalista
Telmo Martinho, em uma crítica da época : “Num envelope fechado, o grotesco de
papel-crepom” (Martino, 1974).
Segundo o próprio Fontoura, mesmo se ele nega a inspiração no lendário per-
sonagem da Lapa, essa versão de uma Madame Satã nos anos 1970 se inscreve em
um movimento do “interior em direção ao exterior”. Trinta anos depois, o diretor
Karim Aïnouz propõe uma nova versão que toma uma direção oposta, ou seja, que
vai “do exterior em direção ao interior”. Num primeiro momento em seu projeto, o
filme de Aïnouz procurava a veracidade de uma reconstituição dos fatos biográficos
da personagem, baseada em uma minuciosa pesquisa documental. Entretanto, o pro-
jeto tomou outros rumos, pois, ao invés de uma reconstituição social de uma época,
o cineasta terminou concentrando a narrativa de seu filme no personagem principal
que, segundo Karim Aïnouz, é “um mito inexplorado. Uma personagem que é um
Jean Genet carioca e um Robin Hood dos trópicos”, ainda segundo o diretor, ele não
tinha a intenção de um “épico nem puramente uma biografia, mas, lúdica, represen-
tando a maneira como Satã abordaria sua própria vida” (Campion, 2003).

1. MADAME SATÃ: NO CENTRO DO OLHAR


Em seu filme, ao invés de focalizar o mito de Madame Satã, o diretor Karim
Aïnouz concentra sua narração fílmica no início dos anos 1930, gênese da persona-

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Gênero Trans e Multidisciplinar

gem, antes de João Francisco dos Santos cometer o crime que o levou à prisão. Tra-
ta-se de focalizar, centralizar o olhar sobre a personagem, pois, segundo o diretor:

Se você ficar olhando para uma pessoa durante três minutos há algo que vai, que
é quase sublime, religioso. É muito emocionante você poder ficar olhando para
uma pessoa durante três minutos. Não sei se é só uma questão intuitiva minha ou
se é uma questão também do tempo em que vivo, entendeu? Acho que no tempo
em que eu vivo, a gente quase não para e olha. E eu gosto de fixar o olhar... (...)
(Campion, 2003)

No início do filme, os nomes do elenco e da equipe técnica desfilam através


de letras coloridas, brilhantes em forma de paetês. Na trilha sonora, as risadas, os
gritos de alegria e excitação completam essa atmosfera carnavalesca que contrasta
impressionantemente com o que vem a seguir: um corte brusco nos apresenta em
um primeiro plano fixo a personagem principal da história. No centro do quadro,
a personagem interpretada pelo ator Lázaro Ramos mostra vários hematomas e
ferimentos no rosto: uma evocação a uma férrea disputa. Enquanto ele mantém o
olhar fixo em direção à câmera, uma voz masculina em off lê os autos de um dos
processos de Joaquim Francisco, datado de 12 de janeiro de 1932, como afirma a
própria voz. A narração apresenta uma descrição da personagem acusada:

homossexual (“É pederasta passivo, usa as sobrancelhas raspadas e adota atitudes


femininas alterando até a própria voz”); vive em um ambiente mal frequentado
(“É visto sempre entre pederastas, prostitutas, proxenetas e outras pessoas do mais
baixo nível social”); mas o narrador nos apresenta igualmente sua agressividade
(“o sindicado já respondeu a vários processos, e sempre que é ouvido em cartório
provoca incidentes e agride mesmo os funcionários da polícia”) e os seus atos ilíci-
tos (“Ufana-se de possuir economias. Mas como não aufere proventos de trabalho
digno, só podem ser estas economias produtos de atos repulsivos ou criminosos”).

Todos esses elementos constroem um discurso que legitima sua inadequação à


sociedade (“Não gosta do convívio da sociedade por ver que esta o repele dado os
seus vícios”): uma visão exterior construída através um discurso normativo.
Em seguida, uma elipse nos conduz a alguns anos atrás, quando João Francisco
trabalhava como assistente de uma cantora em um dos cabarés do Rio de Janeiro.
Diferentemente da face inchada que aparecera na sequência anterior, o rosto da per-
sonagem principal aparece em close-up, envolvido em uma cortina cintilante (como as
letras que apareceram no início do filme) através da qual ele assiste à atriz em cena.
Os planos se alternam entre a cantora que canta Nuits d’Alger, célebre canção de
Josephine Baker, e João Francisco que se deleita em imitá-la, seguindo não apenas
os gestos, mas também a letra da canção daquela que seria seu maior ídolo. Se nessa

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Fabiana Maria Gama Pereira

sequência João performa os gestos da cantora e a delicadeza da canção, na cena


seguinte, Nuit d’Alger continua a embalar a sequência, que dessa vez mostra uma
silhueta masculina que desce as escadas do estabelecimento em direção a uma rua
escura. Clara ruptura com a sequência anterior, completamente distante de qualquer
delicadeza, a personagem usa um paletó branco e chapéu panamá e nos transpor-
ta pelas ruas da Lapa, no meio dos risos e da agitação das prostitutas em busca
de clientes. Mais tarde, entrando em um bar no meio de uma festa, para defender
a prostituta Laurita, interpretada pela atriz Marcela Cartaxo, João Francisco luta
contra um homem que importunava a protegida, uma luta da qual ele sai vencedor,
principalmente por ser um exímio capoeirista.
Nessas primeiras sequências, Karim Aïnouz delineia as várias facetes de sua per-
sonagem: ao mesmo tempo em que ela mima os gestos sutis e delicados da cantora
no cabaré, ele exerce com propriedade o papel de um malandro, modelo masculino
arraigado no imaginário coletivo brasileiro, presente na literatura, teatro, cinema e
música, principalmente nas letras dos sambas dos 1930 e 1940, que fazem parte
igualmente da trilha sonora do filme3. Tipo masculino complexo, o malandro vive
na permanente improvisação, utilizando os recursos através de uma desenvoltura
pessoal que flerta com a marginalidade sem ser completamente marginal, com a de-
sonestidade sem ser totalmente delinquente, inserindo-se, sobretudo, num escárnio
da ordem estabelecida (Da Matta, 1983, p. 20). Na verdade, podemos pensar a figura
do malandro como o fruto de uma série de estereótipos que num primeiro momen-
to são utilizados para designar os ex-escravos ao final do século XIX. Encontrando-
-se em uma situação de miséria, sem trabalho nem qualificação, a impossibilidade
de subsistência e racismo obriga-os a viver precariamente de pequenos biscates.
Nesse contexto, os antigos escravos “começam a ser considerados como uma mão
de obra sub-qualificada, na verdade, principalmente como um vagabundo, sem res-
ponsabilidade e inútil” (Florestan, 1965, p. 58). Outra possibilidade seria a de viver
sustentados pelas mulheres que conseguem encontrar emprego como domésticas
nas casas dos antigos senhores: mais uma característica que faz parte desse modelo
performativo masculino, a do sedutor e mulherengo4.
Nos anos 1930, a figura do malandro ganha ainda uma popularidade nas letras
de samba que citam e fazem várias homenagens a essa figura masculina (Matos,
1982). Esse período da história do Brasil é evocado com refinamento no filme de
Karim Aïnouz, seja pela reconstituição das ruas da mítica Lapa, seja na trilha sonora

3. Sobre o Malandro na cultura brasileira ver igualmente Cândido, “Dialética da Malandragem (caracteriza-
ção das Memórias de um sargento de milícias)”, Revista do Instituto de estudos brasileiros, n.8, São Paulo,
USP, p. 67-89, 1970; Rocha, “Navalha não Corta Seda: Estética e Performance no Vestuário do Malandro”,
Revista do Departamento de História da UFF, v. 10, p. 133-154, 2006.
4. Ver Butlher, Le Pouvoir des mots: Politique du performatif e Butlher, Problemas de Gênero. Femi-
nismo e subversão da identidade.

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Gênero Trans e Multidisciplinar

que atravessa o filme e contribui para criar uma atmosfera alegre e boêmia em con-
traponto com a miséria e adversidades nas quais vivem as personagens.
A personagem principal vive em dois mundos completamente antagônicos: ao
perseguir o sonho de uma carreira artística, João encarna a delicadeza e a doçura;
por outro lado, ele é obrigado a se confrontar com o racismo e preconceito, os quais
ele enfrenta com a agressividade e a violência das ruas. Dois mundos bem delimita-
dos na mise en scène proposta pelo diretor, divididos pelos arcos da Lapa filmados em
contraplongée e que aparecem em varias sequências estabelecendo uma delimitação
entre o luxo e a riqueza de um Rio de Janeiro enquanto capital federal e as ruas es-
curas e os botequins insalubres do bairro da Lapa.
No meio desses dois universos, a casa do protagonista representa ainda outras
possibilidades. Em várias sequências, ele aparece ao lado de sua protegida, a prosti-
tuta Laurita, e sua filhinha: seja na praia ou em um parque, momentos que revelam
um João Francisco doce e paternal. Os três dividem o mesmo teto com Tabu: per-
sonagem muito afeminado interpretado por Flávio Bauraqui, encarnando o estere-
ótipo da “bichinha”, na imitação dos trejeitos femininos.
Essa personagem se constrói como um espelho de Madame Satã; a fragilidade
de Tabu representa, de uma certa maneira, uma possibilidade que João Francisco
rejeita. As duas personagens se inserem em uma constante relação sadomasoquista,
em uma tensão inscrita sobre um tênue fio de uma profunda violência, complexifi-
cada por uma atmosfera que oscila entre a coqueteria e a sensualidade. Uma sensu-
alidade que ocupa um lugar importante na mise en scène do cineasta que, é reforçada
na pluralidade dos registros performáticos da personagem principal.

2. O CORPO NO CENTRO DO OLHAR


Ambientado no bairro da Lapa, o filme Madame Satã privilegia uma minuciosa
reconstituição do velho bairro dos anos 1930, além de colocar em evidência a in-
terpretação dos atores graças à fotografia de Walter Carvalho. Se no lançamento do
filme a mise en scène foi percebida por alguns críticos como estatizante, acreditamos
que as escolhas estéticas complexificam e nos aproximam do personagem principal.
Segundo o crítico Joaquim Ferreira dos Santos, o filme de Aïnouz é fortemente
influenciado por uma estética do cinema underground dos anos 1970, cujo Cinema
Marginal foi, no Brasil, uma referência incontornável. Influenciados pelo desencan-
tamento político dos anos ditatoriais, alguns cineastas brasileiros encontram nos
escombros da cultura pop americana um meio de contestação política e artística em
resposta ao desenvolvimento desenfreado da cultura de massa. Em Madame Satã,
esses escombros preenchem de sentidos a narrativa fílmica, como por exemplo,
os lugares insalubres filmados na obscuridade (a velha casa onde Francisco e seus
companheiros moram, os bares e as ruas da Lapa), mas também algumas imagens

41
Fabiana Maria Gama Pereira

desfocadas e uma iluminação que fazem explodir as cores presentes no filme. Como
afirmara Joaquim Ferreira dos Santos, a encenação proposta por Karim Aïnouz é
“o resultado [de] uma vanguarda bem acabada, disposta a descer aos infernos da ex-
periência estética e humana, mas respeitosa de que essa aventura seja compreendida
pelo público” (Dos Santos, 2002, p. 2).
Algumas sequências, ao oscilar entre as imagens bem enquadradas e outras des-
focadas, metaforizam a instabilidade do protagonista quando elas se dissolvem se-
guindo o fluxo de suas emoções, em constante contradição entre o sonho da vida
artística e a dura realidade de sua condição de homem pobre, negro e homossexual
dentro de um contexto de uma sociedade racista e machista. Se o cineasta opta
sistematicamente por um enquadramento em close, o corpo da personagem prin-
cipal transborda várias vezes do quadro, mais uma vez criando uma metáfora que
nos remete por um lado aos excessos de uma personalidade instável e vulcânica, e
por outro, à dificuldade de canalizar os sentimentos de João Francisco. Nesse caso,
todos esses elementos que caracterizam a encenação humanizam e impedem o es-
pectador de qualquer tentativa de julgamento. Contrariamente a uma visão exterior,
feita de ideias preconcebidas, como apresentada no texto do processo lido no início
do filme, Karim Aïnouz propõe uma aproximação da personagem através de uma
demonstração do cruzamento de múltiplas possibilidades performativas inscritas
em um valor positivo, que, aliás, são igualmente o resultado de uma resistência à
construção sociocultural e uma reação corajosa às imposições de modelos aceitáveis
e esperados de raça, classe e gênero.
Nesse contexto, o corpo da personagem aparece como uma possibilidade de
expressão (Azeredo, 2002, p. 2). Segundo o cineasta, “a paisagem principal do filme
é o corpo. Ele é a tela onde a personagem se expressa, não só como travesti, mas
pela capoeira, pela presença” (Werneck, 2002, p. 1). Uma presença construída pela
iluminação, fotografia e mise en scène, mas também pela forte interpretação do ator
Lázaro Ramos. Desde os movimentos de capoeira, passando pelas sensuais sequ-
ências de amor com seu amante delinquente até as coreografias em todas as cenas
de cabaré, o ator oferece à personagem uma constante tensão que caracteriza toda
a encenação do filme; sempre no limite entre ternura e explosão, violência excessiva
e sofrimento.
Tendo em vista a história da personagem e a situação dos negros no Brasil após
a abolição da escravidão, o corpo foi, aos olhos do ator Lázaro Ramos, a única arma
de resistência e de sobrevivência utilizada por Madame Satã, “seja através da capo-
eira, da dança ou da exploração da sensualidade” (Arantes, 2002, p. 1). A partir do
final do século XIX, a passagem de uma economia escravocrata para uma mão de
obra assalariada confina uma numerosa população de negros e mestiços em espaços
bem delimitados e definidos, reinscrevendo seus corpos em estereótipos generefi-

42
Gênero Trans e Multidisciplinar

cados5 e sexuados. Nesse contexto, como questiona Judith Butler, “será que ‘o cor-
po’ em si é modelado por forças políticas com interesses estratégicos em mantê-lo
limitado e constituído pelos marcadores sexuais?” (Butlher, 2003, p. 185). É assim
que a figura da mulata, inscrita em uma sexualidade excessiva6, e a do malandro,
enganador, traiçoeiro e preguiçoso, se inscrevem no imaginário da cultura brasileira,
respectivamente, enquanto um registro do poder sexual e o da marginalidade. Se o
corpo aparece sempre como um simples veículo sobre o qual são inscritos os sig-
nificados culturais, a personagem de Madame Satã proposta pelo filme confunde,
distorce, complexifica essas significações e cria vários obstáculos a toda tentativa de
apropriação e interpretação.
Por outro lado, Karim Aïnouz opta por traçar o percurso da personagem antes
de sua mitificação e o insere em uma perspectiva nacional popular enquanto ele-
mento de certa “brasilianidade”, como ressaltara o pesquisador Hernani Heffner
(Heffener, 2002, p. 2). Além da valorização do carnaval, reivindicado inúmeras vezes
como um espaço possível de inversão social, política e sexual na cultura brasileira,
em via de “mundo às avessas bakhtiniano”, o filme possui igualmente uma trilha
sonora repleta de sambas que representam a força da cultura popular no país.
Todas essas questões estão presentes em uma das últimas sequências do filme,
quando João Francisco se prepara para entrar em cena. Em um primeiro momento,
essa cena estabelece um contraste com as primeiras sequências do início do filme,
nas quais a personagem principal admirava e imitava os gestos delicados e o canto
exótico que acompanhava a letra da música cantada por Vitória. Se a patroa e can-
tora, que não perdia uma oportunidade de humilhar um João Francisco apaixonado
e submisso, preparava-se em um camarim envolto em belos vestidos, joias, flores e
espelhos, nesta última sequência, João Joaquim dos Santos se prepara nos fundos
de um bar simples da Lapa. Ao invés de um público de uma elite que olhava aten-
tamente a bela cantora na cena do cabaré, são os habitués da Lapa que esperam, em
meio a gritos e risadas, em uma atmosfera carnavalesca e anárquica, o(a) protagonis-
ta que se prepara em um camarim improvisado. Filmado em primeiro plano, o cor-
po da personagem é, mais uma vez, colocado em evidência: com o tronco à mostra,
banhado em purpurina e rodeado por vários colares coloridos. Em sua encenação,
Aïnouz privilegia o contraste claro/escuro e um corpo que não cabe nos limites do
quadro, enquanto a personagem recita seu texto em frente a um espelho sujo e que-
brado. Mais uma vez, a personagem se inscreve em uma imagem às avessas daquela
apresentada pela cantora Vitória em uma versão de Mil e uma noites, na qual o sultão
5. Se em francês é normalmente utiliza-se a palavra “genré”, aqui optamos por “genereficada”, termo
proposto em Salih, Judith Butler e a Teoria Queer.
6. Por uma discussão a figura da mulata na cultura brasileira ver Corrêa, “Sobre a invenção da mulata”.
Cadernos Pagu, São Paulo, n. 6-7, p. 35-50, 1996; e Parker, Corpos, prazeres e paixões – A cultura no
Brasil contemporâneo.

43
Fabiana Maria Gama Pereira

árabe se transforma em um tubarão chinês, enquanto que a bela Sherazade torna-se


Jamacy – nome que nos remete à cultura indígena. Alter ego da protagonista, Jamacy
é “o espírito da floresta da Tijuca”, além de “correr pelos matos e voar pelo morro”.
Para enfrentar o tubarão chinês, que sacrificava todos os dias sete gatos selvagens,
Jamacy “se transforma em uma pantera dourada”. Mesmo quando Jamacy exala o
seu lado selvagem, ela emana uma forte sensualidade através de seu “jeito macio” e
“de seu gosto delicado”. Após uma luta que durará “mil e uma noites”, “a gloriosa
Jamacy e o furioso tubarão já estavam tão machucados que ninguém sabia quem era
um e quem era outro”, foi assim que “eles viraram uma coisa só”.
Ao apropriar-se da história de Sherazade, João, agora Madame Satã, propõe
uma identidade distante da fascinação em relação à cultura estrangeira representada
por Vitória e a sequência inicial. A personagem penetra em um hibridismo ligado
à singularidade do multiculturalismo presente na cultura brasileira: em sequência
anterior, ele se entusiasma numa sessão de cinema ao ver Joséphine Baker dançando
embalada por ritmos africanos, e finalmente, a figura da índia Jamacy se mistura
ao tubarão chinês. O corpo do protagonista performa uma gestualidade andrógina
que, como a personagem de sua história, oscila entre voracidade e sensualidade. A
interpretação dada por Lázaro Ramos reproduz uma corporalidade erótica que se
combina com o ronronar selvagem que reproduz a fúria da pantera. E é com este
ronronar que a sequência termina: sobre o espelho quebrado, o rosto de Madame
Satã é filmado em close-up, ele ronrona uma última vez, mostrando os dentes e a có-
lera da felina. Em um breve instante, seu rosto sai do foco, dispositivo que permeia
todo o filme, no qual são metaforizados a complexidade da personagem e os estados
de sua subjetividade.
Madame Satã possui a mesma fúria de sua personagem imaginária, uma raiva
demonstrada principalmente quando ele é agressivamente repudiado e excluído de
uma sociedade que insiste em lhe impor um lugar predeterminado. Como em uma
das sequências em que ele, Laurita e Tabu, bem vestidos e perfumados, dirigem-se
ao elegante High Life, clube chique situado do lado oposto aos limites estabelecidos
pelos arcos da Lapa. Na entrada do estabelecimento, o segurança é categórico “nem
putas nem malandros são aceitos”. João Francisco explode de cólera e luta contra os
seguranças. O bairro da Lapa é marcado por um imaginário negativo do proxeneta,
da prostituta e do jogo, em uma lógica de exclusão na qual todas as personagens que
ali moram são irremediavelmente cativos. Entretanto, no filme Madame Satã, é nesse
lugar inóspito que se delineia a possibilidade de uma família sui generis, formada por
uma criança, um travesti, um malandro homossexual e uma prostituta.
Após uma noite de sucesso em seu show, o preconceito ressoa nas palavras de
um cliente provocador ao final do filme: “É por causa de crioulos como você que
este lugar está nesta merda”. Revoltado, João Francisco volta para casa, pega uma
arma e mata o homem na penumbra das ruas da Lapa. Na cena seguinte, filmado em

44
Gênero Trans e Multidisciplinar

plano próximo, voltamos para sequência de abertura do filme – a personagem com


o rosto machucado no centro do quadro, enquanto a voz em off anuncia o veredito:
ele, por ser “reincidente, demonstrando ser criminoso costumário, desocupado, cí-
nico e dissimulado por índole, é condenado a uma pena de dez anos de prisão”. Essa
voz fora do quadro que impõe a Lei dentro de um discurso normatizado se mistura
pouco a pouco à de João Francisco, que se evade na pele de Jamacy. Dessa vez, o
espírito da floresta da Tijuca encarna o corpo de uma princesa aprisionada por um
malvado feiticeiro. Libertada por um cavaleiro montado em um camelo, Jamacy vol-
ta à Lapa, onde se fantasia para o desfile do bloco dos caçadores de viados. É dessa
maneira que Jamacy ganha o concurso e torna-se, no carnaval de 1942, Madame
Satã. Em meio à narração, a percussão do carnaval invade a trilha sonora e acom-
panha as imagens do protagonista desfilando sua fantasia e do público em delírio.
Últimas imagens do filme, longe de qualquer definição e normatização, problema-
tizando as representações de gênero de uma personagem que é ao mesmo tempo
malandro, Jamacy, ou ainda a negra do Balcoché, outra personagem encarnada na
época por Madame Satã.
Mesmo que em seu filme Karim Aïnouz não nos proponha um biopic conven-
cional, construindo uma narração fílmica que nos aproxima da subjetividade de sua
personagem, ele não nos dá nenhuma visão pronta para compreender essa figura
mítica da história contemporânea brasileira. Na verdade, ele a torna complexa e
problematizada. Sempre no limite de vários modelos performativos de gênero, a
personagem João, do filme, opõe-se às normas “generificadas” intrinsecamente as-
sociadas ao complexo cruzamento das questões de raça e classe, intimamente liga-
das à história sociocultural e econômica brasileira.

REFERÊNCIAS

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SP,8 nov. 2002, Ilustrada, p. 1.
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nov. 2002, Caderno B, p. 2.
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Charlotte Nordmann com a colaboração de Jérôme Vidal, Paris: Éditions Amster-
dam, 2004.
______. Problemas de Gênero. Feminismo e subversão da identidade. Tradução
Renato Aguira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

45
Fabiana Maria Gama Pereira

______. Problemas de Gênero. Feminismo e subversão da identidade. Tradução


Renato Aguira. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2003.
CAMPION, Alexis. Joao, l’homo de Rio. Le Journal du Dimanche, France, 10
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CÂNDIDO, Antônio. Dialética da Malandragem (caracterização das Memórias de
um sargento de milícias). Revista do Instituto de estudos brasileiros, São Paulo,
USP, nº 8, p. 67-89, 1970.
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DA MATTA, Roberto. Carnavals, bandits et héros: ambiguïtés de la société
brésilienne. Tradução do português de Danielle Birck, Paris: Éditions du Seuil, 1983.
DIAS, Mauro. O herói de uma Lapa mitológica. O Estado de São Paulo, São
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DOS SANTOS, Joaquim Ferreira. Filme flui e não cai em armadilhas. Jornal do
Brasil, Rio de Janeiro/RJ,18 nov. 2002, Caderno B, p. 2.
FLORESTAN, Fernandes Florestan. A integração do negro na sociedade de
classes. São Paulo: Dominius, 1965.
HEFFENER, Hernani. Madame Satã. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro/RJ,18 nov.
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MARTINO, Telmo. Num envelope fechado, o grotesco de papel-crepom. Jornal da
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MATOS, Claúdia. Acertei no Milhar: Samba e malandragem no tempo de Getúlio.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
PARKER, Richard G. Corpos, prazeres e paixões – A cultura no Brasil contem-
porâneo. São Paulo: Editora Best Seller, 1991.
ROCHA, Gilmar. Navalha não Corta Seda : Estética e Performance no Vestuário
do Malandro. Revista do Departamento de História da UFF, Rio de Janeiro, v.
10, p. 133-154, 2006.
SALIH, Sara. Judith Butler e a Teoria Queer. Tradução de Guacira Lopes Louro.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.
WERMECK, Alexandre. Alma Marginal. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro/RJ, 20
set. 2002, Caderno B, p. 1.

46
CAPÍTULO IV
“LEI DAS EMENDAS VAGINAIS”
REVISITADO
Braulino Pereira de Santana1

     Título: “Lei das emendas vaginais”


     Autora: Marilene Felinto, escritora
     Publicação: Jornal Folha de S. Paulo, 19 nov. 1995, Seção “Adrenalina”, p. 9.

Estuprar sistematicamente os homens: dominá-los, amarrá-los, enfileirá-los um ao lado do


outro, abaixá-los (na posição subalterna), as pernas abertas, de costas para os outros homens que
venham, brutamontes, e pratiquem o ato de violá-los sexualmente. Depois, por algum processo de
“transferência” ou “regressão”, digamos (algum desses processos de psicanálise), deixá-los amargar
em laboratório, por longos dias, a gravidez involuntária das estupradas. Que sintam na carne a
repulsa, a humilhação.
São cenas de sessão de psicodrama para se aplicar aos homens que aprovaram (e aos que
pretendem) a proposta de emenda constitucional que veta o aborto à gravidez resultante de estupro,
direito adquirido pelas brasileiras há 55 anos.
A proposta, aprovada em maio pela Comissão de Constituição e Justiça, da Câmara dos De-
putados, tem chances de ser aprovada agora pelo plenário da Câmara. São evangélicos (protestantes
ou crentes) e católicos praticantes que encabeçam a corriola pelo veto ao aborto.
Um deputado (Philemon Rodrigues, PTB-MG) disse à Folha (conforme reportagem de Da-
niela Pinheiro, 02/11, pág. 3-7) que “o estupro é um acidente. E a pessoa tem que arcar com isso.
Ninguém pode por ideologia ou opinião privar alguém do direito à vida.”
Outro deputado (Severino Cavalcanti, PFL-PE, autor da emenda) disse que “a mulher deve
levar adiante a gravidez na condição de ‘depositária’”, já que ela tem “o instinto materno, que é
superior a tudo”.
Estufas, silos, depósitos de sementes, chocadeiras fantasiadas de Virgem Maria, sem vontade
própria nem livre-arbítrio. É assim que os homens da Comissão de Constituição e Justiça (formada
por 11 homens e seis mulheres) enxergaram a mulher para tomar sua decisão: como galinhas, vacas
ou cobras.
A proposta não é apenas obsoleta, reacionária e retrógrada. É o cúmulo da hipocrisia. Imagine
se a filha do deputado ou do banqueiro vai carregar na barriga um feto originário de estupro. Imagi-

1. Doutor em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia (2010). Professor adjunto da Univer-
sidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), campus de Jequié-Ba.

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Braulino Pereira de Santana

ne se o pai deputado não vai levá-la imediatamente a mais cara das clínicas da cidade, para raspar
do seu útero de princesa o pedaço de carne indesejável. O filho será, sim, mais uma vez, da favelada.
Difícil acreditar sequer na possibilidade de uma emenda como essa vir a ser aprovada num
país de costumes liberais como o Brasil, em pleno ano 2000. Ora, se deve haver qualquer lei que
trate do corpo da mulher, que seja, no mínimo, elaborada por mulheres. O corpo é nosso, a vagina
é nossa, quem deve decidir que pênis vai entrar ou sair dela, ou que feto vai crescer ou não no nosso
útero somos nós. Alguma dúvida?
Esses homens brasileiros deviam ser tratados sob o chicote das feministas radicais da Europa.
Vi em Berlim pela primeira vez um homem urinar sentado no vaso sanitário, igual às mulheres.
Perguntei por que ele mijava sentado. Rindo da minha surpresa, contou que aquilo era comum
entre os homens alemães da nossa geração (ele tem 32 anos), obrigados a agir assim por uma rí-
gida sequência de mães, irmãs, mulheres e namoradas que detestavam a molhação de mijo que os
homens, ao urinar de pé, faziam nas bordas do vaso. Impressionante a eficácia do feminismo ger-
mânico. É preciso aplicá-lo ao psicodrama que vista de calcinhas e sutiãs no plenário da Câmara.

Prólogo

Este artigo, dividido em cinco pontos, analisa o texto “Lei das emendas vagi-
nais”, de autora e publicação referenciadas acima, no ponto l, “O texto”. Os pres-
supostos teóricos como concepções para a análise são oriundos da Análise de Dis-
curso (AD). A partir dos conceitos de texto para a linguística textual e para a AD,
formações discursivas e formações ideológicas, o artigo procura “ler” o texto de
Marilene Felinto numa perspectiva mobilizadora de múltiplos sentidos, planejados
para responder a posições ideológicas fundamentalistas cristãs que tentam imple-
mentar políticas de sonegação de direitos elementares de proteção a mulheres em
situação de vulnerabilidade social, e a autora movimenta uma contra palavra, mobi-
lizando, assim, um contradiscurso.

1. TEXTO: UNIDADE OU DISPERSÃO?


Um texto escrito é geralmente conceituado como uma unidade temática que
organiza o pensamento por intermédio da língua(gem). Suas fronteiras são delimita-
das por dois brancos no papel: um branco que antecede o título e outro depois do
ponto final. As frases são organizadas, num texto em prosa, em parágrafos que se
sucedem, estabelecendo um todo “harmônico”, sem contradições ou ambiguidades,
formando uma “costura” interna, uma tessitura, como se as partes estivessem inter-
ligadas como numa colcha de retalhos.
Esse tipo de conceituação de texto tem, na linguística textual, seus pressupostos
teóricos estabelecidos por meio de conceitos como textualidade, fatores pragmáti-

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Gênero Trans e Multidisciplinar

cos, coerência, coesão, horizontes de expectativas do leitor; e o trabalho de compo-


sição de redação em sala de aula comumente é chamado de produção e recepção.
Neste artigo, propomos uma abordagem de texto concebido como um conflito
e como microunidades temáticas em atividade e interação, pois percebemos
que a abordagem da linguística textual é insuficiente para lidar com as múltiplas
possibilidades de realização, criação, significação e leitura de textos. A “produção”
de um texto não resulta num produto (produção) acabado, a ser empacotado como
um carro em uma linha de montagem; nem tampouco o recebemos passivamente,
como sugere a palavra recepção. Como não dizemos palavras e frases simplesmente,
mas atuamos com a língua instaurando verdades, mentiras, relações de força e de
poder (Bakhtin), há textos cuja “recepção” se assemelha a verdadeiros embates
ideológicos, daí o pouco alcance e a limitação de termos como produção e recepção,
e as lacunas que a linguística textual vai espalhando na construção de sentidos: o
texto se instaura como uma dispersão, estabelecendo “piquetes” nas variadas
fronteiras de leitura.
Por lidar com a língua do ponto de vista formal e ignorar que ela é concreta e
intuitivamente atravessada pelos embates sociais e ideológicos, a linguística textual
se “esquece” de que os textos não são “documentos que ilustram ideias pré-conce-
bidas, mas monumentos nos quais se inscrevem as múltiplas possibilidades de lei-
turas” (Orlandi, 2002, p. 37). Seus aspectos formais, portanto, são regras garantidas
pela própria língua e dominadas por todo leitor proficiente em língua escrita: dessa
maneira, é necessário ultrapassar os limites internos de sentido e relacioná-lo a um
diálogo ideológico com o mundo.
As dificuldades de criação e leitura de textos se inscrevem na esfera de suas
condições de produção em relação à memória do leitor e da sociedade, a ideologias,
a falhas, a “esquecimentos” e a equívocos. As condições de criação em relação ao
domínio formal da língua escrita são, muitas vezes, privilegiadas no trabalho em sala
de aula, e isso impede o produtor-leitor avançar um conceito de texto em direção ao
uso da língua como um discurso.
Propomos esse avanço, ao analisarmos o texto “Lei das emendas vaginais”, de
autoria da escritora Marilene Felinto, publicado no jornal Folha de S. Paulo em 19 de
novembro de 1995, na seção Adrenalina. O objetivo deste artigo é uma leitura desse
texto, considerando-o à luz dos pressupostos teóricos da Análise de Discurso ao
mesmo tempo em que procura subsidiar trabalhos de criação e leitura de textos em
sala de aula.
A linguística é pródiga em apresentar reflexões sobre como lidar, avaliar e con-
ceituar textos. A reflexão linguística aqui apresentada, sob os pressupostos teóricos
da AD, permite uma leitura de texto que ultrapassa, mas não negligencia, as relações
sintáticas e semânticas comuns a todo texto escrito, ao abrir múltiplas possibilidades

49
Braulino Pereira de Santana

de inserção dos textos às cadeias ideológicas e discursivas de que fazem parte os


leitores e os próprios textos.
Analisar um texto considerando-o sob a perspectiva da AD é propor que a
produção de significações de palavras não se encontra presa em dicionários nem
tampouco frases e sentenças fazem parte exclusivamente do domínio interpretati-
vo das gramáticas. As significações resultam, além das relações inerentes à matéria
linguística, de um trabalho para o qual concorrem as condições de produção dos
discursos, o lugar de onde emergem os sujeitos enunciadores e os enunciados, os
embates ideológicos presentes na relação leitor-texto-mundo, as formações discursi-
vas (FD) como práticas sígnicas dos homens e das mulheres em sociedade. A signi-
ficação, portanto, ultrapassa as fronteiras dos textos para se instaurar nas fronteiras
de um discurso.
Como objeto de estudo, o discurso pode ser conceituado como “palavra em
movimento”, “prática de linguagem” que flagra homens e mulheres mediando suas
vidas e suas existências por intermédio da língua como sujeitos que a falam/usam
em situações concretas na história. O uso da língua em sociedade não se trata de
mera transmissão de informação nem de comunicação apenas, não se trata de uma
tessitura que articula sentidos alheios à multiplicidade de inserções de que um texto
pode fazer parte, “no funcionamento da linguagem, que põe em relação sujeitos e
sentidos afetados pela história, temos um complexo processo de constituição des-
ses sujeitos e produção de sentidos e não meramente transmissão de informação”
(Orlandi, 2002, p. 21).
Na passagem do texto ao discurso, a análise passa por etapas que procuram
estabelecer a significação da superfície textual e sua relação com a exterioridade social
e ideológica, inerente ao próprio discurso, na medida em que procura evidenciar a
construção dos sujeitos e os processos interativos de produção de sentidos, mediada
por conceitos como formação discursiva e formação ideológica.
Enquanto o significado de palavras, frases e sentenças, por um lado, goza de certa
estabilidade aparente, que tem num dicionário e nas relações sintáticas e semânticas
um ideal de significação, na medida em que os(as) falantes não podem alterar seu
significado ao sabor de suas vontades, sob pena de não construir sentidos, o sentido
das palavras, frases e sentenças, por outro lado, nasce, sobretudo, de um jogo
constante de negociações, imagens, conflitos e confrontos; nesse caso, as palavras
“perdem” sua transparência de um significado aparente para ganhar sentidos
surgidos num determinado momento histórico, sob determinadas condições de
produção, a partir de sujeitos inscritos num lugar de enunciação. Dessa maneira,

O discurso se constitui em seus sentidos porque aquilo que o sujeito diz se ins-
creve em uma formação discursiva e não outra para ter um sentido e não outro.
Por aí podemos perceber que as palavras não têm um sentido nelas mesmas, elas

50
Gênero Trans e Multidisciplinar

derivam seus sentidos das formações discursivas em que se inscrevem. (Orlandi,


2002, p. 45)

Ainda que polêmico, o conceito de formação discursiva é fundamental em AD


para o estabelecimento de pressupostos de construção de sentidos num texto, na
medida em que articula uma rede ideológica de significações:

Uma formação discursiva pode ser vista como um conjunto de regras que de-
termina o que pode e deve ser dito a partir de certa posição na vida social, e as
expressões têm significado apenas em virtude das formações discursivas em que
ocorrem, mudando de significado quando são transportadas para uma outra. (Ea-
gleton, 1991, p. 173)

Constitui, portanto, uma “matriz de significados” ou um sistema de relações


linguísticas dentro do qual são articulados processos sígnicos efetivos e discursos
(leituras) em interação. Toda formação discursiva se relaciona a uma formação ide-
ológica, que contém práticas linguísticas e pragmáticas na construção de uma reali-
dade ou de “verdades”.
Ninguém pode sair por aí dizendo o que queira e entenda seja necessário dizer.
Tudo a ser dito nasce de um determinado papel, de um determinado lugar, de uma
conjuntura sócio-histórica que autoriza um dizer e que move os sujeitos para além
do que é dito. Tudo o que se diz dialoga com um não dito, dialoga com outro, com
uma memória, com algo que poderia ser dito e não se materializou, ou se materia-
lizou de uma maneira e não de outra. Uma formação discursiva monitora as fron-
teiras de sentido em um texto à medida que estabelece configurações necessárias,
excludentes, conflitantes de variados discursos dentro de um texto.

2. A LEITURA: RECONSTRUÇÃO LINGUÍSTICA


E DISCURSIVA DE SENTIDOS
Para a análise de um texto segundo pressupostos teóricos e mecanismos meto-
dológicos em AD, proponho etapas sucessivas, baseadas em uma constituição do
corpus, evidenciando:
a) uma descrição do dito, dos apagamentos, dos implícitos, de um não dito;
b) uma conjuntura sócio-histórica imediata dos acontecimentos; e
c) uma avaliação das inserções ideológicas em que se encontram os sujeitos em diá-
logo no texto. Essa metodologia é consonante com o que diz Orlandi (2002, p. 80),

Assim, a construção do corpus e a análise estão intimamente ligadas: decidir o


que faz parte do corpus já é decidir acerca de propriedades discursivas. Atualmen-
te, considera-se que a melhor maneira de atender à questão da constituição do

51
Braulino Pereira de Santana

corpus é construir montagens discursivas que obedeçam critérios que decorrem


de princípios teóricos da análise de discurso, face aos objetivos da análise, e que
permitam chegar à sua compreensão. Esses objetivos, em consonância com o
método e os procedimentos, não visa a demonstração mas a mostrar como um
discurso funciona produzindo (efeitos de) sentido.

O título do texto “Lei das emendas vaginais” lida com um valor polissêmico
da palavra emendas: que se refere, explicitamente, como o texto deixa bem claro,
a uma proposta de emenda constitucional que veta o aborto à gravidez resultante
de estupro, apresentada por um deputado na Comissão de Constituição e Justiça da
Câmara dos Deputados e, implicitamente, a uma manobra de homens na tentativa
de domínio da condição sexual e do corpo das mulheres, como sugere a predicação
emendas vaginais.
Um valor polissêmico, inerente e associado à própria língua, mexe com uma rede
de filiações de sentido a que as palavras pertencem. Por isso, foi possível esse jogo
de ambiguidades com o título do texto: não há discursos que não se relacionem com
outros, em que outros não estejam embutidos neles próprios; há uma simultaneidade
de movimentos de sentido a que se filiam os discursos. Estabelece-se, assim, uma
relação entre a tramitação da emenda na Câmara dos Deputados e o domínio de
certo tipo de discurso nessa instância de poder, questionando o lugar das mulheres
na sociedade e a percepção que essa instância de poder tem sobre elas.
Considerando-se a ambigidade do título, o texto instaura um conflito entre o
conteúdo da emenda e as consequências que ela acarretaria à vida das mulheres; a
autora do texto, portanto, uma mulher, propõe essas mesmas consequências, num
exercício ficcional aos homens que querem aprová-la no Congresso:

a) Que os homens sejam violentados (estuprados, dominados, submeti-


dos a posições subalternas, violados sexualmente), assim como as mulheres,
vítimas desse tipo de crime.
b) Que os homens sintam na carne a humilhação e a repulsa de uma gra-
videz indesejada, não só isso, como também, involuntária.
  
A tentativa de aprovar uma emenda como essa se resume a uma visão do corpo
das mulheres como uma propriedade dos homens, sujeito a manipulações, e uma lei
deve monitorar o corpo como uma propriedade:

a) O estupro é um acidente, e a pessoa (portanto, uma mulher) deve arcar


com isso.
b) A defesa contra uma gravidez indesejada e involuntária é uma questão
de ideologia, uma opinião.

52
Gênero Trans e Multidisciplinar

c) A mulher deve levar a gravidez (resultante de estupro) adiante, na con-


dição de depositária.

A proposta veiculada na emenda é, não somente, obsoleta, reacionária e re-


trógrada, como também hipócrita, quando, num país como o Brasil, aqueles que
possuem poder e dinheiro gozam de privilégios, manipulam, compram, subornam,
enquanto às mulheres pobres, que não têm acesso a direitos elementares, caberia
arcar com consequências, inclusive consequências de uma gravidez oriunda de uma
violência como um estupro:

a) Imagine se a filha de um banqueiro ou de um deputado vai carregar na


barriga um feto originário de estupro?
b) Imagine também se o pai deputado não vai levá-la imediatamente à
mais cara das clínicas da cidade, para raspar de seu útero de princesa o pedaço
de carne indesejável.
c) O filho será mais uma vez da favelada.

Os homens brasileiros que pensam dominar, possuir e manipular o corpo das


mulheres com propostas como essa, deveriam ser submetidos a um tipo de educação
(chicote), semelhante à recebida pelos homens europeus:

a) Ser submetidos ao chicote das feministas europeias.


b) E isso significa, por exemplo, fazê-los urinar, por domínio cultural,
sentados no vaso, como fazem as mulheres.

Parte dos enunciados está distribuída no texto em modo verbal imperativo,


como a sequência de verbos no primeiro parágrafo (estuprar, enfileirá-los, dominá-
-los, amarrá-los...), pois a proposta veiculada na emenda vai de encontro a interesses
das mulheres de tal forma que merece, por parte da interlocutora, algo no mesmo
tom. Ao se contrapor à emenda proposta na Câmara com enunciados desse tipo
(imagine se..., alguma dúvida?, esses homens brasileiros deviam ser trata-
dos...) a autora cria um jogo de imagens semelhante àquelas que os deputados pro-
põem sobre as mulheres: se há sentidos que estabelecem vítimas e dominados numa
instância de poder como a Câmara dos Deputados, há sentidos contraideológicos
numa página de jornal: e a língua é o lugar em que se instauram esses conflitos,
capaz de fazer frente a variados tipos de discurso. Nesses termos, um texto é atra-
vessado por embates sociais de toda ordem, uma palavra responde/conflitua com
outra palavra, assemelhando-se a verdadeiras batalhas em torno de lugares sociais e
de instâncias públicas de poder.

53
Braulino Pereira de Santana

Essa proposta dos deputados veicula uma visão subalterna das mulheres, como
se elas tivessem donos, sujeita-as a uma condição de animal ou de objeto:

a) As mulheres possuem “um instinto” (algo inerente aos animais) mater-


no, que é superior a tudo.
b) A Comissão de Constituição e Justiça objetiva enxergar as mulheres
como vacas, galinhas, ou cobras, depositárias de um líquido (feto) masculino
sem ao menos terem a condição de optar por isso.
c) São homens, a maioria (seis mulheres e onze homens), a decidir o des-
tino do corpo das mulheres; lembrando-se de que, no Brasil, a população
feminina é superior à masculina.

Há construção gradual desses sentidos e o conflito que eles estabelecem. Os


atributos relativos às mulheres são tão preconceituosos, que seria inimaginável em
países de primeiro mundo, na Europa e na América do Norte, sem uma mobilização
ampla de movimentos feministas. As predicações sobre as mulheres são veiculadas
pelos deputados com termos que as igualam a animais: instinto materno; condição
de depositária; como também, não questionam o papel dos homens violentado-
res: a pessoa (a mulher) tem que arcar com isso (um estupro). A autora, contudo,
não questiona também a posição dessas deputadas que fazem parte da Comissão
de Constituição e Justiça, que estariam sendo cúmplices (?) de uma manipulação
contra, sobretudo, elas mesmas e as mulheres pobres: em suas palavras, retrógrada,
reacionária, obsoleta, hipócrita.

3. FORMAÇÃO DISCURSIVA: FLUXO


CONTÍNUO DE SENTIDOS
O conceito de formação discursiva (FD), estabelece em relação embates ideo-
lógicos materializados linguística e discursivamente. Como o texto da escritora põe
em cena discursos em que forças contraditórias conflituam num jogo de poder, es-
tabelecendo imagens que os interlocutores têm de si e do outro, assemelhando-se a
defesas e a ataques, as lutas ideológicas que se instauram no texto não poderiam ser
captadas pelo conceito de tessitura ou de unidade com começo, meio e fim. Diga-
mos que esse é só o começo de um debate, que pode tocar vários homens-leitores e
muitas mulheres-leitoras, estabelecer cadeias de defensores ou detratores das ideias
da autora, aprofundando a rede de repercussões ou de silenciamento de sentidos.
Uma palavra mobiliza sentidos e posições, instaurando novas realidades.
Não é possível optar por uma realidade movimentada por um texto sem levar
em consideração uma cadeia de hipóteses variadas que ele pode despertar, ao mo-

54
Gênero Trans e Multidisciplinar

bilizar essa rede de sentidos. O texto “Lei das emendas vaginais” pode se instaurar
tanto no universo da denúncia de uma posição machista, como caracterizar uma
construção ideológica que defende o aborto em determinadas circunstâncias, ou
demonstrar que determinados homens que ocupam o poder querem legislar sobre o
corpo de mulheres, ou ainda mobilizar alianças contra o projeto em pauta, demons-
trando que direitos devem ser sempre vigiados senão corre-se o risco de perdê-los
nas circunstâncias dos embates sociais. Averigua que as religiões cristãs instituem
um lugar submisso e subalterno às mulheres na sociedade e movimenta sentidos
punitivos em relação ao comportamento de homens brasileiros.
Assim, um discurso mobiliza tantas representações, e somente aquelas, que não
é possível considerá-lo homogêneo, funcionando automaticamente, tratando de
uma temática monoliticamente. Muitos problemas de composição textual em sala
de aula compreendem queixas dos professores como: “você fugiu do tema”, ou “o
seu texto é uma salada de fruta”, ou “não há um eixo temático” ao qual seu texto se
filie. Tais falas apontam para a heterogeneidade discursiva inerente a qualquer prá-
tica construtiva de textos e suas possibilidades de cobrir de maneira linear o tema a
que se propõe discutir.   
Não se trata de que o texto em questão seja ambíguo ao apontar para essas
variadas hipóteses de construção de sentido, trata-se dos efeitos de sentido que
pode dele usufruir um público-leitor. São forças confrontadas com outras numa
conjuntura ideológica determinada. Nesses termos, constitui-se um complexo de
atitudes e de representações sociais possíveis, que ultrapassam relações individuais
e se instauram nos conflitos das relações de poder, que são sociais, pois dizem res-
peito a interesses da sociedade como um todo. Os quadros apresentados abaixo ar-
ticulam discursos entre fronteiras de formação discursiva mobilizadas por possíveis
leituras do texto. Trata-se de uma representação didática, dentre outras possíveis.

1. Um conflito de gênero, em que certo tipo de discurso quer estabelecer o


lugar e a posição social das mulheres, na maioria das vezes contra as suas próprias
vontades:

55
Braulino Pereira de Santana

TABELA 1

FD FD - HOMENS FD – MULHERES

Como nenhum homem na


cultura brasileira sofrerá esse
Ao invés de associar a con-
tipo de violência (estupro é
dição de crime a uma violên-
“O estupro é um aciden- uma palavra usada somente
cia como essa, os deputados
te.” em relação a crime contra
em questão associam-no a
mulheres), percebe-se que eles
um acidente.
não têm a dimensão da dor de
uma violência como essa.
Há um “esquecimento” nessa
As mulheres são referen-
frase do deputado Philemon
“Ninguém (as mulheres) ciadas como “ninguém”, e
Rodrigues: não se trata de
pode por ideologia ou a defesa dos seus corpos é
privar alguém da vida, trata-se
opinião privar alguém do tratada como ideologia ou
de deixar crescer num útero
direito à vida.” opinião, e não como um
um feto originário de uma
direito.
violência.
Quem diz isso se “esquece”
Os homens não concebem
de que a maternidade é uma
a maternidade, inerente às
construção social e cultural,
mulheres, então é conve-
“O instinto materno é e não instintiva na sociedade
niente a construção de
superior a tudo.” humana. Naturalizar a mater-
determinados efeitos de
nidade é uma regressão a um
sentido, associando-a a um
estágio animal primitivo.
instinto.

“A mulher deve levar “Condição de depositária” é


Quem deve decidir sobre o
adiante a gravidez na con- tornar um ser humano um
seu próprio corpo?
dição de depositária.” objeto.

Percebe-se um senso comum sobre essa noção de um ponto de vista poderoso:


as relações de gênero encontram na língua seu ideal de significação. Não é tanto
constatar quão verdadeiras são essas noções, mas observar como elas vieram a se
tornar um senso comum, ao cristalizar as relações de gênero em sociedade como se
fossem algo natural.
Gênero não é algo com o qual se nasce, ou algo que se tem, e sim tudo aquilo
que delineia um comportamento. Ideológico por “natureza”, é uma imagem
construída pela vida em sociedade para delimitar determinadas relações e vivências:
institui determinados papéis. Enquanto o sexo é uma categoria biológica baseada
no potencial reprodutivo, inerente a todo agrupamento humano, o gênero é uma

56
Gênero Trans e Multidisciplinar

elaboração social do sexo biológico, que varia de sociedade para sociedade, de


homens para mulheres e das representações nas instâncias de poder.
Há graus variados de tolerância comportamental entre homens e mulheres
baseados na concepção de gênero construída pelos agrupamentos humanos.
Portanto, não se desdobra de uma biologia ou de uma predisposição individual
a certo tipo particular de pessoa ou de personalidade – não é uma propriedade
individual. O gênero é um “arranjo” social e o gênero individual é construído nos
limites da ordem social.
As noções de gênero estão por toda parte. Consistem em modelos de relaciona-
mento simultaneamente estruturados que definem masculinidade e feminilidade e
regulam as relações das pessoas em sociedade. Estão profundamente enraizadas em
todos os aspectos sociais: nas instituições, no espaço público, na arte, na maneira de
se vestir, nos discursos e, sobretudo, na linguagem. E essas conexões e situações es-
tão ligadas umas às outras em configurações estruturadas, sobretudo pelo discurso.
Como as falas citadas foram as de homens e o contradiscurso está presente pela voz
de uma mulher, essa formação discursiva, a que didaticamente é referida aqui como
a de gênero, é a leitura de sentido que emerge em primeiro plano no texto em análise.

2. Um conflito entre posições religiosas cristãs e concepções de um Estado


laico sobre o aborto:

TABELA 2

FD FD – CRISTÃ FD - LAICA

Ao associar a reli-
Quer-se, nesses termos, instau-
gião cristã a posições
rar leis que privilegiem posições
contrárias ao aborto,
“São evangélicos: protestantes religiosas cristãs como posições
o texto remete a uma
ou crentes...” de Estado, e submetê-las e
concepção histórica
todos os cidadãos, mesmo os
dessas religiões sobre
não religiosos.
esse tema.
O texto assume que
há não somente uma
A posição de um certo segmen-
concepção religiosa
to entre os católicos argumenta
contra o aborto, mas
“São católicos praticantes...” que só Deus tem o direito de
também uma espécie
“dar” e de “tirar” a vida de
de fundamentalismo
alguém.
religioso militante no
Congresso Nacional.

57
Braulino Pereira de Santana

Ao chamar católicos,  
protestantes e crentes
de corriola, termo
pejorativo que remete
Evidencia-se que cristãos, ao
São os religiosos cristãos os a complô, a autora se
ocupar as instâncias de poder,
que “encabeçam a corriola pelo põe ideologicamente
fragmentam o Estado em nome
veto ao aborto.” contra um tipo de
de suas concepções ideológicas.
concepção religiosa
que quer se apossar do
Estado como institui-
ção particular.  

3. Concepções ideológicas, manifestadas por posições políticas conflitantes en-


tre uma militância de “direita” e uma outra, de “esquerda”, correndo-se riscos de
esquematismos redutores em relação a esses termos:

TABELA 3

FD FD – DIREITA FD – ESQUERDA
Ao questionar de forma
O histórico desses partidos e a
incisiva as concepções
Deputados: atuação desses Deputados no
políticas expostas por
Philemon Rodrigues Congresso Nacional sempre se
esses deputados na cena
(PTB-MG)     e associaram a posições políticas
pública brasileira, o
Severino Cavalcanti assimiladas pela cultura políti-
pensamento da autora se
(PFL-PE) ca brasileira como posições de
assemelha a concepções
direita.   
de esquerda.

Os esquemas apontados acima não pressupõem encerrar as formações discur-


sivas possíveis na construção de sentido do texto em análise; antes, apontam proce-
dimentos didáticos que podem iluminar alguns pontos na abordagem de um certo
efeito de sentido em sua heterogeneidade sígnica.
A recorrência a uma ideologia confrontadora, militante, é uma saída buscada
pela autora que mobiliza o leitor a se posicionar sobre a questão. Ninguém consegue
ficar indiferente ou neutro a um discurso traçado dessa maneira. Para construir esse
diálogo, é preciso confiar na verossimilhança das citações dispostas ao longo do
terceiro e do quarto parágrafos. Será que os deputados disseram isso mesmo? Como
saber que o que foi dito, foi dito dessa e não de outra maneira? Quais são as razões
a as consequências do discurso citado? Será que a autora descreve (posicionando-se
contra) ou forja uma realidade para defender determinados valores? Pois a autora

58
Gênero Trans e Multidisciplinar

se apoia em fragmentos de um dito pelos deputados para construir a sua argumen-


tação. Sobre o discurso citado e suas funções na construção de um texto, assim se
expressa Maingueneau (1989, p. 90): “o sujeito que enuncia a partir de um lugar de-
finido não cita quem deseja, como deseja, em função de seus objetivos conscientes,
do público visado etc. São as imposições ligadas a esse lugar discursivo que regulam
a citação.”
“Regular a citação” significa dizer que a palavra do outro não pode ser apro-
priada sem consequências, como a perda de autenticidade por parte do enunciador
citante ou como também a sua perda de autoridade. Em jogo estáa credibilidade
moral do enunciador, como também a credibilidade legal do veículo (nesse caso, o
jornal) em que o discurso citado aparece. Nesses termos, o lugar discursivo regula a
citação na medida em que espera-se de um público-leitor uma confiança crítica em
relação ao que é dito, onde é dito, quem diz o quê e como isso é dito. Pelo alcance
e pela autoridade do jornal em que o discurso citado aparece, de fato os deputados
disseram o que disseram. Sabe-se que o que foi dito foi daquela maneira, pois há
um diálogo da autora com outra fonte do próprio jornal (conforme reportagem de
Daniela Pinheiro, 02 de novembro, p. 3-7).
Para a tarefa de construção discursiva, um enunciador lança mão de variadas
estratégias de estruturação textual, como o intertexto e a intertextualidade, o diálogo
que um texto mantém com outros, com outras vozes:

Por intertexto de uma formação discursiva, entender-se-á o conjunto dos


fragmentos que ela efetivamente cita e, por intertextualidade, o tipo de
citação que essa formação discursiva define como legítima através de sua
própria prática. Além dos enunciados citados há, pois, suas condições de
possibilidade. (Maingueneau, op. cit., p. 87, grifo do autor)

As condições de possibilidade da citação no texto em análise se inscrevem num


debate público sobre os conflitos levantados pelo texto. Tais condições preconizam
a língua como uma atividade social, pois o que foi citado, o foi por um político,
alguém que se utiliza da palavra em nome de uma sociedade, instaurando deveres
e direitos extensivos e que afetam a todos os cidadãos. Como é a vida de pessoas
de toda uma comunidade que está em negociação numa instância pública de poder
como é uma Câmara de Deputados, o discurso citado se insere numa esfera de dis-
curso público que tende a se dirigir a todos.
A linguagem, portanto, é uma atividade na medida em que:

(...) é um campo de produção de significados no qual os diferentes grupos


sociais, situados em posições diferenciais de poder, lutam pela imposição
de seus significados à sociedade mais ampla. O que está centralmente en-
volvido nesse jogo é a definição da identidade cultural e social dos diferen-

59
Braulino Pereira de Santana

tes grupos, o poder que cada um desempenha sobre o outro e sobre suas
próprias construções lingüísticas. (Rios, 2002, p. 413)

Na sequência do enunciado da citação do quarto parágrafo, uma palavra está


propositadamente destacada entre aspas: “depositária”. Como um texto se insere
numa cena enunciativa, atravessada por antecipações e reconstruções de todo tipo
e como nada em um texto é gratuito, tudo se articula na construção de sentidos
necessários à função da língua como uma atividade humana em negociação num
espaço público, as aspas nessa palavra conferem-lhe um certo estranhamento: a
enunciadora se surpreende com a audácia, com a ousadia tamanha do deputado ao
associar a palavra “depositária” à pessoa da mulher. A palavra aspeada é retomada
logo no parágrafo seguinte em tom de indignação irônica: “Estufas, silos, depósitos
de sementes, chocadeiras fantasiadas de Virgem Maria, sem vontade própria nem
livre-arbítrio. (...) assim que os homens da Comissão de Constituição e Justiça (for-
mada por 11 homens e seis mulheres) enxergaram a mulher para tomar sua decisão:
como galinhas, vacas ou cobras”.
A palavra aspeada tem um valor semântico que representa implícitos e prevê
funções sígnicas. Essas funções podem distanciar o narrador/enunciador do sen-
tido previsto, como a dizer que a palavra tem origem no outro e não no “meu”
discurso, como também cumprir estratégia de ressignificações como espanto, ironia,
desprezo, dentre outras.
Nesses termos, observe-se o que diz Maingueneau sobre as aspas e as funções
desse recurso na construção sígnica de um discurso, tanto na entrada citada na
manutenção, inflexão e reordenamento de sentido quanto no impacto que ela tem
para o leitor:

As aspas constituem antes de mais nada um sinal construído para ser decifrado
por um destinatário. O sujeito que utiliza as aspas é obrigado, mesmo que isto não
esteja consciente, a realizar uma certa representação do leitor e, simetricamente,
oferecer a este último uma certa imagem de si mesmo, ou melhor, da posição de
locutor que assume através dessas aspas. (Maingueneau, op. cit. p. 91)

As palavras dos deputados, da enunciadora, dos intertextos e na vida dos sujei-


tos-leitores ultrapassam os limites de posições ideológicas pessoais e se enquadram
em funções discursivas.
Não são pessoas, sujeitos psicológicos em jogo no uso da linguagem: são fun-
ções, posicionamentos sociais em confronto. Assim como os políticos em questão
no texto estão falando em nome de um público, legislando em nome de um manda-
to licenciado por um conjunto social de homens e mulheres. A palavra (recepção)
dos leitores e da enunciadora também é uma palavra funcional pois se inscreve em
uma capacidade social de indignação, confronto, defesas, e conta com uma repre-

60
Gênero Trans e Multidisciplinar

sentação de sujeito-leitor, de sujeito-vítima, de sujeito-cúmplice, de sujeito-poder,


dentre outros.
O sujeito só coincide consigo mesmo em parte: ele é atravessado pela linguagem
e pela história, e, por isso, apresenta uma contrapalavra. Não é um alguém exterior
à língua que se distancia dos textos/discursos com a finalidade de traduzir-lhe (pro-
duzir) os sentidos: a enunciadora do texto em debate é ela mesma atravessada pelo
seu próprio discurso e sofre os discursos dos deputados citados, por isso se dirige
ao leitor-posição dessa e não de outra maneira. A condição de sujeito que é ela é um
efeito de linguagem constitutivo de sentidos.
O lugar de enunciação conta com adesões: tanto os deputados contam e
confiam que a sua palavra representa interesses de milhares de pessoas, assim como
a enunciadora conta representar interesses de mulheres, milhares delas, ela própria
na condição de uma.
Os enunciados e enunciadores em cena no texto em análise lidam com uma
memória discursiva: é um saber que torna possível (e legítima) uma enunciação. A
tomada de uma palavra lida com um já dito, comportamentos e valores presentes na
vida das pessoas em sociedade. Senão, caberiam as perguntas: quem é esse deputado
para pensar assim sobre as mulheres? Quem é ela para confrontar uma palavra de
alguém que representa tantas pessoas? Quem são esses leitores para os quais se di-
rigem esses deputados e essa enunciadora? As respostas a essas perguntas já estão
implícitas nos jogos de sentido construídos pelo texto.
Assim como as palavras dos deputados representam interesses (é uma palavra-
função), o seu mandato e a renovação dele podem ser possíveis ao defender essas
posições por contar com uma representação que legitima um dizer; assim também a
palavra da enunciadora lida com uma representação, com uma imagem das mulheres
já dita, já sentida, já representada em algum lugar social, distante no tempo e no
espaço discursivo e social: as palavras da enunciadora estão dialogando, por exemplo,
com as palavras de outras mulheres que fizeram valer esse direito conquistado por
elas desde 1940.
Todo dizer, portanto, remete a, dialoga com, introduz um pré-construído. A
constituição de um discurso só é possível por articular dois eixos: uma memória
discursiva, as relações de historicidade situacionais e contextuais que fazem emer-
gir os sentidos, e uma atualidade discursiva – percebe-se que, se essa “lei das
emendas vaginais” for aprovada no Congresso, afeta um presente e um futuro das
mulheres. Em verdade, esses conflitos (que envolvem aborto, estupro, homens, mu-
lheres e poder) já estavam em pauta ainda antes de os deputados e a enunciadora se
posicionarem, como emerge no texto. Eles se tornaram públicos e foram ampliados
pela iminência de se aprovar (reverter) uma lei e pela repercussão que um jornal
como a Folha de S. Paulo tem na sociedade.

61
Braulino Pereira de Santana

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este texto é uma leitura possível, à luz de pressupostos teóricos da Análise
de Discurso, de outro texto “Lei das emendas vaginais”, uma crônica publicada
em jornal. É uma abordagem que não lhe esgota possibilidades de construção
de sentido, pelo contrário: abre novas possibilidades de ser-lhe apresentada uma
nova contrapalavra.
Ao longo das discussões foi possível constatar que a ideia de texto como unidade
e como tessitura é incapaz de cobrir as variadas hipóteses de significação passíveis de
ser feitas. É preciso, portanto, relacionar o material linguístico a situações discursivas
e comunicacionais que estão ao redor e fora das relações semânticas e sintáticas: um
texto sempre demanda um novo texto para “ficar de pé” em sentido pleno. Durante
o percurso de leitura, constataram-se variadas hipóteses interpretativas, todas possí-
veis e todas capazes de serem definidas dentro do próprio texto. Tais hipóteses fo-
ram construídas e constatadas pelos conceitos de formação discursiva, sujeito e for-
mação ideológica. As formações discursivas como fronteiras de sentido ajudaram a
dar variadas dimensões sígnicas presentes no texto de Marilene Felinto: trata-se da
defesa do aborto em determinadas circunstâncias?Trata-se de uma denúncia de uma
manobra conservadora-cristã no Congresso Nacional? Trata-se de uma vingança fe-
minista contra homens machistas e insensíveis? Trata-se de uma crítica a uma visão
perturbadora e redutora da condição das mulheres? É um texto-militante?
Pode ser tudo isso, não pela incapacidade de o texto ser uma unidade temática,
ou porque não há uma coerência interna, ou porque ele seja ambíguo em sua cons-
trução. Pode ser “tudo isso” pois o discurso é construído por variadas estratégias
de criação e interpretação: variadas vozes atravessam um discurso (é a polifonia),
interdiscursos e intertextos compõem os fios dessa rede de significações que é um
texto, as posições e os sujeitos em interação são múltiplos, por vezes antagônicas, e
essa heterogeneidade instaura os conflitos.
Uma análise linguística que negligencie essas apreciações e essas interpretabili-
dades possíveis corre o risco de não levar em conta as multiplicidades de sentido e as
riquezas sígnicas inerentes a qualquer discurso. E mais, negligenciar essas múltiplas
capacidades interpretativas não é algo gratuito: é também uma opção ideológica que
neutraliza aspectos relevantes da construção de sentidos.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. (Voloshinov-1929). Marxismo e Filosofia da Linguagem.


(Trad. De M. Lahud e Y. F. Vieira). São Paulo: Hucitec, 1979.

62
Gênero Trans e Multidisciplinar

BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à Análise do Discurso. São


Paulo: Editora da Unicamp, 1995.
EAGLETON, Terry. Ideologia. São Paulo: Editora da Unesp, 1991.    
MACHADO, Rosa Helena Blanco. Interpretação e Análise do Discurso: estudo de
um texto específico. In: Revista da FAEEBA, Salvador, n.9, jan./jun., 1998.
MAINGUENEAU, D. Novas tendências em Análise do Discurso. São Paulo:
Editora da Unicamp, Pontes, 1989.
ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. São Paulo,
Pontes, 2002.
RIOS, Jane Adriana Vasconcelos Pacheco. A linguagem verbal e suas relações
de poder: a interação lingüística como construto de resistência. In: Revista da
FAEEBA, Salvador, n. 18, jul./dez. 2002.

63
CAPÍTULO V
VOCÊ COLOCARIA UMA ALIANÇA?
SOLIDÃO, HOMOFOBIA E CONSUMO
NO VÍDEO “SINGLE MAN DANCES TO
SINGLE LADIES”
Aroldo Santos Fernandes Júnior1

O anseio por um destino não é em nenhuma


parte mais forte do que em nossa vida ro-
mântica. Por tantas vezes forçados a dividir
nossa cama com aqueles que não têm acesso
à nossa alma, não podemos ser perdoados
se acreditamos (contrariamente a todas as
regras de nossa era iluminada) que estamos
destinados a um dia encontrar o homem ou a
mulher de nossos sonhos?
Alain de Botton

Single Ladies é um dos sucessos da cantora pop americana Beyoncé. O vídeo


“Single Ladies” foi disponibilizado no Youtube em 12 de outubro de 2008 e con-
ta hoje com mais de 200 milhões de acessos. Neste videoclipe, Beyoncé e mais
duas dançarinas estão num espaço completamente amplo e branco e executam em
sincronia uma sequência de rebolados, corridas, giros e gestos. As dançarinas que
a acompanham neste vídeo parecem amplificar o corpo de Beyoncé. Repetem os
movimentos em uníssono e os ecoam através de contagens em cânone temporal.
A música, parte integrante do álbum I am ... Sasha Fierce, fala de uma mulher que
acabou de terminar um relacionamento e vai para uma boate celebrar e encontrar
outra pessoa. Ocasionalmente, a pessoa com quem ela acabou de terminar a relação
encontra-se na mesma boate. O refrão da música “If you like it then you should have put
a ring on it” é endereçada a esse ex-parceiro.
A música celebra um posicionamento mais proativo da mulher, que mostra con-
trole da situação e um grau de autovalorização elevado. De acordo com Darlene
1. Mestre em Corpo (e)m Performance pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas – UFBA.
Professor do DCHL – Departamento de Ciências Humanas e Letras – coordenador do Colegiado de
Dança da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Coreógrafo, performer, e codiretor artístico do
Grupo HIS – Contemporâneo de Dança.

65
Aroldo Santos Fernandes Júnior

Andrade (2010, p. 2), a partir das décadas de 1960 e 1970, com a diminuição da re-
ligiosidade, a criação e a disseminação do uso de anticoncepcionais, a conquista do
mercado de trabalho pelas mulheres e a difusão da psicanálise (o que impactou no
aumento do sexo pré-marital), diversas configurações de famílias, uniões conjugais
e relações amorosas, além das múltiplas possibilidades de exercício da sexualidade
tanto para homens quanto para mulheres, foram desencadeadas. No contexto da mú-
sica, o casamento é exposto como possibilidade de permanência e inclusão, no que
diz respeito ao modelo “heteronormativo” ou da “heterossexualidade compulsória”
(Butler, 2010), que está na base das construções dos gêneros e das relações sociais.
O videoclipe inspirou legiões de amadores a postarem, no Youtube, vídeos deles
mesmos executando a coreografia. Um dos mais vistos é o vídeo de Shane Mer-
cado. Tendo consciência da popularidade que o vídeo “Single Ladies” tomou no
Youtube, Beyoncé, durante seu show, mostrou fragmentos de muitos dos vídeos
postados como “pano de fundo” enquanto cantava e dançava a música. Conforme
Latika Young (2007, p. 4), com a explosão dos websites de vídeo compartilhamento
que divulgam a dança de uma maneira jamais vista antes, um momento de ruptura
dos normativos modos de divulgação está ocorrendo. A audiência de dança não
está mais limitada a apreciar apenas as noções conservadoras do que se constituiria
“Belo”. Ao contrário, estaria imersa em uma noção não convencional de dança, sem
a preocupação de como isto deve parecer (acabamento estético da obra), por quem
isso deve ser criado (formação acadêmica ou profissional) ou onde isso deve ser
apresentado (espaços tradicionais a exemplo das casas de espetáculo e dos teatros).
Este capítulo se detém a estudar o vídeo do dançarino norte-americano Shane
Mercado, postado no Youtube no dia 18 de outubro de 2008, apenas seis dias após
o lançamento mundial do clipe da música Single Ladies. Mercado é dançarino de
formação clássica. Enquanto ainda trabalhava como GoGoboy na boate Splash, em
Nova Iorque, postou o vídeo intitulado “Single Man Dances to Single Ladies”.

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Gênero Trans e Multidisciplinar

IMAGEM 5

O vídeo mostra Mercado em seu quarto, onde executa de maneira precisa a


coreografia específica do videoclipe Single Ladies. A repercussão do vídeo foi as-
sombrosamente rápida e o impacto causado por ele tornou “Single Man Dances to
Single Ladies”, segundo a ferramenta estatística do próprio site, um dos vídeos mais
acessados do ano de 2008, com 2.185.471 acessos.

IMAGEM 6 - Shane Mercado em “Single Man Dances to Single Ladies”, 2008

O impacto de seu vídeo gerou respostas em textos e várias videorrespostas,


além de matérias em noticiários importantes da mídia norte-americana, como o
noticiário CW11 Morning News, ou entrevistas em programas de repercussão na-
cional, como o da apresentadora Bonnie Hunt. Esses vídeos foram postados por
fãs. Muitos dos vídeos postados pelos fãs de Shane Mercado são vídeos com justa-
posições de imagens do videoclipe original da música Single Ladies e as imagens do

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Aroldo Santos Fernandes Júnior

vídeo de Mercado, em que são emparelhadas a execução da coreografia realizada


por Mercado e por Beyoncé.

1. GAROTAS SOLTEIRAS SÓ QUEREM SE


CASAR
Mercado liga e ajusta a câmera filmadora com a mão direita. Anda para o fundo
do exíguo espaço de seu quarto. Com a mão esquerda, pressiona “on” no aparelho
de som. O espaço é um quarto com uma estreita e alta cômoda de madeira escura
em que estão dispostos alguns livros e CDs, o aparelho de som e, no alto, à esquerda
de quem olha (pelo olho da câmera), uma caixa de som.
Acompanhando o nível da cômoda, vê-se o armário pintado em laranja e cinza.
Um guarda-chuva está encostado no canto entre o armário e a porta do quarto, que,
por sua vez, segura objetos como toalhas e uma bolsa. Um grande espelho de mol-
dura metálica dourada está pendurado na parede branca e perpendicular ao armário,
refletindo a parte da cena que não conseguimos ver, como, por exemplo, o exato
momento em que Mercado pressiona “on” no aparelho de som. Ainda com a mão
esquerda, aumenta o volume e, com o corpo voltado em direção à porta do quarto,
aguarda o início da música. Seu foco é interno e demonstra um estado de prontidão
cênica típica de dançarino profissional que é.
A música começa, Mercado dá quatro passos até o meio de seu quarto e, em-
baixo do ventilador de teto, ondula seu tronco dando passos para trás e para frente.
Põe a mão na cintura. Balança os quadris num rebolar frenético. Joga os braços e as
mãos para cima seguindo o comando da música “[...] all put your hands up!”. O tempo
é acelerado; o fluxo é livre; o peso é leve e o espaço é direto, o que lhe confere uma
qualidade de movimento percussiva. Realiza a sequência de um lado para outro do
quarto, sempre numa relação frontal com a câmera. Mesmo quando ele anda em
círculos no espaço, seu foco é externo e direcionado para esse olho/máquina que,
imóvel, o olha.
Nas minhas andanças virtuais, em sites gays de relacionamento, como o gayro-
meo.com ou manhunt.net, comecei a refletir sobre os conteúdos que o vídeo de
Mercado evidencia. Precisei flagrar a mim mesmo, numa incessante busca virtu-
al pelo parceiro ideal, aquele que completaria minha existência e satisfaria meus
maiores sonhos e desejos (Butler, 2010), mas que, na minha realidade imediata e
cotidiana, não consigo encontrar ou, mais assumidamente, não tenho coragem de
me expor ao encontro. Carlos Guilherme Hünninghausen (2007, p. 4) diz que es-
ses sites tomam hoje o lugar dos espaços físicos antes destinados às performances
não contempladas pela ficção da coerência sexual. No entanto, segundo Andrade
(2010, p. 4), transformações sociais atuais, no âmbito da intimidade, nos valores e

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Gênero Trans e Multidisciplinar

comportamentos, apontam algumas rupturas quando outras formas de relações e


identidades – por exemplo, as dos gays e lésbicas – emergem e as pessoas solteiras
podem estar representando também este movimento de mudanças.
Retornei ao Brasil em 2009, após a notícia da morte de meu irmão para estar
perto de meus pais e então voltar a me dedicar à minha carreira artística e acadê-
mica. Precisei escolher entre me manter casado e à margem da sociedade e imerso
numa condição de “sem-estado”, ou estar solteiro e novamente guarnecido de meus
poderes políticos. Obviamente, a condição que me tornou “sem-estado” não foi o
casamento e sim as dificuldades estabelecidas pelas, quase impossíveis de cumprir,
normas de imigração dos EUA. Decidi então voltar, com isso estou atualmente sol-
teiro, após ter terminado o meu relacionamento de quatro anos.
Escrevo esse texto sobre um dançarino, gay, latino, também supostamente sol-
teiro e que se propõe a mostrar essa solteirice. Mas por que tal desejo? Ele se ins-
creve numa dublagem corporal da movimentação realizada por Beyoncé. Só na pri-
vacidade e na suposta segurança de seu quarto, longe de qualquer imediata chacota
ou churria, muito comuns em atos homofóbicos, ele se aproxima da diva através da
identificação com essa força que a Beyoncé divulga. Conforme Lopes (2002, p. 217),
estudos de Wayne Koestenbaum (1993) versam sobre o estreito vínculo entre ho-
mens gays e divas, especialmente mulheres de personalidade forte, que impõem sua
excentricidade, sua diferença ao mundo, mesmo ao custo da solidão como forma de
ir além do silêncio e do estigma. Diz ainda que “os eventos em torno destas divas
criam espaços homossociais, espaços de encontros e reconhecimentos”.
Ele continua sua movimentação. Agora as duas mãos estão na cintura, faz um
Developé num ângulo de 45 graus e mostra a perna. Troca rapidamente as pernas
de lugar e dá um pequeno chute lateral. Ondula o tronco e mergulha para frente.
Retoma sua posição vertical e cruza as mãos na frente do rosto. Põe as mãos na
cintura e começa uma caminhada circular com pequenos passos. Novamente chuta.
Balança rapidamente a cabeça num movimento de cima para baixo. Ele sorri. Vira-
-se de costas e põe as duas mãos para o alto. Rebola rapidamente e marca o balançar
dos quadris, enquanto seus braços descem lentamente. Vira-se de frente novamente
e repete a mesma sequência. Os braços descem pela lateral do corpo e emoldura o
seu rebolado.
Faz um pequeno círculo com o ombro direito. Transfere o peso do lado direi-
to para o esquerdo, para o direito de novo. Realiza simultaneamente um rebolado
frenético, que reverbera num movimento ondulado através de seu tronco e finaliza
com o balançar da cabeça de um lado para o outro. Aponta para o dedo anelar in-
dicando o local de uma aliança imaginária no momento em que a música dita “Put
a ring on it!”. Passa um braço pelo outro ao redor da cabeça. Com o corpo de perfil,
olha sedutoramente para frente dando tapinhas no próprio bumbum.

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Aroldo Santos Fernandes Júnior

Mercado quer ser Beyoncé, mas o que temos, ao contrário de uma mulher ne-
gra, forte e bem-sucedida na profissão, é um garoto gay, latino, magro, tentando,
com essa estratégia, mostrar suas habilidades como dançarino, para conseguir um
emprego melhor ou, simplesmente, fugir da solidão. Mercado está inserido numa
realidade norte-americana governada pelo então presidente George W. Bush. A crise
econômica e financeira começa a abalar instituições estáveis, a exemplo da família, e
as discussões e votações sobre a legitimidade do casamento gay explodem em vários
cantos do país.
Quando a música Single Ladies da Beyoncé foi lançada em 2008, eu morava em
Phoenix no Arizona. Dançava em algumas companhias locais e fazia alguns traba-
lhos como coreógrafo. Morava com meu namorado já fazia três anos e tentávamos
estar inteirados de toda movimentação política relativa à legalização do casamento
gay. Na época, várias proposições foram colocadas em votação e havia um empenho
dos grupos ativistas gays e parte da sociedade para que essas proposições fossem
aprovadas. Eu e meu namorado víamos na aprovação dessas proposições a possibi-
lidade de permanecermos juntos. Eu via também a possibilidade de não só perma-
necer nos EUA, mas me adonar naquele lugar, chamá-lo de meu. Via na legalização
do casamento gay o reconhecimento de um direito basilar, o de ter a possibilidade
de me descolar do estereótipo ao qual o gay solteiro é relacionado. O estereótipo
moralista da bicha promíscua que não sustenta relacionamentos duradouros e que,
por isso, acaba sendo vítima da violência homofóbica, ou se contaminando com o
vírus HIV/Aids e outras mazelas (Mott, 2003, p. 313).
Estou solteiro novamente. Novamente à procura de algum coração que quei-
ra compartilhar afetividade. Novamente nos sites de relacionamento gay, pois não
aguento a solidão. Penso que a solidão é uma morte em vida, uma desaparição.
Contudo, paradoxalmente, estou só no meu quarto, surfando por perfis virtuais,
tentando escapar dessa falta do “outro”. Segundo Barthes (1981, p. 27), “a ausência
amorosa só tem um sentido e só pode ser dita a partir de quem fica”. Mas como
pensar a ausência do outro, se, em “tempos líquidos” (Bauman, 2007), todos es-
tamos sempre partindo, mesmo que seja para buscar esse outro que se foi ou que
ainda não chegou?
Dançar Single Ladies não é apenas aparecer para se tornar estrela de um espaço
sem materialidade. É, também, criar uma estratégia para fugir do monstro da soli-
dão. Dançar Single Ladies é mostrar a solteirice para, paradoxalmente, não pertencer
mais a ela. Nesse jogo em que só há caçadores, a solidão se estabelece e, como con-
sequência, o encantamento melancólico da espera ou a cegueira brutal da procura.

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Gênero Trans e Multidisciplinar

2. AI QUE MEDA! SHANE, MERCADO E


HOMOFOBIA
Mercado executa dois passos no mesmo lugar e, em seguida, realiza um passo
e um giro e para de perfil. Começa pequenos movimentos de socar, sempre com o
foco voltado para a câmera. Joga a cabeça para trás enquanto se dirige para o fundo
do quarto. Retorna ao centro do quarto num mesmo movimento ao reverso. Para de
frente. Cruza e descruza os braços esticados rapidamente em frente ao seu corpo e
corta o ar, o que associo ao movimento de braços do orixá Ogum e, às vezes, Oxum,
quando leva a mão direita até a boca e a mão esquerda e posiciona-se no ar como se
fosse um espelho. Cruza e descruza os braços e rebola até o chão. Fica em pé nova-
mente. Agora passa a mão pelo quadril e para na altura da cintura. Ainda de perfil, ele
projeta o quadril para trás numa pose de manequim em final de passarela se exibindo.
Quando assisti ao vídeo de Mercado pela primeira vez, o impacto de sua per-
formance e a precisão de sua movimentação me impressionaram bastante com sua
virtuosidade técnica.No entanto, não atentei para as implicações políticas que isso
ocasionava. Atento-me para o título do vídeo “Single Man Dances to Single Ladies”,
o que seria na tradução Homem solteiro dança o hit Single Ladies.

IMAGEM 7 - Shane Mercado em “Single Man Dances to Single Ladies”, 2008

De acordo com Ramsey Burt (1995, p. 12), para a maior parte do século XX,
o mundo da dança tendeu a ser predominantemente um domínio feminino, em
termos de audiência, dançarinos e professores. Mercado se apresenta no vídeo em
trajes sumários, simulando o maiô da Beyoncé. O que o corpo de Mercado dubla é a

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Aroldo Santos Fernandes Júnior

movimentação de uma mulher que terminou com o namorado e se utiliza das armas
de sedução para conquistar outro homem. Mercado quer conquistar quem? Essa
simulação diz respeito a que? Ele terminou algum relacionamento com alguém? Ou
ele está apenas celebrando sua solteirice de rapaz gay com seus 20 e poucos anos na
cidade de Nova Iorque? Devido ao grande sucesso de sua performance no vídeo,
cerca de 20.400 comentários foram postados, alguns positivos, elogiando a qualida-
de técnica de Mercado, e outros negativos, como usual resposta homofóbica ao ver
um corpo masculino in/trans/vestido na movimentação de uma mulher.
Um dos comentários negativos foi postado pelo usuário com codinome Air-
Jordans1010, e diz: “You FUCKN FAGGET, Your such a douch u bitch azz craker! Why
dont you get a pair of balls and be a fuckin man. Ugh Ohhh... Some body’s playen for the other
team” . De acordo com Zigmunt Bauman (1998, p. 27), aquilo ou aqueles que não
se encaixam no mapa cognitivo, moral ou estético do mundo é um “estranho”, pois,
por sua insubordinação às normas estabelecidas, eles obscurecem e tornam frágeis
as linhas que estabelecem fronteiras e geram a incerteza e o mal-estar de se sentir
perdido. A homossexualidade e o sujeito homossexual foram inventados no século
XIX (Louro, 2004; Foucault, 1988). Com a incorporação das perversões e a nova es-
pecificação de indivíduos provocada pela caça às sexualidades periféricas, a sodomia
passa a ser um ato interdito. Com isso, o homossexual se torna um “estranho”, algo
misterioso que borra o sonho da pureza da heterossexualidade compulsória. Desse
estranhamento e desses medos associados à homossexualidade nasce a homofobia.
Sedgwick (1985) propõe que a homofobia, na sociedade ocidental, está direta-
mente relacionada ao modo como homens se relacionam uns com os outros ho-
mossocialmente. Ela argumenta que a estrutura triangular fundamental em nossa
sociedade patriarcal é aquela em que a mulher está situada em uma posição subordi-
nada e intermediária entre dois homens. O seu argumento é que, nas relações entre
homens na sociedade contemporânea ocidental, expressões emocionais e sexuais
são necessariamente suprimidas no interesse de manter o poder masculino. Para
Burt, a chave fonte do preconceito contemporâneo em relação ao dançarino ho-
mem é a associação deste com a homossexualidade. Segundo Louro (2004, p. 30),
alguns artistas, a partir dos anos 1970, no Brasil, como Ney Matogrosso e o grupo
Dzi Croquetes apostam na ambiguidade sexual, tornando-a isso uma marca em suas
performances. Essas características perturbam não apenas as plateias, como toda a
sociedade. Ora, o que fez o vídeo de Mercado se tornar um grande evento no You-
tube e, com isso, o tornar uma celebridade fora do mundo virtual foi exatamente
essa ambiguidade discursivamente produzida. Com o ideal de ficar parecido com a
Beyoncé no vídeo “Single Ladies”, Mercado estabeleceu uma marca, com sua apa-
rência e principalmente com sua desenvoltura técnica, borrando a ideia de original e
cópia, como em Andy Warhol, e desmantelando localizações normativas no tocante
ao que deve ou não ser dançado.

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Gênero Trans e Multidisciplinar

3. FAÇA UMA POSE! “SINGLE MAN ‘VOGUING’


TO SINGLE LADIES”
Mercado reproduz o ato de passar batom nos lábios me remetendo ao estilo vo-
guing. Apoia a mão no quadril e gira o ombro para trás e para frente. Abre os braços
lateralmente e, de forma fragmentada, os eleva. Traz novamente os braços para bai-
xo. Põe a mão esquerda na cintura e inclina lateralmente seu tronco enquanto lança
seu braço direito para o alto. Retorna à posição vertical. Faz sinal de negação com a
mão direita. Põe a mão direita na cintura e, com o movimento de cabeça para o lado
esquerdo, marca uma pausa de tempo. Com a mão direita, espana o ar da esquerda
para direita. Aponta para frente e faz um movimento circular com o tronco. Põe no-
vamente as mãos na cintura. Ondula seu tronco para frente e para trás rapidamente.
Mercado projeta seu quadril lateralmente de perfil e rebola repetidas vezes.
O gestual de se maquiar, que Mercado executa, me reporta ao filme dirigido por
Jennie Livingston, intitulado Paris is Burning. O filme é um documentário realizado
em 1991 e narra os competitivos bailes de drag queens nos clubes do Harlem, em
Nova Iorque, entre 1987 e 1989. No filme, os modelos que andam e competem por
grandes troféus no decorrer dos bailes são homens gays, economicamente pobres,
latinos e afrodescendentes, travestis e transexuais. O filme divulga um tipo específi-
co de movimentação largamente utilizada nesses bailes, o vogue. O gestual se refere
à reprodução de gestos relacionados ao mundo da moda.

IMAGEM 8 - Cartaz do documentário Paris is Burning da diretora Jennie


Livingstone, 1991

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Aroldo Santos Fernandes Júnior

Os participantes fazem e congelam poses, como se estivessem posando para


a capa da revista Vogue. Reproduzem o ato de se maquiar, a maneira de andar dos
modelos, as poses de final de passarela e projetam referenciais de poder aquisitivo
e sucesso. A identificação com esses referenciais se dá pelo fato de que, na moda, a
resolução do mundo é definitiva e, por esse motivo, o seu brilho seduz ao encanta-
mento (Baudrillard, 1996, p. 145).
No filme de Livingston, a identificação desses interlocutores com as ideias de
sucesso, riqueza e felicidade vendidas pela moda é apresentada nas competições
através do vogue. Essa movimentação representa a impossibilidade de realização
desses sonhos e emoldura o espaço desse específico teatro. Como em Paris is Bur-
ning, no vídeo de Mercado essa sedução está muito estampada na tentativa de repro-
dução do vestuário da cantora de sucesso, na escolha da música com mais de 145
milhões de acessos, no preciosismo e no virtuosismo técnico da execução da core-
ografia e na confirmação dos interesses de fã em se aproximar do ídolo. Segundo
Phelan (1993, p. 94), os bailes documentados no filme de Livingston são disfarces
da ausência de afeto e da falta de dinheiro, os quais encenam o poder masoquista e
o genuíno prazer na identificação simbólica tão crucial para ambos, o capitalismo e
o desejo erótico.
O vogue é apresentado em Paris is Burning como uma espécie de batalha como
as que acontecem na cultura Hip-Hop. Ainda conforme Phelan, “Vogue é descri-
ta como uma guerra de gangues ‘segura’”. Os participantes de grupos distintos
mostram suas habilidades corporais, executam movimentos sofisticados e tentam
superar o grupo rival. Esses bailes revelavam o anseio de homens gays, travestis e
transexuais em se passarem como “normais”, estarem inseridos na normatividade
hegemônica e, portanto, passarem despercebidos, sem serem marcados como “ou-
tro”. O documentário como veículo midiático revelou de maneira etnográfica uma
camada da sociedade ignorada e excluída pela mesma. Contudo, os participantes
dos bailes, no filme de Livingston, permaneceram, “sob a lei do documentário et-
nográfico que os permite reter algo de seu poder subversivo, o poder daquilo que
não e mostrado”.

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Gênero Trans e Multidisciplinar

IMAGEM 9 - Madonna em cena do vídeo “Vogue”, foto internet. 1990

Um ano antes de ter sido divulgado em Paris Is Burning, o vogue ressurge como
uma maneira de se movimentar e expressar desejos. Essa dança teve origem na cena
dos bailes do Harlem em 1960, mas foi com o videoclipe de Madonna “Vogue”,
lançado em 1990, que esse estilo de dança invadiu as pistas das boates no mundo
inteiro.
Segundo Slavoj Zizek (1989, p. 109), “na identificação simbólica nós nos iden-
tificamos com o outro exatamente no ponto em que ele é inimitável, no ponto
que escapa a semelhança”. Nesse sentido, Mercado está voguing e se enquadra na
perspectiva de identificação simbólica com a Beyoncé, ao ponto do que ele, como
dançarino, poderia estar mais próximo dela, nesse caso com sua movimentação. A
movimentação de Mercado é uma resposta no estilo batalha com a qual ele tenta,
de alguma forma, se aproximar ou mesmo superar a movimentação “original” da
Beyoncé no videoclipe.

4. COREOGRAFANDO O CONSUMO
Mercado realiza movimentos pequenos e rápidos com os braços ao redor da
cabeça e vira-se de perfil para a câmera. Alterna golpes com as mãos levantando os
joelhos alternadamente aos movimentos das mãos. Vira-se de frente. Dá pequenos
golpes com as mãos nos seus quadris. Repete a sequência e começa uma trajetória
semicircular até o fundo do quarto onde para de perfil e repete o gesto de negação,

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Aroldo Santos Fernandes Júnior

sacudindo ao mesmo tempo o quadril. Vira-se de frente. Ele mostra a palma e as


costas das mãos repetidas vezes enquanto projeta seu ombro oposto para frente e
para trás. Mercado repete esse movimento por algum tempo. Balança os ombros
de frente para trás como se estivesse dançando merengue. Já de perfil, Mercado
expande e contrai seu tronco repetidamente realizando quase que simultaneamente
círculos com os braços em frente ao seu corpo. Rebola. Põe as mãos na cintura e
rebola mais ainda. Joga as mãos para frente e caminha com pequenos passos em
direção à câmera.
Mercado para de perfil, põe a mão na cintura e oferece a outra num gesto como
se dissesse “beije-a”! Balança a cabeça de cima para baixo e, com pequenos pulos
sincopados, descreve um semicírculo até o fundo do quarto onde executa uma pi-
rueta. Para de perfil e, com o braço esquerdo esticado, aponta para o chão e alisa-
-o com a mão direita. Seu tronco contrai e expande. Ele repete os movimentos
marcando-os com a mão no quadril. Sua movimentação agora é ampla, rápida e leve.
Faz piruetas en dedans e en dehors. Caminha do fundo para frente do quarto como se
fosse uma bailarina na corda bamba. Faz esses movimentos rapidamente. Marca
pequenos passos, faz um círculo em torno de si e caminha para o fundo do quarto.
Mercado põe as mãos para o alto e começa a bater palmas marcando o pulso da
música. Faz um percurso indireto e sinuoso para frente. De perfil, começa a repetir
o ato de dar tapas no bumbum.
Joga a cabeça e o quadril para o lado direito e, com o braço na altura do rosto,
aponta o dedo para mostrar o lugar da aliança em sua mão esquerda (a aliança não
existe). Joga a mão esquerda para cima e lá a sacode de um lado para outro. Trans-
fere o peso do corpo para trás e começa uma sequência de pequenos gestos com
a mão esquerda e mergulhos com o tronco para frente. Mostra esse lugar do anel
algumas vezes. Com as mãos faz um jogo de esconde/mostra sua virilha. Faz um
movimento com as mãos como se estivesse pulando corda enquanto caminha para
frente do quarto na direção da câmera. Para de frente para a câmera com a mão
esquerda aberta, na altura de seu rosto e, com a mão direita, segura a esquerda. A
música termina. Mercado está com a respiração ofegante. Ele caminha em direção
da câmera e a desliga. (Fim do vídeo).
Esse pequeno escrito do vídeo de Mercado abre espaço para a análise de todo o
detalhe que foge à vista. Há nessa imagem um detalhe específico que o olho fixo da
câmera que olha/filma Mercado registra e esconde e, somente no momento da des-
crição escrita, pude perceber. O duplo é criado dentro da imagem. O reflexo do es-
pelho dourado duplica Mercado e cria outra camada possível de percepção. Cria um
efeito de sedução, de descentramento da imagem principal de Mercado. É um ponto
de fuga que revela o esconderijo daquilo que não é mostrado na imagem central
da ação. Isso me dá possibilidades de problematizar a presença “real” de Mercado.
Nesse vídeo, seu corpo é completamente exposto, extremamente iluminado, refle-

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Gênero Trans e Multidisciplinar

tido e duplicado pela câmera e pelo espelho, sua presença é intensificada. Mercado,
no vídeo, é mais verdadeiro que o verdadeiro, é o máximo do simulacro. Segundo
Baudrillard (1991, p. 8), o simulacro é “[...] a geração de modelos de um ‘real’ sem
origem, nem realidade: hiper-real”. Uma “simulação desencantada”. É Pornô.
Nessa perspectiva penso em simulação, mas uma simulação como sugere Bau-
drillard, “desencantada”. Não há encantamento na ausência presente de Merca-
do. Muitos dos movimentos realizados por ele são movimentos que se repetem,
mas uma repetição que está atrelada ao estabelecimento de padrões hegemônicos
politicamente engajados na consolidação dos discursos de uma mídia capitalista e
massificadora. Observo que a tentativa de Mercado em se aproximar da figura de
Beyoncé é perigosa. Caracteriza a anulação da identidade de Mercado como agente
performativo que produz conhecimentos, e firma-o como reprodutor de conceitos
hegemônicos de poder aquisitivo, beleza, fama e sucesso profissional, a partir da
vinculação da solteirice como modo de existência.
A intenção de Mercado de aproximar-se da figura da Beyoncé, a partir de uma
identificação de fã, é estabelecida genuinamente por uma subjetividade que vê a pos-
sibilidade de expressar seus desejos, sonhos, frustrações pela dublagem. Aqui, nesse
caso, uma dublagem que vai além da dublagem labial para uma dublagem de corpo
inteiro. O efeito disso ocasiona duas leituras diferentes. A primeira seria a aparição
do poder falogocêntrico2 da voz, pelo artifício da música dessa cantora, reproduzida
mecanicamente no aparelho de som. O vídeo mostra um feminino que não se revela
e que marca sua presença pela própria ausência, como no filme The Man Who Envied
Women, da coreógrafa e cineasta Yvonne Rainer (1985). No vídeo de Mercado, assim
como no filme de Rainer, a presença masculina (Mercado) é esmaecida pela força
deste feminino libertário (Beyoncé), que não aparece, mas, pela voz, dá comandos
e marca sua presença.
A coreografia executada tanto no vídeo de Mercado quanto no vídeo original
de Beyoncé é uma coreografia de comandos, em que ambos, Beyoncé e Mercado,
apenas ilustram o que a música está dizendo: “put a ring on it!”, “put your hands up!”.
Esse tipo de coreografia é muito comum no mercado da música pop, desde o sur-
gimento das grandes estrelas como Michael Jackson e Madonna nos idos de 1984.
Desde então, praticamente todas as coreografias estão implicadas em ilustrar o que
está sendo dito na música. O tipo de coreografia em questão coloca a dança em
uma posição de apenas reprodutora de conhecimentos e não passível de produção.

2. O argumento falogocêntrico se baseia na alegação de que a cultura ocidental moderna tem sido, e con-
tinua a ser, tanto cultural e intelectualmente subjugada pelo “logocentrismo” e pelo “falocentrismo”. O
logocentrismo é o termo que Derrida usa para se referir à filosofia da determinidade, enquanto o falocen-
trismo é o termo que ele usa para descrever a maneira como o logocentrismo foi absorvido por uma agenda
“patriarcal” “masculinista (fálica)”. Assim, Derrida intencionalmente mescla os dois termos, falocentrismo
e logocentrismo, como “falogocentrismo”.

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Aroldo Santos Fernandes Júnior

Jussara Setenta (2008, p. 19) diz que “neste tipo de criação, o assunto não inventa
uma língua na qual quer ser falado, nem um modo próprio ao assunto que o faça
articular-se dentro de uma língua já existente”. Assim, essa investida de Mercado em
marcar sua diferença, se igualando metaforicamente a Beyoncé, neutraliza politica-
mente sua voz coreográfica como produtora de conhecimentos e o torna apenas um
fantoche que executa movimentos.
A segunda leitura é a ratificação da condição de subalterno a uma normativida-
de que não se expõe e que nunca é atingida por esses discursos. Mercado é uma drag
da Beyoncé, posto que o corpo midiático de Beyoncé aparece pela imagem de Mer-
cado com a execução da coreografia. Louro (2004) afirma que a drag não tem como
propósito se passar por uma mulher, mas, com o proposital exagero dos traços
convencionais do feminino, exorbita e reforça marcas corporais, comportamentos e
atitudes, para com a paródia de gênero aproximar-se e legitimar e, ao mesmo tempo,
subverter o sujeito que copia. Dessa forma, a figura da drag permite pensar sobre os
gêneros e a sexualidade, questionar a autenticidade dessas dimensões e refletir sobre
seu caráter construído. Já Butler (1993, p. 125) diz que não há, necessariamente, uma
relação entre drag e subversão e a drag pode, muito bem, ser usada a serviço tanto
da desnaturalização quanto da reidealização das normas heterossexuais de gênero.
No vídeo de Mercado, a mídia é corporificada na imagem da cantora (entendo
Beyoncé também como uma drag da mídia) e estabelece um domínio subjetivo da
identidade de Mercado a partir do estético, da coreografia, da roupa, da música e
da sedução do mundo das celebridades instantâneas. A coreografia que Mercado
realiza nesse vídeo reproduz as informações da mídia que está interessada na re-
produção de conceitos que possam facilmente ser consumidos. “Esses violentos
efeitos socioculturais têm o corpo como agente que argumenta, estrategicamente,
os discursos na artificialidade dos enunciados, em que a lógica do consumo dita a
compreensão de cultura, identidade, gênero e sexualidade” (Garcia, 2004, p. 4).
Atualmente, o incentivo ao consumo gay cresce desenfreadamente; boates,
bares, festas, shows, cruzeiros, dentre outros, são os produtos mais consumidos
por gays solteiros. Com a perspectiva de legalização do casamento gay e de todos
os direitos conquistados ou ainda a serem conquistados, a exemplo da adoção, da
constituição de família, do direito de inclusão do parceiro em planos de saúde e
previdência social, outras possibilidades de consumo são desencadeadas e o que,
a princípio, estaria apenas relacionado a uma hegemonia heterossexual passa a ser
alvo de interesse do público gay.

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Gênero Trans e Multidisciplinar

IMAGEM 10 - Foto montagem de Shane Mercado em apresentação da


coreografia “Single Ladies”na boate “Splash”em Nova Iorque, 2008

No título deste capítulo fiz a pergunta: “Você colocaria uma aliança?” O intui-
to era questionar outra possibilidade de existir além da solteirice apresentada pelo
vídeo de Mercado. Penso que a solteirice se estabelece como um lugar de vulnera-
bilidade, que se aproxima do efêmero. O medo de não existir, de perecer, de desa-
parecer é forte, mas o medo de existir solitariamente é muito maior. A solidão se
configura como uma “morte em vida” e isso é aterrador. Então, performativamente,
digo “sim, eu colocaria uma aliança”, “sim, eu aceito”. Aceito o casamento gay
como a forma de resistência e fuga desse lugar de solidão, apesar de saber que esse
não redime a violência, a homofobia ou a morte a que estamos sujeitos.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Darlene Silva Vieira. Reflexões sobre sexualidade e gênero a partir de


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CAPÍTULO VI
REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO
SOBRE O TRABALHO E A
APOSENTADORIA DE DOCENTES DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE1

Maria Helena Santana Cruz2

INTRODUÇÃO
As últimas décadas, particularmente em meados dos anos 1980 e 1990, testemu-
nharam intensas mudanças econômicas e políticas, trazidas pela influência neolibe-
ral e pela reestruturação produtiva, as quais flexibilizaram o mercado de trabalho em
todos os setores da economia, nos de comunicação, nos educacionais, nos sistemas
de ensino/aprendizagem e nas formas de consumo, afetando as relações de trabalho
em todos os setores, com inúmeras implicações sociais. Tal como o trabalho manu-
al, o trabalho intelectual também passa a sofrer um processo de desqualificação e
precarização que leva, cada vez mais, à perda de seus valores, sejam eles simbólicos
ou materiais.
É possível afirmar que o século passado foi caracterizado por profundas
transformações histórico-culturais, entre elas a concepção de velhice (que se
apresenta de maneira múltipla e diversificada. Não existe velhice, mas velhices) e a
organização familiar como um modelo único (a família continua mas transformou-
se). O feminismo, o trabalho e a possibilidade de carreira para as mulheres, em todas
as áreas profissionais, a pílula anticoncepcional, que deu poder às mulheres para
decidirem se querem ou não ter filhos, e as novas formas de reprodução humana
1. Este texto é produto de pesquisa realizada com o apoio financeiro do CNPq –Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, e insere-se nos propósitos do Projeto
Institucional do Grupo de Pesquisa do Diretório do CNPq: “Educação, Formação, Processo de
Trabalho e Relações de Gênero” e do “Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher e
Relações de Gênero” (NEPIMG) da Universidade Federal de Sergipe.
2. Professora Associada da Universidade Federal de Sergipe; dos Programas de Pós-Graduação em Educa-
ção (NPGED) e Sociologia (NPPCS); mestra e doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia;
realizou estágio de Pós-Doutorado em Educação (UFS); lidera o grupo de pesquisa do Diretório do CNPq:
“Educação, Formação, Processo de Trabalho e Relações de Gênero”(UFS); integra a coordenação
do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher e Relações de Gênero (NEPIMG) na mesma ins-
tituição. Email: helenacruz@uol.com.br

83
Maria Helena Santana Cruz

participaram dessas transformações. Novos padrões culturais que produzem mu-


danças de comportamentos são responsáveis pelos avanços, sucessos, sofrimentos,
aquisições e perdas.
Nesse contexto, a universidade é um segmento da sociedade no qual são encon-
trados representativos de suas várias vertentes, constituindo-se como um espaço
social que foi se tornando, historicamente, nas sociedades urbanas ocidentais, um
locus privilegiado para a formação de mulheres e homens; é ela própria, um espaço
generificado, isto é, um espaço atravessado pelas representações de gênero.
Se, na sociedade, a questão das relações sociais de gênero é nova e controversa,
o mesmo ocorre na universidade. As relações sociais construídas na universidade, na
escola, assim como outras instituições da sociedade, em suas múltiplas dimensões,
vêm generificando os sujeitos. E, sob essa condição, a universidade também produz
(e não apenas reproduz) preconceitos, desigualdades, posições hierárquicas e nor-
mativas em seus múltiplos processos.
A abordagem de gênero adotada neste estudo propõe-se a resgatar as memórias
de docentes, após adentrarem no universo da aposentadoria do ensino superior,
evento que marca a ruptura com a existência no mundo do trabalho na Universida-
de Federal de Sergipe, possibilitando, assim, compreender como reconstroem suas
identidades, aspectos integrantes do processo de sua cidadania.
A questão geracional é uma das importantes questões debatidas atualmente no
interior do movimento feminista internacional, marcado pela participação de mu-
lheres engajadas entre o final dos anos 1960 e o início dos anos 1980, mulheres que
tinham na época menos de quarenta anos – nascidas em sua imensa maioria, nas dé-
cadas de 1940 e 1950. Em encontros feministas, nos quais são feitas avaliações dos
avanços e retrocessos do “movimento”, lamenta-se seguidamente que “não existe
uma renovação no movimento”. Da mesma forma, adverte-se para a desconside-
ração dos(as) jovens de hoje, em relação aos avanços conquistados pela geração de
mulheres que as precederam e que, por isso, “não se interessam pela militância femi-
nista”. Em outras palavras, significa dizer, que “o movimento está envelhecendo, ou
melhor dizendo, haveria um envelhecimento significativo das militantes”.
O mundo dos velhos professoras(es) aposentados(as) – de todos os velhos – é,
de modo mais ou menos intenso, o mundo da memória, olhando-se esse tempo a
partir das mudanças que ele representa e concretiza no interior das trajetórias de
docentes aposentados. Procurou-se ouvir a dar a voz ao professor, na condição de
idoso aposentado, pois suas falas transmitem vários aspectos relevantes, que tendem
a fixar os elos de continuidade e permanência que definem a experiência. (Goodson,
1995, p.75). Discute-se a ampliação dos direitos das pessoas idosas, como expres-
samente trazido por Norberto Bobbio (1992, p. 52), ao criar a clássica divisão dos
direitos humanos em gerações, como reflexo dos avanços tecnológico e moral das
sociedades. O crescimento dos direitos sociais estaria sempre em expansão e está

84
Gênero Trans e Multidisciplinar

diretamente relacionado às transformações da sociedade. Ecléa Bosi (1987, p. 97),


em sua obra Memória e Sociedade: lembranças de velhos, assume o lugar de defensora
dessas pessoas banidas e cruelmente silenciadas, e dá voz aos narradores da classe
operária paulistana. Trabalhando com o conceito de memória-trabalho, ela monta
vários cenários paulistanos a partir dos depoimentos de seus antigos moradores em
busca de suas identidades e do seu pertencimento.
As pessoas idosas estão mais vulneráveis à desvalorização da sua dignidade e
dos seus direitos e necessidades, pois, em sua maioria, não fazem mais parte do
processo de produção e lucratividade. Em um Estado neoliberal, o professor apo-
sentado, que não produz mais para o mercado capitalista, está sujeito ao isolamento
do convívio social. Sob essa perspectiva, os aposentados não dão mais lucro. Des-
tarte, o continuar trabalhando constituiria um dos sentidos de vida para um gru-
po de professores(as) aposentadas(os). Nessa linha de reflexão, emergiram alguns
questionamentos: Quem são as(os) docentes aposentados da UFS? Qual o destino
de professores aposentados em condições de trabalhar pela causa da educação em
seus ambientes de vida? Qual o sentido da aposentadoria, numa fase em que a(o)
professora(or) idosa(o) se percebe ainda com energia, coragem e vontade de traba-
lhar pela educação? Como reconstroem suas identidades e percebem as mudanças
significativas em suas vidas após a ruptura com o trabalho? Afirma-se, em primeiro
lugar, que o gênero dos protagonistas é relevante na análise do processo de trabalho
docente. Michael Apple (1987, p. 6) chama a atenção para essa lacuna e propõe a
articulação entre classe e gênero como possibilidade de aprofundamento da com-
preensão acerca do trabalho docente. A menos que vejamos as conexões entre essas
duas dinâmicas, classe e gênero, não poderemos compreender nem a história nem
as tentativas atuais para racionalizar a educação ou as raízes e os efeitos da proleta-
rização sobre o próprio trabalho de ensinar (Apple, 1987, p. 6).

1. APORTES TEÓRICO-METODOLÓGICOS
Educação, trabalho, gênero e envelhecimento são consideradas categorias cen-
trais para a análise, entendidas como conceitos dinâmicos, na perspectiva de cons-
trução histórica e cultural. A associação do indivíduo, da cultura e da sociedade,
possibilita integrar os níveis psicológicos (do indivíduo), culturológicos (da cultura)
e sociológicos (da sociedade) evitando-se cair em uma abordagem cristalizada. A
questão própria do sentido do trabalho relaciona-se com a produção de identidade,
isso porque, as identidades profissionais são as formas socialmente construídas pe-
los indivíduos a fim de se reconhecerem uns aos outros no campo do trabalho e do

85
Maria Helena Santana Cruz

emprego3. A experiência do trabalho é entendida como espaço de luta, como pro-


jeto vital que transforma o ser humano no curso da vida, com o avançar dos anos.
Assim, a abordagem adotada permite, antes de tudo, refletir sobre a construção de
trajetórias de vida de homens e mulheres docentes, ao longo do seu ciclo de vida,
no contexto da universidade na sociedade em que está inserido. Conforme Castel
(1998, p. 61), a partir do entendimento da relevância do trabalho como “suporte
privilegiado de inscrição na estrutura social”, destaca-se as consequências do recente
processo de individualização na construção das identidades profissionais.
A utilização do conceito de gênero não está ligada ao desempenho de papéis mas-
culinos ou femininos, mas sim à produção de identidades – múltiplas e plurais – de
mulheres homens no interior de relações e práticas sociais (portanto no interior das
relações de poder). Compreende-se que essas relações e práticas não apenas consti-
tuem e instituem os sujeitos (esses vários tipos de homens e mulheres), mas também
produzem as formas como as instituições sociais são organizadas e percebidas.
O gênero se realiza culturalmente, por ideologias que tomam formas específicas
em cada momento histórico e tais formas estão associadas a apropriações político-
-econômicas do cultural, que se dão como totalidades em lugares e períodos deter-
minados. São muitos os usos e os abusos do gênero, para empregar a feliz expressão
de Scott (1990, p. 17) e Heilborn (1992, p. 53). Busca-se superar o determinismo bio-
lógico, o qual, baseado apenas nas diferenças de sexo e reforçado por argumentações
provenientes da medicina e das ciências biológicas, tenta justificar a caracterização
de mulheres e homens como seres qualitativamente distintos. O conceito de gênero
constitui uma categoria explicativa e fértil para a análise dos aspectos da docência, e
possibilita uma reflexão para além da mera presença do sexo feminino, muito mais
pródiga de razões que a pura e simples composição sexual poderia sugerir.
A imagem que a(o) professora(or) constrói de si mesmo e perante a socieda-
de faz parte do processo constitutivo de sua identidade profissional. Entre as(os)
docentes aposentados, a elevada idade permite-lhes narrar um tempo que envolve
suas trajetórias com a educação superior na universidade, e as peculiaridades de suas
histórias de vidas vinculadas a uma época. Nessa linha de reflexão, teoricamente,
Giddens (1993, p. 3-4) fala do eu como um projeto reflexivo, mas ele não pode ser
caracterizado da mesma forma para homens e mulheres. Nesse ponto, conforme
Hall (1997, p. 86), a cultura tem a ver com os significados partilhados, com a asso-
ciação direta entre representação, cultura e a linguagem que é o meio privilegiado
que dá sentido a tudo isso, à materialização das ideias e à interpretação do mundo.

3. É questionada a visão determinista que relaciona, de forma estreita, situação de trabalho e formas de
identificação dos trabalhadores. A situação, considerada apenas no sentido objetivo, não seria suficiente
para compreender as identidades no trabalho. Os desafios atuais da docência universitária parecem estar
requerendo saberes que até então representam baixo prestígio acadêmico no cenário das políticas globali-
zadas, porque extrapolam a possibilidade de quantificar produtos.

86
Gênero Trans e Multidisciplinar

É uma questão de como se vive numa sociedade que se descobre rompendo com
as tradições.
A abordagem do envelhecimento focaliza a constituição do sujeito docente, suas
representações e subjetividades, dando condições de compreender a constituição da iden-
tidade no transcurso das sucessivas identificações, entendendo o envelhecimento
como um processo de perdas e aquisições.
Tomaz Tadeu da Silva (1996) afirma que os modos como os grupos sociais são
representados podem nos indicar o quanto esses grupos sociais exercitam opoder,
podem nos apontar quem é, mais frequentemente “objeto” ou “sujeito da represen-
tação”. A representação constitui uma forma de conhecimento prático e sistemas de
diferenciação que orientam a comunicação e o comportamento entre as pessoas. Entre
as várias concepções de representação, a de Jodelet detém amplo consenso, por incluir
a dimensão ideológica e permitir identificar os elementos da cognição, os investi-
mentos afetivos, os elementos axiológicos, ressaltando-se os elementos históricos
identificados: “A representação4 social é uma forma de conhecimento socialmente
elaborada e partilhada, tendo uma visão prática e concorrendo para a construção de
uma realidade comum a um conjunto social” (Jodelet, 1989, p. 36).
A subjetividade é o resultado de múltiplas determinações em geral, contraditó-
rias entre si e em permanente tensão mútua. Se a identidade se constitui e funciona
num sistema de relações sociais, sua representação pressupõe crença e valores que
estão presentes nessas relações como formas de conhecimento e de significados que
fazem parte do processo de criação e manutenção de identidades sociais de grupos.
Em sua discussão sobre a constituição de subjetividade, Weedon (1987) destaca que
a subjetividade nos permite reconhecer e tratar das formas pelas quais os indivíduos
dão sentido a suas experiências através do discurso, incluindo seus entendimentos
conscientes e inconscientes e as formas culturais disponíveis, através das quais tal
entendimento é reprimido ou permitido.
Sabe-se que explicar as diferenças de gênero não é tarefa fácil, principalmente
quando as investigações nacionais sobre o tema ainda são escassas. O que a refle-
xão internacional nos indica é que esse fenômeno, embora variando entre países
e contextos, assume certa regularidade, em que as mulheres estão em permanente

4. Em seu estudo A representação social da Psicanálise, Moscovici (1978, p. 29), ao contestar Durkheim,
parte da concepção de “representação coletiva” para efetuar e desenvolver o seu estudo sobre representa-
ção social. Nesse aspecto, sem dúvida, sua contribuição ao entendimento quanto à possibilidade da aplica-
ção do conceito de representação social é considerada equivalente à criação de um novo paradigma para a
produção de trabalhos científicos. O seu conceito de representação social é“um corpus organizado de co-
nhecimentos e uma das atividades psíquicas graças às quais os homens tornam inteligível a realidade física e
social, inserem-se num grupo ou numa ligação cotidiana de trocas e liberam os poderes de sua imaginação”.
Para o autor, os conceitos de opinião e de imagem são muito semelhantes ao de representação social, se
considerarmos os conceitos interpretados em “sentido estrito”.

87
Maria Helena Santana Cruz

desvantagem. Um primeiro conjunto de fatores para explicá-lo envolve a socializa-


ção de gênero que conforma as escolhas profissionais e delimita os horizontes de
possibilidade de homens e mulheres, atendendo a diferentes expectativas sociais e
familiares. As “diferenças” não existem fora de um esquema de representação que
serve para criá-las e fixá-las, e esse sistema de representação, por sua vez, não existe
fora de um sistema de poder (De Lauretis, 1994, p. 214).
De acordo com Rosemberg e Amado, ainda hoje é escassa a reflexão sobre a
relação entre homens e mulheres, assim como sobre os significados de masculini-
dade e feminilidade com base nas relações de gênero, tema pouco explorado pelos
estudos sobre educação no Brasil até 1980 (Rosemberg; Amado, 1992, p. 62-74).
A passagem do feminino ao gênero foi examinada já no início dos anos 1990 por
Castro e Lavinas (1992, p. 68), as quais constataram que as análises e abordagens
sobre mulher e trabalho ainda são escassas na maioria das pesquisas em educação.
Elas insistem em ver a escola como uma esfera perpassada quase exclusivamente
por diferenças de classe, desconsiderando dimensões como gênero, geração e etnia/
raça (Cruz, 2005, p. 97).
Existe uma ampla e variada produção teórica que trata do processo de envelhe-
cimento, ou da condição da velhice (às vezes sob a capa eufemística da designação
terceira idade). Conforme Britto da Motta (2004, p.110), a velhice deve ser pensada
no plural, não só pela constatação da pluralidade de formas de envelhecer dentro
do mesmo grupo etário, mas porque há vários grupos etários dentro desta única
denominação genérica de velhice.
O resgate do passado vem ganhando interesse cada vez maior de pesquisadores
e estudiosos, os quais apontam a utilidade desse tipo de interlocução entre a pes-
quisa qualitativa e a educação por meio da história oral, haja vista que este tipo de
abordagem teórico-metodológica, “permite recuperar os relatos e experiências dos
sujeitos com os quais eles trabalham, e, desta forma, aproximam-se da cultura e dos
valores mais amplos da sociedade” (Queiroz, 1988, p.27). Para este estudo, realizado
entre fevereiro de 2011 e janeiro de 2012, adotou-se a metodologia qualitativa por
meio da história de vida oral,pararesgatar a memória, processo importante na cons-
trução de identidade de docentes tendo como respondentes oito mulheres e dois
homens egressos de vários centros e departamentos da UFS.
As histórias de vida produzem momentos de balanço retrospectivo sobre os
percursos pessoais e profissionais que, na verdade, são momentos em que cada um
produz a sua vida, o que, no caso deste grupo de professores, é também produzir
a sua profissão (Goodson, 2000, p. 71). Homens e mulheres, por meio dos códigos
de sua cultura, são capazes de falarem de si e de seu mundo social, interpretando
e construindo significações. Em pesquisa com professores aposentados, há que se
levar em consideração a análise de suas experiências, captadas por meio de entrevis-
tas com base em um roteiro básico, sobre temas da ação docente e suas múltiplas

88
Gênero Trans e Multidisciplinar

dimensões e/ou componentes inter-relacionados, gravadas e depois transcritas para


sistematização e análise, de acordo com o referencial teórico e conceitual adotado.
(Carlini-Cotrim, 1996, p. 6).
O processo de análise de conteúdo mostrou-se relevante para se identificarem,
nos depoimentos de docentes, as convergências e divergências entre homens e mu-
lheres com relação ao trabalho no ensino superior, com base a análise de temas
considerados relevantes sobre suas trajetórias de vida. Nessalinha de reflexão, como
diz Benjamin (1987, p. 68, grifos do autor) “passado, presente e futuro se conectam e se
redimensionam em novas constelações”.
Uma das grandes conquistas deste século, segundo especialistas, foi o aumento
da longevidade, com implicações bastante importantes na família e na sociedade e,
em especial, sobre a própria população idosa. Dados da
ONU (2012) indicam que até 2025 a população de idosos atingirá os 20% no
conjunto populacional, devendo superar o número de crianças no contexto da po-
pulação mundial. Desde o primeiro censo demográfico realizado em 1872 ao do ano
2000, ocorreram alterações significativas nos indicadores demográficos: taxa de na-
talidade e taxa de mortalidade. Dados do PNAD (IBGE, 2005) indicam que o Brasil
possui quase 20 milhões de pessoas idosas com idade acima de 60 anos, numa po-
pulação total de cerca de 190 milhões de brasileiros, apontando uma projeção para
2025 de uma população total de 34 milhões de pessoas e, nesse conjunto, 15% for-
mado por pessoas idosas. As mulheres atingem 55% da população de idosos. Nos
domicílios em que vivem os idosos no Brasil, eles representam 86,5% dos chefes de
família e 20% em relação ao total de domicílios no país. Nas trocas intergeracionais,
a direção das contribuições e dos apoios se dá dos mais velhos para os mais moços,
mesmo entre familiares que não residem na mesma casa. Os filhos passam, assim, a
depender dos pais velhos. Tem-se como cenário contemporâneo a feminização da
velhice e a heterogeneidade de arranjos familiares.
No artigo 1º da Constituição Brasileira sancionada em 1988 a cidadania se confi-
gura como um dos principais fundamentos do Estado Democrático, pois integra os
direitos e os deveres na sociedade em que se deseja viver (Brasil, 1988). Esse mesmo
Documento registra a obrigatoriedade que a família, a sociedade e o Estado têm em
relação à velhice, resguardando, assim, os cidadãos idosos em seu envelhecimento.
Tal obrigatoriedade fundamenta-se na necessidade de se cuidar do idoso.

2. O PERFIL E MEMÓRIAS DOS


PARTICIPANTES DA PESQUISA
As memórias estão presentes nas lembranças dos docentes, que fazem reflexões,
comparações, realizam inferências do passado com a atualidade, constroem imagens

89
Maria Helena Santana Cruz

e ideias de hoje com as experiências do passado. Não se pode creditar ao presente


a construção do futuro sem a anuência do passado. Para os(as) respondentes, a
motivação para o trabalho apresenta forte significado, induzindo à utilização de
estratégias diversificadas, que rompem com seus lugares tradicionais em busca da
realização profissional e pessoal e que expressam diferenças, quanto a singularidades
“inovando em suas práticas, criando elas mesmas o movimento da história” (Perrot,
1988, p. 97). Embora compartilhem questões comuns com seus parceiros de pro-
fissão, as(os) docentes aposentados(as) vivenciaram e alguns continuam a vivenciar
problemas específicos de sua posição. O sentido do trabalho apresentadimensões
depositividade/negatividade:

Ser professor da UFS foi uma grande oportunidade profissional, consolidando a minha condição
de professora e de pesquisadora. O contato com os alunos e a oportunidade de aprendizado são
intensos, uma vez que a atividade exige muito estudo e dedicação... [...]. Tive a oportunidade de
contribuir para o desenvolvimento dos alunos de uma Instituição de nível superior que contribui
para desenvolvimento de Estado; tenho a sensação de missão cumprida Reporto-me às condições
de trabalho que nem sempre eram as desejadas. Entretanto, dentro das minhas limitações e as
da Instituição, procurei fazer o melhor que pude. (Entrevistada)

Dimensões relacionadas à competição, à rivalidade e à desunião entre colegas


emergem na memória: “Os colegas novos chegam muito arrogantes e começam a cercear os
antigos. Eles estavam doidos para me ver pelas costas. Eu continuo desenvolvendo meu trabalho
como médico” (Entrevistado). Os conflitos entre seus valores pessoais, os de colegas,
os da instituição produzem sofrimento. De acordo com Dejours (1996, p. 137),
“sofrimento é inevitável e tem raízes na história singular de todo sujeito, sem exce-
ção, com repercussões com a organização do trabalho”. Adiante-se, desde já, que
não se pretendeu, neste estudo, encontrar racionalizações que auxiliem a ignorar e
suportar o sofrimento; nem de atribuir à Organização todos os males que afligem
o docente trabalhador.
Estudos recentes assinalam a predominância de mulheres como vítimas de as-
sédio moral. Em cargos administrativos elas são significativamente mais expostas
ao risco de assédio moral do que sua contrapartida masculina. Pelo simples fato da
sua presença, as mulheres podem constituir um perigo maior visto que a virilidade
se edifica por contraste sobre a inferioridade da mulher.
A construção da masculinidade, assim como a da feminilidade, passa pela cons-
trução da identidade de gênero, a qual se transforma e inclui também a ideia de
sexualidade. Badinter (1993, p. 78), ao discutir a crise da masculinidade na virada do
século XIX e XX, identifica que os homens se sentem ameaçados em sua identida-
de por essa nova criatura (mulher emancipada) que quer agir como eles, ser como
eles, a ponto de se perguntarem se não serão obrigados a “[...] desempenhar tarefas
femininas, ou até mesmo – horror supremo – a serem mulheres” (Badinter, 1996,

90
Gênero Trans e Multidisciplinar

p. 16). Por isso, como a depressão apresenta características tidas como femininas, é
difícil para os homens admitirem a doença.
Não se pode dizer que o trabalho do professor nas universidades federais não
tenha sido valorizado nos últimos anos. Resta saber como, por que e a que preço
se deu essa valorização. Isso nos remete à análise das condições de trabalho do
professor e das mudanças na cultura e na identidade da instituição universitária:
“Quando entrei há 30 anos, ser professor da UFS quando significava status social, os salá-
rios eram dos mais elevados no funcionalismo público federal, o perfil do docente era elitizado e
hoje é muito heterogêneo/massificado” (Entrevistada). Destacam-se os novos turnos de
funcionamento dos cursos, novos projetos pedagógicos, introdução das inovações
tecnológicas, ampliação/interiorização da universidade, aumento significativo do
número de doutores e mestres, ampliação de novos cursos de pós-graduação e
graduação, aumento da produção cientifica e da titulação dos docentes. Sobre as
condições do trabalho na universidade:

Nesses últimos anos a UFS cresceu, se expandiu demais e os professores sentem a sobrecarga, as
mudanças nas condições de trabalho em relação à estrutura e à forte desvalorização/defasagem
dos salários; só obtemos melhorias através de greves. As novas tecnologias, particularmente a
internet, facilitam a comunicação, também promovem uma invasão do espaço público no espaço
privado, no cotidiano e na vida das/os docentes. (Entrevistada)

A intensificação do trabalho docente nos tempos contemporâneos resulta tam-


bém de uma crescente colonização administrativa das subjetividades das/os docen-
tes. A intensificação, para Apple,“representa uma das formas tangíveis pelas quais
os privilégios de trabalho das/os trabalhadoras/es educacionais são degradados”
(1995, p. 39). A crescente demanda de novas atribuições produz falta de tempo
para as atividades mais básicas da vida humana e sentimento de cansaço crônico
dos trabalhadores intelectuais em função do excesso de trabalho. Ademais, as novas
tecnologias favorecem a intensificação do tempo de trabalho de modo mais invasivo
– com sua presença no dia a dia das pessoas, nas atividades acadêmicas e científicas,
entre outras. A mesma racionalidade do tempo do trabalho integra-se e administra
o cotidiano em ambas as esferas vitais.

3. RELAÇÕES DE PODER/CONTROLE NO
COTIDIANO
As entrevistadas reconhecem a existência de normas e regras não objetivadas na
Instituição que orientam escolhas para postos elevados e melhor remunerados com
funções gratificadas:

91
Maria Helena Santana Cruz

Sinto que entrei em um trabalho altamente competitivo, tenho sido resistente e mantenho
um embate constante, porque continuo trabalhando na área. Já lutei muito para manter a
coerência. Sempre fui ajudada por amigos, colegas, psiquiatras, psicólogos. Na sala de aula,
sente-se a influência de grupos que tendem a lutar pelo poder para imprimir sua hegemonia.
Sentem-se as relações de poder, lutas de forças que existem muito em todos os contextos de
trabalho. (Entrevistada)

Os conflitos por desempenho, ou mesmo por titulação, são vividos por professores que são mais
dedicados, presentes, e geram dificuldades, chegando, às vezes, ao enfrentamento. Às vezes, as
disputas e discussões ocorrem em decorrência da divergência de formas de pensar, o que é uma
contradição, pois a Universidade é o lugar da diversidade, conforme indica o próprio nome. Ou-
tras vezes, as disputas se dão a partir dos cargos existentes na instituição, pelo posicionamento
político, este último, principalmente, em períodos eleitorais. (Entrevistada)

Eventualmente, por meio da docência, ocorre o sentimento de pertencer a um


programa de pós-graduação que permite fornecer elementos de certo posiciona-
mento acadêmico dentro da área, num contexto de competitividade e concorrência.
A institucionalização da pós-graduação e da avaliação dos cursos trouxe para a ati-
vidade docente novas exigências para o desempenho profissional, criando também
competição e rivalidade entre docentes. Conforme uma entrevistada: “Para a promo-
ção funcional exige-se a produção e desempenho de muitas tarefas. Os doutores, principalmente,
são cobrados com atividades na graduação, na pós-graduação e na pesquisa. Somos regidos pela
Capes”. A nova cultura universitária, que tem na pós-graduação o polo irradiador,
tem como traços estruturadores o individualismo, as conspirações, a competição, a
negação de si em prol dos objetivos institucionais, a centralização da gestão univer-
sitária, o esvaziamento dos órgãos colegiados e das assembleias da categoria.

4. LUTA POR STATUS PROFISSIONAL,


INTERFERÊNCIA NO TRABALHO E QUALIFICAÇÃO
As competências prioritárias no contexto do trabalho docente no ensino su-
perior referem-se à qualificação e à experiência profissional. Existe a concepção
de que o docente deve se atualizar, produzir, divulgar seus trabalhos em eventos,
publicações de qualidade e estabelecer redes de socialização. A qualificação dos tra-
balhadores – e, nesse caso, dos docentes do ensino superior – é multideterminada
e não está associada necessariamente ao nível de escolaridade, pois é socialmente
construída por processos artificiais de delimitação e de classificação de campos, que
a tornam equivalente a um status social, e não apenas ao tipo de conhecimento que
está na base de determinada ocupação ou mesmo da possibilidade de autonomia no
trabalho, decorrente do maior ou menor controle do trabalhador sobre o processo

92
Gênero Trans e Multidisciplinar

de trabalho (Castro, 1994. p. 72). Ocupar cargos de direção, envolver-se nos jo-
gos das negociações e alianças significa não só estabelecer práticas nesse sentido,
como também modificar todo um conjunto de símbolos e representações sobre
si mesmas.
Retrospectivamente, as aposentadas mudariam alguns aspectos de suas trajetórias
docentes que obedecem a um processo de construção pessoal:

Faria um esforço maior para cursar o doutorado mais cedo. As condições de trabalho de um
professor com doutorado no ensino superior são maisfavoráveis. Também olharia para os outros
colegas com mais atenção e não recusaria cargos com função gratificada como ocorreu comigo
antes. (Entrevistada)

No meu acesso ao trabalho docente, eu fui prejudicada por pedir demissão do outro emprego; hoje
eu tentaria conciliar os dois trabalhos que desenvolvia para ter duas aposentadorias. Confiei em
orientações que recebi e fui prejudicada, não fui bem assessorada. (Entrevistada)

Particularmente entre as mulheres, as memórias sobre a revisão do trabalho


emergem com dimensões e significados de ações desenvolvidas, tanto voltadas pa-
raa realização de um trabalho mais qualificado, quanto sobre o empenho para re-
alizar a prática docente, priorizando as aspectos da afetividade, da criatividade e
da transformação. No contexto estudado, o novo e o tradicional se imbricam. A
incursão das mulheres no mundo dos homens favorece o aprendizado de novos có-
digos, permite que elas manifestem suas diferenças, incompatibilidades, questionem
normas, valores e formas de organização.

5. SENTIDO DA APOSENTADORIA,
EXPERIÊNCIAS APÓS A APOSENTADORIA
Se aposentar pode significar para muitos um período difícil e de tensão, prin-
cipalmente no contexto da sociedade em que vivemos. Interromper um fluxo de
atividades, de anos de dedicação não é tarefa fácil, por mais que se canse do traba-
lho, do emprego, da rotina. O trabalho é a ação que enobrece o homem e quando
chega a aposentadoria, o ser humano vive uma ambiguidade, uma contradição.
Todos querem se aposentar, mas continuar na “roda viva” sem vinculação à velhi-
ce, a algo descartável, desvalorizado. Aposentar pode ser continuidade, renovação,
aprendizado, recolocação, porque uma pessoa com bagagem terá sempre habilida-
des e perspectivas.
Para o presidente da Associação dos Aposentados da UFS, as experiências da
aposentadoria são muito variadas. Lá, ouvem-se vozes daquelas(es) que por ve-
zes se mostram arrependidos, descartados, insatisfeitos com o curso da vida atual.

93
Maria Helena Santana Cruz

Outras(os), após a aposentadoria, procuram ocupar outras funções em órgãos daU-


FS (também em outras instituições da sociedade) e, hoje, mostram-se preocupados
em elevar a qualidade de vida:

Após a aposentadoria, venho mantendo vínculo com a UFS, como professora voluntária da
pós-graduação, ministro aulas, oriento os alunos; Também presto serviços de consultoriaa em-
presas e órgãos dos governos municipal e estadual, na área de planejamento urbano e regional.
(Entrevistada)

Minha a aposentadoria foi por tempo de serviço. Não quis esperar para receber a carta de
agradecimento do MEC. Alguns colegas contam os dias para a aposentadoria e criticam os
que voltama ensinar. Sempre gostei de ensinar e de fazer pesquisa. Optei por continuarna pós-
-graduação com o contrato de voluntária. O prazer da docência na pós-graduação é para mim
um fator a ser destacado. (Entrevistada)

No caso da educação superior, os professores em condições de se aposentar, e


que não o fazem, expressam o fenômeno do “queimar-se de dentro para fora”, a
chamada, Síndrome do Burnout, que constitui uma forma extrema de stress ocupacio-
nal, um estado causado pela devoção a uma causa, um estilo de vida, e se caracteriza
por um profundo sentimento de fadiga, exaustão e frustração em relação ao traba-
lho desempenhado, podendo se estender a outras áreas da vida das pessoa (Carlotto,
2002, p. 25).

6. O PÚBLICOE O PRIVADO, O TRABALHO


PRODUTIVO E REPRODUTIVO
Os estudos sobre o trabalho e gênero procuram ampliar o conceito de trabalho
produtivo/público e reprodutivo/privado. Oconceito de relações de gênero contri-
buiu para avançar na compreensão da complexidade dessa articulação permitindo
desnaturalizar uma série de fenômenos históricos e superar a abordagem limitadora
do aparato biológico para explicar as diferenças masculinas e femininas. De acordo
com Duby (1990, p. 23), a vida privada é, portanto, o espaço de convívio da família,
da confiança mútua, não é regida pelas leis e sim pelos costumes, pelo afeto, amizade
e tradição. Opõe-se ao público por ser um espaço próprio, reservado, íntimo Nesse
ponto, as(os) aposentadas/os adotam variados arranjos domésticos, tantos ou mais
do que entre os idosos mais jovens.

Meu marido é de classe média e sempre trabalhou. Eu sempre trabalhei muito e isto incomodava
a ele. Por exemplo, a questão das viagensde serviço sempre foi um problema que senti. Isto porque
o meu marido cobrava de mim uma presença mais constante em casa. Fiz uma opção em minha
vida, aos dezanos de casada pedi o desquite, e, logo depois, voltamos a ficar juntos. Hoje conci-

94
Gênero Trans e Multidisciplinar

liamos os papéis, mas eu sempre assumi a responsabilidade pela educação de meus dois filhos um
rapaz e uma moça, esta já casada e com filhos. Nossa renda era administrada em conjunto. Nos
trabalhos domésticos, entretanto, ele nunca ajudou. (Entrevistada)

Observam-se diversidades de experiências com relação às atividades compar-


tilhadas no espaço privado da organização familiar, bem como a confirmação de
vivências da tradicional divisão sexual dos papéis na família: “Nem sempre contei com a
ajuda do marido e de familiares” (Entrevistada). O esposo e companheiros participam
muito pouco das atividades domésticas, o que evidencia indícios flagrantes da na-
turalização e da divisão sexual de papéis, existindo algo relacionado, acima de tudo,
com a imagem de que as mulheres ainda são os principais agentes da criação dos
filhos e das tarefas domésticas. As atividades domésticas ainda recaem fortemente
sobre a mulher, e ela acumula jornadas de trabalho pesadas, no esforço de balancear
a profissão-família e na tentativa de acompanhar as mudanças tecnológicas. Obser-
vam-se tentativas de inclusão dos esposos/companheiros no processo educativo,
sem, contudo, indicar avanços. O “cuidar” de crianças e a perspectiva da infância
são (ainda) reconhecidos como competências social e culturalmente relacionadas ao
gênero feminino. A consciência do envelhecimento como processo do ciclo natural
da existência humanafaz com que seja estabelecida a busca pela qualidade de vida
no cotidiano das(os)aposentadas/os que procuram experiências prazerosas de lazer
com outros interlocutores.
As formas de lazer – participação em outros grupos e espaços públicos do so-
cial são formas de ocupação do tempo necessário para exercícios reflexivos. Dado
ao pouco tempo disponível, especialmente as docentes, compartilham experiências
de lazer como: cinema, vídeo, praias, clubes, shows,festas, encontros de almoços e
chás com amigas, viagens, leituras, atividades físicas, redes sociais de comunicação
via internet: “Para o futuro, espero aproveitar um pouco a vida, passear, viajar, conhecer novos
lugares, curtir as filhas e os netos e trabalhar bem pouco”. (Entrevistada). Os projetos e ex-
pectativas para o futuro expressam convergências e divergências.

Sempre fui censurada por algumas colegas que achavam que eu priorizava o meutrabalho no
mesmo patamar da família. O sentimento de profissionalismo era exagerado. Hoje, revendo o
passado, vejo que vivemos a ideologia do descartável, todos são descartáveis, em pouco tempo
são esquecidos, inclusive, aqueles docentes que tiveram uma forte atuação no contexto da UFS.
Lembro que, ao visitar o Pe. Ovídio Valois Correia5, meu professor de sociologia na UFS,
com doença terminal, ao final de sua vida, me disse: trabalhem, mas não esqueçam a família.
(Entrevistada)

5. Ver importante contribuição de Ovídio ao ensino, pesquisa e extensão In: Correia, A Extensão Univer-
sitária no Brasil; um resgate histórico, p. 2000.

95
Maria Helena Santana Cruz

A memória de uma dedicação excessiva ao trabalho docenteexpressa certo sen-


timento de afirmação ou intensificação do trabalho levada ao extremo da compulsi-
vidade. A intensificação do trabalho, por vezes, confunde-se com profissionalismo
docente, fortemente vinculado a uma visão androcêntrica predominante nos meios
acadêmicos na conquista de maior autoridade científica e de melhores condições
profissionais. Sabe-se que as características culturalmente atribuídas ao gênero fe-
minino, como a sensibilidade, a afetividade, a paciência, a atenção ao detalhe, o
improviso foram e continuam sendo sinônimos de sentimentalismo, domesticidade
e pouco profissionalismo, aspectos condenáveis ou pouco promissores para o exer-
cício da docência (Louro, 1997, p. 54).
Ao refletir sobre os idosos e seus projetos para o futuro, Norberto Bobbio
afirma:

Devemos empregar o tempo menos para fazer projetos para um futuro distante
ao qual já não pertencemos, e mais para tentar entender se pudermos, o sentido
ou a falta de sentido de nossas vidas. Concentremos-nos. Não desperdicemos o
pouco tempo que nos resta.(Bobbio, 1997, p. 55)

As características do próprio segmento, com relação a expectativas e projetos de


vida são distintas: o grupo que ainda trabalha com educação superior, especialmente
aqueles inseridos em cursos de pós-graduação, demonstram o desejo de participa-
ção e transmissão de conhecimentos a outras pessoas; enquanto o grupo que não se
encontra exercendo atividades no ensino superior tende a cuidar da família e da qua-
lidade de vida: “Pretendo me envolver em cursos, atividades de pintura, em atividades prazerosas
diretamente relacionadas com meus interesses” (Entrevistada), e desenvolve alguma atua-
ção em projeto sociais com comunidades socialmente vulneráveis, marcadas pela
negação dos direitos humanos básicos. Nos depoimentos emergem a riqueza do
heterogêneo, geralmente abafada pela força de certa homogeneidade que busca se
impor, especialmente por práticas discursivas apoiadas em múltiplas redes de poder.

CONCLUSÃO
O trabalho intelectual, como é o caso do trabalho docente no ensino superior,
costuma ser entendido como elemento definidor das atividades de integrantes da
classe média, e que, ao priorizar o conhecimento, implica uma forte valorização
simbólica, o que tradicionalmente trouxe certo status às profissões relacionadas a
essas atividades. A construção das subjetividades, às quais o trabalho acadêmico
reorganizado dá lugar, caracteriza-se por formas particulares de pensar, sentir e agir
com relação a si mesmo, às demais pessoas e ao mundo; assim, cada indivíduo se su-
jeita, insere e submete às relações saber-poder ou se rebela e resiste a esta realidade.

96
Gênero Trans e Multidisciplinar

Através dos ditos e não ditos as(os) aposentadas(os), reconstroem suas histórias
a partir do micro, ou seja, de trajetórias do trabalho no ensino superior, equacionan-
do uma representação macro (guardadas as devidas proporções) das representações
coletadas, configurando num resultado que aponta para a efetivação dos modos do
trabalho, bem como do perfil das(os) participantes da pesquisa. Tradição e moder-
nidade se imbricam produzindo contradições.
A noção de envelhecimento ativo refere-se à possibilidade de envelhecer com
saúde e autonomia, continuando a participar plenamente na sociedade enquanto
cidadão ativo. Os(as) participantes da pesquisa expressam diferentes dimensões de
identificação que se sucedem continuamente, confrontando a imagem que foi idea-
lizada pelo ser que envelhece e a realidade da condição de docente idosa(o). Assim,
é possíveldizer que envelhecer é uma experiência única para cada indivíduo, diversi-
ficada entre pessoas do mesmo grupo de docentes aposentados e heterogênea tanto
entre indivíduos como entre diversos grupos sociais. Em outras palavras, o processo
de envelhecimento, em função de sua múltipla determinação, implica diversidade,
individualidade e variabilidade entre indivíduos.
As imagens de gênero condicionam as formas (diferenciadas) de inserção de ho-
mens e mulheres no mundo do trabalho produtivo e reprodutivo, tanto as oportuni-
dades de acesso ao emprego como as condições emque se desenvolve o trabalho. Há
uma heterogeneidade deste segmento etário, dadas as diferentes trajetórias, a multi-
plicidade de pertencimentos e inserções diferenciadas na vida social, por meio e em
meio a diferentes discursos e práticas que acabaram por compor suas identidades,
de modo diverso, conforme o contexto. Na condição de aposentado, de idosas(os),
constroem expectativas e projetos, estruturam representações visando à elevação da
autoestima, à melhoria da qualidade de vida, à ampliação do protagonismo, dentre
outros aspectos. Nos arranjos familiares a divisão sexual do trabalho reprodutivo-
ainda permanece de forma assimétrica, significando que a igualdade ainda será uma
utopia, uma pré-condição para concretizar a cidadania mundial através de uma efe-
tiva igualdade social e sexual.
Os docentes aposentados expressam posturas com relação à posição social da
mulher e do homem na sociedade que, invariavelmente, influem sobre a “ciência”que
realizam. Aqueles que não estão atentos para as discriminações de gênero não in-
cluem a temática em seu trabalho, mesmo que ministrem disciplinas fundamentais
para a compreensão da questão. Frequentemente, nome de uma ciência “positiva”,
da “objetividade”, são afastados temas de conotação ética, religiosa, controversos,
mas nem por isso ausentes das práticas sociais. Em geral, temas relacionados com
a questão da desigualdade entre grupos vulneráveis, dividem os docentes e pesqui-
sadores, mas são de interesse da sociedade e têm provocado a reação de vários mo-
vimentos sociais demandando soluções legais ou implantação de políticas públicas,
mas não encontram o proporcional eco na universidade.

97
Maria Helena Santana Cruz

É importante ressaltar que com a enorme contribuição dos professores das uni-
versidades públicas, hoje temos uma infraestrutura acadêmica invejável. Temos a
capacidade de pensar e de encontrar soluções para muitos dos problemas nacionais
graças a brasileiros bem formados em universidades públicas em várias áreas do co-
nhecimento. É preciso que se pense nos professores que vêm fazendo nossas boas
universidades públicas, no respeito aos seus direitos e suas expectativasde direitos.
Na Universidade Federal de Sergipe, o docente aposentado podereinserir-se no
ensino superior, formalizando o contrato de professor voluntário (não remunera-
do), de professor da ativa (reinserido por concurso público) ou professor substituto,
também por meio de concurso. Além de incentivar o protagonismo do idoso e o
exercício de sua cidadania, taisiniciativas favorecem o reconhecimento do idoso/do-
cente pela sociedade, por seu papel socialmente produtivo. Desmistifica-se, assim,
a concepção de queo indivíduo, ao se afastar do mercado de trabalho, perde a iden-
tidade e o convívio com o mundo exterior, confinando-se em uma menor realidade,
o que o faz sentir- se muitas vezes, incapaz.
O desenvolvimento de atitudes mais adaptadas ao contexto da diversidade cul-
tural incide diretamente sobre a educação para a cidadania, a promoção de coesão
social, a igualdade de oportunidades e equidade, participação crítica na vida demo-
crática e aceitação natural da diversidade cultural. As argumentações desenvolvidas
emergem de uma realidade na qual a interação, complexa e de caráter multidi-
mensional, ocorre entre indivíduos diferentes e de culturas díspares. A perspectiva
adotada visa a desenvolver conceitos e estratégias educacionais que favoreçam a
superação de conflitos, preconceitos, discriminações e exclusão social, gerados a
partir da contraposição irracional de concepções ideológicas, e do emprego de me-
canismos psicossociais e de fatores sociopolíticos capazes de produzir intolerância
com o outro, o diferente.
O caráter deste estudo não é, por conseguinte, o de esgotar o universo das
informações potencialmente disponíveis, mas de lançar a discussão sobre a atri-
buição de significação à vida do docente aposentado, desvelando os seus múltiplos
sentidos e direções, bem como ampliar a discussão sobre as políticas públicas para
os professores aposentados/idosos no Brasil. Ao fechar a página do agora, fica a
sensação de que logo, ao voltar ao final dessa história, deixar-se-á para trás o pensar
especialmente das mulheres docentes.

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101
CAPÍTULO VII
AS REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO
SOBRE A VALORIZAÇÃO DAS
QUALIFICAÇÕES/COMPETÊNCIAS DO
TRABALHO DOCENTE
Alfrancio Ferreira Dias1

INTRODUÇÃO
Os estudos da Sociologia do Trabalho têm mostrado que nas últimas décadas
um novo paradigma de organização do trabalho e dos trabalhadores surgiu dando
início à superação das formas de organizações do trabalho dos modelos tayloris-
ta/fordista, nos quais a qualificação dos trabalhadores se limitava ao preparo e a
execução de tarefas rotinizadoras, sequenciadas e preestabelecidas. No caso desses
modelos, o processo de qualificação era centrado na construção de trabalhadores
executadores de funções básicas para a construção do produto. De acordo com
Cruz (2005, p. 92), nesse processo “o preparo do trabalhador seria limitado ao
mínimoindispensável de conhecimentos gerais e técnicos, direta e indiretamente
relacionados ao conteúdo das tarefas e operações que compusessem a ocupação
tanto do uso de máquinas “versáteis” quanto da “cooperação do chão-de-fábrica”.
Das novas demandas e necessidades do mercado de trabalho foi instituída uma
nova forma de organizar as ações dos trabalhadores e o processo de trabalho, o co-
nhecido “modelo produtivo” ou “especialização flexível” que possuía a finalidade
de ampliar a atuação, a qualificação/treinamentos dos trabalhadores e as formas de
gerenciar o trabalho.
Na perspectiva de Hirata (2004), o modelo produtivo trouxe uma mobilidade
maior na forma de organização do trabalho, na medida em que passou a existir
nas relações de trabalho cooperação, menos determinação de tarefas vinculadas aos
setores e de forma individualizadas e espaço de rotatividade das atividades desenvol-
vidas. O resultado disso, mais precisamente, foi uma gestão do trabalho polivalente
e multifuncional, que além das qualificações técnicas, os trabalhadores tiveram outro

1. Doutorando em Ciências Sociais pelo Núcleo de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade


Federal de Sergipe; membro do Grupo de Pesquisa Estudos em Educação, Formação, Processo de Traba-
lho e Relações de Gênero e do Núcleo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares sobre a Mulher e Relações
de Gênero – NEPIMG, vinculado à Universidade Federal de Sergipe. Professor do Departamento de Ciên-
cias Humanas e Letras – DCHL da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB.

103
Alfrancio Ferreira Dias

tipo de qualificação solicitada e valorizada como, por exemplo, das “qualificações tá-
citas” ligadas às identificações e subjetividades dos trabalhadores. Para Cruz (2005),
as novas competências para o desenvolvimento do trabalho são atributos da dimen-
são social, tais como “envolvimento, participação, cooperação, responsabilidade e
motivação do trabalhador” (p. 92).
Nessa linha de reflexão, o que os pesquisadores destacam é que a partir das
novas formas de organizar o trabalho, ponto como referência os novos atributos
e competências requeridos dos trabalhadores no interior das relações de trabalho,
possibilitou um novo paradigma da “Especialização flexível” do trabalho. Nesse
novo contexto de trabalho, as características subjetivas do trabalhador são essenciais
para a construção das relações interpessoais, nos momentos de tomada de decisões,
de agir sobre o novo, de recuar em situações coletivas, que influenciam as identifi-
cações dos trabalhadores.
As discussões sobre as “novas competências” para o trabalho passaram a fazer
parte de todos os setores da economia, tendo com eixo central o avanço tecnoló-
gico. O campo da educação também teve que se reestruturar para suprir as novas
demandas de qualificação da força de trabalho que o mercado necessitava. Leis
foram criadas, novos cursos, métodos de ensino e currículos repensados para sanar
as necessidades de cada época. Particularmente, a década de 1990 foi o marco desse
processo, visto que além da reformulação da LDB em 1996, o trabalho docente
passou a ser gerido também pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, que trouxe
uma nova forma de organizar as etapas do ensino, tendo como justificativa desse
processo a “consolidação do Estado democrático, as novas tecnologias e as mudan-
ças na produção de bens, serviços e conhecimentos exigem que a escola possibilite
aos alunos integrarem-se ao mundo contemporâneo nas dimensões fundamentais
da cidadania e do trabalho” (PCN, 2000, p. 4).
A busca pela contextualização e a interdisciplinaridade foram essenciais para a
criação de currículos que se adequassem ao novo perfil do aluno e do docente a ní-
vel nacional/regional/local, bem como o desenvolvimento das “competências bási-
cas” para o desenvolvimento social. A criação e implantação dos PCN na educação
brasileira e nos cursos de formação de professores teve como finalidade principal, o
“duplo papel de difundir os princípios da reforma curricular e orientar o professor,
na busca de novas abordagens e metodologias” (PCN, 2000, p. 5). Contudo, cabe
refletir sobre quais habilidades, competências e saberes que foram adquiridos no de-
correr dessas mudanças no campo do trabalho docente, para que esses professores
desenvolvam suas práticas profissionais para alcançar os objetivos preestabelecidos
de seus planos de ensino.

104
Gênero Trans e Multidisciplinar

Pesquisas realizadas por Tardif (2000; 2010) apontam algumas características


dos “saberes profissionais” dos docentes que contribuem para a compreensão das
novas habilidades e competências necessárias para o desenvolvimento do trabalho
cotidiano docente. Para o autor, os saberes profissionais dos professores são temporais – pelo
fato de que os saberes são adquiridos a partir de sua história de vida e escolar, da
estruturação da prática profissional nos seus primeiros anos com a noção e senti-
mento de competência e também, porque os saberes são uma construção da identi-
dade docente a partir das interações sociais de sua trajetória; os saberes profissionais dos
professores são plurais e heterogêneos – visto que são adquiridos através das experiências
pessoais, culturais, científicos, sociais e profissionais; os saberes profissionais dos profes-
sores são personalizados e situados – pois é desenvolvido no local de trabalho e consti-
tuído a partir da mediação; os saberes profissionais dos professores carregam marcas do ser
humano – na medida em que o objeto do trabalho docente são seres humanos com
suas identificações, subjetividades, particularidades. Nesse sentido, pode-se perceber
que, no processo de escolarização/formação docente, bem como a partir da análise
das práticas escolares, verifica-se que os saberes docentes são diversos: temporais,
plurais, situados e de relações humanas e são construídos a partir das identificações,
subjetividades, particularidades influenciadas pelas mediações e relações sociais.
Neste item do capítulo, vamos abordar dois objetivos centrais, pensados a par-
tir das diversas mudanças na proposta pedagógica do Colégio Atheneu Sergipense
como Centro Experimental de Ensino e as novas competências e habilidades exi-
gidas pelos Parâmetros Curriculares nacionais para o desenvolvimento do trabalho
docente: conferir a noção de competência e qualificação no discurso dos(as) do-
centes, e averiguar em que medida ela reflete na valorização diferenciada do gênero.

1. A QUALIFICAÇÃO/TREINAMENTOS PARA
O/A DOCENTE
A intenção deste item é apresentar as tendências recentes do trabalho docente,
na perspectiva de mostrar a evolução das qualificações do trabalho – as tendências,
os tipos de treinamentos, a formação complementar em exercício – e suas consequ-
ências a partir das mudanças tecnológicas e organizacionais da Instituição, que estão
configurando a emergência de novos paradigmas.
Os saberes profissionais dos docentes têm estado no centro da problemática da
profissionalização do ensino e da formação de professores. Questiona-se que saberes
profissionais docentes (conhecimentos, competências, habilidades, qualificações) são
utilizados em suas práticas profissionais para desempenhar tarefas e alcançar metas
e objetivos. Na perspectiva de encontrar subsídios que permitam responder a essa
indagação sobre o processo de treinamento e qualificação docente que se constitui

105
Alfrancio Ferreira Dias

como eixo central da docência, apresentamos na Tabela2 alguns dados estatísticos co-
letados através de questionários aplicados a um grupo de professores e professoras.

TABELA 4

Atividades de formação de que os/as docentes participam

Atividades Homens % Mulheres %


Formação (aperfeiçoamento) 7 77,7 8 61,5
Participação em jornadas
3 33,3 7 54
pedagógicas
Participação em associações
1 11,1 1 7,6
sindicais
Treinamentos na era técnica
0 0 3 23
do trabalho desenvolvido
Treinamentos relacionados
aos aspectos gerais da Insti- 1 11,1 3 23
tuição
Treinamentos relacionados
2 22,2 5 38,5
aos usos de novas tecnologias
Outras 4 44,4 5 38,5

Embora já se saiba que a alta qualificação dos(as) docentes na Instituição pes-


quisada é critério essencial de inserção e permanência, fica notória a tendência des-
ses profissionais para a formação continuada. A política estadual de educação tem
introduzido tecnologias e processos pedagógicos inovadores, bem como estabe-
lecido a necessidade de novas competências para o desenvolvimento do trabalho
docente. Sobre formação continuada e jornadas pedagógicas, observou-se que há
participação ativa nessas atividades, principalmente das mulheres. A esse respeito, é
válido ressaltar que, embora não sejam obrigatórias, algumas atividades são desen-
volvidas durante o trabalho, como é o caso das jornadas pedagógicas ofertadas pela
Instituição. Contudo, a formação continuada e os aperfeiçoamentos docentes têm
sido desenvolvidos de forma autônoma através de participação dos profissionais da
Rede em cursos sem vínculo com o Colégio ou mesmo com a SEED, a partir de
liberação parcial ou integral de atividades para sua dedicação ao processo de forma-

2. Nas Tabelas 4 e 5, está exposto o resultado do item do questionário sobre as atividades de formação de
que os(as) docentes participam e os benefícios para sua atuação. Não foi possível, porém, chegar a 100%
entre homens e mulheres, visto que poderiam marcar mais de uma opção. Assim, os números em porcen-
tagem correspondentes aos itens da tabela foram tabulados a partir das respostas de cada professor(a) por
item dividido pelo número total de professores(as) que responderam o questionário.

106
Gênero Trans e Multidisciplinar

ção. No que se refere aos treinamentos na área técnica do trabalho desenvolvido,


aos treinamentos relacionados aos aspectos gerais da Instituição e aos treinamentos
relacionados aos usos de novas tecnologias, os dados mostram que a taxa de parti-
cipação caiu em relação aos demais. Isso pode estar associado ao fato de que esses
treinamentos já são adquiridos antes de entrarem na Instituição, sendo desenvolvi-
dos por alguns professores que trabalham com laboratórios.
Pode-se constatar que os(as) docentes do Atheneu participam de diferenciados
cursos de aperfeiçoamento e treinamentos antes do e durante o desenvolvimento
do trabalho docente. Tal constatação nos faz refletir como, na prática docente, “os
saberes profissionais dos professores são plurais e heterogêneos” (Tardif, 2011, p.
262). Para Tardif (2011), os saberes profissionais dos docentes são plurais e hete-
rogêneos a partir de três argumentos: a) os saberes docentes provêm de diversas
fontes, como: os conhecimentos disciplinares adquiridos na Universidade, os co-
nhecimentos pedagógicos e didáticos oriundos de sua formação profissional, os
conhecimentos curriculares veiculados pelos programas e manuais escolares e, prin-
cipalmente, nas experiências de seu trabalho cotidiano; b) o docente raramente tem
uma teoria ou concepção de sua prática, na medida em que, em seu trabalho, utiliza
muitas teorias, concepções e técnicas a partir de suas necessidades, mesmo que haja
contradições entre essas, pois o que interessa é a integração dos diversos saberes a
fim de atingir amplamente seus objetivos; c) os saberes profissionais são variados,
porque para cada ação do trabalho docente, a fim de atingir alguns objetivos, não
é necessária a utilização dos mesmos conhecimentos e competências – ou seja, o
trabalho docente é heterogêneo no tocante aos objetivos internos da ação e aos
saberes mobilizados.
Nessa perspectiva, os saberes profissionais são essenciais para desenvolver o
processo de trabalho docente, visto que estruturam diversos meios do trabalho e a
prática docente como uma organização das competências e habilidades profissio-
nais. A natureza da relação desses profissionais com os saberes (pessoais, acadêmi-
cos, teóricos e práticos) está integrada ao processo de trabalho, pois eles estão “a
serviço da ação e é na ação que se assumem seu significado e sua utilidade” (Tardif,
2011, p. 264). Cabe dizer que é na participação dos docentes nos treinamentos,
inseridos no plano de trabalho individual e coletivo, que são desenvolvidas e mo-
dificadas as relações com os saberes profissionais. As identidades profissionais são
influenciadas e influenciam a partir de interferências internas e externas do trabalho
docente, que, por sua vez, estruturam a natureza das competências e os modos
legítimos de reconhecimento (Dupar, 2005) e dão conta do pluralismo do saber
profissional (Tardif, 2011), a fim de relacionar-se com os lugares em que os docen-
tes atuam, formam, trabalham e vivenciam. Os indicadores estatísticos obtidos na
pesquisa apontam para o movimento de valorização das qualificações, competências
e habilidades, bem como salientam os benefícios para o docente.

107
Alfrancio Ferreira Dias

TABELA 5

Benefícios/treinamento para o docente


Benefícios Homens % Mulheres %
Qualidade da produtividade do
8 88,8 9 69
trabalho
Novas metodologias para o
6 66,6 11 84,5
trabalho
Segurança no desempenho do
4 44,4 4 30,7
trabalho
Mudanças de funções (promo-
0 0 5 38,5
ções/ascensão funcional)
Aquisição de habilidades para o
7 77,7 7 54
trabalho
Integração com o grupo (profes-
7 77,7 8 61,5
sores, alunos, funcionários)
Realização pessoal e profissional 6 66,6 10 77
Outros 2 22,2 0 0

Para os(as) docentes, os benefícios dos treinamentos sucessivamente contribuem


para a melhoria da produtividade do trabalho, a aquisição de novas metodologias e
habilidades, a integração com o grupo e a realização pessoal e profissional – confor-
me pode ser verificado na Tabela 16. Um dado que merece destaque é o de que os
professores não veem os treinamentos como requisito para sua ascensão funcional;
tampouco as professoras os relacionam a essa finalidade. A qualificação altera o
cotidiano docente, em que quantidade e qualidade são desenvolvidas paralelamente.
O saber docente está na “confluência entre várias fontes de saberes provenientes
da história de vida individual, da sociedade, da instituição escolar, dos outros atores
educativos, dos lugares de formação, etc” (Tardif, 2011, p. 64).

2. AS REPRESENTAÇÕES DOS(AS) DOCENTES


SOBRE SUES PROCESSOS DE QUALIFICAÇÃO
A compreensão dos(das) docentes sobre a valorização das qualificações e dos
treinamentos no “saber-fazer” do seu trabalho está articulada, especialmente, aos
pontos positivos para a formação continuada para o desenvolvimento e atualização
de suas práticas. As argumentações dos entrevistados atribuem sentido às novas de-
mandas da educação, considerando “as mudanças constantes da sociedade, faz-se necessário
cursos de atualizações, onde nós possamos buscar novas metodologias, a fim de atender as novas de-
mandas da docência”. Pode-se perceber que no discurso dos docentes o reconhecimen-

108
Gênero Trans e Multidisciplinar

to por atuarem da instituição e possuírem privilégio social e financeiro de trabalhar


em tempo integral, bem como destacam a necessidade de atualização para trabalhar
o método inovador de ensino da instituição dentro de um processo dinâmico e de
novas formas de organização das disciplinas articuladas às atividades complemen-
tares de integração e de inter-relações (trabalho-ciência-tecnologia-cultura), como
aponta um dos entrevistados:

O dilema é o seguinte: as categorias básicas que eu aprendo ao longo da minha formação são
ressignificadas permanentemente. Se eu não tiver o cuidado de acompanhar essas ressignificações,
eu posso estar tão démodé a ponto da minha fala não representar a leitura que meu aluno faz
da sociedade e do mundo. Então, ou eu me atualizo frequentemente para essas ressignificações
que agora a ética apresenta, que as relações sociais apresentam, que as construções politicas
estabelecem, ou eu vou começar ter uma leitura do mundo, de um mundo virtual, de um mundo
que não existe mais e que meu aluno vai apresentar para mim frequentemente, será nesse caso
um contraste em que eu vivo em um mundo e os alunos estão em outro. Assim, agente tem a
necessidade de frequentemente em atualizar-se. (Professor, casado, 39 anos, três filhos,
mestre, 15 anos na rede estadual)

Percebe-se o sentido e significado atribuído ao processo de qualificação para


o desenvolvimento do trabalho docente de forma contínua, visto que há uma pre-
ocupação de atualizar-se e de fortalecer os treinamentos e a qualidade do trabalho
da prática pedagógica. A argumentação do professor sobre a qualificação está con-
centrada no discurso das novas habilidades e competências trazido, principalmente,
pelo processo de globalização, e se intensifica na instituição investigada, visto que
há uma articulação intrínseca entre o trabalho do trabalho, as novas tecnologias e as
práticas culturais. Contudo, pode se inferir que os saberes ou “categorias básicas”
apontadas pelo professor tendem a se ressignificar nesse processo. As práticas esco-
lares, a sociabilidade e as relações de trabalho influenciam a identidade do trabalha-
dor, não só no âmbito do trabalho, mas nas práticas sociais. Esse aspecto também é
destacado pela gestão escolar, na medida em que foi demonstrada nas entrevistas a
necessidade a partir da reforma curricular “a necessidade de investir na formação continua-
da dos docentes para desenvolver as competências necessárias para atingir as metas e objetivos do
projeto pedagógico”, sendo destinados a ampliar a qualidade das práticas e o relaciona-
mento interpessoal dos agentes escolares.
No entender dos(as) docentes, as mudanças por que a escola vem passando no
seu desenvolvimento pedagógico (currículo diferenciado, novas metodologias de
ensino e avaliação da aprendizagem e nova organização escolar), bem como a diver-
sidade dos agentes escolares (novo perfil de professores, alunos, funcionários e pais)
têm posto prova às competências e habilidades que são importantes para o trabalho
docente neste nível de ensino. Percebe-se que a (re)construção das identidades/sub-
jetividades de professores e professoras se dão num processo dinâmico e complexo,

109
Alfrancio Ferreira Dias

e nele estão expostos as formas em que os homens e mulheres desenvolvem o seu


processo de “aprender” e de “ensinar” a partir da produção de sentidos e significa-
dos, bem como da capacidade de reflexão sobre o processo.

Uma das principais habilidades hoje para trabalhar com o diverso é a capacidade de dialogar
e compreender, visto que no cotidiano do trabalho docente percebemos as diversas realidades dos
alunos (famílias, lugares, rendas, valores, crenças variadas) que nos põem em um espaço de deba-
tes e diálogos que não nos permite homogeneizar o discurso. Como a escola hoje é diversa, plural
e multicultural, cabe ao docente a sensibilidade para desenvolver seu trabalho mais próximo da
realidade dos alunos possível. (Professor, casado, 42 anos, três filhos, mestrando, 13
anos na rede estadual)
Primeiramente, a formação com qualidade, pois eu diria que esse professor teria que ser
pesquisador, ou seja, ao adentrar no Ensino Médio ele tem que ser um pesquisador porque isso
estaria no campo das competências. As habilidades do docente hoje são, principalmente, saber
conduzir o processo, ser mediador, pois acredito que não adianta o professor esta inserido sem
ajudar a transformar o processo de aprendizagem autônoma desse aluno. Seria principalmente
conduzir o processo, pois a dinâmica da escola pública possui um alunado diversificado, que
também, necessita de um trabalho de integração. (Professora, solteira, 46 anos, dois filhos,
doutora, 15 anos na rede estadual)
O docente tem que ser um eterno pesquisador. Acredito que o que está faltando hoje para
nós docentes é tempo para pesquisar, visto que sem tempo não podemos realizar atividades de
capacitação e pesquisa complementar para ampliar nossa ação. As habilidades e competências
dos docentes estão sendo testadas cotidianamente e só com qualificação processual para dar
conta desse cenário. (Professora, solteira, 37 anos, sem filhos, especialista, 12 anos
na rede estadual)

No entender dos professores há uma necessidade de fortalecer e valorizar os es-


paços de qualificações/treinamentos no cotidiano do trabalho docente, pois as no-
vas demandas da educação e as reestruturações das práticas escolares apontam para
a necessidade de atributos (componentes implícitos e subjetivos) dos professores
para o desempenho da atividade docente diversificada e multidisciplinar. Contudo,
uma das questões que se configuram nesse cenário é a dificuldade da instituição de
ensino tratar a diversidade no bojo das relações entre homens e mulheres, na medi-
da em que no processo de organização curricular há um predomínio de separação
de disciplinas, oficinas e laboratório, fragmentando a relação coletiva. Nesse modo,
a própria estrutura organizacional acaba por separar homens e mulheres, quando
fragmenta as ações, os objetivos, a singularidade, os espaços e as experiências; e que
essa padronização do “fazer” de professores e professoras dificulta a socialização
dos agentes.
Nos espaços de socialização do trabalho docente são tentadas as habilidades
e competências das experiências práticas do trabalho docente, as formas que os
docentes articulam os saberes teóricos e práticos num espaço de reestruturação e

110
Gênero Trans e Multidisciplinar

de influências constantes, as formas de articulação das práticas pedagógicas indivi-


duais dos docentes com as coletivas da escola e integralizam os saberes científicos
acumulados no decorrer da vida com o novo cenário de qualificação/capacitação
permanente. Como expõe uma das docentes entrevistadas:

a Educação é muito dinâmica, os serviços prestados pela escola têm que acompanhar
as necessidades da sociedade, assim como as do mercado de trabalho. Dessa forma
não podemos nos ater apenas ao que aprendemos nas universidades, ir à busca de
conhecimento é vital para desempenharmos nosso papel na escola.

Esses aspectos são relevantes para entender a dinâmica de organização pedagó-


gica do Atheneu Sergipense, na medida em que os(as) docentes desenvolvem ativida-
des em tempo integral nos planos de ensino do currículo nacional comum e também
atividades de componentes complementares. As disciplinas curriculares são traba-
lhadas paralelamente às atividades complementares, o que põem os docentes num
constante movimento rotativo de ações. As ações desenvolvidas com um número
variado de turmas e alunos, da inter-relação de tempo/espaço/ensino, de discussões
e regulações do trabalho docente estão associadas diretamente aos fatores materiais e
sociais, ao objeto do trabalho, à reorganização e regulamentações da escola.
A partir dos depoimentos foi possível organizar dentre as ações e atividades
que os(as) docentes participam na escola: ministrar aulas, manutenção da disciplina,
encontros com os pais, correções de trabalhos e avaliações, preparação pedagógica
das aulas, atividades sindicais, participação em comissões e conselho pedagógico, ou
seja, “atividades fim” diretamente ligada ao ensino dos alunos e “atividades meio”
que estão ligadas à organização do trabalho pedagógico da instituição. Nesse senti-
do, a estruturação do trabalho docente propõe um cenário de qualificação/treina-
mento constante, que dê conta das novas tendências e práticas do trabalho docente,
mostrando as principais consequências para o ensino e para os saberes profissionais
docentes. Sobre esse ponto, questionamos aos docentes quais os principais benefí-
cios da qualificação/treinamentos para o trabalho e as principais dificuldades encon-
tradas no processo? O discurso dos/as docentes ilustram os seguintes depoimentos:

Com o treinamento, o docente amplia a qualidade da produtividade do trabalho, novas me-


todologias para o trabalho, segurança no desempenho do trabalho, aquisição de habilidades
para o trabalho, integração com o grupo (professores, alunos, funcionários), realização pessoal e
profissional. (Professora, solteira, 37 anos, sem filhos, especialista, 12 anos na rede
estadual)

Acredito que os minicursos, encontros educativos, oficinas é importante para um bom trabalho
docente, ou seja, a troca de experiências contribui muito para um bom planejamento. As princi-
pais dificuldades em minha opinião esta no calendário escolar que é mal elaborado, pois dificulta

111
Alfrancio Ferreira Dias

muito para o professor, a carga horária de trabalho do mesmo em relação ao calendário não pos-
sibilita um bom desenvolvimento em relação à organização devido a grande quantidade de alunos
por séries. (Professor, casado, 28 anos, um filho, especialista, 4 anos na rede estadual)

A qualificação/treinamento no trabalho docente é um fator primordial no pro-


cesso de ensino/aprendizagem na perspectiva dos docentes, visto que melhoram
as práticas escolares, desenvolve mais habilidades, além de trocar experiências com
outros profissionais da área. Contudo, percebe-se nos argumentos dos entrevistados
que esse processo ainda não melhorou totalmente porque não depende somente do
professor, mas também da colaboração do Estado com a elaboração de políticas
públicas de incentivo a formação continuada. As representações dos docentes so-
bre o processo de qualificação e treinamento demonstram sua importância para o
objeto do seu trabalho, tanto para a carreira, com os benefícios do plano de cargos
e salários, quanto para a construção da identidade profissional com os benefícios
para a qualidade das ações desenvolvidas no trabalho. Desse modo, pode-se inferir
que algumas alternativas têm sido apontadas para ampliação da qualificação dos(as)
docentes no desenvolvimento do trabalho, bem como a reflexão sobre as experiên-
cias vivenciadas no processo de escolarização nos cursos de formação docente e ao
longo de suas trajetórias escolares. Os sentidos do aprender e do ensinar atribuídos
pelos professores e pelas professoras nessas vivências refletem diretamente na cons-
trução e nas representações de gênero, visto que homens e mulheres no processo
de aprendizagem e de ensino podem refletir suas singularidades, identificações e
subjetividades que fazem parte e são ampliada a partir de suas trajetórias de vidas.
Em outras palavras, os sentidos que homens e mulheres atribuem ao processo de
qualificação podem, também, refletir como eles e elas se identificam como agentes
que possuem identificações e subjetividades que são testadas em diversas situações
no interior das relações de trabalho e fora dele.
Nessa perspectiva, foram destacadas pelos entrevistados algumas contribuições
dos treinamentos para as práticas escolares, tais como ampliação da qualidade da
produtividade do trabalho, novas metodologias para o trabalho, segurança no desem-
penho do trabalho, aquisição de habilidades para o trabalho e integração e realização
pessoal e profissional. Reafirmando as contribuições da qualificação continuada para
o desenvolvimento do trabalho docente, o depoimento da professora é sugestivo:

Esse contexto de qualificação foi importante para mim, pois eu não tinha percebido como era
importante o trabalho com a diversidade cultural, principalmente, com ênfase na sexualidade.
Dessas novas necessidades cursei um curso de extensão sobre “a diversidade de gênero na escola”,
a partir dessas novas leituras eu pude ampliar o meu conhecimento a cerca da sexualidade, aí eu
pude entender melhor o que é sexualidade, o que eu educação sexual, orientação sexual, orientar
na sexualidade e ensinar numa perspectiva de gênero. Eu pude fazer dentro do meu trabalho
esse diferencial e isso me enriqueceu muito, visto que a partir desse curso eu ampliei as discussões

112
Gênero Trans e Multidisciplinar

dessa temática nas minhas aulas e na minha formação. (Professora, solteira, 46 anos, dois
filhos, doutora, 15 anos na rede estadual)

Acredita-se que qualquer que seja o curso realizado o professor sempre terá algo
novo para aprender, pois o conhecimento não é acabado, ele se transforma sempre.
A formação é importante porque lhe dá base para trabalhar com o diverso, com a di-
versidade da sala de aula hoje, pois na maioria das vezes, os(as) docentes tendenciam
e se centram em uma determinada área do conhecimento para uma maior produção
cientifica. Esse fato pode afetar o entendimento de que os(as) docentes não devem
esquecer a misticidade das escolas hoje, visto que é no cotidiano que percebemos a
necessidade de trabalhar de forma interdisciplinar a diversidade e isso pede ao do-
cente uma busca maior sobre os mais variados assuntos. As argumentações da pro-
fessora sinalizam para esse aspecto, pois a identidade de mulher-professora permeia
o modo de atuação no trabalho, suas expectativas e projetos pessoais e profissionais,
ou seja, sinaliza as formas com que ela vai produzindo significados ao seu processo
de qualificação para o trabalho e como media sua identificação/subjetividade a par-
tir da socialização e experiências nas práticas escolares.
As diversas mudanças na proposta pedagógica da instituição e as especificidades
do cotidiano do trabalho docente requerem uma nova consciência sobre a efetiva
necessidade de repensar a educação e as práticas escolares, tomando como ponto de
partida a realidade escolar para a modificação do fazer docente. Daí a importância
de o professor ser um pesquisador e viver sempre se atualizando, de uma forma
continuada. Assim, as reflexões sobre o trabalho docente extraídas dos depoimen-
tos dos(as) docentes estão ligadas à articulação dos saberes científicos, pedagógicos,
experimentais e políticos, num espécie de ciclo formativo-reflexivo.
Dessa premissa, surge a ideia tão bem trabalhada pelos interacionistas3 de que
o processo do aprender é um processo que se passa num espaço de interações so-
ciais e que essa aprendizagem é um processo de construção sociocultural. A partir
desse contexto, cabe entender, também, a necessidade dessas novas competências e
habilidades para o trabalho dos profissionais formadores da educação básica, bem
como a importância das trocas de experiências entre os docentes e a criação de um
espaço de reflexão sobre o trabalho desenvolvido. Parte-se da ideia de que o traba-
lho docente se situa na relação entre escola/conhecimento, aluno/saber, ensino/
aprendizagem (Lima, 2003), bem como que essas relações intensificam e modificam
as relações entre os agentes escolares. Em outras palavras, pode-se dizer que o espa-
ço da docência é um espaço que possibilita integrar as questões teóricas às questões
práticas, vivenciadas ao longo do processo de formação/trabalho, possibilitando a
construção de conhecimento significativo pela ação – reflexão – ação, a partir da

3. Ver Piaget (1971; 1973; 1978) e Vygotsky (1988; 1998; 2008).

113
Alfrancio Ferreira Dias

classificação dos saberes docentes, das fontes sociais de aquisição e das formas de
interação no trabalho.
Observa-se que os saberes docentes são plurais, com espaços e fontes de aqui-
sições diversas, e que se integram nas vivências de formação e atuação dos(as) do-
centes. A partir das formas de interação/socialização, os docentes atribuem sentido
e significado aos seus saberes, relacionando-os com suas atuações, aos instrumentos
utilizados e às suas experiências cotidianas, ou seja, numa relação próxima entre as
influências externas e internas do trabalho. Assim, o“saber profissional está, de um
certo modo, na confluência entre várias fontes de saberes provenientes das história
de vida individual, da sociedade, da instituição escolar, dos outros atores educativos
e dos lugares de formação” (Tardife Raymond, 2000, p. 114)4.

3. AS REPRESENTAÇÕES SOBRE AS
DIFERENÇAS/DESVANTAGENS ENTRE
HOMENS E MULHERES
Outro aspecto relevante da pesquisa foi a sondagem sobre a existência ou não
de diferenças e desvantagens entre homens e mulheres no processo de qualificação
e atuação no trabalho docente. Os argumentos da equipe diretiva direcionam para a
importância de manter o quadro docente mais qualificado para o desenvolvimento
das diversas ações preestabelecidas no plano anual de trabalho e no Projeto Po-
lítico Pedagógico. Os entrevistados reafirmam que, em geral, não há diferenças e
desvantagens nas habilidades e competências femininas e masculinas no processo
de treinamento. Entretanto, apenas no campo das inter-relações pessoais a mulher
pode ter uma maior habilidade em determinadas situações, mas a “competência
é a mesma, entre homens e mulheres”. O que de fato há é um espaço educativo
mais competitivo, no qual o desenvolvimento da qualidade do trabalho docente
está ligado à ampliação das habilidades e novas competências para a dinâmica das
práticas escolares no ensino médio. No contexto especifico da instituição, a própria
inserção e permanência dependem do alto nível de escolarização, de capacitações,
de treinamentos, ou seja, configurando um novo perfil de docente e que este esteja
em permanente processo de requalificação. Com disseminação de novos espaços
de formação continuadas, a equipe técnica busca criar um ambiente que favoreça a
troca de experiências entre os docentes e cooperação.
4. Neste estudo, Tardif e Raymond (2000) identificam e classificam os saberes docentes, dando ênfase às
formas de aquisições e de interações. Os saberes docentes são plurais e adquiridos nos diversos ambientes
como na família, na escola, nos cursos de formação acadêmica e nos métodos, instrumentos e procedi-
mentos didáticos.

114
Gênero Trans e Multidisciplinar

Na perspectiva dos(as) docentes não se percebe diferenças/desvantagens no


contexto da qualificação e treinamentos. Os entrevistados, ao comentarem sobre
seus processos de treinamentos, demonstram ambiguidade e contradições nas in-
formações cedidas por homens e mulheres:

Há sim, mais do ponto de vista da dedicação, do próprio comprometimento. Aqui no Atheneu


eu vejo um comprometimento maior das mulheres, não sei explicar o porquê, mas fica notário
isso. Elas são mais dedicadas e detalhistas no desenvolvimento de suas habilidades e competências
para o trabalho com uma qualificação mais intensa. Eu digo isso porque os alunos mesmo de-
nunciam esse contexto, no qual eles dizem que os homens são mais duros, relapsos e impacientes
inclusive, sendo isso o que os alunos mais comentam entre si. No nosso caso, em particular na
docência isso ainda esta exposto, existindo diferenças, visto que as atitudes são diferentes, os
comportamentos e suas ações. (Professor, casado, 42 anos, três filhos, mestrando, 13
anos na rede estadual)

Acho que não, pois hoje isso está bem tranquilo, até porque na atualidade a maioria são mu-
lheres na profissão docente, já se reconhece isso. Acredito que os homens que atuam no trabalho
docente vêm por paixão, por gostar, por querer, por uma referência de uma professora, e acaba
entrando na docência com essa paixão pelo que faz. Embora se perceba que o número de do-
centes do sexo masculino não são muitos, estes estão mais abertos para entender as questões da
sexualidade, afetividade, diferenças e a ligação entre família e trabalho, visto que o processo de
qualificação e treinamentos contribui para a ampliação e disseminação de novos conhecimentos.
(Professora, solteira, 46 anos, dois filhos, doutora, 15 anos na rede estadual)

O discurso dos(as) docentes sobre o processo de qualificação é ambíguo. Entre-


tanto, ambos buscam participar muito dos espaços de qualificações e treinamentos
internos e externos da escola. Percebe-se que há uma preocupação com o nível de
qualificação docente, criando um espaço competitivo, formativo e colaborativo. O
interesse pela maior qualificação exposto nos argumentos dos(as) docentes é diver-
sificado atende às especificidades das formações iniciais, das formas de inserções no
trabalho, das posições de status conquistadas e pelas formas de autonomias que es-
tabilizaram as relações entre homens e mulheres no trabalho docente. Contudo, nas
falas dos homens foi possível identificar alguns argumentos que expõe diferenças
em relação à atuação das mulheres, tais como

as mulheres tem mais cuidado e dedicação, sempre se tornam mais próximas dos alunos, tipo mãe
sabe. Até porque de uma forma equivocada ou não a sociedade educou e formou esses estereótipos
masculinos e femininos, na qual a mulher tem que ser afetuosa, mãe, educadora; e os homens
sejam duros, pai, dar ordens, onde infelizmente à sociedade titulou o que é ser homem ou mulher
e isso influencia diretamente nas funções que homens e mulheres desempenham. (Professor,
casado, 42 anos, três filhos, mestrando, 13 anos na rede estadual)

115
Alfrancio Ferreira Dias

Nesse aspecto, entra em cena a discussão de que as mulheres trazem para o


trabalho as competências e habilidades específicas desenvolvidas na construção da
identidade feminina e que essas habilidades se evidenciam nas relações de trabalho.
A necessidade de trabalho coletivo é uma das razões que intensificam a valorização
das “qualificações sociais femininas”, por se reconhecer nelas, características es-
pecíficas das mulheres, ou até mesmo, sinalizar novas formas de estratégias para a
apropriação dessas qualificações como base na “natureza” de acordo com as repre-
sentações de gênero do trabalhador. Percebe-se que as atividades de treinamentos
e qualificações para o trabalho docente na instituição investigada estão refletindo
as novas exigências para o desenvolvimento da prática docente no ensino médio,
independente do sexo do trabalhador. Entretanto, nesse processo as identificações
masculinas e femininas parecem conter uma noção e valorização das qualificações/
treinamentos diferente, emergindo a ideia de habilidades ligadas às esferas “públicas
e privadas”, em especial, para as desenvolvidas pelas mulheres nesse processo.
Conclui-se que o processo e o cotidiano do trabalho docente com suas dinâmi-
cas de organização, de formas de inserções e permanências, a valorização das com-
petências e qualificações e o sentido da qualificação dos(as) docentes influenciam e
legitimam a construções das identificações e subjetividades dos profissionais a partir
das interferências das práticas sociais.

REFERÊNCIAS

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ernidade. São Cristóvão: Editora UFS, 2005.
DUBAR, Claude. A socialização: construção das identidades sociais e profission-
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multidisciplinar. Petrópolis: Vozes, 1994.
TARDIF, M. Saberes profissionais dos professores e conhecimentos universitários:
elementos para uma epistemologia da prática profissional dos professores e suas
consequências em relação à formação para o magistério. Revista Brasileira de
Educação, nº 13, jan-abr. ANPED, Editora Autores Associados: Campinas, 2000,
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rio. Revista Educação e Sociedade, n. 73, p. 209-244, 2000.

116
Gênero Trans e Multidisciplinar

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nado e a ação docente. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2003.
PIAGET, J. A Epistemologia Genética. Petrópolis: Vozes, 1971.
______. Estudos Sociológicos. Rio de Janeiro: Forense, 1973.
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VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento do processo
psicológicos superiores. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
______. Pensamento e Linguagem. SãoPaulo: Martins Editora, 2008.
______. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: EDUSP,
1988.
TARDIF, Maurice. Saberes Docentes e Formação Profissional. 12. ed. Petrópo-
lis: Vozes, 2011.

117
CAPÍTULO VIII
TRABALHO DOCENTE, FAMÍLIA E
VIDA PESSOAL – PERMANÊNCIAS,
DESLOCAMENTOS E MUDANÇAS
CONTEMPORÂNEAS
Silmere Alves Santos1

1. A ARTE DA PESQUISA: PROBLEMÁTICA


Mulheres chefes de família, mães, estudantes e profissionais que traçam um pro-
jeto profissional articulado ao ensino superior, vivem um desafio constante. Corro-
boro com a ideia de que a divisão sexual do trabalho doméstico ainda existe, apesar
dos casos esporádicos de relações mais igualitárias entre alguns casais. Isso para
aquelas que têm companheiros e podem provocar mudanças comportamentais no
desenvolvimento das atribuições com a família. Defendo a ideia de que as mudanças
nos valores patriarcais não dependem apenas dos altos graus de escolaridade, do uso
de anticoncepcionais e inserção no mercado de trabalho ou da liberação da sexuali-
dade, e sim depende de mudanças de mentalidades e também de garantia de direitos
trabalhistas e sociais praticados em nossas instituições.
Por outro lado, que dizer daquelas mulheres que estão inseridas em famílias
monoparentais e têm que arcar com os custos de organizar uma rede de apoio, para
desenvolver seus projetos profissionais porque o projeto casamento/conjugalidade
não vingou? Sem contar as diversas horas dispensadas nos tribunais de justiça para
garantir os seus direitos e os direitos dos filhos e não serem vítimas de juízes e advo-
gados machistas? Aquelas que adiam os diversos projetos familiares para conseguir
estabilidade no mercado de trabalho, para obter a qualificação mínima, quando não
se deparam com processos corporativistas vigentes nas instituições que barram o
acesso, apesar dos concursos para a carreira do magistério e os processos seletivos
nos programas de pós-graduação serem públicos e “transparentes”, são, entretanto,
carregados de análises subjetivas.
Quando não, são os próprios pares que desqualificam a produção das colegas,
dada a alta competitividade nos espaços de trabalho e/ou expressam preconceitos
1. Doutora em Educação pela Universidade Federal de Sergipe e diretora geral da Faculdade José Augus-
to Vieira.

119
Silmere Alves Santos

quando as mulheres se veem em situações e atribuições que necessitam articular o


trabalho profissional, a qualificação profissional e as responsabilidades com a fa-
mília. Ou quando se deparam com preconceitos expressos por outras mulheres.
Ou quando são criticadas porque levam as crianças para os ambientes de trabalho,
porque foram pegas de surpresa com o atestado médico da empregada doméstica
quando precisava fazer uma apresentação na academia ou tinha uma reunião no co-
legiado e não existe uma creche dentro da instituição na qual trabalha. Ou quando
não sobra dinheiro para custear as inscrições, deslocamento e hospedagem em even-
tos científicos, mas são obrigadas e pressionadas por sistemas que se comprometem
com os índices de produtividade científica e com a reforma da educação superior
para atender aos ditames do capital.
Como a mulher deve agir quando se sente sobrecarregada de identidades demais para
uma só pessoa? Como deve agir, institucionalmente, quando é vítima de violência psi-
cológica e assédio moral e ou tem infringidos seus direitos enquanto ser humano,
em um meio no qual as network definem quem fica e quem sai? Quantas jornadas de
trabalho estas mulheres vivenciam? Um debate intrinsecamente ligado aos direitos
humanos. Um debate delicado, num ambiente em que, os bons relacionamentos e
o network são fundamentais para as colocações nos espaços de trabalho. E onde os
padrões de produtividade são coerentes com a lógica neoliberal e destituidora dos
direitos das mulheres. Onde as responsabilidades sob a família deveriam ser do
Estado, das Organizações/Instituições Públicas e da Família, entretanto, recaem
preponderantemente sobre as mulheres.
O fato é que a Convenção nº183 da Organização Internacional do Trabalho
para as mulheres trabalhadoras proíbe a discriminação em função da maternidade e
a exigência de teste de gravidez. E, além disso, determina que deve ser garantido o
direito a descansos ou uma redução de jornada em função da amamentação. É obvio
que, nesse caso, não estamos falando de trabalhadoras da educação superior pública,
mas de gestores da educação superior que devem agir antecipadamente na garantia
dos direitos humanos, mesmo que de estudantes de doutorado, professoras de nível
superior de instituições públicas, na condição de substitutas.
Isso corrobora as ideias de Tim May (2004), para quem, nos estudos das fe-
ministas, não se pode separar a razão e a emoção de maneira simples, produção
e reprodução, público e privado. A pesquisa é um processo de duas vias, no qual
a pesquisadora é afetada pelo contexto da pesquisa ou pelas pessoas que fazem
parte desse processo. No meu caso, ouvi diversas vezes: por que você não estuda
as trabalhadoras domésticas? Por que você não estuda as lésbicas? Por que você
não estuda uma só professora e conta a trajetória de vida de uma professora negra?
Em pesquisa, é assim, os objetos nascem das motivações/vivências e escolhas te-

120
Gênero Trans e Multidisciplinar

óricas de cada pesquisadora. E o tema que me motiva é articular carreira, família e


vida pessoal, neste momento, no contexto do magistério superior; no futuro, com
outros contextos e sujeitos.
Contudo, em qualquer das temáticas citadas acima, ratifica-se a luta por igual-
dade, equidade e respeito às diferenças reconhecendo a diversidade; ratifica-se
a importância, principalmente, do cotidiano, das representações e das ações do
indivíduo como fatores que merecem e devem ganhar visibilidade nas pesquisas
sociais, pois estão intrinsecamente relacionados às transformações culturais e à
mentalidade dos indivíduos.
Diante de tal problemática, como negar os processos de dominação patriarcal?
Como não lutar por igualdade, equidade e respeito às diferenças reconhecendo
a diversidade? Como negar a importância do cotidiano, das representações e das
ações do indivíduo como fator que merece ganhar visibilidade? Poder-se-ia admitir
que os processos de reestruturação produtiva da universidade não acirrariam os
processos de dominação patriarcal sob as mulheres? Poder-se-ia atribuir somente
ao sujeito a responsabilidade pela resolução destas contradições? Qual o papel do
sujeito nessas questões?
A tais questionamentos e a outros relacionados à problemática, cada um res-
ponderá a partir de seus princípios, valores e escolhas teórico-metodológicas, mas as
pesquisas que se preocupam com questões aparentemente de foro íntimo poderão
apontar ações de políticas públicas para o mundo do trabalho e para a família, ou
viabilizar ações de educação que levem a sociedade humana a ser mais humana e
não simplesmente mercadológica, capitalista, competitiva, machista, patriarcalista,
sexista, androcêntrica e individualista.
Nesse sentido, o estudo aprofundou tal debate ultrapassando a discussão sobre
o trabalho profissional, articulando-o ao trabalho doméstico e a vida pessoal na me-
dida em que amplia as análises para o âmbito da individualidade, da subjetividade,
das representações de homens e mulheres que vivenciam e são sujeitos nas relações
entre os sexos em uma sociedade em constante e contínua transformação2, numa
perspectiva de gênero.
Em termos gerais, a lógica utilizada foi desenhada de forma a identificar as
permanências, os deslocamentos e as mudanças nas relações sociais entre os sexos
e nas representações sociais dos sujeitos que configurem destradicionalização ou

2. Para Manuel Castells (1999), há três hipóteses para transformação nas relações entre homens e mulheres:
1) abertura na área da educação; 2) transformações tecnológicas na biologia, farmacologia e na medicina,
propiciando controle sobre a gravidez; e 3) rápida difusão de ideias na cultura globalizada em um mundo
interligado. O autor argumenta que, apesar de a discriminação contra a mulher ter diminuído, aumentaram
a violência interpessoal e o abuso psicológico, devido ao desrespeito à alteridade feminina e ao não confor-
mismo do homem diante da perda de poder. Estes também são aspectos que precisam ser analisados para
melhor entendimento dos processos de dominação nesta sociedade.

121
Silmere Alves Santos

complexificação dos valores e princípios do patriarcalismo3 e do androcentrismo4.


Preocupo-me, portanto, com as relações entre a sociedade e a subjetividade, entre
os sujeitos e as instituições, pois sendo o gênero uma construção história e social,
os discursos e as representações ligadas às identidades de gênero se mantêm em
constante movimento e precisam ser conhecidas no contexto da sociedade reflexiva.
Nesse sentido, algumas constatações são inevitáveis, quais sejam: as mulheres
adentraram no espaço público, assumiram funções diversas, sentiram na pele os
processos da dominação, esforçando-se por rompê-los, no entanto, não tiveram as
tarefas domésticas, antes únicas a serem cumpridas pelas mulheres, divididas com
os homens. Houve um mal-entendido que precisa ser desfeito, como defende Ro-
siska Oliveira (1993). Com isso, surgiu a impossibilidade de dissolver o conflito
coexistencial de manter as esferas públicas e privadas simultaneamente, assumindo
a multiplicidade de papéis que desgastam e trituram a estrutura psíquica da mulher,
remetendo a uma discussão sobre a saúde da mulher, sobre empoderamento e alte-
ridade, sobre qualidade de vida e direitos humanos.
Na perspectiva epistemológica histórico-crítica e feminista, as teses apontam
que, na sociedade brasileira, a presença de mulheres nos espaços da academia é
3. O Patriarcalismo é uma das estruturas sobre as quais se assentam todas as sociedades contemporâneas.
Caracteriza-se pela autoridade, imposta institucionalmente, do homem sobre a mulher e filhos no âmbito
familiar. Para que essa autoridade possa ser exercida, é necessário que o patriarcalismo permeie toda a or-
ganização da sociedade, da produção e do consumo à política, à legislação e à cultura. Os relacionamentos
interpessoais e, consequentemente, a personalidade, também são marcados pela dominação e violência
que têm sua origem na cultura e instituições do patriarcalismo. É essencial, porém, tanto do ponto de vista
analítico quanto político, não esquecer o enraizamento do patriarcalismo na estrutura familiar e na repro-
dução sociobiológica da espécie, contextualizados histórica e culturalmente. Não fosse a família patriarcal,
o patriarcalismo ficaria exposto como dominação pura e acabaria esmagado pela revolta da “outra metade
do paraíso”, historicamente mantida em submissão (Castells, 1999, p. 167).
4. Entre os processos de dominação-opressão,o estudo questiona o patriarcalismo, o androcentrismo, in-
terconectados ao capitalismo, pois focaliza a vida pública através da inserção no mundo do trabalho de-
marcado pela divisão social e sexual do trabalho, mas também analisa a mulher enquanto sujeito de suas
ações e de suas vidas. Segundo Antonio Gasparetto Junior, o Patriarcalismo tem como definição ideológica
a supremacia do homem nas relações sociais. O termo patriarcalismo é oriundo de patriarcado, que, por sua
vez, tem origem na palavra grega pater. A primeira vez que o termo foi usado com conotação de prepon-
derância do homem na organização social foi pelos hebreus com o propósito de qualificação do líder de
uma sociedade judaica. Mas o grego helenístico também já fazia menção ao termo, pois as mulheres eram
concebidas como objetos de satisfação masculina e, consequentemente, julgadas como inferiores. É errado
dizer que na história da humanidade o homem sempre foi superior às mulheres nas relações sociais, pois, na
verdade, o patriarcalismo apenas inverteu a ordem de supremacia, que em muitas civilizações tinha a mulher
como superior, o matriarcalismo. Antes, os homens cultuavam uma Deusa Mãe.
Androcentrismo, postura segundo a qual todos os estudos, análises, investigações, narrações e propostas
são enfocadas a partir de uma perspectiva unicamente masculina, e tomadas como válidas para a generali-
dade dos seres humanos, tanto homens como mulheres. Não há um entendimento único na teoria feminista
sobre o uso do conceito de patriarcado, mas há consenso quanto à influência da razão androcêntrica sobre
a ciência. Tal convencimento é fundamental para investigar o debate filosófico travado ao longo da história
sobre o tema da igualdade, a fim de assentar a compreensão da influência do androcentrismo sobre os
valores e ideias vinculados à distribuição e ao exercício de poder na sociedade.

122
Gênero Trans e Multidisciplinar

perpassada por fatos históricos característicos do patriarcalismo e do androcentris-


mo, o que justifica romper o ceticismo quanto à competência técnica e científica de
mulheres para produzir. Inevitavelmente, faz-se necessário resgatar todo o discurso
que há muito vem sendo historicamente analisado sobre a divisão social e sexual
do trabalho no âmbito da produção que, ao dar visibilidade ao sexo da classe tra-
balhadora, explicita que há diferenciações presentes no espaço da produção entre
força de trabalho feminina e a masculina, as quais não podem ser conhecidas apenas
olhando-se para a esfera da produção. É necessário também conhecer as nuances da
esfera da reprodução e das relações entre as instituições e os sujeitos.
No atual contexto de inovações tecnológicas e da reforma do ensino superior
que impactam na carreira do magistério superior, as análises vão além da questão
da competência da mulher para assumir determinada função ou para atender às
exigências que a carreira no magistério superior requer; ter condições de progressão
na carreira e de inserção dos postos da hierarquia universitária em uma universidade
reestruturada e preparada para atender aos ditames do capital, perpassa também por
questões culturais e estruturais; inevitavelmente, sofrem implicações das responsa-
bilidades com a vida familiar, que historicamente e num contexto de transforma-
ções5 trazem características patriarcais, mas também sofrem implicações da ação da
mulher enquanto sujeito de sua própria vida. Através de suas escolhas, as mulheres
5. Análises feitas por Manuel Castells (1999) apontam detalhes dessas transformações que respaldam a
importância do objeto de estudo desta pesquisa, principalmente quanto ao aumento do poder de barganha
das mulheres por sua entrada no mercado de trabalho; quanto à quádrupla jornada diária de trabalho e ao
nível de conscientização destas mulheres. Tais fatos demarcam transformações irreversíveis, mas não são
suficientes para inferir que os problemas relacionados à discriminação e opressão patriarcal tenham sido
eliminados ou sua intensidade tenha sido reduzida, pois há uma expansão da violência interpessoal e abuso
psicológico sobre as mulheres. Demandam, portanto, que as análises estruturais específicas da categoria
analítica gênero precisam ser associadas a análises sobre o individual e relações interpessoais específicas da
categoria representações sociais consideradas nesta tese para ampliação das análises, a partir do conceito
de relações sociais entre os sexos. Segue a citação de Manuel Castells:“A incorporação maciça da mulher na
força de trabalho remunerado aumentou o seu poder de barganha vis-a-vis o homem, abalando a legitimi-
dade da dominação deste em sua condição de provedor da família. Além disso, colocou um peso insustentá-
vel sobre os ombros das mulheres com suas quádruplas jornadas diárias (trabalho remunerado, organização
do lar, criação dos filhos e a jornada noturna em benefício do marido). [...] A conscientização das mulheres
está se difundindo rapidamente em todo o planeta. Essa é a mais importante das revoluções, porque remete
às raízes da sociedade e ao âmago do nosso ser. Alem disso, trata-se de um processo irreversível. Admitir o
fato não significa que os problemas referentes à discriminação, opressão e abuso das mulheres e seus filhos
tenham sido eliminados ou que sua intensidade tenha sido significativamente reduzida. Na verdade, embora
a discriminação legal tenha, de certo modo, diminuído e a tendência seja que o mercado de trabalho venha
a se equalizar à medida que o nível de educação da mulher aumenta, a violência interpessoal e o abuso psi-
cológico tem-se expandido, justamente em virtude da ira masculina, tanto individual quanto coletiva, ante
a perda de poder. [...] Entretanto, não obstante a violência do conflito, a transformação da conscientização
da mulher e dos valores sociais ocorrida em menos de três décadas em quase todas as sociedade é impres-
sionante e traz consequências fundamentais para toda a experiência humana, desde o poder político até a
estrutura da personalidade” (Castells, 1999, p.170-171)

123
Silmere Alves Santos

resistem aos processos de dominação. Seja no mundo do trabalho ou no mundo da


família, não se colocando na dimensão da identidade e da alteridade como vítima,
mas resistindo a tais processos.
Conhecer aspectos do trabalho, da família e da vida pessoal de mulheres e ho-
mens docentes do magistério superior que articulam essas três esferas, é justificável
e importante porque sintonizam-se com os objetivos de ampliar a inserção, a perma-
nência e a progressão das mulheres em todos os campos da ciência e do magistério
superior; bem como ampliar o debate sobre a divisão sexual do trabalho na acade-
mia, a segregação vertical e horizontal, o fenômeno do teto de vidro, maternidade,
paternidade, trabalho doméstico. Uma questão de garantia de direitos de cidadania e
de evolução da humanidade, o que é coerente com as Metas do Milênio que defen-
dem a promoção da igualdade entre os gêneros e o empoderamento das mulheres.
Isso é importante porque na 98ª Conferência Internacional do Trabalho, Gene-
bra, em junho de 2009, foi definido que a articulação entre trabalho e vida familiar
não é um problema apenas feminino, de foro íntimo ou familiar, mas uma ques-
tão social. É uma questão de homens e mulheres, e deve ser um tema de políticas
públicas, assim como das iniciativas e estratégias das empresas e das organizações
de trabalhadores(as) e empregadores(as). As medidas de equilíbrio entre trabalho e
família se apoiam na premissa de que o exercício das responsabilidades familiares é
um direito das pessoas, homens e mulheres, e, por isso, não deve ser utilizado como
justificativa para qualquer restrição quanto ao acesso, tipo de inserção ou ascensão
profissional, assim como para a participação política. Trabalhar sem sofrer discrimi-
nação em função de responsabilidades familiares é um direito de homens e mulhe-
res. Essas responsabilidades não deveriam constituir um impedimento ou restrição
quanto ao acesso, tipo de inserção e trajetória profissional para trabalhadores de
ambos os sexos. Também as condições nas quais o trabalho remunerado se realiza
não deveriam restringir o desempenho das responsabilidades familiares.
A preocupação com a articulação da vida profissional com a vida familiar tam-
bém é tratada no Relatório OIT/PNUD 2009. O Relatório Regional Trabalho e Fa-
mília: rumo a novas formas de conciliação com corresponsabilidade social coloca a
questão da conciliação entre a vida familiar e pessoal e a vida no trabalho, como um
dos maiores desafios de nosso tempo. Defendendo que é necessário avançar para
a conciliação de ambas as esferas com corresponsabilidade social, entre homens e
mulheres, mas também entre as famílias, Estados, mercados e sociedade em geral.
O trabalho não é apenas um recurso econômico, mas também um meio de de-
senvolvimento de necessidades sociais, autoestima e espaços próprios. A maior par-
ticipação feminina no mercado de trabalho e a geração de renda própria redundam
também em um aumento do nível de autonomia das mulheres, maior satisfação com
suas vidas e melhoria de seu poder de negociação no interior da família. Elementos
culturais, como o reconhecimento de seus direitos e a maior presença de mulheres

124
Gênero Trans e Multidisciplinar

na esfera pública, o aumento de seu nível de educação e maiores expectativas de


desenvolvimento autônomo, estão, também, por trás do aumento de mulheres no
mercado de trabalho (Relatório OIT/PNUD, 2009, p. 43).
Espera-se, com este estudo, entender e apontar estratégias que barrem os pre-
conceitos e os processos discriminatórios de gênero nos espaços acadêmicos, bus-
cando uma “revolução simbólica” capaz de deslocar os processos contraditórios
que reafirmam os homens em uma posição hegemônica, e desconstruir, de fato, as
posições tradicionais atinentes ao gênero favorecendo as revisões e reelaborações
de questões centrais aos que buscam articular projeto profissional, projeto familiar
e vida pessoal e estão impregnadas nas mentalidades de homens e mulheres, dando
visibilidade às representações e ações dos sujeitos.
Parte-se, portanto, do pressuposto de que a maternidade e a paternidade têm
consequências diferentes sobre a vida de homens e mulheres. Considerando que
o trabalho docente invade a vida privada ocupando o que seria o tempo livre do
trabalho produtivo, defende-se que há interferências nos processos de qualificação
que levam às titulações (doutorado) possibilitando a produção do conhecimento
científico, acesso aos financiamentos, progressão na carreira do magistério superior.
E, por outro lado, como defende Estela Aquino (2006), quando o projeto profis-
sional da mulher é acadêmico, muitas vezes, o projeto de casamento, maternidade, é
adiado ou abandonado. E quando têm filhos, essas mulheres têm menor disponibi-
lidade para as viagens de médio e longo prazo e também têm que adiar a ocupação
de cargos, levando-as a perder oportunidades que interferem no estabelecimento de
parcerias e intercâmbios, bem como interferem na internacionalização da produção
científica destas mulheres. Por fim, considerando o caráter androcêntrico da ciência,
tendo visto que a universidade faz parte do modelo de sociedade estruturado a par-
tir da divisão sexual do trabalho, parte-se também do pressuposto de que as mulhe-
res enfrentam empecilhos dentro e fora da universidade para progredir na carreira e
para o acesso às instâncias de poder.

2. CONSTATAÇÕES DO ESTUDO
O estudo constatou que existem, na sociedade contemporânea, mudanças nas
relações entre homens e mulheres que caracterizem outros comportamentos, outros
padrões de sociabilidade que podem levar à construção de relações entre os sexos,
pautadas em valores mais equitativos no âmbito da conjugalidade e que, eventual-
mente, podem favorecer a conciliação trabalho docente-família para mulheres que
trabalham na Academia.
Entretanto, na condição de crise entre um modelo tradicional e um novo mode-
lo de organização das relações entre os sexos, ainda predominam as situações de su-

125
Silmere Alves Santos

bordinação, dominação, opressão e exclusão, características do patriarcalismo e do


androcentrismo que dificultam para as mulheres conciliar trabalho docente-família
no âmbito da universidade, e as mantém distantes do campo da ciência, quando não
as levam a enfrentar dificuldades e constrangimentos devido à escolha entre família,
maternidade e carreira profissional.
Como forma de resistência, ou como forma de solucionar tais conflitos, al-
gumas mulheres fazem escolhas diferentes e abrem mão ou adiam, ao máximo, o
projeto familiar. Algumas dessas mulheres resistem em nível individual, mas não
participam em nível da coletividade de movimentos por mudanças estruturais; ou-
tras não têm consciência dos processos de dominação vivenciados. Confirma-se a
emancipação da mulher pelo trabalho assalariado, a ponto de financeiramente, no
segmento estudado, a mulher casada ser a chefe da família, favorecendo o poder de
negociação no interior da família, dada a sua condição de empoderamento.
No contexto do mundo do trabalho reestruturado produtivamente, os proces-
sos de segregação e divisão sexual do trabalho permanecem e se agravam. Perma-
necem a segregação horizontal e vertical e surge a segregação paralela; também o
fenômeno do teto de vidro, mas na realidade da UFS surge o fenômeno do teto de
lona como um deslocamento agravante; as mudanças estão relacionadas à constata-
ção da preponderância da produção científica entre as mulheres; também como um
deslocamento agravante constata-se que o sexo do trabalho substituto é, prioritaria-
mente, feminino.
Ratifica-se que os procedimentos de gênero interferem na inserção, permanên-
cia e ascensão da mulher no mundo da academia; nos processos de trabalho e quali-
ficação profissional acesso às instâncias de mando, decisão e poder. Procedimentos
de relações de gênero aos quais algumas mulheres resistem cotidianamente, mas
outras não os reconhecem. Se algumas mulheres não os reconhecem, encontra-se
um agravante e um elemento potencializador do sistema de dominação patriarcal e
androcêntrico, na sociedade contemporânea.
No cotidiano do trabalho docente, constata-se a flexibilização dos turnos de tra-
balho, na medida em que as mulheres trabalham mais no turno noturno. Confirma-
-se a sobreimplicação do trabalho docente, pois entre as mulheres encontra-se o
maior percentual de mulheres que declaram dedicar doze horas por dia ao trabalho
profissional, levando trabalho para casa, o que faz com que as mulheres tenham
maior produtividade, mas não faz com que as mesmas sejam bolsistas de produtivi-
dade do CNPQ. Consequentemente, o percentual de mulheres que dedicam menos
de oito horas por dia ao descanso e ao lazer também é maior e, geralmente, entre as
mulheres casadas, essas horas estão associadas ao cuidar dos filhos e de si mesmas,
apontando possibilidades de problemas de saúde/adoecimento.
Verifica-se também que as mulheres precisam negociar com os cônjuges, en-
quanto os filhos são pequenos, a necessidade de viagens, prazos acadêmicos e a

126
Gênero Trans e Multidisciplinar

circulação entre os pares para aumentar os contatos no meio acadêmico, e é nesse


aspecto, consequentemente, que os conflitos aparecem, mas as mulheres declaram
não ter impedimento para viajar ou para trabalhar a noite, porém relatam dificulda-
des vivenciadas. Algumas mulheres abrem mão de deslocar-se para outras regiões
do país em busca da qualificação ou aceitam as opções de mestrado e doutorado em
outras áreas, não conseguindo manter a aderência em seus currículos e ratificando a
segregação paralela e tridimensional.
Infere-se, portanto, que o estancamento na carreira docente e nos processos
de qualificação, acesso a melhores salários e aos financiamentos para produção do
conhecimento sofrem interferência da falta de cursos stricto sensu em nível doutorado
nas áreas de atuação, bem como dos processos de negociação no âmbito familiar
para deslocamentos necessários em prol da progressão na vida acadêmica. Bem
como das consequências oriundas da maternidade, enquanto os filhos são pequenos.
Confirmam-se as ideias de Nancy Fraser de que a teoria normativa sobre a jus-
tiça social visa unificar redistribuição e reconhecimento acreditando, com isso, que
as formas de injustiça passam pela estrutura econômica da sociedade e pela ordem
de status, ou seja, que as demandas por mudanças econômicas, muitas vezes, cruzam
com as mudanças por reconhecimento das diferenças, sendo, portanto, coletivida-
des que sofrem injustiças tanto no âmbito econômico, quanto no cultural/simbóli-
co dando origem a arranjos sociais que impedem a participação plena de todos os
indivíduos na arena pública.
Nesses termos, as mulheres que participaram desta pesquisa são chefes de famí-
lias, têm um status econômico muitas vezes superior ao do cônjuge/companheiros.
Entretanto, no âmbito do trabalho profissional, as diferenças e injustiças existentes
constatadas através da segregação vertical, horizontal e paralela só podem ser elimi-
nadas através da participação paritária interferindo as escolhas das áreas científicas
que componham os programas de pós-graduação (mestrado e doutorado); do aces-
so às bolsas de produtividade do CNPQ; a criação de ações afirmativas direcionadas
para os cursos stricto sensu e para a permanência e ascensão da mulher na universida-
de, enquanto trabalhadora e, provavelmente, à redução da carga horária de trabalho
proporcional a condição de maternidade. Por outro lado, as condições intersub-
jetivas relacionadas aos padrões de valoração cultural, os quais devem expressar
respeito e igualdade de oportunidades, pois mulheres mães com filhos pequenos
ou quando grávidas não são bem vistas nos processos de seleção de pós-graduação
stricto sensu. Explicitamente pode não haver negação do acesso, mas veladamente
expressam preconceitos colocando essa condição como desprezível e inferior em
relação as(aos) demais.
Trata-se, evidentemente, o reconhecimento como uma dimensão política, uma
injustiça de status, mas também uma depreciação da subjetividade da mulher/femi-
nina e a inexistência de relacionamentos que favoreçam a inclusão social e a autor-

127
Silmere Alves Santos

realização, principalmente, em um ambiente como a universidade pública, brasileira,


nordestina, marcada por profundas assimetrias culturais, econômicas e políticas que
privilegiam padrões patriarcalistas, androcêntricos, coronelistas, autoritários, opres-
sores, conservadores, corporativistas e politiqueiros carregados de injustiças sociais
e desigualdade de gênero expressos tanto por homens quanto por mulheres, pois,
sabe-se que, no Brasil, a inserção das mulheres na esfera pública não resultou em
valores mais igualitários, ou não acarretou mudanças mais profundas nas relações
entre os sexos e não levou as próprias mulheres a uma visão mais crítica do seu status
de mulher, mesmo entre mulheres com nível de formação superior e trabalhadoras
concursadas do magistério superior.
Corrobora-se a ideia de que há uma tendência universal de se estabelecer uma
ordenação hierárquica entre os sexos; constata-se a existência de barreiras culturais,
estruturais e simbólicas expressas nos valores patriarcais, androcêntricos, machistas
e heterossexuais institucionalizados e cristalizados na mente dos sujeitos e nos re-
cursos materiais e institucionais que demarcaram o papel da mulher da sociedade
moderna ocidental.
No âmbito da família, os processos de dominação nas relações entre os sexos
sofrem deslocamentos e tendem a resolução dos conflitos através da negociação
sobre os cuidados/responsabilidades familiares e da externalização do trabalho do-
méstico. Constata-se que os conflitos resultantes da articulação entro o trabalho
profissional e atividades domésticas (cozinhar, lavar, passar, arrumar) são resolvidos
com a externalização do trabalho doméstico, para o qual as mulheres dedicam me-
nos ou o máximo de quatro horas e, esporadicamente com a ajuda do homem. Já os
conflitos decorrentes da conjugalidade e das responsabilidades familiares (o cuidado
com os entes familiares e a administração doméstica) são negociados, mas ainda são
preponderantemente responsabilidades de mulheres.
Nesse aspecto constata-se que a mulher ainda assume prioritariamente as conse-
quências da reprodução, mas já podem contar com a ajuda dos cônjuges ou algumas
já dividem equitativamente essas responsabilidades. Constata-se também que a ma-
ternidade é reflexiva, ou seja, muitas mulheres definem o momento mais favorável
para ter filhos; outras abrem mão de ter filhos; e outras assumem a articulação tra-
balho profissional, família e vida pessoal. Por outro lado, observa-se que, no caso
dos cônjuges que contam com ajuda, não se configuram, portanto, uma condição
de igualdade e equidade. É apenas considerada uma ajuda. Verifica-se a tese da in-
teriorização das responsabilidades familiares, o que moralmente não poderia ser
diferente para os que fazem a opção por ter filhos.
Comprovou-se também que as mudanças nas relações entre os sexos no âmbito
privado dependem da ação e da mudança de comportamento e da mentalidade dos
sujeitos, homens e mulheres, inseridos numa cultura, em processos de socialização
e educacionais que precisam ser revistos sob a ótica das diferenças. Entretanto, des-

128
Gênero Trans e Multidisciplinar

taca-se que as potencialidades da educação formal precisam ser mais bem utilizadas
pelos projetos feministas, emancipatórios e humanistas.
Confirma-se que a maternidade e a paternidade têm consequências diferencia-
das sobre a vida profissional dos docentes baseadas nos papéis sociais atribuídos a
homens e mulheres.
Na dimensão da alteridade e da vida pessoal, em nome do amor e do dever
materno, há mulheres que não conseguem negociar e estancam a progressão de sua
carreira acadêmica. Moralmente isso não é condenável, pois o decidido por mim
(estas docentes) é pelos outros e para os outros, principalmente quando os outros
são os filhos e os entes queridos. Na perspectiva dos direitos humanos e da repro-
dução da humanidade, tal decisão deveria ser louvável e aplaudida e não passível de
expressão de preconceitos pelos pares e barreiras postas pelos sistemas institucio-
nais de dominação-exploração. Isso denota que outras mulheres resistem e algumas
sobrevivem profissionalmente, pois para se sentirem realizadas pessoalmente, a di-
mensão do trabalho profissional também é imprescindível, por ser entendida como
dignificadora e enobrecedora do indivíduo.
No âmbito da reprodução do Ser Humano biologicamente homens e mulheres
devem ser corresponsáveis. Verifica-se que as mulheres que constituem ou constitu-
íram família, são levadas à externalização do trabalho doméstico, contratando outras
mulheres ou contando com a ajuda de familiares e companheiros, aparecendo ainda
como incipiente, ao menos no nordeste do Brasil, os serviços oferecidos pelo mer-
cado, por exemplo, escolas em regime integral, hotelzinho (quando existem custam
por volta de dois salários mínimos, por criança) entre outros e a participação efetiva
e concreta do cônjuge.
Por outro lado, na sociedade contemporânea, outras mulheres optam por não
constituir família e priorizam os projetos profissionais e outras formas de vida, evi-
tando, assim, entrar na polêmica de articular carreira e família/divisão sexual, tra-
balho profissional e das responsabilidades familiares ou vivenciar as dificuldades de
externalização do trabalho doméstico ou arcar com os custos deste conflito, o que
consequentemente aponta outros padrões de identidade feminina.
Dessa forma, as mulheres ainda assumem, em nome da natureza e do dever
materno, os cuidados com os filhos, mas não abrem mão de sua realização pessoal e
profissional. Infere-se, portanto, que a maternidade ainda não foi reconhecida como
uma função social e como uma questão social. Também foi identificada a perspecti-
va de constituição de família de caráter homoafetiva, na medida em que, apenas um
docente declara ser homossexual e pretender assumir uma relação estável e oficial
com outro homem e adotar uma criança, no futuro.
Sendo a articulação trabalho, família e vida pessoal uma questão social, exige-se,
portanto, medidas estruturais no âmbito das instituições e mudanças de mentalida-
des, ou se pesam sobre as mulheres os estereótipos de gênero ou a falta de empo-

129
Silmere Alves Santos

deramento dada à interiorização das responsabilidades familiares, em seus aspectos


morais, afetivos e psicológicos, colocam algumas mulheres na condição de vítimas
deste processo.
Nesse sentido, se no Brasil prevalecem os modelos de homem provedor e mu-
lher cuidadora e o modelo de homem e mulher provedores e de mulher cuidado-
ra; constata-se a ausência de política para a família; ausência de serviços ofertados
pelo mercado; e a externalização do trabalho doméstico reforça saídas maternalistas;
evidencia-se que o esforço despendido por mulheres trabalhadoras que optam por
constituir carreira é solitário e ameaçador das carreiras profissionais e de sua saúde.
Com isso, referenda-se que o caminho para compreender as nuances do conflito
entre trabalho profissional e família exige incluir o homem na divisão das responsa-
bilidades familiares enquanto responsabilidades de conjugalidade reconhecidas nos
laços de afetividade e consequências da reprodução e no âmbito da universidade,
exige-se políticas de redistribuição e reconhecimento, principalmente quanto às pos-
sibilidades para formação stricto sensu (mestrado e doutorado) e aos processos que
definem as bolsas de produtividade no CNPQ.
Numa perspectiva de deslocamento nas relações entre os sexos, considerando o
inegável avanço na condição feminina, no mundo do trabalho, na educação, o con-
texto brasileiro exige, portanto, mudanças de mentalidades sobre as responsabilida-
des familiares que competem juridicamente a homens e mulheres quanto à garantia
dos direitos fundamentais das crianças, idosos e dependentes. E o reconhecimento
por parte do Estado e do mercado de qual é o seu papel nesta questão. Da forma
como se configura a questão do trabalho e família, a mulher continua submetida a
condições de dominação e exploração ou criando formas para não vivenciar tais
questões, seja na família seja no trabalho.
Nesse sentido, o que se denominou, numa perspectiva das relações entre os se-
xos, como aspectos psicológicos e afetivos da dominação são, na verdade, aspectos
dos desejos de sujeitos decidirem sobre suas próprias vidas e sobre sua realização
pessoal, suas opções e seus desejos, da construção da individualidade de cada um e
de como a família cria e educa seus filhos, pois dependendo das opções, o modelo
tradicional da divisão sexual dos papéis no trabalho doméstico são reforçados e
reproduzidos entre as crianças. No entanto, isso não invalida a significância dos
aspectos culturais, estruturais envolvidos nos sistemas de gênero característica da
sociedade ocidental que podem transformar-se em processos de segregação e pre-
conceitos. Numa perspectiva dialética, na sociedade contemporânea reflexiva, tais
sistemas estão passíveis de deslocamentos, mudanças e transformações.
Fica evidente que vivemos um contexto que passa por transformações refor-
çando a tese da modernidade reflexiva, na qual as subjetividades, as representações
e os significados têm grande importância. Isso não significa que homens e mulheres
diante dos processos de dominação-opressão (capitalista, patriarcalista e racista) não

130
Gênero Trans e Multidisciplinar

lutem por melhores condições de viver. É inerente a alguns seres humanos a sensa-
ção de incompletude e de sempre buscar avançar. Como, por outro lado, é inerente
também a alguns seres humanos a alienação e a reprodução de formas de preconcei-
to, dominação, opressão, discriminação porque ainda não tiveram em seus processos
de socialização, experiências que os levassem a refletir sobre os antigos modelos aos
quais estão aprisionados, consciente ou inconscientemente.
Isso significa que, além das estruturas (trabalho, família), é necessário compre-
ender como o indivíduo se localiza e se movimenta nesse contexto; como age, quais
as suas trajetórias e experiências. Nesse contexto, o novo não se faz somente com o
novo, mas também com o velho, ou seja, transição da modernização simples para a
modernização reflexiva.
A perspectiva das relações entre os sexos constata-se que homens e mulheres da
sociedade contemporânea ocupam múltiplos papéis (profissionais, mães/pais, espo-
sas/esposas, estudantes e mulheres/homens propriamente), transitam por diversas
lógicas de ação e agem não com uma postura vitimista e, por isso, sua subjetividade
não pode ser reduzida ao determinismo social, ideológico, cultural ou de sexualida-
de; ou aos determinismos do capitalismo ou do patriarcalismo.
É incontestável que se vivencia outro modelo de socialização (diverso,
heterogêneo, plural, reflexivo, tecnológico) que desloca o antigo modelo
de socialização (rígido, determinista, linear, hierarquizado, binário, sexista,
institucionalizado, instrumental), mas não o elimina. É incontestável também que as
transformações sociais não são lineares; são dialéticas e acontecem em processos, às
vezes muito lentos. Significa dizer que os modelos coexistem e, por isso, essa sensação
teórica de caos e incertezas, mas de mudanças, deslocamentos e permanências.
Assim, pode-se depreender que as mulheres são vencedoras e perdedoras da re-
flexividade. Enquanto vencedoras da reflexividade, destaca-se a capacidade das mu-
lheres de ter controle sobre suas próprias vidas, inclusive sobre seus corpos. O que
remete ao conceito de empoderamento, o qual implica no reconhecimento das restri-
ções sociais a que a categoria está submetida e da necessidade de reversão dessa situ-
ação, por meio de mudanças em um contexto amplo/público (inserção no mercado
de trabalho, bons níveis de escolaridade e serviços de saúde adequados) e também
em contextos mais específicos, ou individuais (aumento de autoestima e autonomia,
reorganização das responsabilidades familiares, maternidade reflexiva, etc).
Nesse sentido, algumas mulheres, a partir das contradições dos processos de
modernização da sociedade, alcançaram liberdade colocando-se em oposição aos
pressupostos patriarcais e tradicionais. Para a mulher, os efeitos da educação e da
inserção no mercado de trabalho, no seu empoderamento, se manifestam de formas
variadas, até mesmo pelo aumento do potencial de geração de renda, da autonomia
nas decisões pessoais, do controle sobre a própria fertilidade e da maior participação
na vida pública. Mas tais efeitos dependem muito de circunstâncias individuais e do

131
Silmere Alves Santos

contexto social, por um lado, do nível de desenvolvimento econômico, da situação do


mercado de trabalho. Por outro lado, do grau de estratificação sexual na cultura predo-
minante e, particularmente, do empoderamento e suas dimensões coletiva e individual.
O fato é que mesmo diante de tantas transformações, ainda são visíveis os valo-
res patriarcais enraizados que definem os papéis e lugares de homens e mulheres na
sociedade, nos âmbitos público e privado. Isso significa que existem mudanças nos
valores patriarcais. Por ser uma relação social, a transformação concreta depende
substancialmente do outro ser em relação, ou seja, depende também da consciência
e da vontade dos homens, depende diretamente das relações entre os sexos e do
empoderamento individual e do próprio nível de consciência das mulheres e, princi-
palmente, de mudanças estruturais que podem funcionar como demarcação de ou-
tros padrões, a exemplo das políticas afirmativas. Os deslocamentos de identidades
de homens e mulheres indicam identidades não mais representativas dos modelos
tradicionais, não obstante, ainda não se apresente um novo perfil.
Enquanto perdedoras da reflexividade, no âmbito da vida privada, da articula-
ção trabalho profissional e vida familiar, verificam-se deslocamentos na estrutura
familiar, mas não mudanças significativas na divisão sexual do trabalho. Configura-
-se, portanto, aspectos de uma nova forma de subjugação com a externalização
do trabalho doméstico ou ajuda das redes sociais familiares para o cuidar; as mu-
lheres assumem diretamente os custos da responsabilidade familiar, na qual nem
mesmo estruturas como governo, ou políticas de Welfare State, as organizações se
preocupam com tais questões; além disso, as triplas e quádruplas jornadas de traba-
lho, provavelmente, estão relacionadas aos altos índices de depressão, ansiedade e
transtornos mentais entre as mulheres. Nesse sentido, no âmbito privado e pessoal
as mulheres são perdedoras da reflexividade, entretanto, tendo maior liberdade e
autonomia no âmbito público, podem demandar processos de negociação sobre as
consequências da articulação trabalho-família e, tendo consciência política, exigir
mudanças estruturais.
Para essas mulheres, numa perspectiva da totalidade do ser humano, este estudo
identifica uma quádrupla jornada de trabalho (trabalho profissional, os estudos para
obter a titulação, as responsabilidades familiares e o cuidar de si enquanto mulher),
pois geralmente as mulheres abrem mão mais de si que os homens, em favor de seus
deveres, com escassez de tempo e pouca qualidade de vida enquanto os filhos são
pequenos, pois juridicamente, a guarda foi compartilhada, mas as responsabilidades
ainda não são efetivamente compartilhadas nem com os pais, muito menos com o
Estado, as organizações e a sociedade em geral.
Numa perspectiva das relações entre os sexos, da articulação do trabalho profis-
sional e da vida familiar, a sociedade brasileira vive a modernidade reflexiva porque
a individualização quebrou as estruturas tradicionais da inserção da mulher no mer-
cado de trabalho e na educação, do controle da reprodução, de inserção no âmbito

132
Gênero Trans e Multidisciplinar

público. O conflito social vivenciado por mulheres que precisam articular trabalho,
estudo, família evida pessoal também passa pela ordem moral, pois transitar por
essas esferas da vida social diz respeito à sua emancipação enquanto indivíduo e a
sua autorrealização pessoal e, nesse ponto, a luta por justiça social envolve as lutas
por reconhecimento e redistribuição. Desinstitucionalização dos padrões de valora-
ção cultural que regulam as regras das instituições econômicas, políticas, jurídicas
e culturais, impedindo que alguns sujeitos sejam excluídos ou sofram preconceito
quando incluídos nos processos de interação social.
O que se constata é que os arquétipos tradicionais ligados ao patriarcalismo e os
papéis direcionados à mulher, ao feminino (cozinhar, cozer e cuidar), foram substi-
tuídos paulatinamente por estudar, trabalhar, amar e procriar ou não, e cuidar (não
necessariamente ligados ao casamento ou à heterossexualidade) através de proces-
sos de transformações no cotidiano e na mentalidade das mulheres. No tocante aos
homens, os arquétipos tradicionais de chefe de família e provedor também sofreram
deslocamentos, dado o agravamento econômico para sustentar a família, ou ao con-
sumismo e a participação do salário da mulher nesse processo.
Alguns direitos sociais e políticos foram inseridos na legislação no que diz respei-
to à violência doméstica, mas a igualdade deve ser de direitos e de deveres, e as res-
ponsabilidades para com a família devem ser compartilhadas efetivamente. Articular
trabalho, família e vida pessoal não é uma questão só de mulheres. É uma questão
dos homens e das mulheres enquanto procriadores de seres humanos; do Estado,
enquanto questão social e objeto de políticas públicas; das empresas, enquanto objeto
de ações de responsabilidade social; da sociedade civil, organizadas numa perspectiva
de atuação coletiva na luta por direitos humanos igualitários e equitativos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sugere-se que as pesquisas que se propõem a produzir conhecimento sobre as
relações entre os sexos, na epistemologia histórico-crítica e feminista, devem consi-
derar seis dimensões:
1) Dimensão Econômica, que caracteriza a sociedade urbano-burguesa-indus-
trial que direcionara e contribui para a redefinição da função materna que deixa de
ser confinada ao lar e estendida à esfera pública com a inserção da mulher no mer-
cado de trabalho, sendo preparada para assumir determinadas áreas ligadas às habi-
lidades biológicas e naturais femininas, mas segundo os preceitos técnico-científicos
e a expansão do capitalismo reestruturado. A divisão sexual do trabalho profissional
e o salário da mulher como parte significativa ou principal da renda familiar;
2) Dimensão Estrutural e de Poder, presentes no âmbito das instituições de tra-
balho profissional, que nos espaços da universidade dificultam o acesso aos níveis

133
Silmere Alves Santos

elevados de qualificação profissional, o doutorado, pois priorizam os grupos ocupa-


cionais masculinos e áreas economicamente úteis quando criam cursos stricto sensu.
A segregação paralela (Segregação Tridimensional – horizontal, vertical e paralela).
Quando também o período de licença maternidade não é descontado do tempo de
defesa do trabalho acadêmico; quando não tem creches que auxiliem as mulheres
quando precisam estudar, participar de eventos e/ou trabalhar;
3) Dimensão Estrutural e de Poder, presentes no âmbito da família, ligados aos
papéis da mulher e do homem e à divisão sexual das responsabilidades familiares
que interferem na difícil conciliação entre carreira e família. No âmbito do traba-
lho na academia caracterizada pela interrupção da vida profissional; adiamento do
projeto do casamento ou da maternidade ou até o total abandono do projeto fami-
liar; destituição do direito de descontar o tempo de licença maternidade durante os
processos de qualificação profissional, em nível de mestrado e doutorado para não
impactar nos indicadores dos programas de pós-graduação; interferência na produ-
tividade acadêmica e na circulação por meio de viagens para participação em even-
tos, estabelecimento de parcerias e intercâmbios de forma suficiente para garantir a
progressão acadêmica; possibilidade de políticas afirmativas para mães com filhos
especiais e na faixa etária da segunda infância (3 a 7 anos).
4) Dimensão Cultural, na qual existem processos de exclusão impregnados nas
mentes dos homens e mulheres que interferem nas escolhas relacionadas ao prin-
cípio da separação da divisão sexual do trabalho docente e do trabalho na família,
repassado através dos processos culturais, educacionais e socializadores. No âmbi-
to do trabalho profissional, molda as escolhas profissionais e de prosseguimento
da carreira, delimitam os horizontes de possibilidades e reproduzem a segregação
horizontal e vertical, no trabalho acadêmico. No âmbito da família, faz com que as
mulheres sintam-se na obrigação de colocar-se em processos de negociação com o
marido/companheiro para participar, por exemplo, dos eventos, colocando a carrei-
ra sob condição de risco, dado que pode conseguir ou não negociar a participação.
5) Dimensão da Alteridade, do encontro do sujeito com o outro através das re-
lações sociais, quando o outro é o marido, quando o outro é o filho, quando o outro
é o(a) colega de trabalho que verbalizam preconceitos, quando as mulheres precisam
articular projeto profissional e projeto familiar e são reprodutoras de outros sujei-
tos, crianças também portadoras de direitos, principalmente as crianças especiais. O
papel de pai e mãe para alguns tem relação direta com a realização pessoal e não se
configuram como processos de vitimização, pois, nesse momento histórico, a ma-
ternidade e a paternidade é uma opção, são reflexivas. Nessa dimensão a resolução
dos conflitos é diretamente ligada ao respeito ao outro; à percepção de que todos
têm direitos e deveres.
6) Dimensão da Identidade. Na sociedade reflexiva da diversidade e da alteri-
dade, a realização pessoal envolve projetos profissionais e projetos familiares, para

134
Gênero Trans e Multidisciplinar

alguns homens e mulheres. Para outros, a realização pessoal está ligada somente aos
projetos profissionais e materialistas para aquisição de bens e projeções profissio-
nais. Para outros homens e mulheres, a realização pessoal envolve prioritariamente
o projeto familiar, e o trabalho é apenas um meio de sobrevivência. Diante de tudo
isso, não se pode afirmar a generalização da tese da vitimização, pois as mulheres
não se veem como vítimas. É preciso considerar o desejo do sujeito e o contexto de
sociedade e instituições nas quais estão inseridos o trabalho profissional e a família
e as escolhas dos indivíduos.

Numa perspectiva da totalidade da vida dos sujeitos humanos das relações entre
os sexos, da articulação trabalho profissional, família e vida pessoal, a condição de
ser homem e mulher na sociedade contemporânea ainda é marcada pela desigualda-
de entre os sexos. Principalmente pela violência psicológica, sofrida no âmbito da
academia com o agravante de que algumas mulheres nem se dão conta quando são
desrespeitadas e humilhadas, ou seja, quando são vítimas de violência de gênero ou
quando são vítimas de assédio moral.
Cabe à universidade desempenhar seu papel na construção de identidades de
gênero, pois sendo parte de uma sociedade que discrimina, produz e reproduz desi-
gualdades de classe, gênero, raça/etnia; cumprindo seu papel de ampliar o conheci-
mento dos atores sociais, favorecendo a produção de saberes que contribuam para
a emancipação e posicionem-se contra relações desiguais de poder.
As possibilidades de transformação estão relacionadas às dimensões: econômi-
cas, estruturais (da universidade e da família, nas quais perpassam relações de poder);
culturais (exige formação em gênero nas escolas/universidades/faculdades, pois só
através da educação podem ser provocadas mudanças na cultura); no que se referem
à ação dos sujeitos, as possibilidades estão relacionadas ao desejo e a consciência,
da dimensão da alteridade, da individualidade, das condições de empoderamento e
reconhecimento da sua consciência social e política das identidades de gênero.
No contexto da sociedade reflexiva, os sujeitos fazem escolhas mediante seus
desejos, sua individualidade, suas experiências de vida a partir de valores diversos
que causam deslocamento, mudanças nos valores patriarcais e androcêntricos. Se
somos diferentes, fazemos escolhas diferentes. Sendo seres humanos, somos iguais,
numa perspectiva do direito e diversos em nossas escolhas. Por outro lado, por hi-
pótese alguma, nas sociedades democráticas, pode-se permitir que os processos de
dominação, opressão e de expressão de preconceitos sejam vivenciados por aqueles
e aquelas que têm projetos profissionais, familiares e pessoais definidos, mas encon-
tram barreiras que os cristalizam nas instituições de trabalho.

135
Silmere Alves Santos

REFERÊNCIAS

AQUINO, Estela M. L. Gênero e Ciência no Brasil: contribuições para pensar a


ação política na busca da equidade. In: Pensando Gênero e Ciência. Encontro
Nacional de Núcleos e Grupos de Pesquisas – 2005-2006. Brasília: Secretaria Es-
pecial de Políticas para as Mulheres, 2006, p. 11-18.
CASTELLS, Manuel. O fim do patriarcalismo: movimentos sociais, família e sexu-
alidade na era da informação. In: O Poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra,
1999, p. 169-285.
MAY, Tim. Pesquisa Social: questões, métodos e processos. Trad. Carlos Alberto
Silveira Netto Soares. 3. Ed. Porto Alegre: Artmed, 2004.
OLIVEIRA, Rosiska Darcy. A armadilha da igualdade. In. ______. Elogio da
diferença: o feminismo emergente. São Paulo: Brasiliense, 1993.
Relatório OIT/PNUD 2009. O Relatório Regional Trabalho e Família: rumo
a novas formas de conciliação com corresponsabilidade social.

136
CAPÍTULO IX
EDUCAÇÃO INFANTIL E RELAÇÕES
DE GÊNERO: ESTUDO EM UMA
CRECHE NO MUNICÍPIO DE VITÓRIA
DA CONQUISTA-BA1
Benedito G. Eugenio2
Eliane R. Mascarenhas3

INTRODUÇÃO
Este artigo apresenta os resultados de uma investigação sobre as relações de gê-
nero no cotidiano da educação infantil. Relações de gênero são aqui compreendidas
como relações de masculinidades e feminilidades socialmente construídas.
O interesse em investigar as relações de gênero surgiu a partir do contato da dis-
cente com algumas turmas de educação infantil numa escola situada no bairro Pata-
gônia, na cidade de Vitória da Conquista – BA, local onde trabalhou como secretária.
A observação de situações intrigantes no que diz respeito a “ser menino” e o “ser
menina”, motivou a realização do estudo. Dentre essas situações, destacamos duas:
um aluno de 6 anos de idade foi “ridicularizado” por seus colegas da mesma idade,
quando recebeu das mãos de uma professora uma bolsa cor de rosa para ser entregue
à sua mãe. O garoto tratou de se defender, dizendo bem alto: “É de minha mãe!”.
Outro exemplo ocorreu com um menino de apenas 6 anos. Ele comentou com
o colega da mesma idade: “Eu odeio minha mãe!”. Falava enquanto mostrava as
mãos para o colega: “ela pintou minha unha de rosa”. Era uma base e não um esmal-
te de cor rosa – “Eca! Eca!”. O colega observou as unhas e começou a dar risadas
dizendo: “Eca! É mulherzinha”.
Essas situações, presentes no cotidiano da educação infantil com crianças ain-
da em processo de formação, demonstram que os papéis de gênero são construí-
dos social e culturalmente. Além disso, é necessário investigar essa temática porque
os estudos sobre gênero na educação infantil ainda não se constituem como tema
consolidado no campo educacional. Segundo Carvalho, Costa e Melo (2009, p. 2),
1. Pesquisa desenvolvida no âmbito do projeto Educação e diversidades nas relações escolares.
2. Professor adjunto da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – campus de Vitória da Conquista.
Doutor em Educação (Unicamp). Coordenador do projeto Educação e diversidades nas relações escolares.
E-mail: beneditoeugenio@bol.com.br
3. Graduanda em Pedagogia pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – campus de Vitória da
Conquista. E-mail: elianerezende10@hotmail.com

137
Benedito G. Eugenio e Eliane R. Mascarenhas

“especificamente no campo da educação, os estudos de gênero tem negligenciado a


educação infantil, fase fundamental do desenvolvimento humano”.
Cruz (2012, p. 19), tomando como base as contribuições de Joan Scott aponta
que o conceito de gênero:

questiona a construção das desigualdades entre sexos, a sexualidade e excede a


questão da relação masculino/feminino, homens e mulheres, servindo para visi-
bilizar processos culturais complexos e relações de poder, entendendo-se que as
mulheres e os homens já são tratados de forma diferente a partir do seu nascimen-
to em função do sexo biológico e do meio cultural e social em que são gerados.

A partir do material coletado nas observações, selecionamos duas situações para


a elaboração do presente texto. Na sequência, apresentamos a instituição investigada.

1. POR DENTRO DA ESCOLA INVESTIGADA


A Escola Creche Municipal Jorge Amado4, local da pesquisa cujos dados são
apresentados a seguir, foi inaugurada em 9 de outubro de 1985, na gestão do prefei-
to José Pedral Fernandes Sampaio. A Secretária de Educação era a Dra. Iara Cairo de
Azevedo. As instalações entregues à comunidade constavam de: 4 salas pequenas de
aula, 1 sala um pouco maior onde funcionava um refeitório, 1 cozinha, 3 sanitários,
sendo um deles para uso dos funcionários e 1 depósito.
A escola pesquisada está localizada na zona urbana do município de Vitória da
Conquista –BA. Está inserida na comunidade do bairro Patagônia, situado na zona
oeste da cidade. O Patagônia é um bairro extenso e populoso, com aproximadamen-
te 20 mil habitantes. A população é constituída, em maior escala, pela classe média
baixa e baixa. Em suas mediações estão instalados: aeroporto, rodoviária, corpo de
bombeiros, concessionárias de veículos, garagem de empresas de cargas e de passa-
geiros, etc...
No campo educacional, é servido por estabelecimento de ensino da rede pública
e particular, havendo duas escolas estaduais, seis escolas municipais e doze escolas
particulares de pequeno porte.
No ano de 2007 a creche contou com a construção de três amplas salas de aula,
refeitório, cozinha, área de serviço, banheiro infantil adaptado, sanitário de adultos,
salas de direção, coordenação e depósito. As benfeitorias realizadas ocorreram a
partir de doações de um empresário da cidade que contribuiu com o material de
construção e da Prefeitura Municipal, que pagou parte da mão de obra. Entretanto,
a área externa permaneceu sem alterações.
No ano posterior, o Lions Club Vitória da Conquista Mongoió doou a pintura
da frente, fachada, piso de acesso, caixa de areia e parquinho. Tais modificações
4. Nome fictício.

138
Gênero Trans e Multidisciplinar

provocaram grande satisfação por parte de todos, pois o espaço hoje apresenta-se
como um atrativo para toda a comunidade.
No ano de 2009 a Secretaria Municipal de Educação – SMED reformou o muro
da frente e parte da lateral, aumentando a altura, porém, a outra parte da lateral e os
fundos permanecem baixos e deteriorados.
Atualmente, os sujeitos que compõem o contingente dos alunos são bastante
diversificados. Segundo o Projeto Político Pedagógico da instituição, os alunos são
filhos de mães trabalhadoras, que usam a creche como um lugar seguro para que
as crianças permaneçam durante a sua ausência; filhos de pessoas desempregadas e
em risco social, que necessitam dos serviços básicos de cuidado; e também filhos de
pessoas que acreditam na qualidade dos serviços básicos e, principalmente, educati-
vos oferecidos pela instituição.
No ano de 2012 a Creche atendia a 289 crianças de 2 a 5 anos, distribuídas da
seguinte maneira:

TABELA 6

Quantidade
Idade Horário
de turmas
02 anos 02 Integral – das 07:30h às 16:30h
03 anos 03 Integral – das 07:30h às 16:30h
04 anos 05 Mat./Vesp. – das 08:00h às 12:00/ das 13:00h às 17:00h
05 anos 03 Mat./Vesp. – das 08:00h às 12:00/ das 13:00h às 17:00h

A distribuição de alunos e dos respectivos profissionais por sala se organiza da


seguinte forma:

TABELA 7

Quantidade
Turma Profissionais que trabalham com o(a) aluno(a)
de alunos
02 anos A 21 02 Monitoras Pedagógicas e 01 assistente de creche
02 anos B 21 02 Monitoras Pedagógicas e 01 assistente de creche
03 anos A 22 02 Monitoras Pedagógicas e 01 assistente de creche
03 anos B 24 02 Monitoras Pedagógicas e 01 assistente de creche
03 anos C 26 02 Monitoras Pedagógicas e 01 assistente de creche
04 anos A 22 01 Professora
04 anos B 22 01 Professora
04 anos C 22 01 Professora
04 anos D 21 01 Professora

139
Benedito G. Eugenio e Eliane R. Mascarenhas

04 anos E 21 01 Professora
05 anos A 23 01 Professora
05 anos B 22 01 Professora
05 anos C 22 01 Professora

Na sequência, apresentamos e analisamos, à luz do referencial dos estudos de


gênero, as duas situações selecionadas dentre o material coletado nas observações.

2. O PÚBLICO E O PRIVADO ESTABELECIDOS


NO ESPAÇO ESCOLAR

A professora entra e pede para fazer a roda de conversa (fala sobre importância da água). Em
um determinado momento da aula a professora dá alguns exemplos:
- “Ninguém nunca viu mamãe cozinhando, não?” (tentando explicar o vapor da água)
- “Se o papai botar a mão no bolso e num tira nada, ele tem o que? zero” (falava enquanto
preenchia o cartaz da quantidade de menino (dez). (Caderno de campo).

A professora, com esses exemplos, retrata o ambiente doméstico destinado para


a mulher e o público destinado ao homem. E lógico que tal fato não acontece com
essa intenção por parte da docente, mas podemos perceber o quanto as relações já
estão de certa forma estabelecidas; os exemplos acontecem de forma a legitimar os
espaços destinados historicamente a cada gênero.
Beauvoir (1980, p. 27) relata no primeiro capitulo do seu livro que: “grande
parte do trabalho doméstico pode ser realizado por uma menina muito criança;
habitualmente dele os meninos são dispensados; mas permite-se, pede-se mesmo à
irmã, que varra, tire pó, limpe os legumes..., tome conta da sopa”.
Dessa forma, a menina cresce em estatura e em aptidões domésticas. Tais ap-
tidões, de certa forma, se tornam comum ao cotidiano da menina, por isso, muitas
vezes, se reflete no espaço educacional. Isso foi confirmado durante as observações
das ações realizadas na sala de aula. No final do expediente, quando as crianças per-
cebiam que a professora se posicionava para organizar a sala de aula:

era comum as meninas se oferecerem para varrer a sala ou catar os objetos fora
do lugar; quanto aos meninos, as observações demonstraram que: eles preferiam
conversar entre si, ou brincarem com algum brinquedo que um deles trouxera de
casa, já que os dá classe estavam sendo guardados. (Observação de campo)

Com relação à questão do público e do privado, destaca-se ainda o interesse das


meninas nos fatos pertencentes ao privado. Em uma das observações:

140
Gênero Trans e Multidisciplinar

algumas meninas estavam brincando de casinha, sendo que uma delas estava com
as mãos embaixo da blusa aparentemente simulando uma gravidez, enquanto que
as outras passavam a mão sobre a barriga, posteriormente a menina retira as mãos
de debaixo da roupa, pega a blusa que estava sobre a cabeceira de sua cadeira e
simula enrolar o “bêbê”, as outras simulam estarem felizes com a presença do
neném, querendo pega-lo e dizendo: – “que bonitinho”, – “coisinha fofa”, – “ele
tá com fome (risos)”. (Observação de campo)

Tal episódio nos reporta mais uma vez aos relatos de Beauvoir (1980, p. 40),
quando afirma que:

(...) a menina se preocupa com os mistérios sexuais; eles também se interessam


apaixonadamente por isso, mas, em seu futuro, o papel de marido, de pai, não é
aquilo com os que mais se preocupam; no casamento, na maternidade é todo o
destino da menina que é posto em xeque (...).

As observações relacionadas aos meninos realmente demonstra outra maneira


de relacionar-se com o tema.

Durante o lanche em uma das mesas as crianças conversam. –“Vamos brincar no recreio de
mãe”.
Gabriel diz: – “Quem vai ser a mãe e quem beija na boca? Ela me beijou, então ela é a mãe”.
(Abraça Samilly).
Samily diz: – “eu quero ser a mãe”
Tamires responde: – “então tá, você é a mãe”.
Gabriel comemora rindo: – “ainda bem que você vai ser a mãe” -, abraçado e olhando para
Samilly. (Caderno de campo).

Durante o período de observação, em nenhum momento percebi meninos brin-


carem ou proporem brincadeiras relacionadas à maternidade ou paternidade (quando
participavam era sempre por iniciativas das meninas), ou mesmos fazerem perguntas
relacionadas ao tema; já com as meninas foram frequentes esses tipos de conduta.

Uma das meninas se aproxima de mim e pergunta: – “Você tem esposo?”. Eu disse: sim. Ela
perguntou: – “Qual o nome dele?”. Eu respondo e ela continua o interrogatório quanto aos
outros membros da família. Outra menina interrompe a conversa e diz: – “Tia, quando eu tiver
um filho, se for menino eu vou por o nome de JoãoVítor, se for menina eu vou por Vitória”.
(Caderno de campo)

Assim, percebe-se, a partir das indagações das meninas, que nos dias atuais ainda
existem vestígios da educação apresentada por Del Priore (2000, p. 155 ) em seus
estudos sobre Brasil Império, no qual ela afirma que

141
Benedito G. Eugenio e Eliane R. Mascarenhas

a educação das meninas, padecia de ambiguidade, pois ao mesmo tempo que as


circunscrevia no universo doméstico, incentivando lhes a maternidade e estabe-
lecendo o lar como seu domínio, as habilitava para a vida mundana, fornecendo-
-lhes elementos para brilhar em sociedade.

A esse respeito é possível ainda refletir acerca da postura da docente ao retratar


uma possível dramatização e a ênfase dada por ela ao papel que exerceria a menina.

A professora solicita uma menina que conte a quantidade de meninas, a menina começa a
chorar e ela diz:- “porque tá chorando? Tem que parar com a timidez. Olha só nós vamos ter
outras aulas e vocês vão dramatizar a história da branca de neve, Cinderela. Você quer ser a
princesa? (Falava segurando o queixo da criança para manter a cabeça erguida) olha só, esperar
o príncipe, você quer?” (A criança balançava a cabeça de um lado para o outro). Não! Como
não? Vai ser bom, você vai ficar com o príncipe. Agora pronto, parou o choro, outro dia você
conta. (Caderno de campo)

Nesse aspecto, Beauvoir (1980, p. 33), diz que a menina recebe uma educação
na qual “[...].Ela aprende que para ser feliz é preciso ser amada; para ser amada
é preciso aguardar o amor. A mulher é a Bela adormecida no bosque, Cinderela,
Branca de neve, a que recebe e suporta”. Menina, princesa, mulher, mãe, do lar são
estereótipos destinados à menina. Esses são os campos de atuação despertados nas
crianças pela família, pela sociedade e ao que se percebe pela escola.

3. OS OBJETOS COMO DEMARCADORES DAS


RELAÇÕES DE GÊNERO

As demarcações do que é próprio de menino e do que é próprio de menina já


são estereotipados desde o nascimento da criança. A expectativa da arrumação do
quarto, da compra do enxoval, são reafirmações dos estereótipos esperados para
meninos e meninas. Azul se for menino e rosa se for menina, essas são as primeiras
indagações dos futuros cuidadores.
Tais atitudes tão comuns na sociedade são possíveis de algum tipo de reflexão?
Se analisarmos o que se quer evidenciar com as cores rosa e azul, é possível que sim.
A cor rosa para menina é escolhida culturalmente por ser um tom que está ligado à
sensibilidade e à docilidade. A cor azul para os meninos por ser um tom que repre-
senta o ser forte e destemido.
Segundo Carvalho, Costa e Melo (2009, p.4): “numa sociedade/cultura orga-
nizada por relações de sexo e gênero, o enxoval cor de rosa ou azul, a escolha do
nome e as expectativas dos adultos já atribuem o gênero de uma criança mesmo
antes do nascimento”.

142
Gênero Trans e Multidisciplinar

Dessa forma, percebe-se que as crianças nascem e, conforme vão crescendo, as


práticas de determinações de cores realizadas pelas famílias e pela sociedade vão se
configurando em todos os espaços sociais destinados para sua integração. Assim,
atitudes de reprodução do que se legitima para meninos e meninas são demonstra-
das pelas crianças em idade escolar através dos objetos utilizados por elas. Durante
as observações, as mochilas das meninas na escola pesquisada traziam sempre os
tons de cor de rosa ou lilás (figura da direita), enquanto que as dos meninos possuí-
am cores de tons em preto ou azul marinho (figura da esquerda).

IMAGEM 11 E 12

Essa perspectiva também era seguida pelos cadernos utilizados pelos alunos da
turma pesquisada. A figura da esquerda representa os cadernos dos meninos e a da
direita, das meninas.

143
Benedito G. Eugenio e Eliane R. Mascarenhas

IMAGEM 13 E 14

Além das cores, é importante relatar que as imagens que ilustravam os objetos
possuíam características diferentes. Para os meninos estavam relacionadas a carros
e super-heróis. Em relação os objetos das meninas, as imagens traziam personagens
de desenho animado, principalmente a Barbie.
Na escola pesquisada há uma demarcação de cores e objetos descritos ante-
riormente: os pregadores de carrinho em cores coloridas arquivavam as atividades
dos meninos e os pregadores de bonecas com vestidos cor de rosa, arquivavam as
atividades das meninas.
As crianças reproduziam em suas ações as divisões quanto às cores. As meninas
visivelmente se chateavam quando não conseguiam receber o lanche nas canecas ou
pratos rosa. A foto a seguir nos dá uma ideia da preferência das meninas pela cor de
rosa, pois, nesse dia, nesse grupo, uma não conseguiu a caneca cor de rosa e por isso
ficou o tempo todo reclamando, enquanto que as outras comemoram.

IMAGEM 15

144
Gênero Trans e Multidisciplinar

As cadeiras cor de rosa da sala também recebiam a prioridade das meninas, além
de se perceber que as meninas sempre se sentavam com as meninas e meninos com
meninos. Dessa forma, as mesas na grande maioria das observações eram ocupadas
de forma distintas quanto ao gênero.

IMAGEM 16 E 17

Quando questionei a professora sobre a forma que as crianças ocupavam as


mesas, ela respondeu que

Isso também vem muito de casa, aquelas ali as mães são amigas (apontava para as meninas).
Tá faltando uma que tá na outra sala; aquelas ali algumas são vizinhas, a gente tenta misturar,
mas, não adianta. Já os meninos eles sentam assim juntos, mas às vezes misturam-se entre si,
hoje aquele pode estar sentado ali, amanhã ele pode tá sentado com aqueles, eles se misturam
mais que as meninas, elas são muito individualistas. (Caderno de campo).

A professora afirma que as distribuições entre as crianças nas mesas são influen-
ciadas pela família, e que ela tentou misturar menino com meninas nas mesas, porém
está tentativa não foi observada durante a pesquisa, sendo que tais ocupações foram
utilizadas algumas vezes, não para socializar, mas sim como forma de punição.
Dessa forma, é possível compreender porque nos espaços escolares meninas
apreciam tanto o tom de rosa enquanto que os meninos o detestam. Afinal, meninos
e meninas devem se comportar como tais, o que compreende terem características
e ações socialmente aceitas. Dessa forma, o caminho seguido por eles é o de repro-
duzirem aquilo que lhes ensinam e o que lhes ensinam. Segundo Carvalho, Costa e
Melo (2009, p. 8) são:

identidades e relações de gênero em que os homens são representados e se re-


presentam como fortes, agressivos, violentos, inteligentes e competentes, e as
mulheres são representadas e se representam como frágeis e emocionalmente

145
Benedito G. Eugenio e Eliane R. Mascarenhas

dependentes dos homens, são aprendidas na família, na escola, na organização do


trabalho e da vida cotidiana.

Assim, os objetos e as ações vão se inscrevendo na vida cotidiana nas crianças,


delimitando o que é próprio de menina e o que é próprio de menino.
De acordo com as autoras acima citadas, a organização dos espaços, dos objetos,
da rotina, das atividades, acabam por se constituir em uma pedagogia organizacional
e visual, entendida como “ configuração espacial das ações e objetos, ou seja, os
cenários impostos às crianças, e a prescrição de atividades e interações que devem
ocorrer nesses cenários, bem como os signos e símbolos expostos às crianças nas
rotinas escolares” (Ibidem, p. 1).
As mensagens claras e, por vezes, implícitas, transmitidas via pedagogia visual,
merecem reflexão por parte dos pesquisadores por entendermos que elas “contri-
buem determinantemente para a construção de papéis de gênero assumidos pelas
crianças em formação” (Ibidem, p. 18).
A realização da pesquisa possibilitou problematizar os fatos relacionados ao
gênero que, com frequência, acontecem no espaço da escola. A análise da temática
das desigualdades escolares, investigada desde a educação infantil, pode contribuir
para viabilizar reflexões necessárias para educadores e profissionais da educação no
que diz respeito às relações de gênero. Outrossim, os resultados trazem implicações
diretas para pensarmos a formação dos docentes para essa etapa da escolarização
nos cursos de Pedagogia.

REFERÊNCIAS

BEAUVOIR, Simone de. O segundo Sexo 2. A experiência Vivida. 10. Ed.Rio de


Janeiro: Nova Fronteira,1980.
CARVALHO, Maria E. P.; COSTA, Eliana C.I.; MELO, Rosemary A. de. Roteiros
de gênero: a pedagogia organizacional e visual gendrada no cotidiano da educa-
ção infantil. Disponível em: <http://www.anped.org.br/reunioes/31ra/1trabalho/
GT23-3953--Int.pdf>. Acesso em: 5.nov. 2012.
CRUZ, Maria H. S. Refletindo sobre a diversidade de gênero no campo da educação.
Revista Saberes em Perspectiva, Jequié, v.2, n.2, p.13-32, 2012.
DEL PRIORE, Mary. O cotidiano da criança livre no Brasil entre a colônia e o
império. In: ______. História das Crianças no Brasil. 2.ed. São Paulo: Contexto,
2000.

146
CAPÍTULO X
O NÓ QUE NOS UNE –
POSSIBILIDADES E SABERES
DOS(AS) JOVENS NOS ESPAÇOS
DAS ONGS
Maria da Anunciação Silva*

INTRODUÇÃO
Ao falar sobre juventude, estudiosos da temática, como Sposito (1999) e Dayrell
(2003), advertem para se utilizar o plural – juventudes –, em função da diversidade
de valores culturais e crenças que constitui o modo de ser Jovem. Ao definir o per-
fil do público pesquisado, buscou-se fidedignidade na descrição dos valores e das
crenças que constituem o modo de ser, estar e posicionar-se socialmente. Afrodes-
cendentes, o público pesquisado são moradores de bairros populares como Uru-
guai, Maçaranduba, subúrbio ferroviário, Santa Cruz, Vale das Pedrinhas, Nordeste,
Cosme de Farias, Federação (...) da cidade do Salvador – BA.
Neste estudo, dos 40 jovens entrevistados, 60% são do sexo masculino e 40%
do sexo feminino. Vale considerar que, em relação às jovens, 25% estão cursando o
segundo grau, 50% têm segundo grau completo, 15% cursam universidades públicas
em cursos da área de humanas, a exemplo de Pedagogia e Filosofia na Universidade
Federal da Bahia-UFBA e Letras na Universidade do Estado da Bahia - Uneb. As
outras integram, na condição de estudantes, os programas de fluxo, aceleração ou
alfabetização de jovens e adultos na rede pública de ensino. Das jovens entrevistadas
com segundo grau completo, pelo menos 10% sinalizam o desejo de ingressarem na
universidade e destacam ter dificuldades financeiras para custear as despesas. Com
efeito, passam a considerar o ingresso no ensino superior como uma via possível,
embora desafiadora, quer seja a curto ou médio prazo.
Dos 65% dos jovens do sexo masculino, 2% estudam em universidades públicas
nos cursos de Geografia e Matemática, Uneb e UFBA, respectivamente. 14% estão
concluindo o segundo grau. E os demais integram, na condição de estudante, os
programas de fluxo, aceleração ou alfabetização de jovens e adultos na rede pública
de ensino.
Dos 40 jovens entrevistados, 20% estão em trabalhos tidos, entre eles, como
“mais qualificados”, em lojas de departamento, supermercados, postos de gasolina,

147
Maria da Anunciação Silva

recepção, auxiliar de escritório, monitores, operadores de telemarketing. Esse con-


ceito entre os jovens de trabalhos “mais qualificados” está associado, exclusivamen-
te, às empresas que cumprem as garantias trabalhistas previstas em lei. Os postos de
trabalho mais comuns entre os jovens do sexo masculino são de segurança, carrega-
dores de gás e serviços gerais. Entre os(as) jovens entrevistados, 2 atuam em ONGs
como mobilizadores na comunidade do Uruguai e vizinhança.

1. AS ONGS COMO ESPAÇO EDUCATIVO


O surgimento das ações e contribuições das Organizações Não governamentais
– ONGs, resultaram do investimento conjunto de pessoas e entidades, ativistas dos
movimentos populares e/ou partidos de esquerda que tomaram para si a respon-
sabilidade de mobilizar cidadãos comuns com propostas de transformações sociais
focadas em segmentos populacionais econômica e/ou socialmente excluídos.
A partir de então, as ONGs tornaram-se responsáveis pela abertura de espa-
ços de participação a diversos grupos sociais no âmbito da esfera pública quanto a
discussões e decisões. No papel de mobilizadoras e fomentadoras de ações comu-
nitárias, têm articulado interesses dos mais variados segmentos, inclusive entre os
jovens. Esteestudo está focado nas metodologias de Arte-Educação, desenvolvidas
por duas ONGs de Salvador – BA,como mecanismo de promoção da cidadania de
jovens das classes populares.
Cabe lembrar, que “O termo internacionalizado ONG ganhou reconhecimento
no país enquanto categoria social ao distinguir um conjunto de organizações suis
generis que guardavam certas características, posições e papéis análogos no Brasil e
em diversas sociedades latino-americanas” (Landim, 2001, p. 23).Fernandes e Piquet
(1992, p. 38) são concordes com essa definição ao afirmarem que “[...] as ONGs
são uma inovação institucional da esquerda brasileira”. Para Fernandes (1985, p. 36),
“[...] seriam alternativas às práticas institucionais características das universidades,
igrejas e partidos de esquerda”. O reconhecimento e visibilidade social dessas orga-
nizações, entretanto, só foram evidenciados no decorrer da década de 1980 durante
o processo de redemocratização e abertura política.
Dentre as constatações importantes identificadas no estudo estão as possibilida-
des que se abrem decorrentes da participação/atuação desses jovens nas atividades
educativas das ONGs. O uso de metodologias problematizadoras, o acesso à mídia
impressa e televisiva, o uso de linguagens e estilos artísticos, conhecer e estar em
espaços diversificados, são caminhos que os levam a assimilar, reconhecer e com-
preender o mundo com outro olhar. Olhar cujos eixos centrais estão no sentimen-
to de pertença, respeito, identidade, empatia, cumplicidade, troca, aprendizagens e
transformação de espaços, pessoas e saberes.
Para 80% dos jovens pesquisados, a acesso a essas organizações está associado
a elementos simbólicos, que interferem na forma de vestir, expressar, analisar os

148
Gênero Trans e Multidisciplinar

problemas sociais mais amplos e participar de espaços políticos. Referidos fatores,


tornam os jovens diferenciais positivos nos mais variados espaços de participação.
À medida que mudam suas relações e comportamentos assumem posturas e po-
sicionamentos críticos e politizados quando comparados aos jovens das escolas e
comunidades de origem. Passaram a ser referência para os amigos, a buscar novas
formas de ocupação do tempo livre, (re)significam a importância da educação for-
mal o que pode ser evidenciado como elementos constitutivos da condição juvenil.
Como pode ser evidenciado no depoimento abaixo:

No meu bairro passei a ser “imitado” por muita gente. Pois, comecei a usar roupas e sandálias
mais soltas e coloridas. Meu cabelo trançado, de vez em quando, conhecia lugares legais. E com
muita “argumentação” sempre com papo reto, olho no olho. Daí tudo que acontecia no bairro
me chamavam. (MPS, 19 anos, morador de Cosme de Farias).

A capacidade de argumentação, a estética e a intervenção política passam a ser


referência em sua comunidade e escola devido ao fato de deter conhecimentos e con-
dições políticas para articular informações e capacidade de intervenção política. Com
efeito, esse fato “contamina” outros jovens favoravelmente, na mudança de postura e
participação. Muitos dos jovens entrevistados chegaram as ONGs através, das infor-
mações dos colegas de comunidades e/ou escola que desenvolviam atividades nessas
organizações. Esse processo de autoconscientização e multiplicação de informação
entre os jovens decorre da singularidade existente entre as metodologias e conteúdos
utilizados nas práticas pedagógicas de Arte-Educação e as conexões cotextualizadas.
A valorização do currículo oculto, por essas instituições, de forma interdiscipli-
nar e intermediadas pela arte, são elos de interlocução emblemáticos entre as dife-
rentes áreas do conhecimento com as temáticas recorrentes nesses espaços: relações
de gênero, religião, raça, deficiência, políticas públicas, orientação sexual, dentre ou-
tros. A interdisciplinaridade amplia habilidades e competências que beneficiam a
articulação do pensamento, critico e reflexivo. Permite que esses percebam teias
invisíveis cujo processo de comunicação global exclui alguns grupos em detrimento
de outros. Na educação formal, cujos currículos e os processos educativos estão
“empapados” (Freire, 2003) os sujeitos-chaves vivenciam uma política educacional
universalista, em detrimento de questões especificas e significativas à sua realidade.
Setores populacionais ignorados ou invisibilizados, como os jovens abordados
neste estudo, sofrem com os estigmas da humilhação, da pobreza e da incompetência
das políticas educacionais. Nas últimas décadas o Estado brasileiro passou por signi-
ficativas mudanças na política educacional, nos diferentes níveis de ensino, a exem-
plo da implantação das políticas afirmativas, Lei 10.639/2003, Lei 11.639/2008, am-
pliação da educação fundamental para nove anos, dentre outras mudanças. Todavia,
essas mudanças não tem sido garantia para uma educação formal de qualidade, tam-

149
Maria da Anunciação Silva

pouco atende às exigências competitivas que lhes permita inserção no mundo do


trabalho. O impacto dessas políticas atinge as minorias econômicas, contribui para
o abandono escolar e,consequentemente, o empobrecimento crônico das condições
de acesso dos jovens das classes populares ao trabalho formal que lhes garantam
melhores condições de vida.
Alencar (2004, p. 38) sinaliza que “educar hoje é tão difícil quanto necessário.
Educar, mais do que nunca, é acumular saber para humanizá-lo, distribuí-lo e dar-
-lhe um sentido ético, isto é, solidário, cuidadoso com a dignidade do ser humano no
mundo”. Nas ONGs a defesa de uma postura participativa baseia-se no princípio
que a redução da exclusão social está estreitamente relacionada com o desenvolvi-
mento de um processo educativo articulado com a identidade cultural, que resgate a
pertença étnica, racial, de gênero e poder.
A falta de identificação dos jovens com a educação formal, segundo Pais (2003),
decorre da ausência de identificação como parte integrante dessas do contexto esco-
lar. Nos discursos de 70% dos entrevistados a “opção” deabandonar a escola está na
recusa ou falta de identificação às posturas conservadoras e monocultural presentes
no ambiente escolar.

2. JUVENTUDE: OLHARES E SABERES PARA


ALÉM DA POLISSEMIA CONCEITUAL
Entre as várias constatações do estudo, está o conceito de juventude associado
a um período de instabilidade e (re) significação de valores, ideal de vida e visão de
mundo com diferentes significados. Com efeito, uma polissemia conceitual que nos
remete às análises de Dick (2000), Groppo (2000), dentre outros que consideram a
juventude como categoria sociológica, imbricada por uma tensão indissolúvel en-
tre a ideia de fase ou ciclo de vida, de viesessocioculturais e modos de inserção na
organização estrutural da sociedade. Evoca a busca e compreensão dos modos de
ser da juventude e do grupo social a que nos dispomos a pesquisar. A fala a seguir
consegue agregar a compreensão dos entrevistados sobre sua condição juvenil.

Em alguns momentos eu sou jovem, quando trabalho, tenho grana e posso bancar alguma coisa
em casa. Quando estou sem “tampo”, para minha família, sou um “menino” irresponsável, um
adolescente imaturo que não consegue arranjar um trabalho. (PSD, 20 anos, sexo masculi-
no, residente na cidade baixa, segundo grau incompleto)

É o trabalho que possibilita a vivência da condição juvenil. Assimilar a juventude


associando-a às responsabilidades e pertença dos limites socioeconômicos familia-
res decorre da compreensão, construída ao longo da vida que as despesas com a
sobrevivência devem ser compartilhadas por toda a família independente da idade.

150
Gênero Trans e Multidisciplinar

Por isso, são raros os que buscam no trabalho alguma centralidade além da renda. O
trabalho, nessa fase da vida, tem simbolismos, imprime a valores e crenças interge-
racionais mesmo que na prática não se materialize. Essa forma de pensar, na maioria
das vezes, se contrapõe a toda e qualquer visão de investir unicamente na trajetória
educacional regular e exitoso.
Logo, o acesso ao mundo do trabalho deixa de ser um espaço de escolhas, ao
contrário, são raros aqueles que gostam do que fazem ou trabalham na profissão
que desejam.Na maioria das vezes, chegam à idade adulta sobrevivendo do trabalho
informal os “bicos”. E desconhecem que o acesso ao trabalho, notadamente para
a população jovem, tem raízes em questões estruturais.Nesse sentido, não pode ser
compreendido apenas pelo contexto de pobreza em que estão inseridos.
Em outra perspectiva de análise, Bourdieu (1983), no artigo “Juventude apenas
uma palavra”, resgata três situações inerente a condição juvenil: a arbitrariedade entre
as idades, as relações de poder e a relação entre juventude e sistema escolar como de-
terminante fundamental de estar ou ser jovem. Entende a idade como dado biológico
e facilmente manipulável. Enquanto unidade social, o poder dos mais velhos sobre
os jovens, como grupo constituído de interesses comuns e dentro de uma faixa etária
definida, pode configurar-se como um modelo de manipulação, em que as relações
de classe e poder representam uma dimensão ou arbitrariedade intergeracional.
Na concepção dos coordenadores pedagógicos das ONGs, a noção de juven-
tude está associada à inserção dos jovens no mundo do trabalho e encontra sina-
lizações em aspectos que podem ser assimilados e associados a outros fatores que
demarcam tanto a juventude quanto as relações de poder, classe e gênero. Para essa
análise tomaremos como referência o depoimento abaixo.

Ser jovem para este público é estar inserido no mercado de trabalho. Principalmente, para os
jovens do sexo masculino, que no ambiente familiar são mais cobrados financeiramente. As
meninas, por deterem maior nível de escolaridade, ou por verem no casamento uma possibilidade
de “tranquilidade financeira” e por ajudarem nas tarefas domesticas, são menos cobradas. Por
outro lado, para as jovens a gravidez indesejada está mais frequentemente associada à necessi-
dade de assumir responsabilidades no ambiente familiar. Cobrança que não se apresenta no
mesmo grau para os jovens do sexo masculino. (Coordenadora pedagógica da ONG, sexo
feminino, soteropolitana)

No depoimento, é possível constatar valores, que diferenciam e definem iden-


tidades e pertenças variáveis nas diferentes categorias sociais. Para o público pes-
quisado, o acesso ao trabalho, é uma conquista desafiadora, condição sine qua non de
sobrevivência, conforme anteriormente descrito.
Embora a gravidez indesejada seja recorrente nessa fase da vida, assume ca-
racterísticas e/ou representações diferentes dentro da mesma classe social. Para o
jovem, a paternidade é assimilada como sinônimo de masculinidade e virilidade se-

151
Maria da Anunciação Silva

xual. Para a jovem, são feitas inferências desqualificantes e excludentes. Quando


se interseccionam manifestam desigualdades em três perspectivasde gênero: nesse
caso, as relações de gênero devem ser entendidas como diferenças em termos identi-
tários socialmente prefixados que distinguem ou falam das diferenças entre homens
e mulheres e afetam diferentes setores da sociedade,nos quais a jovem deve mediar
as expectativas inerente à juventude e a sua condição de mãe com as responsabilida-
des pela criação, educação e sobrevivência parcial e /ou total da criança. Em alguns
casos (re)escreve-se, de forma involuntária, a trajetória familiar, da mulher como
mantenedora da família, e as expectativas de mobilidade social, profissional e escolar
são secundarizadas.
A juventude é a fase da permissividade movida pela irreverência em relação às
experimentações, as instituições e aos valores tidos como normais e invitáveis ao
processo de socialização que irá influenciar gerações seguintes. Sobre a categoria
gerações, Motta (2001) faz a seguinte reflexão:

Gerações é uma categoria de grande complexidade analítica. Além de referir-se


a uma dimensão fundante da vida social, em articulação inestimável com as já
referidas categorias relacionais de semelhante magnitude, projeta-se mais especi-
ficamente que aquelas na dimensão temporal tempo simultaneamente “natural” e
social segundo o qual faz e refaz seus sentidos.

A transmissão e os privilégios decorrentes das relações de poder se apresen-


tam como principais objetos de conflito intergeracional. No estudo, percebe-se uma
concessão “passiva” frente às imposições/desejos ou determinações dos genitores.
Nesse caso refere-se a um segmento juvenil que elabora combinações e arranjos
sociais que atendam e garantam sua sobrevivência pessoal e familiar imposta pela
ausência de alternativas.
Em outros casos, a manutenção ou transgressão de poder entre as gerações
pode ocorrer também por meio de lutas sociais que conduzam a ampliação e con-
quistas sociais externas ao ambiente familiar. As relações de poder são marcadas por
hierarquias, obediências e desigualdades decorrentes ou não dos fatores socioeco-
nômicos. Fruto de um processo de transição ou enquanto etapa específica do ciclo
da vida humana, os conflitos intergeracionais estão presentes nos mais variados
segmentos sociais logo, inerente a juventude. Desta forma, os limites na juventude
são quase sempre objeto de manipulação e de poder.
Desigualdade profissional: quando as jovens mães buscam inserção no mer-
cado de trabalho, enfrentam, para além das questões estruturais, a possibilidade real
de disputar a vaga com outras, não mães, com maior disponibilidade de tempo, de
escolaridade e qualificação profissional, fatores que inibem, sobremaneira, o acesso
das jovens mães a determinados postos de trabalho. Cabe lembrar que o acesso ao

152
Gênero Trans e Multidisciplinar

trabalho pode (re)significar a autonomia e sobrevivência desses sujeitos diante da


pressão imposta pelo ambiente familiar para que adotem uma nova postura com-
portamental que corresponda não mais ao perfil de jovem, e sim de mãe. Pois, junto
com a maternidade vem a (re)configuração do papel e postura social dessa jovem
em seu contexto. A exemplo da forma de vestir-se, a linguagem oral, o acesso a de-
terminados locais de lazer e diversão.
Desigualdade educacional: é comum entre as jovens a interrupção parcial ou
total das atividades escolares durante o período da gestação. Quando retornam, são
inúmeras as dificuldades para permanecerem e concluírem pelo menos o ano letivo
em curso. No discurso das jovens mães está explícita a falta de identificação com a
escola que, segundo Pais (2003), pode ser compreendido como uma das razões pelas
quais os jovens não se reconhecem como parte integrante dessas instituições. Sua
cultura identitária não se faz presente. Ademais, nos depoimentos sobre trajetória
escolar, 40% das entrevistas revelam situações de repetências, evasões e retornos
esporádicos à escola por questões adversas.
As desigualdades de gênero, escolar e profissional, quando intersecionadas, re-
velam que a condição juvenil “trata-se não apenas de limites etários pretensamente
naturais e objetivos, mas também e, principalmente, de representações simbólicas
e situações sociais com suas próprias formas e conteúdos que têm importante in-
fluência na sociedade” (Groppo, 2000, p. 8). Cujas experiências são vividas e signi-
ficadas de modo singular por cada grupo juvenil. Há de se entender que o adulto
assimila o impacto de um modelo de sociedade que constrói e reconstrói, enquanto
os(as) jovens vivem processos de mutações e inseguranças próprias da idade, de-
safios e aprendizagens, atuando em alguns momentos como sujeito e, em outros,
como objeto, em decorrência dos legados socioculturais das gerações precedentes.

3. COMPARTILHANDO DIÁLOGOS:
EDUCAÇÃO E ASSISTÊNCIA SOCIAL
A relação entre educação e assistência social provoca a reflexão sobre ordem e
caos, unidade e diferença, inclusão e exclusão frente às situações contraditórias e
presentes na sociedade. Se a ordem é o que mais ocupa o ser humano, a ambivalên-
cia é o que mais lhe preocupa. Melo (2004, p. 123-124) revela que, na modernidade,
a diversidade foi abordada de duas formas: “buscando assimilar tudo que é diferente
ao considerado padrão”, ou “segregando” as categorias consideradas como fora da
“normalidade dominante”. A educação e a assistência social são direitos constitu-
cionais nem sempre usufruídos como por quem de direito. Pois refletem campos de
tensão e interesses políticos emblemáticos da política social brasileira. Em algumas

153
Maria da Anunciação Silva

situações tais políticas carecem de articulação para que possa, de fato, potencializar
transformações a quem de direito.
O debate em torno do compromisso do Estado com as políticas educativas nas
sociedades modernas tem início com a Revolução Industrial. As mudanças econô-
micas e as relações sociais decorrentes deste novo modelo de produção capitalista
na sociedade contemporânea têm influenciando a educação. Segundo Santos:

Ao longo do século XX, quando se processa a consolidação do modelo industrial


de produção, vamos testemunhar um grande esforço das instituições educacionais
no sentido de adaptar os sistemas escolares às novas exigências da sociedade:
escolas profissionais, cursos de alfabetização para adultos, ensino pelo rádio, pela
televisão e por correspondência, uma universidade aberta, técnicas audiovisuais.
(Santos, 2005, p. 157)

No bojo dessas mudanças, tem se fortalecido também a íntima relação entre


Educação e Assistência Social. Ao contrário de assistencialismo, assistência social é
aqui entendida como uma prática realizada no sentido de propiciar condições dignas
de vida a partir da autonomia do sujeito. Não se pode negar a validade de algumas
iniciativas que, para além das questões filosóficas e pedagógicas, têm se revelado sig-
nificativas à sociedade, a exemplo do Fundo Nacional da Educação (Fundef), pos-
teriormente substituído pelo Fundo Nacional da Educação Básica (Fundeb), Bolsa
Escola e Vale Gás que, hoje, integram o Bolsa Família, Programa Universidade para
Todos, (ProUni), Programa de Financiamento a Educação (Fies), dentre outros. Ao
contrário do senso comum, a existência desses benefícios, por si só, não garante
transformação ou mobilidade de vida às pessoas beneficiadas.
Embora haja inúmeras questões pendentes, a relação entre Educação e Assis-
tência Social congrega forças para a superação de desafios impingidos às popula-
ções em condições socioeconômicas desfavoráveis, notadamente quanto ao acesso e
permanência na educação de forma exitosa. No bojo dessas políticas, o Pró-Jovem,
o Consórcio Social da Juventude e, atualmente, o Pronatec, ligados ao Ministério
do Trabalho e Emprego, são políticas ou programas que possuem um diferencial
que integram políticas educativas e sociais com vistas à qualificação dos jovens e o
acesso ao primeiro emprego.
Essas políticas agregam perspectivas de ações integradas em que a educação ga-
nha um conceito ampliado e passa a possibilitar aos jovens práticas sociais e abrem
caminhos para a inclusão e convivência comunitária e profissional. Creio ser esse
o grande diferencial da junção das políticas de governo voltada para a população
jovem. Na relação entre Educação e Assistência Social, as políticas convergempara
mudanças que demonstram o reconhecimento da educabilidade, o que pode ser
assimilado como talentos e potencialidades que os diferentes sujeitos têm a ofe-

154
Gênero Trans e Multidisciplinar

recer à sua comunidade e aos seus pares. As políticas, quando aplicadas de forma
integrada, fortalecem a comunicação entre família, escola e as diferentes instâncias
do governo e da sociedade civil e estabelece conexões de corresponsabilidade entre
as partes. Referidas ações, coadunam para o desenvolvimento e a construção de
conteúdos curriculares mais democráticos, pois, o processo educativo é construído
coletivamente, tendo como foco mudanças nas condições de vida do sujeito da
aprendizagem. Para Taylor (1994, p. 58) “[...] um indivíduo ou um grupo de pessoas
pode sofrer um verdadeiro dano, uma autêntica deformação se a gente ou a socie-
dade [...] lhe mostra, como reflexo, uma imagem limitada, degradante, depreciada
sobre ele [...]”.
A relevância desses programas em nível social e político adverte que a escola
sozinha é insuficiente para promover uma mudança na realidade social existente ou
para o saneamento dos problemas da aprendizagem que têm as mais diversas raízes.
Implica reconhecer que esse movimento em prol do respeito e valorização da educa-
ção potencializa discussões em torno da democratização do acesso a educação, forta-
lece e inova procedimentos didático-pedagógicos. Apresenta-se, portanto, como um
dos caminhos paracompreender a trama complexa que envolve a tríade juventude,
educação e transformação social, e constitui meio para o enfrentamento dos proble-
mas que afetam a vida de todos os sujeitos vinculados à escola. Ciente que:

A diversidade na educação é ambivalência, porque há desafios a satisfazer. Rea-


lidade com a qual devemos contar e problema para o qual há respostas contra-
postas. É uma chamada a respeitar a condição da realidade humana e da cultura,
forma parte de um programa defendido pela perspectiva democrática, é uma pre-
tensão das políticas de inclusão social e se opõe ao domínio das totalidades únicas
dos pensamentos modernos e se manifesta no campo educacional. (Sacristán,
2001, p. 87)

Ante esses fatos, os objetivos da relação entre educação e assistência social gi-
ram em torno da ideia de congregar políticas e relações pedagógicas necessárias
à promoção do desenvolvimento humano e social entre Estado e sociedade civil,
no propósito de atender especificidades e demandas do sujeito da aprendizagem.
Como preceituam o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8069/91, e a Lei
de Diretrizes e Bases da Educação, Lei 9394/96, essa transformação significa uma
mudança na cultura e no desempenho de papéis, os quais possibilitam condições
adequadas ao compartilhamento de responsabilidades por diferentes atores.
Movimento que poderá se constituir uma contraposição à perspectiva da teoria
materialista de origem marxista definida por Santos: “O sistema educacional não
tem autonomia, pois a classe dominante evoca a si o monopólio das decisões, no
que tange a sua organização e estabelece os fins, os meios da educação e manipula
todo seu funcionamento, em qualquer nível ou grau de ensino” (2005, p. 160). Em

155
Maria da Anunciação Silva

contraposição, o princípio educativo de partilhar ações e interesses pelos diferentes


atores da sociedade civil comunga com a teoria funcionalista, segundo a qual a edu-
cação é um processo social inerente às sociedades democráticas.
Para essa teoria, a educação tem duas funções principais: preparar as novas ge-
rações para o desempenho de funções essenciais à sobrevivência e, sem qualquer
distinção, possibilitar a ascensão social. A ideia de mobilidade ascendente que prevê
a oferta de alternativas para as formas conflitivas descritas pela teoria materialista,
segundo a qual: “[...] a educação é considerada como um processo social básico,
organizando-se em um subsistema que, juntamente com o subsistema familiar, eco-
nômico e religioso, constitui um sistema social [...]” (Santos, 2005, p. 158).
Posto isso, abrem-se espaços para a criação e/ou fortalecimento de relações
mais democráticas que deleguem à sociedade um duplo papel: formadora de opi-
nião e deliberadora de decisões,na qual a participação é assimilada como a prática
do princípio político-educativo ciente que um falso reconhecimento é uma forma
de opressão.
A pesquisa permite a compreensão de um segmento juvenil em particular, e
evoca possibilidades possíveis de práticas de educação sociopolítica, reafirmando
que a atuação dos jovens das classes populares, em projetos sociais, é um diferencial
na vida para cada jovem que está ou esteve nessas instituições, por potencializar a
comunicabilidade a capacidade critica, reflexiva ea autônoma. Abre espaços para so-
nharem, transformarem e acreditarem em diferentes alternativas de vida. Potenciali-
za nesses a desconstrução de valores e rotulações desqualificantes e marginalizadas
que constantemente lhes são associadas e às suas comunidades de origem. Com
efeito, esses jovens passam e buscam ter lugar na cidade, usufruir dela, transfor-
mando o espaço comunitário urbano em um local digno, de valor, de uso comum a
todos(as). Enfim, querem ser jovens e cidadãos, com direito a viver plena e digna-
mente sua juventude em suas comunidades.

REFERÊNCIAS

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______; GENTILI, Pablo (org.). Educar na esperança em tempos de desen-
canto. Petrópolis: Vozes, 2004.
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Rio de Janeiro: Menos Zero, 1983.
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na história. 2000. Dissertação de Doutorado em Educação – USP, São Paulo. São
Paulo: Loyola, 2002

156
Gênero Trans e Multidisciplinar

FERNANDES, Rubens Cezar; PIQUET, Antonio Carlos. O que é o Terceiro


Setor?. In: IOSCHPE, Evelyn Berg (org.). 3º setor: desenvolvimento social susten-
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uma cooperação na América Latina. Cadernos ABONG, Petrópolis, 2002.
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tudes modernas. Rio de Janeiro: DIFEL, 2000. (Coleção Enfoques Sociológicos).
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na pós-modernidade. Tradução: Tadeu
Tomas da Silva; Guacimara Lopes Louro. 5. ed. Rio de Janeiro: DP& A, 2002.
LANDIM, Líliah. Múltiplas Identidades das ONGs. In: ONGs e Universidade de-
safios para uma cooperação na América Latina. Cadernos ABONG. Petrópolis,
2002.
MELLO. Guiomar Namo de. Educação escolar brasileira: O que trouxemos do
século XX? Porto Alegre: Artmed, 2004.

157
PARTE III
GÊNERO,
HISTÓRIA E
CULTURAS
CAPÍTULO XI
A TRAJETÓRIA DE UMA
INTELECTUAL NEGRA: UMA VOZ
SUBALTERNIZADA?
Ana Cláudia Lemos Pacheco1

INTRODUÇÃO
Bell Hooks (1995, p. 468), discutindo o conceito de intelectual, acentua que tal
conceito é:

Ocidental sexista/racista [porque diferencia] quem e o que é um intelectual [,]


elimina a possibilidade de nos lembrarmos de negras como representativas de
uma vocação intelectual. Na verdade [...] o sexismo e o racismo, atuando juntos,
perpetuam uma iconografia de representação da negra que imprime na consci-
ência cultural coletiva a idéia de que ela está nesse planeta principalmente para
servir aos outros.

Para essa autora, as condições históricas nos quais os sistemas de dominação,


como raça, gênero e classe são estruturantes e produzem um imaginário coletivo
que nega às mulheres negras capacidade para desenvolverem um trabalho intelec-
tual, mental; pois o que se esperaria dessas na representação coletiva é da negra que
pode “servir” aos outros, como fruto do pensamento da escravidão que as percebe
como “só corpo, sem mente”. Nesse sentido, qualquer análise sobre o papel do in-
telectual negro e seus “dilemas” deve levar em consideração o “impacto do gênero”
nas relações sociais que definem papéis diferenciados entre homens e mulheres ou
então definem como certas ideias do masculino e feminino são concebidas em de-
terminados contextos culturais (1995, p. 469).
Mesmo falando de um contexto sociocultural diferenciado, as formulações da
autora citada são interessantes para entendermos como as hierarquias raciais e de
gênero, e outras, produzidas historicamente, podem delinear alguns lugares sociais
vistos como naturais a nós, mulheres negras, e como tais representações simbóli-
cas informam como nos situamos no meio acadêmico, isto é, como somos vistas?

1. Doutora em Ciências Sociais / Unicamp/SP. Professora adjunta de Sociologiada Universidade


Estadual do Sudoeste da Bahia e membro do Grupo de Pesquisa “Educação e Relações Étnicas:
saberes e práticas dos legados africano e indígena” / ODEERE/UESB. E-mail: ana_pachecau@
hotmail.com

161
Ana Cláudia Lemos Pacheco

Como nos percebem? Quais os caminhos percorridos? Como vivenciamos as expe-


riências do racismo, do sexismo e de outras formas de dominação no meio social e
na academia brasileira? Será que somos reconhecidas como Intelectuais? Será que
podemos falar enquanto tal?
Para responder essas questões, evocamos o instigante texto de Spivak (2010),
Pode um subalterno falar?, uma das mais destacadas autoras do pensamento pós-colo-
nial2. Nesse texto, a autora citada problematiza o papel do sujeito subalterno, espe-
cialmente, da “mulher do terceiro mundo” no que diz respeito às produções discur-
sivasocidentais sobre o outro/a.
Spivak analisa de forma profícua as produções textuais científicas, as imagens e
representações sobre as mulheres indianas, desde o período do século XVIII e XIX
no contexto colonial. Observa que as narrativas construídas sobre as mulheres na
Índia, sobretudo com relação a algumas práticas culturais vivenciadas pelas indianas
no período citado, como a autoimolação das viúvas (a queima das mulheres) foi
justificada por meio de discursos e narrativas ocidentais imperialistas, tanto pelas
elites brancas locais – discursos masculinos – quanto pelos discursos ocidentais que
se tem sobre o Oriente, inclusive sobre tais mulheres.
Ao fazer uma leitura profícua e crítica das bases do pensamento colonialista/
ocidental, Spivak pergunta-se se as mulheres subalternizadas do contexto indiano,
por exemplo, podem falar “por si própria”, posto que a noção de sujeito ocidental
produziu um lugar para o “outro/a” na ciência que é “re-presentado” e “represen-
tado” pelos discursos do “eu” que constituem uma “violência epistêmica” instituída
pelo conhecimento eurocêntrico/androcêntrico e colonizador que colaborou e ain-
da colabora, em sua concepção, para que “[...]a mulher subalternizada continue tão
muda como sempre esteve”( 2010, p. 86).
Diferentemente de Hooks e das feministas negras estadunidenses3, a autora acre-
dita quese “A mulher do terceiro mundo” não pode falar, logo, essas não podem
requisitar um lugar como sujeitos de conhecimento, como intelectuais, posto que o
capital socializado não lhes permitem, nem mesmo um projeto feminista, nem as te-
orias feministas europeias ou norte-americanas, nenhumas dessas formas de consti-
tuição epistêmicas do sujeito ocidental são adequadas para se entender as reais condi-
ções das “mulheres do terceiro mundo”. De acordo com Spivak (2010, p. 121 e 126):

Entre o patriarcado e o imperialismo, a constituição do sujeito e a formação do


objeto, a figura da mulher desaparece, não em um vazio imaculado, mas em um
violento arremesso que é a figuração deslocada da “mulher do Terceiro Mundo”,
encurralada entre a tradição e a modernização [...] Referindo – se a mitologia das
deusas indianas, afirma que “ver isso como uma prova do feminismo do hinduís-

2. Sobre os Estudos Pós-Coloniais, ver o livro de Hall (2009).


3. Estamos nos referindo às teorias do Staindpoint. Ver Collins (1989).

162
Gênero Trans e Multidisciplinar

mo clássico ou da cultura indiana como sendo centrada em deusas e, por conse-


guinte, como sendo feminista, é tão ideologicamente contaminado pelo nativismo
ou pelo inverso etnocentrismo quanto foi imperialista a ação de apagar a imagem
da luminosa e lutadora mãe Durga[...]”. E conclui: “o subalterno não pode falar.
Não há valor algum atribuído à “mulher” como um item respeitoso nas listas de
prioridades globais.

Se a mulher do terceiro mundo não pode falar, como adverte Spivak, nós inte-
lectuais negras, brasileirassubalternizadas, do século XXI, podemos?
Souza, ao analisar as produções textuais dos intelectuais negros nos séculos XIX
e XX no Brasil, demonstra que os intelectuais e suas obras não foram reconhecidos
nos cânones acadêmicos. Em suas palavras (2010, p.188):

Em vários momentos, principalmente no pós-abolição, o intelectual negro acredi-


tou que a falta de preparo para o trabalho era o motivo de sua exclusão, e investiu
na formação educacional e no aprendizado de rituais e normas do bem compor-
tar-se e do bem falar então vigentes. A almejada inserção não ocorreu, pelo menos
da maneira como a maior parte deles desejava. Foram tentadas vias diversas, de
orientação integralistas, marxistas, socialistas e podemos observar que, mesmo
partindo de vias teóricas e práticas diferenciadas, os intelectuais afro-brasileiros e
suas produções acabavam “esquecidos”, ignorados, tratados como fora do lugar.

Essa deslegitimação dos intelectuais negros na produção discursiva brasileira


enseja muitas preocupações subjacentes ao “lugar” do negro na sociedade escravista
e pós-escravista e como isso se refletiu no conjunto de ideias etnocêntricasimporta-
das da Europa, expressas nas teorias do racismo científico, elaboradas com relação
ao “outro”, colonizado e “terceiro mundista”como objeto do conhecimento e não
como “sujeito”.
Essa questão nos remete a uma outra questão complexa. Como demonstraram
vários autores (Munanga, 2004; Guimarães, 1996; Pacheco; 2006), a produção dis-
cursiva sobre o negro no Brasil vem de longa data. Vários intelectuais, em sua maio-
riahomens brancos e estrangeiros, tomaram o negro como objeto de estudo desde o
século XIX; as mulheres eram invisibilizadas nos discursos hegemônicos e quando
estas passaram a ser objeto das “positividades” ocidentais, o foram por meio de
teorias que a associavam ao mundo da natureza (Hooks, 1995, p. 469). Entretanto,
quando se trata das mulheres negras, a produção acadêmica eurocêntrica-androcên-
trica–raciológica desse período não as percebia como detentoras de um estatuto de
humanidade. Se os homens negros eram vistos como “animais braçais” e as mu-
lheres brancas como “reprodutoras”, ambos cotejados por teorias deterministas, as
mulheres negras eram vistas como “só corpo”. Foi através dos corpos escravizados
das mulheres negras que se ergueram grandes empresas coloniais (Moutinho, 2004).

163
Ana Cláudia Lemos Pacheco

No caso do Brasil, se os intelectuais negros dos séculos XIX e XX eram “es-


quecidos” ou não reconhecidos, como demonstrou Souza; a mulher negra era in-
visívelem todos os aspectos. Primeiro, porque sua produção de conhecimentoera
silenciada, inexistente, no imaginário social e nos cânones acadêmicos. Segundo, não
havia uma preocupação investigativa em analisar a sua situação social ou sua parti-
cipação ativa na história da sociedade brasileira (Gonzáles, 1979), essa concepção
corroborava com a ideia de que as negras eram vistas apenas para o servilismo sexu-
al e doméstico, tal qual se referia Hooks (1995) e Gonzáles (1982); nem tampouco,
pensava-se em tomá-la como “sujeito de conhecimento”.
Quando a mulher negra aparece como objeto de estudo das Ciências Sociais e
Humanas no Brasil, nas primeiras décadas do século XX, não havia uma proble-
matização central sobre sua existência, ao contrário, este tema subsumia-se aos
debates considerados de grande relevância para as Ciências Sociais brasileiras da
época4: a questão da miscibilidade; a questão da identidade nacional; as relações
raciais, a colonização; a sexualidade; a intimidade, o sistema escravocrata, etc...eram
temas prementes.
Essa “violência epistêmica” ou o “silenciamento” (Foucault, 1976) sobre a pro-
blematização da mulher negra brasileira só vai ser “rompida” no final da década
de 1970 e início da década de 1980, com os primeiros trabalhos publicados. Isso
se deve a insurgência do Movimento de Mulheres Negras brasileiro nessa época.
Como demonstra Ribeiro (1995), a década de 1980, foi crucial para a organização-
política dos grupos de mulheres negras em todo o Brasil. Entretanto, no que diz
respeito à presença de mulheres negras na academia como “objeto” e sujeito do
conhecimento ainda era bastante restrita nesse período; o que não significa dizer
que tais mulheres não produziam conhecimento, ou uma outra forma de saber, uma
epistème, o exemplo marcante dessa contraprodução hegemônica são os escritos das
ativistas negras no interior do próprio Movimento social nesse período5.
Nas últimas décadas do século XX e nesta primeira década do século XXI,o
aparecimento de estudos e pesquisas na academia sobre as mulheres negras cresceu
significativamente. Entretanto, numa análise bastante realista, o reconhecimento e a
legitimação das intelectuais negras nas academias brasileiras, ainda continuam “mar-
ginalizadas”. Retomamos a pergunta de Spivak, com relação a intelectuais negras do
“terceiro mundo”: pode o subalterno falar?
Ao analisarmos a trajetória de uma intelectual negra baiana, soteropolitana e
ativista do Movimento Negro Brasileiro, procuramos destacar como raça e gênero,
enquanto sistemas de opressão, podem afetar especialmente alguns grupos de mu-
lheres em detrimento de outros em contextos particularizados. Tomamos empres-
4. Com exceção dos estudos de Landes (1967).
5. A respeito desta produção deintelectuais negras no Brasil, ver os trabalhos de Gonzàles (1979; 1982);
Werneck (2000); Bairros (1995); Carneiro (1995); Siqueira (1995).

164
Gênero Trans e Multidisciplinar

tado o conceito de interseccionalidade de Crenshaw (2002, p. 177) que “procura


capturar as conseqüências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais
eixos de subordinação” para ampliar a análise sobre os impactos desses sistemas
entre as mulheres negras no contexto “terceiro mundista”, brasileiro, baiano e so-
teropolitano. Para delinear melhor as narrativas em torno da análise da trajetória
em questão, vamos utilizar a assertiva de Hooks em relação a sua análise sobre “a
intelectual negra”: i) A importância de se levar em consideração o imbricamento das
hierarquias sociais descritas na (s) experiência (as) de ser uma intelectual negra e no
imaginário social; ii) a influência de outros fatores, como a política, o engajamento
político e sua relação com a academia; iii) o medo do isolamento da “comunidade”,
identificada por Hooks, como uma barreira impeditiva para as negras optarem pelo
trabalho intelectual (1995, p. 469-471).
Esses três pontos são sugestivos de como a trajetória de uma intelectual negra
no contexto cultural específico, nesse caso, baiano, pode nos fornecer algumas cha-
ves interpretativas sobre o lugar da mulher negra na academia, na sociedade como
um todo; seus percursos sociais, as identidades e diferenças construídas neste cam-
po, as tensões e ambiguidades e compará-las com os dois contextos analisados por
Hooks e Spivak. A análise da trajetória6, a seguir, tem como objetivo, mostrar como
tais marcadores sociais, incluindo geração, são marcadores importantes na constru-
ção de “ser uma intelectual negra” no contexto abordado.

1. A TRAJETÓRIA DE UMA INTELECTUAL


NEGRA
Entrevistei Mahim7 pela primeira vez, em 2001, em sua residência8. A entrevista-
da estava em seu pequeno gabinete de leituras, onde havia uma pequena estante, um
computador e uma cadeira, escrevendo o seu ultimo capítulo da tese de doutorado
e uma pequena estante repleta de livros e textos políticos e científicos. Mahim mora
sozinha, porém perto da casa de sua mãe, num bairro de classe média baixa. Um
dos fortes motivos que me fizeram entrevistá-la está relacionado com ao fato da
informante ser uma das poucas intelectuais negras selecionadas na faixa etária dos
59 anos de idade. Entrevistei apenas mais uma ativista reconhecida como intelectual
negra no campo do movimento negro e na academia. Essa última, porém, se encon-
trava numa faixa etária inferior. A ausência de intelectuais negras é significativa e, em
certa medida, pode ser atribuída a aqueles processos socioculturais e históricos iden-
tificados por Hooks em seu estudo. Outras similaridade com o estudo da autora su-

6. Ver a noção de trajetória em Bourdieu (1986).


7. Nome fictício.
8. Ver esta pesquisa em Pacheco (2008).

165
Ana Cláudia Lemos Pacheco

pracitada refere-se à origem social precarizada das mulheres negras acadêmicas. Boa
parte delas tenta “burlar” as desigualdades sociais através de estratégias familiares e
de ajuda na manutenção e no acesso à educação. No caso da trajetória de Mahim,
tais mecanismos sociais foram importantes para ela se tornar uma intelectual.
No final de 2003, quando fui entrevistá-la pela segunda vez, Mahin tinha 61
anos de idade. No entanto, quando lhe perguntei a idade, ela desconversou e parecia
constrangida com a pergunta. Só depois de muito tempo, no decorrer da entrevista,
sem querer, revelou-me sua idade, apesar de já ter calculado o tempo entre a primei-
ra e a segunda entrevista.
A informante autoclassifica-se como negra. É liderança do Movimento Negro
em Salvador há três décadas. Sua linguagem corporal lhe denuncia. Quando eu a
entrevistei, estava vestida com um lindo vestido estilo africano, em tons claros. Tem
um porte mediano e um rosto bem mais jovem do que a idade que possui. Também
usa símbolos referentes à cultura afro-brasileira. Seu cabelo é crespo, natural, estilo
black power.
Mahim é pedagoga. Mestre e doutora em educação. É professora de uma grande
Universidade do estado da Bahia. É escritora. Tem muitas publicações na área de
educação e populações afro-brasileiras. É solteira, nunca foi casada e não tem filhos.
Nasceu em Salvador num bairro periférico. É a filha mais velha do segundo casa-
mento de seu pai com sua mãe. Seu pai casou-se duas vezes, sendo que no primeiro
casamento tivera 6 filhos e, no segundo, com sua mãe, tivera mais seis. Ao todo
eram 12 filhos, sendo que 3 faleceram. Do segundo casamento ficaram 2 mulheres
e 3 homens.
Os pais de Mahim eram pobres e negros, e ambos provieram do interior da
Bahia. Seu pai era pescador e, depois, tornou-se operário, e sua mãe trabalhava na
lavoura, colhendo frutas e café. Após migrar para Salvador, trabalhou como empre-
gada doméstica. Conheceram-se nessa cidade, casaram e constituíram família. Seu
pai faleceu na década de 1970 e sua mãe está com 90 anos de idade. Mahin e seus
irmãos, apesar da pobreza, todos estudaram e a maioria deles ingressou na universi-
dade. Ela mesma diz com orgulho: “todos eu puxei, eu puxei os meus irmãos para o
estudo”. Como Mahim conseguiu educar-se e torna-se uma intelectual?

2. A EDUCAÇÃO FORMAL
A educação formal é um meio importante de mobilidade individual dos grupos
sociais considerados excluídos (Bourdieu, 1997). Na trajetória de Mahim, a edu-
cação cumpriu um papel importante em sua vida e na vida de sua família. Dife-
rentemente de outras trajetórias, em que geralmente um dos membros consegue
mobilidade social e outros não, na família de Mahim, todos os seus irmãos, homens

166
Gênero Trans e Multidisciplinar

e mulheres, formaram-se, tornaram-se universitários e profissionais bem-sucedidos.


De acordo com sua narrativa:

Meu pai, ele pedia que eu lesse a bíblia para ele, o jornal, todos os dias, eu lia,
lia, lia para ele. Naquele tempo a gente não tinha televisão, não tinha rádio, não
tinha nada, a nossa casa era muito pobre, todo mundo estudou com dinheiro de
arremate, a gente fazia arremate para vender, para comprar comida, comprar livro,
para não faltar à escola.

Mahim sempre estudou em escolas públicas de boa qualidade.Isso também lhe


possibilitou adquirir um bom capital cultural ao longo de tempo. Além do incen-
tivo de seus pais, contou com a rede de amizade, de parentesco simbólico, apoio
de sua madrinha, por exemplo, que lhe preparou para o exame de admissão. As
redes de amizade, de parentes consanguíneos e fictícios são importantes elementos
de reordenamento das trajetórias sociais das mulheres negras, na inserção de seus
membros familiares no processo educacional e no mercado de trabalho.
Além disso, não se pode desmerecer o papel que a filha mais velha tem na
socialização dos membros mais jovens. Esta, na maioria das vezes, cumpre uma
função de segunda mãe, zela pela casa e pelos irmãos, auxiliando a mãe maior. É
interessante registrar esse fato porque tais atribuições de gênero no seio da família
podem regular formas de conduta na vida profissional e na vida afetiva. Mahim, por
exemplo, ocupou-se na educação dos irmãos e sobrinhos mais novos, dedicou-se à
família, aos estudos e nunca se casou.
Mahim concluiu o segundo grau em 1963. Em 1965, ingressou numa universi-
dade pública no curso de Pedagogia. Nesse período, teve o seu primeiro emprego
como escrituraria de um banco. Em 1968, conclui o curso universitário e se torna
pedagoga. Em 1970, faz outro concurso e inicia sua vida como pedagoga numa
escola pública. Na década de 1980, influenciada pelo Movimento Negro da Bahia,
elabora um projeto de pesquisa sobre o negro e a educação, projeto que deu origem
à sua pesquisa de mestrado e à publicação, mais tarde, de seu livro. Em 1988, torna-
-se mestre em educação. Em 1994, após vinte anos de magistério, é aprovada no
concurso para professores de uma universidade pública do estado, onde leciona até
hoje. Em 1997, ingressa no doutorado na área de Educação, enfocando o mesmo
tema; em 2001, torna-se doutora em Educação.
Entre as décadas de 1980 e 1990, a trajetória profissional de Mahim decola-
ra. Lecionando na universidade citada, desenvolveu vários trabalhos relacionados
à questão étnico-racial na área de educação, direcionados para a população negra.
Mahim, ao mesmo que se solidificava como uma intelectual no âmbito acadêmico;
ganhava prestígio social e político no movimento negro. Entretanto, a dupla atuação
nesses dois espaços não se dá de forma harmoniosa, segundo a entrevistada:

167
Ana Cláudia Lemos Pacheco

Eu sou uma intelectual negra, uma pesquisadora e sou muita discriminada, a gente
nunca é chamado para as coisas dentro da Universidade, só quando é para fazer
palestras para fora, essascoisas, mais qualquer coisa que você precise dentro da
Universidade chamam pessoas de fora, é o não reconhecimento da sua competên-
cia, é o não reconhecimento de você enquanto pesquisador, profissional, é muito
ruim; é uma das militâncias mais duras é dentro da Universidade.

O relato acima de Mahim revela uma tensão existente entre a academia e sua
atuação política no movimento social. Isso é tão significativo em sua narrativa que,
ao falar dessa tensão, a entrevistada se emociona e chora. A sua legitimação enquan-
to uma intelectual negra é conflituosa na academia. Contou-me que certo dia uma
colega sua de trabalho chegou para ela e disse: “você quer trazer o Ilê Aiyê para
dentro da sala?”. Mahim desenvolve e coordena trabalhos educativos com jovens
do Ilê Aiyê, aliás, mais do que isso, ela acompanha o bloco desde o seu surgimento
na década de 1970. A sua militância política no Movimento Negro se iniciou nessa
época. Foi ali que tudo começou.

3. O MOVIMENTO NEGRO E A ACADEMIA:


TENSÕES CONSTANTES

O começo mesmo... o despertar para a questão negra foi o Ilê Aiyê. A passagem
dele em setenta e quatro, eu estava na rua com duas colegas minhas, e apareceu o
Ilê, aí elas disseram que“coisa horrível aqueles negros de vermelho”, eu achei tão
bonito, e aquilo me tocou muito, e eles começaram a cantar, eu chorei de emoção,
aquilo me despertou para a questão negra.

A partir daquele momento do surgimento do bloco afro Ilê Aiyê, em 1974,


Mahin iniciara sua atuação no Movimento Negro. Em 1978, ela conhece uma gran-
de intelectual negra e ativista do movimento negro da época, a ativista e antropóloga
Lélia Gonzáles com quem teve os primeiros contatos políticos em Salvador. Após o
primeiro contato com Lélia e com outros militantes negros locais, Mahim ajudaria
a formar o “Grupo Nêgo”, que, em 1978, deu origem a fundação do MNU (Movi-
mento Negro Unificado) na Bahia.
Quase uma década depois, Mahim e outras pessoas fundaram um grupo de
trabalho no MNU chamado “Robson da Luz”; que tinha como objetivo discutir o
negro e aeducação. Foi por meio desse grupo, que Mahim começou a fazer um tra-
balho prático pedagógico no sentido de “contar a história do negro, aquela que não
era contada nas escolas de primeiro grau”. A partir daí esse trabalho lhe despertou
para a problemática da questão racial, desdobrando-se em um projeto de pesquisa
voltado para a questão na área de Educação.

168
Gênero Trans e Multidisciplinar

Mahim contou-me que, na época quando o grupo de educação passou a desen-


volver um trabalho prático com os professores negros acerca da “verdadeira história
do negro”, setores do MNU criticavam tal iniciativa, acusando-os de “pedagogis-
mo”. Ela e o grupo apostaram na proposta, resultando num projeto de formação
para professores. Esse fato é ilustrativo de como já havia tensões naquela época no
interior do movimento negro, sobretudo no que se refere às concepções antinômi-
cas entre o que é político/cultural/educacional. O “pedagógico” não era concebido
como uma ação política eficazpara alguns grupos.
Relatou-me de outras divergências internas na entidade entre as mulheres e os
homens. No relato de Mahim, um grupo de homens teria sido expulso dentro da
organização negra devido a atitudes “machistas” com as mulheres do movimento
e devido às preferências afetivas desses por mulheres brancas ou de “pele clara”.
Tais atitudes teriam desembocado no afastamento desses “militantes” da entidade.
Entrevistando outras ativistas que fizeram parte dessa organização na época, esse
fato foi, também, relatado. Havia uma delimitação bem nítida entre as práticas “ma-
chistas e feministas”, e isso se configurava na disputa política acirrada entre grupos
de homens versus mulheres pelos cargos de direção hegemônica da entidade9.
Na década de 1990, Mahim tornava-se professora de uma grande universidade
do estado da Bahia. Ali começa aliar sua atuação política com a academia. A atuação
em dois espaços diferentes, simultaneamente, tem levado a novas tensões entre seu
ativismo e o trabalho intelectual.
Se por um lado, a política foi responsável por sua legitimação enquanto um
“quadro” pensante e atuante no movimento negro, por outro lado, essa mesma
atuação geraria conflitos políticos no meio acadêmico. A autopercepção desse pro-
cesso de tensões e ambiguidades acerca de seu papel enquanto ativista e intelectual
negra tem se configurado em insatisfação e no isolamento “intelectual” que sofre
diariamente na academia: “eles não nos reconhecem, não querem trabalhar esta questão [ra-
cial]”. Ou, então, expressam-se nos conflitos existentes nas relações com colegas
de trabalho, com os intelectuais não ativistas, e, ainda, na disputa da produção do
conhecimento que subjaz concepções políticas diferenciadas acerca da realidade so-
cial: “eles são universalistas, marxistas, acham que a única coisa que separa as pessoas é a classe”.
Em momentos informais, tive a oportunidade de conversar com outros mili-
tantes do movimento negro (homens e mulheres), os quais estão se “legitimando”
como intelectuais. Considerei essa conversa bastante elucidativa no que diz respeito
aopapel do intelectual negro(a) ser conflituoso e ambíguo, sujeito a embates com os
não intelectuais dentro do próprio campo da “militância negra”.
Segundo, alguns informantes, setores do movimento negro, percebem os inte-
lectuais negros ativistas distantes da comunidade negra que atuam, ou, no melhor

9. Ver esta discussão na dissertação de Silva (2001).

169
Ana Cláudia Lemos Pacheco

dos casos, como “individualistas”, “academicistas”, ou “elitistas”. Há dois níveis de


conflitos que se interpelam nas falas citadas, semelhantes ao que Hooks (1995, p.
472) havia constatado na sua pesquisa com intelectuais negras no contexto norte-
-americano: “(...) o receio de parecer egoísta, de não fazer um trabalho tão direta-
mente visto como transcendendoo ego ‘servindo’ outros”. Ou ainda, “(...) mais uma
vez [enfrenta-se], de maneira diferentes, problemas de isolamentoe envolvimento
com a comunidade”.
Todavia, na narrativa de Mahim, não encontrei uma tensão com relação ao seu
trabalho intelectual dentro do movimento negro. O conflito vem na direção inversa:
as relações conflituosas existentes na academia devido à sua posição enquanto inte-
lectual negra ativista. Mahim ganhou legitimidade no movimento negro desde cedo,
promovendo ações políticas relacionadas à educação de jovens e professores negros
e paraa pesquisa científica. Em todo caso, sabe-se, por meio de outras pesquisas,
que essa relação não é nada harmoniosa; ao contrário, esta coloca sob “suspeita” o
envolvimento político e o reconhecimento profissional dos intelectuais negros(as)
nos dois campos de atuação, como foi abordado na pesquisa de Hooks e em outros
estudos recentes10. A trajetória social e política de Mahim foiimportante na condu-
ção e na orientação de sua escolha intelectual. Será que isso ocorreu também como
suas escolhas afetivas?

4. A SOLIDÃO
Mahim aos 61 anos de idade, nunca foi casada e não tem filhos. Desde cedo,
quando ainda era jovem, auxiliava sua mãe na administração da casa e na sociali-
zação dos seus irmãos menores, preocupando-se com a formação educacional e
profissional destes. Perguntada porque nunca se casou, respondeu-me que desde sua
juventude não pensara em casar e nem ter filhos, pois “praticamente viveu para essa [sua]
família”, referindo-se a sua mãe, seus irmãos e sobrinhos e logo em seguida retrucou
“mas eu me sinto realizada em muitas coisas”.
Um dado a ser analisado nas trajetórias sociais das mulheres negras intelectuais
não é apenas o seu “isolamento” acadêmico devido as tensões e conflitos já expos-
tos na trajetória de Mahim. A solidão afetiva das mulheres negras, em particular, da
intelectual negra analisada não pode ser percebida sem atentarmos para a intersec-
cionalidades das categorias de gênero-raça, geração e outras que informam a sua
posição no campo acadêmico, como por exemplo, sua afetividade.
Poucos são os estudos, inclusive os de Hooks sobre as intelectuais negras es-
tadunidenses, que enfocam a importância da questão afetiva. No relato de Mahim,
percebe-se que os fatores de gênero-raça e geração (a filha mais velha) lhes possibi-

10. Ver o artigo de Pereira (1999).

170
Gênero Trans e Multidisciplinar

litou estudar, mesmo com sacrifícios, e se tornar uma intelectual; porém, por outro
lado, a posição que experimentara enquanto uma mulher negra de prestígio, a impe-
diu de ter relacionamentos afetivos estáveis com seus parceiros. A política, o ativismo
negro, associado à condição de ser uma mulher negra intelectual não lhes permitiu
a possibilidade de “ser mulher” do ponto de vista da realização afetiva. Isso ficou
evidente em sua narrativa, quando lhe perguntei o porquê de nunca ter se casado.
Ao falar desse momento, percebi que Mahin se emocionara. Houve um silêncio
por alguns segundos, depois recompôs a voz, ainda num tom emocionado, e disse:
“na minha cabeça, eu sempre quis ter um carro, e um apartamento pra eu morar; filho, nem pensar,
coisas da vida passada”. A entrevistada evitou contar detalhes dessa fase de sua vida.
Na continuação de sua narrativa, relatou-me que, após ter “perdido” à oportunidade
de se casar, teve outras propostas de casamento, no entanto, não se sentia atraída
por seus pretendentes.
Na década de 1980, Mahin teve relacionamentos afetivos transitórios com vá-
rios homens. Perguntei-lhe se os homens eram negros, ela respondeu-me que sim.
Lembrou-se que só tivera um relacionamento com um homem branco, quando era
universitária, este era mais velho do que ela. Tal relacionamento não dera certo por-
que a família de seu namorado não aceitou o namoro por causa da questão racial, o
que teria abalado a relação e levado ao seu término.
Na década de 1990, Mahim mantivera um relacionamento de seis anos com um
homem estrangeiro (africano), porém, a distância entre eles não permitiu a estabili-
dade afetiva almejada. Em 2001, tivera outra paixão, cujo relacionamento durou um
ano, com outro africano que “tinha duas esposas e queria que eu fosse a terceira”; por esse
motivo terminou a relação. Depois de várias relações instáveis, Mahim revelou-me
que, a partir da década de 1990, vem mudando seu modo de se relacionar com o
“outro”. Acentua que o sentimento, o envolvimento emocional é um importante
fator para constituir uma relação a dois e revela:

Eu acho que com a aproximação dos 60 [anos de idade] a gente vai ficando... eu não sei, está
sendo muito difícil de se encontrar hoje um parceiro..., porque esta questão de só querer ter rela-
ções sexuais sem sentimento não dá, eu vou até voltar para a minha terapia de novo.

Segundo seu relato, os seus relacionamentos afetivos “não deram certo” porque
preenche sua solidão com a convivência familiar: “desde os 22 anos que eu moro sozinha,
mas sempre perto da minha família”. Além desse fato, o trabalho acadêmico lhe ocupa
boa parte de seu tempo: “eu viajo muito fazendo pesquisa, dando entrevistas” e afirma: “eu
não tenho este sentimento de solidão, eu sou uma pessoa só, mas quando eu posso, eu fico em minha
casa, lendo, estudando, vendo televisão”. Em relação ao lazer, relatou-me que “adora sair
só” ou com a irmã ou com as amigas, gosta de ir ao cinema, ao teatro e participar
das atividades festivas e políticas do Movimento Negro.

171
Ana Cláudia Lemos Pacheco

O depoimento de Mahim é revelador como as categorias de gênero-raça classe


(status social), geração, política e trabalho intelectual são reguladores de sua afeti-
vidade. Talvez isso explique porque mulheres negras que experimentam ascensão
social e gozem de prestígio político e intelectual, têm uma tendência a ficarem sós,
sem parceiros afetivos fixos. Essas hierarquias sociais descritas foram acionadas
nesta curta biografia de uma intelectual negra, educadora, e através dela podemos
entenderas identidades e diferenças que recortam e informam as experiências e as
reconfigurações de vários sistemas de opressão: entre eles, os de gênero e raça no
contexto abordado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Retomemos algumas discussões do texto de Hooks e de Spivak. Através da
análise da trajetória de Mahim, percebemos que a educação (pública) foi o principal
meio de mobilidade social e individual, através das redes familiares, de parentesco
consanguíneo ou das redes de ajuda, que possibilitaram a sua inserção na esfera
educacional e no mercado profissional.
Porém, as hierarquias de gênero-raça atrelada à atuação política de Mahim foram
marcadores importantes na sua trajetória acadêmica. A discriminação vivenciada no
ambiente acadêmico foi acionada à medida que a informante percebe que não há
um reconhecimento por parte de seus pares não negros(as) e negros acadêmicos
não ativistas pelo seu trabalho intelectual. Tal fato foi percebido por Hooks no
contexto estadunidense, as intelectuais negras são poucas citadas ou reconhecidas
no meio acadêmico se comparada com os intelectuais / homens negros. No caso
estudado, o não reconhecimento enquanto intelectual está fortemente relacionado
com a produção de um conhecimento não aceito pelo staff científico eurocêntrico/
colonialista, gerando o isolamento da intelectual no meio acadêmico. O que revela o
forte impacto de gênero e raça no reconhecimento ou não de uma intelectual negra,
cujo imaginário social a associa ao “servilismo sexual e doméstico”; negando-lhe
o trabalho intelectual, ou como adverte Spivak, na sujeição do “outro” construído
pelo olhar ocidental.
A prática política conjugada com os dispositivos do gênero desestabilizou outras
categorias sociais, como a de raça, classe e geração, gerando um campo de tensões
permanentes no campo acadêmico e político-afetivo da entrevistada, colaborando
com suasituação de solidão. Isso se constatou na maneira como Mahim aciona em
sua narrativa as preocupações com a idade/geração, com as responsabilidades que
tivera desde cedo com os afazeres domésticos; com a socialização e educação dos
seus irmãos menores; assim com a ocupação constante com suas atividades intelec-
tuais e acadêmicas que a impediu de casar.

172
Gênero Trans e Multidisciplinar

Entretanto, podemos apreender, na trajetória de Mahim, como o ativismo po-


lítico colaborou para a construção de suas identidades étnico-raciais e de gênero à
medida que lhe possibilitou tornar-se uma “mulher negra subalternizada do terceiro
mundo” que aprendeu a falar “por conta própria” sobre as desigualdades históri-
cas e sociais que afetam homens e mulheres negros(as), especialmente a mulheres
negras cuja voz, diferentemente do que afirmou Spivaksobre a mulher no contexto
indiano, apesar de subalternizadas, podem falar!

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SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Tradução de Sandra Re-
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174
CAPÍTULO XII
TRADIÇÃO, SEXISMO E
MASCULINIDADE SUBALTERNIZADA
NAS IRMANDADES NEGRAS
Joanice Conceição1

INTRODUÇÃO
Desde as pesquisas realizadas sobre as irmandades para o mestrado, acerca da
Irmandade da Boa Morte, sempre me intrigou o fato de encontrar nos Estatutos e
Compromissos itens que falavam clara ou indiretamente sobre a discriminação fe-
minina nos espaços religiosos. Alguns anos se passaram e após concluir o doutorado
estou eu a refletir sobre o tema. Penso que a inquietação advinda dos primeiros anos
do milênio 2000 só agora encontra elementos basilares para que a pesquisadora em
questão se aventure por esse universo. É claro que os temas das relações étnico-
-espaciais, o sexismo2 e o classismo terão muitas lacunas que só serão preenchidas
por mim, com o meu próprio amadurecimento, ou ainda, se contar com um estudo
mais acurado de outra estudiosa ou estudioso, porque, em certa medida, para mim,
o tema ainda é muito incipiente. Retrocedamos agora alguns séculos para iluminar
os fatos atuais.
Na diáspora, as negras e os negros criaram espaços de sociabilidade, no interior
dos quais se teciam solidariedade, espaços como os moçambiques, as congadas, os
candomblés e as irmandades, alguns deles possuíam a função implícita de repre-
sentar socialmente, se não politicamente, os diversos grupos nas hierarquias sociais
(Reis, 1991, p. 51). No Brasil do início do século XVIII, as irmandades eram grandes
núcleos que agregavam devotos de um determinado santo; eram compostas basica-
mente por leigos, embora recebessem religiosos; essas associações faziam caridade
aos seus membros e carentes não associados; conservavam o funeral acima de qual-
quer outro privilégio, já que para a maioria do povo africano a morte é vista como
princípio de vida (Conceição, 2011, p. 17). Em geral, a estrutura organizacional
seguia o modelo português, conservando do catolicismo barroco as elaboradas pro-
1. Pesquisadora da do Programa Nacional de Pós-Doutorado -PNPD∕CAPES, junto ao Programa de Pós-
-graduação em Antropologia da UFPB; Doutora em Ciências Sociais/Antropologia pela Pontifícia Univer-
sidade Católica de São Paulo – PUC-SP; Integrante do grupo de pesquisa “Ritual, festa e performance”.
2. O termo é utilizado para se referir à discriminação praticada em função do sexo, dentro da visão dico-
tômica difundida pela biologia.
Joanice Conceição

cissões e os rituais fúnebres. Dentre as irmandades existentes no Brasil, destacam-se


a de São Benedito, Nossa Senhora do Rosário, São Domingos, Santa Ifigênia, Santa
Casa de Misericórdia, além das Ordens Terceiras, que basicamente tinham as mes-
mas funções. Algumas delas possuíam congêneres em diversos Estados brasileiros,
tal como a Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, Santa Ifigênia e Nossa Senhora
da Boa Morte3.
Por se tratar de um número significativo de irmandades, deterei atenção na Ir-
mandade da Boa Morte e a Irmandade do Rosário dos Homens Pretos das Portas
do Carmo, ambas localizadas na Bahia. Essas últimas tiveram e têm grande destaque
nas cidades onde atuam; fundadas entre os séculos XVII e XVIII, em Salvador, são
das mais conhecidas pelas suas trajetórias. Respectivamente, são compostas por mu-
lheres negras que se autodenominam de etnia jejê-nagô epor negros foros de nação
angola. Essa última era constituída por homens e mulheres; a Boa Morte, apenas
por mulheres, como afirmam as integrantes.
A justificativa para a escolha dessas últimas liga-se ao fato de as duas estarem
na ativa e, de alguma forma, servirem de referência para a população estudiosa(o)
das questões relativas à população negra do Brasil, nomeadamente a afro-baiana.
Cumpre ressaltar que entre os séculos XVI e XIX o crescimento das irmandades
em todo Brasil nem sempre foi harmonioso, haja vista asmuitas exigências para
admissão de novos membros. As organizações negras possuíam critérios que se
assemelhavam aos das brancas e mistas; por exemplo, ser negro, pertencer a deter-
minadas etnias, ser católico, ter a mesma profissão, ser mulher, pagar determinadas
quantias. No entanto, no momento da admissão, havia requisitos que possuíam um
peso ainda maior, como da pureza de nação, ou seja, negros pertencentes a certa
etnia. Como afirma Lody:

[...] escravos trazidos de Angola estavam preferencialmente, nas irmandades de


Nossa Senhora do Rosário; os vindos do Benin (antigo Daomé) ficavam na ir-
mandade de Nossa senhora da Redenção; os de Ketu na irmandade de Nossa
Senhora da Boa Morte ou ainda na irmandade de Bom Jesus dos Martírios. (Lody,
1987, p. 53)

Esses critérios levavam as irmandades a desempenharem um papel que não lhes


dizia respeito – o de excluir e segregar pessoas, sobretudo, os negros e as negras que
não preenchiam todos os requesitos. Por outro lado, havia um descontentamento
por parte das mulheres, que, embora fossem aceitas sem reservas, eram segregadas
no exercício das atividades. A justificativa para o consentimento do feminino talvez

3. Para maiores detalhes sobre a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, ver Conceição, 2004, no
trabalho intitulado Mulheres do partido alto: elegância, fé e poder – um estudo de caso sobre a Irmandade
da Boa Morte.

176
Gênero Trans e Multidisciplinar

estivesse no fato de os homens quererem aumentar o mercado de afetividade, por


serem as mulheres pouco numerosas entre os escravizados (Reis, 1991). A maioria
das irmandades trazia em seus Compromissos ou Estatutos um item que tratava da
composição da “ala feminina”, porém esta recebia tratamento diferenciado. Assim
fazia o Compromisso a Irmandade dos Homens Pretos do Rosário de Camamu,
que designava às mulheres trabalhos de acordo com seu sexo, como por exemplo,
lavar as roupas brancas, coser, refazendo-as e consertando-as para o uso das missas.
Diante do exposto, lanço a seguinte pergunta: o que levaria os homens negros a
discriminarem as mulheres igualmente negras? A essa pergunta tentarei responder
direta ou indiretamente ao longo do texto.
Esse comportamento masculino foi criando nas mulheres uma insatisfação, o
que deu espaço para o surgimento de irmandades mistas e até mesmo com exclu-
sividade de gênero feminino, tal como a Irmandade da Boa Morte. Em tese, nas
irmandades, as mulheres podiam exercer todas as atividades, mas, na prática, isso
não ocorria; o racismo, o sexismo e outras formas discriminatórias estão presentes
em todos os setores, ora velados, ora explícitos. Reis, em sua análise, salienta:

As irmandades negras via de regra tinham uma mesa composta de mulheres e


outra de homens. O compromisso de 1820 do Rosário das Portas do Carmo
rezava: “se elegerão as Juízas que forem suficientes de uma e outra nação” quer
dizer angolas e crioulas. Mas esta e outras irmandades de pretos e de brancos
discriminavam politicamente a ala feminina. A regra dos irmãos do Rosário que
proibia a escravos de serem juízes, procuradores e mordomos, fazia exceção às
mulheres escravas, porque “pela qualidade do sexo não exercitam ato de mesa”.
(1991, p. 58)

A citação de Reis deixa entrever que os homens entendiam haver certa inca-
pacidade nas mulheres para o exercício de qualquer atividade que não estivesse de
acordo com a visão hegemônica do ser mulher. Note que as atividades relegadas às
mulheres dizem respeito às tarefas desenvolvidas no âmbito doméstico. Portanto,
as categorias raça, classe e religião, de modo geral, modelam a imagem do que é
ser mulher nos espaços religiosos, particularmente entre as mulheres e os homens
negros nas irmandades mistas e negras da Bahia. Para se ter uma ideia mais precisa
do fato, a atuação das mulheres nos espaços religiosos sempre foi ocultada tanto
na história quanto na antropologia, visto que a história dos movimentos religiosos
sempre foi contada pelos homens, sobretudo o branco. Todavia, com o movimento
feminista brasileiro e as novas exigências que o conceito impunha aos novos estudos
sócio-histórico-antropológicos, foram aparecendo estudos que tinham uma preocu-
pação no sentido de trazer à visibilidade personagens femininos, mas, ainda assim,
eram personagens brancos, portanto, ainda existia uma defasagem em relação à per-
sonagem negra. É verdade que, na época, o número de pesquisadoras que se interes-

177
Joanice Conceição

savam pelo feminismo negro brasileiro era parco, dada a realidade de essa população
ser maioria nos bancos acadêmicos. A nossa história era contada por Roger Bastide,
Nina Rodrigues, Pierre Verger, Edson Carneiro e outras tantas vozes masculinas.
A religião de atriz africana foi inicialmente levada para os debates acadêmicos pela
intelectualidade heterossexual e, acima de tudo, branca e católica. E assim foi por
muito tempo! Bell Hooks, intelectual negra norte-americana, ao discorrer sobre a
produção negra, revela não apenas o silenciamento dessas produções como também
o seu ocultamento.

Quando intelectuais eruditos negros escrevem sobre a vida intelectual negra, em


geral só focalizam as vidas e obras de homens. Ao contrario da maçuda obra de
Harold Cruse, The Crisis of he Negro Intellectual (A crise do intelectual negro), que
não dá nenhuma atenção à obra das intelectuais negras, o ensaio de Cornel West,
o Dilema do Intelectual Negro, foi escrito num momento histórico em que a exis-
tência de um enfoque feminista sobre o gênero sexual devia ter levado qualquer
estudioso a considerar o impacto dos papéis sexuais e do sexismo. Contudo, West
não olha especificamente a vida intelectual da negra. Não reconhece o impac-
to do gênero nem discute o modo como as ideias sexistas de papéis masculino
∕femininos são fatores que informam e moldam tanto nosso senso do que é ou
pode ser a intelectual negra quanto a sua relação com um mundo de ideias que
transcendem as produções individuais. Apesar do testemunho histórico de que as
negras sempre desempenharam um papel importante como professoras, pensa-
doras críticas e teóricas culturais na vida negra, em particular nas comunidades
negras segregadas, muito pouco se escreveu sobre intelectuais negras. Quando a
maioria pensa em “grandes mente”, quase sempre invoca a imagens masculinas.
(Hooks, 1995, p. 466-467)

A realidade explicitada por Hooks não difere muito da vivenciada aqui no Brasil;
além da negativa em relação à produção negra, aqui também a história é feita apenas
pelos homens; quando lemos a história brasileira, parece que não havia mulheres na
luta. As narrativas masculinizadas não apenas nos colocam no recalque como tam-
bém nos tiram a intelectualidade, o pensar, o construir. Para além do fortalecimento
do tema feminino na agenda dos congressos e seminários, verificou-se a necessidade
de aprofundar e investigar em qual base se constituía a participação feminina nas
territorialidades religiosas. Geertz salienta que a religião é:

Um sistema de símbolos que atua para (sic) estabelecer poderosas, penetrantes e


duradoras disposições e motivações nos homens através da (sic) formulação de
conceitos de uma ordem de existência geral e (sic) vestindo essas concepções com
tal aura de fatualidade que (sic) as disposições e motivações parecem singularmen-
te realistas. (1989, p. 104-105)

178
Gênero Trans e Multidisciplinar

A citação acima nos permite acessar a abordagem de gênero no contexto reli-


gioso, pois sendo a religião um sistema de símbolos que confere sentido à vida das
pessoas que estão envolvidas, podemos, assim, entender que as relações de sexo
fazem parte dos símbolos que dão significância; portanto havia um segregacionis-
mo tanto do homem branco quanto do homem negro em relação à mulher. Existia
um apagamento do feminino na história religiosa. Desse modo, as territorialidades
religiosas eram construídas na base do sexismo, do racismo.
Voltando o olhar para a situação das mulheres negras nas irmandades negras,
nas quais elas sofriam com as desigualdades de sexo, classe e raça, visualiza-se o
comportamento masculino em colocar a mulher em posição inferiorizante. Isso
ocorre face à prevalência da mentalidade masculinizada e androcêntrica, na qual a
pertença feminina refere-se à esfera doméstica, às atividades leves, à reprodução,
bem como à maternagem. Evidentemente, a população negra feminina sofria com
os desmandos do sexismo, mas, apesar disso, não aceitava toda e qualquer ordem.
Há que se lembrar de Maria Felipa, que fez história na Bahia, seja na capoeira, na
luta pela independência e até em movimentos religiosos, entretanto, durante muito
tempo, ficou na invisibilidade. Pensar na territorialidade ocupada pelas mulheres
negras desde o Brasil colônia nos remete diretamente para o segregacionismo vivido
ainda hoje nos centros urbanos.

1. GÊNERO E RAÇA NAS IRMANDADES


NEGRAS
Durante muitos anos a sacralização da territorialidade religiosa não permitiu
que estudos acurados fossem realizados sobre determinados assuntos, mas, com o
aumento da presença da mulher nos seminários e academias, emergiu um público
feminino com conhecimento teológico que conseguiu acessar os sacros conheci-
mentos da religião reservados aos homens. Embora as grandes figuras do candom-
blé sempre fossem femininas, todavia, esse fato não era tido como algo relevante,
porque tudo que dizia respeito à população negra era desprezado. Vale ressaltar que
as religiões de matriz africana sequer eram reconhecidas como tal até bem pouco
tempo. Enquanto as intelectuais feministas brigavam pelo reconhecimento social, as
mulheres negras galgavam sua participação na vida das irmandades e enfrentavam,
por outro lado, a segregação de espaço, não do ponto vista geográfico, mas da dig-
nidade e do respeito a suas atividades.
A dominação vivida pelas mulheres fazia parte de um conjunto de atitudes vi-
venciadas na época, mas nem por isso elas aceitavam passivamente as imposições. A
esse respeito, L. Gonzales salienta:

179
Joanice Conceição

Fato da maior importância (comumente “esquecido” pelo próprio Movimento


Negro), era justamente o da atuação das mulheres negras que, ao que parece, an-
tes mesmo da existência de organizações do Movimento de Mulheres, reuniam-se
para discutir o seu cotidiano marcado, por um lado, pela discriminação racial e,
por outro, pelo machismo não só dos homens brancos, mas dos próprios negros.
[...] Nesse sentido, o feminismo negro possui sua diferença específica em face do
ocidental: a da solidariedade, fundada numa experiência histórica comum. (Gon-
zales, 1984, apud Garcia, 2012, p. 36)

Embora o contexto moderno apresente um quadro no qual a mulher aparece


como chefe de família, mais escolarizada, em postos de relevância social, mesmo
com o salário inferior ao do homem no mesmo cargo e com igual escolaridade, por
que após anos de luta as mulheres ainda são vítimas do sexismo tal qual experimen-
taram as negras desde que aqui aportaram? A indagação só pode ser respondida
se levarmos em conta alguns fatores: a sociedade mentalmente ainda opera com
arranjos da égide da dominação-exploração4, isto é, arranjos masculinizados; na re-
ligião, os símbolos religiosos reforçam a ideia de uma sociedade falocêntrica; há um
ocultamento da participação da mulher na história das associações mundiais, em
especial, no Brasil. Essas características coadunam a naturalização das desigualdades
entre homens e mulheres. Bourdieu sobre essa questão acrescenta:

Inscritas nas coisas, a ordem masculina se inscreve também nos corpos através
das injunções tácitas, implícitas nas rotinas da divisão do trabalho ou dos rituais
coletivos ou privados (basta lembrarmos, por exemplo, as condutas de marginali-
zação impostas às mulheres com sua exclusão dos lugares masculinos). As regu-
laridades da ordem física e da ordem social impõem e inculcam as medidas que
excluem as mulheres das tarefas mais nobres (sic), assinalando-lhes lugares infe-
riores (sic) ensinando-lhes a postura correta do corpo (sic) atribuindo-lhes tarefas
penosas, baixas e mesquinhas (sic), enfim, em geral tirando partido, no sentido
dos pressupostos fundamentais, da diferença biológica que parecem assim estar à
base das diferenças sociais. (Bourdieu, 2010, p. 34)

No caso das irmandades negras a mulher era levada para um lugar socialmente
sem prestígio; tudo aparentava uma falsa harmonia à medida que eram aceitas sem
restrições, entretanto, havia um longo caminho para que elas pudessem ocupar um
lugar de relevância social. Para Saffioti (2004), os avanços feitos nos estudos sobre a
questão da mulher, principalmente nos anos 1960 e 1970, não condizem com a fre-
quente inferioridade atribuída a elacomo marca natural. Embora tenhamos consci-
ência de que os homens negros das irmandades reproduziam as ideologias da classe
dominante, em que o poder do homem era visto como superior e decisivo, não nos

4. A expressão dominação-exploração é emprestada de Saffiotti, na obra Gênero e Patriarcado, 2001.

180
Gênero Trans e Multidisciplinar

refuta a ideia de que os reflexos dessa atitude coincidiam com a distribuição desigual
dos papéis, na medida em que as mulheres eram discriminadas. Como já salientamos
antes, as tarefas de maior prestígio estavam nas mãos masculinas, como a cobrança
de aluguéis, a administração das terras e a representação junto às autoridades gover-
namentais e do clero; eram, sim, para a visão do dominador, tarefas que somente os
homens podiam desempenhar.
Analisando essa situação num conjunto mais amplo, não obstante as injunções
feitas ao feminino, paradoxalmente, tanto homens negros quanto mulheres negras
encontravam-se em igual situação de dominação e exploração. Os homens brancos
também praticavam a discriminação contra os homens negros. Mulheres e homens
negros são iguais na diferença. Voltaremos a esse tema mais adiante.
Para Scott (1990) é preciso identificar as estruturas basilares da discriminação,
a fim de combatê-las, ainda que se saiba que tais estruturas estejam fortemente
ancoradas na produção, reprodução, socialização e sexualidade. Entretanto, Saffioti
acrescenta-lhe o androcentrismo ou falogocentrismo, posto que permitem compre-
ender a gênese do exercício da dominação sobre as mulheres, em que, segundo o
modelo vigente, coloca o homem na esfera do poder, da força e a mulher, na secun-
dariedade, isto é, do lado da submissão e da fragilidade.
Assim, as irmandades mostram suas armas clássicas da masculinidade hegemô-
nica uma vez que a mulher desde os primórdios é considerada como sexo frágil.
Sendo assim, suas habilidades não comportam o acesso a determinados espaços, a
exemplo, a representação junto às autoridades eclesiásticas e governamentais. Sa-
ffioti acrescenta que, “as representações de gênero de uma sociedade falocrática
não cobrem todo o espaço social. Quer dizer que existem lugares sociais vazios do
ângulo do androcentrismo em que a mulher não é representada e irrepresentável,
visto de uma perspectiva machista” (1995, p. 17).
Assim fica claro que a aceitação das mulheres como cota de gênero não é o
mesmo que pensar que, por essa razão, estão fora da égide do sexismo na medida
em que as relações sociais são hierarquizadas e socialmente desiguais, portanto, não
existe valência; o termo gênero guarda, sobretudo, características de relações igua-
litárias, o que não é verdade. Não foi à toa que a sociedade patriarcal logo definiu
e legitimou a inferioridade das mulheres, hierarquizando as desigualdades entre os
sexos por meio da divisão sexual dos papéis.

2. DE BRANCO PARA NEGRO


Em uma sociedade multirracial como o Brasil é possível encontrar o par da
diferença como assimétrica e desigual. Dito de outro modo, na sociedade brasilei-
ra, a masculinidade não possui o mesmo peso para todos os homens. Ao fazer tal

181
Joanice Conceição

afirmação estou a dizer que o homem negro possui um valor menor no mercado
racializado; esse fato está presente desde os tempos que remontam à invasão das
terras brasileiras, focalizando o homem no período colonial, no advento das irman-
dades negras, brancas e mistas. Com o nascimento de tais organizações, poderiam
até pensar não haver tratamentos diferenciados, já que, perante os dogmas religiosos
cristãos, toda pessoa é filha de Deus. Mas não é bem assim: a realidade que se des-
lindou vem recheada de conflitos raciais que se apresentam ora implícitos, ora reve-
lados. Entretanto, a base desses conflitos está fundamentada no racismo religioso e
no classismo que sempre foi um forte aliado da Igreja.
Dentro da visão hegemônica, o homem negro sempre foi considerado o viril, o
bem dotado e outras adjetivações que negam o negro como um sujeito, no sentido
mais amplo do termo. Entretanto, quando colocamos esse mesmo homem dentro da
política de gênero, em particular no processo escravista, percebemos que sua atuação
foi negada, por não fazer parte do modelo normativo, isto é, o modelo branco, he-
terossexual e rico (Hooks, 1995). A constatação da negação da masculinidade ou da
masculinidade subalterna do homem negro e as constantes interiorizações negativas
sofridas ao longo da história criaram uma imagem negativa do ser homem negro
frente a outros homens, embora os aspectos inferiorizantes não fossem levados em
conta no momento da avaliação do seu progresso material. “Numa sociedade como
a brasileira, com clivagens de gênero, de distintas raças∕etnias em interação e de classe
sociais, o pensamento, reflete as subestruturas antagônicas” (Saffioti, 2004, p. 37-38).
A visão de uma masculinidade hegemônica advém da visão patriarcal, cuja base
ancora a ideia de um homem trabalhador, provedor de família, enquanto à mulher
reserva-se a fragilidade e a submissão, visão essa que foi levada quase que integral-
mente para as organizações negras, de modo a se refletir na relação com seus pares,
ou seja, entre as mulheres e os homens negros. Vamos nos deter um pouco mais
nesse aspecto, focando o olhar para as discriminações sofridas pelo negro nos es-
paços religiosos. Já ressaltamos que, via de regra, as irmandades seguiam o modelo
português, embora saibamos que houve especificidades entre os negros, como, por
exemplo, do candomblé da Barroquinha, que surgiu na intersecção das irmandades
dos Martírios e Boa Morte, ambos em Salvador.
As representações sociais do masculino e do feminino envolvem reflexões para
além da dicotomia fundante, envolvem raça, classe e religião. O sexo pode ser en-
tendido como um produto biológico; enquanto gênero é uma construção social,
contudo, não podemos analisá-los isoladamente, devemos, pois, considerá-los como
unidade, dentro da variante do contexto social em que é exercida. Dessa forma,
apontando para as muitas faces que o gênero revela, entendemos que categorias
como raça/etnia e classe podem somar-se para melhor definir um determinado
campo. Assim como podemos entender, que a masculinidade negra é vista de forma
diferenciada pelos brancos:

182
Gênero Trans e Multidisciplinar

Aquela classificação não é neutra ou inocente. É valorizada. A relação entre fe-


minino e masculino não é como as duas faces de uma mesma moeda, mas sim
assimétrica e desigual. Legitima uma forma de dominação, em que o gênero da
pessoa marca ascendência ou submissão social, à semelhança da classe social, da
idade, do status. Mas é uma ascendência social que se reproduz na base de um
processo de neutralização: a desigualdade entre homens e mulheres não é vista
como um processo social mas como uma realidade ontológica. Os dominadores
não têm “complexo de culpa”, as(os) dominadas(os) resignam-se. (Almeida, 2000,
p. 242, grifo nosso)

Mesmo o termo patriarcado, que nos remete à opressão masculina contra a mu-
lher5, não obstante esteja baseado na figura masculina, prevê que as representações
de homem ancoram-se no conceito de homem branco, heterossexual e de classe
média. Ora, sendo o membro da irmandade um negro, já não se pode pensar nesse
homem de igual modo, mas de forma dissimétrica, portanto díspares. O exercício
da masculinidade nem sempre pode ser lido de uma mesma forma; o homem negro
da diáspora enfrentou e continua a enfrentar uma série de obstáculos, sobretudo
no aspecto financeiro. Se, por um lado, a sua virilidade, a sua performancesexual
é ressaltada, por outro, o ser humano negro fica no plano de um lugar menor; a
modernidade não lhe assegura o lugar reservado a todo homem, ao contrário, a re-
presentação hegemônica e da tradição lhe reserva um lugar diferenciado. O homem
branco busca na tradição eurocêntrica as bases da discriminação. Como mostra o
excerto abaixo:

A tradição fornece o laço crítico entre atributos locais das formas e os estilos
culturais e suas origens africanas. A história interveniente na qual a tradição e mo-
dernidade se juntam, interagem e se confrontam é posta de lado juntamente com
as consequentes implicações deste processo para a mediação da pureza africana.
A tradição torna-se, assim, o meio de demonstrar a contiguidade de fenômenos
contemporâneos selecionados com um passado africano que os moldou, mas que
eles não mais reconhecem e a eles apenas se parecem. (Giloy, 2001, p. 358)

As ideias contidas nas palavras de Paul Gilroy encontram eco nas práticas das
irmandades mistas, homens discriminando outros homens, seria por assim dizer, a
discriminação do sexo pelo sexo.
Do ponto de vista das desigualdades e enquanto mulher negra, nos acostuma-
mos a pensar nos problemas da mulher negra, porém nem tudo se aplica apenas ela,
mas, no caso das irmandades do Período Colonial, tanto o homem quanto a mulher
negros sofreram com a discriminação e, ainda hoje, os homens negros têm a sua
masculinidade subalternizada quando relacionada ao homem branco. A dominação

5. O termo patriarcado é utilizado para se referir à discriminação da mulher negra pelo homem negro.

183
Joanice Conceição

masculina se apresenta em diversos níveis, variando conforme o contexto social.


Contudo, o fenômeno é o mesmo, ou seja, a discriminação não muda, apenas veste-
-se de novas roupagens para impor ao dominado o desejo de quem domina. Partin-
do dessa ideia, podemos dizer que, no âmbito das irmandades, o indivíduo negro
e sua cultura são constituídos no espelho de um aparelho ideológico, calcado pela
masculinidade hegemônica, na qual o homem branco exerce uma relação de poder.
Essa relação acaba por moldar indivíduos que acreditam possuir uma defasagem em
relação ao outro.
O aparelho ideológico possui instituições que ajudam a estruturar o controle
sobre os indivíduos, contando como aliados a Igreja, o Estado e hoje os meios de
comunicação. Mesmo tendo perdido força, a Igreja possui uma forte atuação sobre
a vida das pessoas, a despeito dos temas como aborto e a relação afetivo-sexual de
pessoas do mesmo sexo. Somam-se a essa as muitas denominações evangélicas e
neopentecostais. Tais instituições lutam para produzir e impor uma cultura homo-
geneizada; uma imposição de ordem familiar, religiosa, atrelando a essa afabricação
de estruturas conservadoras, na qual a autoprodução cultural volta-se contra seus
produtores (Berteux, 1979).
Observada a maneira desigual dentro das territorialidades religiosas, existia, por
um lado, a ideia de homogeneização das pessoas, mas, paradoxalmente, havia in-
divíduos tratados de forma diferenciada, portanto o poder era exercido de manei-
ra velada, porém eficiente, já que era permitida a entrada de negros e negras nas
organizações, mas sua atuação não tinha a mesma extensão daquela dos demais
membros. Desse modo, poder-se-ia dizer que o homem negro, quando observado
de uma estrutura mais ampla, era empoderado, porém, visto das relações internas,
era destituído de poder.

O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo
que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está
nas mãos de alguns, nunca é apropriado como riqueza ou bem. O poder
funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circu-
lam, mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua
ação; nunca são o alvoinerte ou consentido do poder são sempre centros
de transmissão. (sic) O poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles.
(Foucault, 1979, p. 183)

Nessa mesma obra, Foucault mostra que existem vários tipos de poder; mesmo
em uma situação de dominação, o dominado também o tem. São poderes que o au-
tor denomina de micropoderes, mas igualmente servem para dar sustentação a um
sistema; o fato de serem considerados micros não quer dizer que eles sejam menos
importantes. A análise simbólica do poder e da diferença entre os sexos foi apreen-
dida socialmente pelas organizações negras, como em qualquer outro espaço, apesar

184
Gênero Trans e Multidisciplinar

de ser perpetrada de forma diferente; no caso do homem negro, ele usava o poder
que possuía contra as mulheres, principalmente as negras, que eram igualmente des-
tituídas de poder face à esfera dominante.

3. TERRITORIALIDADE E GÊNERO
O estudo de grupos afro-brasileiros requer uma investigação não apenas das
questões históricas, mas um estudo acerca do espaço que esses corpos negros ocu-
pavam e ocupam na sociedade, uma vez que foi no corpo que os escravizados cria-
ram condições para a sobrevivência de suas culturas, foi nele e sobre ele que os
negros e as negras conservaram e conservam os traços mais significativos de suas
culturas para tornar realidade aquilo que hoje chamamos de culturas afro-brasileiras.
A afirmação de que “O corpo é o primeiro e o mais natural instrumento do homem,
ele é modelado conforme os hábitus culturais” (Le Breton, 2006, p. 39) produz efi-
cácias simbólicas e materiais. A assertiva é reveladora no sentido de mostrar que o
corpo serve como instrumento de dominação ou de resistência, quando instrumen-
talizado para tal.
O corpo no espaço das irmandades e também fora dele revela-se como peça
estratégica na configuração dos papéis desempenhados. Homens usam as armas do
sexismo, do racismo para assegurarem o poder; para eles, não importa se é um poder
usado contra grupos que supostamente deveriam caminhar do mesmo lado ou o
poder de dominar alguém e, nesse sentido, essa prática não difere dos atos mágicos,
religiosos ou simbólicos. Assim aponta a análise:

O corpo é uma realidade mutante de uma sociedade para outra: as imagens que o
definem e dão sentido à sua existência invisível, os sistemas de conhecimento que
procuram elucidar-lhe a natureza, os ritos e símbolos que o colocam socialmente
em cena, as proezas que poderia realizar, as resistências que oferecem ao mundo,
são incrivelmente variados, contraditórios até mesmo para nossa lógica aristoté-
lica do terceiro excluído, segundo a qual se a coisa é comprovada seu contrário é
impossível […]. (Le Breton, 2006, p. 28-29)

As características físicas e morais, os atributos empregados ao sexo dizem res-


peito às opções culturais e sociais e não são uma marca natural que fixa o homem
e/ou a mulher em um destino biológico. A condição do que é ser homem ou ser
mulher não se limita apenas à inscrição do corpo; essa condição resulta do embri-
camento social, ligando-se aos sistemas educativos e aos modos de vida de cada
sujeito. Então o homem negro é, também, resultado das aprendizagens adquiridas
no convívio com o homem branco e dominante, logo, procura de algum modo,
exercer o poder.

185
Joanice Conceição

Não obstante ser um tema recorrente na antropologia – embora a ciência tente


se mostrar neutra, falando de indivíduos genéricos, ela (a ciência) participa de um
jogo de construção da diferença das mulheres em relação a uma esfera dominante
de gênero, em que as primeiras ficam prejudicadas, pois são duplamente discrimina-
das: primeiro por serem mulheres, segundo por serem negras. E, se forem pobres,
sofrerão mais uma discriminação. Entretanto, a discriminação não é sofrida apenas
pelo feminino, quando examinada mais profundamente, verificamos que os homens
negros também eram e ainda são vítimas do preconceito atroz do branco; nesse
caso, seria, por assim dizer, a discriminação do gênero pelo gênero.
Connell (1987), ao estudar as relações de gênero, focadas em grupos de meni-
nos, rapazes, descobriu tipos diversos de masculinidades, tais como subordinadas,
cúmplices, marginalizadas e hegemônicas, todas elas pertencentes à ordem interna
de gênero que, ao se inter-relacionarem com as estruturas de classe e raça, criam
relações mais amplas entre elas. Nesse sentido, a categoria gênero é genérica e,
como tal, não contempla casos específicos, como as irmandades. Ela não aborda
os problemas vivenciados pela população negra, porém, numa análise mais pro-
funda, descortina os conflitos internos da ordem do sexismo. Cada um vivencia o
problema de forma diferente. Laurentis (1994) afirma que o gênero pode ser visto
como símbolo cultural, representando instituições, organizações, cujas identidades
múltiplas, contraditórias e subjetivas são evocadas; para ela, o gênero deve figurar
como mecanismo regulador de relações não apenas homem/mulher, mas igualmen-
te das relações homem/homem e mulher/mulher, isto é, nas interseccionalidades;
deve, pois, representar a multiplicidade do ser humano. Quando consideramos o ser
humano como múltiplo, colocamos desde logo a contraditoriedade potencializada
em todo humano e, como consequência disso, aparecem as divisões e atribuições
assimétricas entre os sexos, seja na família ou no espaço religioso.
Miguel V. Almeida (2000)6 e Joan Scott (1990)7, além de revisarem a teoria
feminista, agregaram ao conceito uma visão mais precisa acerca da dicotomia, sim-
bolicamente construída através dasdiferenças sexuais humanas. Connell (1995) vai
além do fato de defender algumas propostas do feminismo; adiciona ao conceito
de gênero a noção de estrutura de relações de gênero, através da qual é possível
reconhecer a complexidade das sociedades, ao mesmo tempo em que garante maior
apreensão da dinâmica histórica de gênero. Isso significa dizer que o gênero é muito
mais que interações sociais face a face entre homens e mulheres; ele engloba o “Es-
tado”, a família e a sexualidade (Connell, 1995).

6. O autor, no livro Senhores de si: uma interpretação antropológica da masculinidade (Almeida, 2000), traz uma
reflexão sobre o conceito de gênero, focando especialmente a masculinidade de um povoado de Portugal,
ao tempo em que aponta para a vivência diferenciada da categoria.
7. A historiadora norte-americana e autora do artigo Gênero: uma categoria útil faz uma reflexão da cate-
goria gênero, porém aponta caminhos para o seu uso adequado.

186
Gênero Trans e Multidisciplinar

Normalmente, quando se fala em gênero, logo se remete às diferenças corpo-


rais entre mulheres e homens assentadas na biologia, que define o que constitui o
feminino e o masculino, reforçando as dicotomias e diferenças. Tais características
fazem parte de uma construção advinda do senso comum, baseado nas crenças de
instituições sociais e culturais sobre a diferenciação do sexo biológico, sem levar
em consideração o entendimento das relações socioculturais de gênero, sem ter em
conta que o gênero é produto das interações sociais e que pode variar quando se
assenta nos aspectos culturais (Fasting, 2006). Seguindo esse raciocínio, os grupos
religiosos aqui investigados podem, em certa medida, ser entendidos como espaços
de segregação sexual e racial; a primeira em relação à mulher e a segunda no que
toca ao homem negro.
Deste ponto, pode-se presumir que o racismo, o sexismo e o classismo trazem
implícita a incitação de confronto político entre grupos diferentes ou talvez biologi-
camente iguais, não apenas com agressões de homens dirigidas às mulheres, aos ho-
mossexuais, às lésbicas; grosso modo, seria, por assim dizer, a dominação do gênero
pelo gênero. A partir disso não se pode pensar a dominação-exploração originária
do binarismo, já que o sexo é biologicamente igual, mas socialmente diferente.

4. PALAVRAS FINAIS
Foi mostrado ao longo do texto o antagonismo de gênero dentro das irman-
dades negras e mistas. O efeito do sexismo, do racismo e do classismo gerou nos
séculos anteriores grandes entraves para a população escravizada e recém-liberta,
contudo, no século XXI, os efeitos dessas atitudes, embora transformados, são cau-
sa de desconforto para uma população majoritária, mas inferiorizada pela maioria.
Ainda vivemos numa sociedade excludente, machista e racista, tal como no Período
Colonial, que incita os conflitos sociorraciais, de gêneros e de classes. Não nego os
avanços pelos quais passamos em todos os campos, porém isso não me impede de
olhar o passado para analisar o presente e verificar que ainda temos uma longa ba-
talha, pois a cada dia aparecem novas formas de discriminações.
Diante do quadro que foi traçado, é urgente a necessidade de um empodera-
mento tanto das mulheres quanto da população negra para enfrentar o projeto de
violência que foi produzido desde os primeiros anos da invasão das terras brasilei-
ras; enfrentar o projeto de genocídio da população e da subalternidade feminina. De
um modo indireto apresentei a resposta para a pergunta inicial: O que levaria os ho-
mens negros a discriminarem as mulheres igualmente negras? Gostaria de ampliar e
reforçar a ideia que foi trabalhada ao longo de todo o texto.
A dominação masculina aliada à violência subjetiva contra as mulheres, como
o controle e a exclusão dos negros dos espaços de prestígio, é fruto de um projeto

187
Joanice Conceição

forjado pela classe dominante para manter o poder. Os homens expressam a re-
partição e a hierarquização das atividades, as quais se estendem para outras esferas
da vida em sociedade. O que acontece nas irmandades é apenas um reflexo daqui-
lo que ocorre nos domínios mais amplos do poder. Com efeito, entendemos que,
para romper ou destruir as históricas estruturas da dominação masculina contra as
mulheres e a inferiorização do negro, é necessária a participação nas lutas libertá-
rias, tal como foi nos movimentos abolicionistas, pelo direito ao voto feminino, nas
Revoluções Francesa e Industrial e mais recentemente pelos direitos civis, incluindo
o casamento de pessoas do mesmo sexo, conjugando à tomada de consciência da
união dos membros, reconhecendo a diferença de cada um, mas acima de tudo con-
testando as formas violentas da dominação, seja ela sexual, religiosa e∕ou de classe.

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SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Reali-
dade, Porto Alegre, v. 2, n. 16, p. 5-22, 1990.

189
CAPÍTULO XIII
MULHERES QUE LABUTAM NO
RECÔNCAVO DA BAHIA
Maria de Fátima A. Di Gregorio1


INTRODUÇÃO
Não foi por acaso que, dentro de um leque de possibilidades de temas relacio-
nados à condição feminina, a questão do trabalho e da identidade despertasse meu
interesse como pesquisadora do grupo que atua no Projeto Recôncavo da Bahia.
Enquanto lugar de memórias e história, o local é muito propício para pesquisas de
campo, pela riqueza natural e pelos constantes desafios na cultura do trabalho, sina-
lizando aspectos econômicos e sociais que marcam a região. Estando o espaço inse-
rido em foco de pesquisas da universidade, interessada em estudos de identidades de
grupos socialmente distintos ou não, pude participar desse grupo de pesquisas, apli-
cando procedimentos exploratórios para coleta de dados, e levantando informações
sobre a participação das mulheres trabalhadoras do local. O intuito foi o de captar
a presença da mão de obra feminina em todos os segmentos socioeconômicos, cul-
turais e políticos da região/do local, marcas ligadas ao processo de colonização do
país, repensando as identidades, definindo níveis de participação na comunidade.
As cidades do Recôncavo Baiano se originam com o processo de ocupação
do território brasileiro e se configuram como aglomerações citadinas com intensos
fluxos e relações com as culturas agrícolas – fumo e cana-de-açúcar – destinadas à
exportação e que eram desenvolvidas na região. Segundo Milton Santos (1959), foi
no Recôncavo Baiano onde se constituiu a primeira rede urbana no Brasil, impul-
sionada pelo papel de destaque na economia colonial e mesmo durante o Período
Imperial. Os vínculos entre as cidades e o mundo rural sempre foram marcantes na
paisagem e na constituição dos lugares.
Certamente, um dos elementos empíricos que serviu para essa análise foi a par-
ticipação in locus, que possibilitou a observação do grau de desigualdade social exis-
tente numa determinada fatia da sociedade, repensando o processo de participação

1. A autora é licenciada em Pedagogia e História. Professora adjunta da Universidade do Estado de Bahia


(UNEB) - campus V/Grupo Recôncavo e da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) -cam-
pus Jequié. Especialista em Planejamento (FEEBA), mestre em Memória Social (UNIRIO), doutora em
Família na Sociedade Contemporânea (UCSAL) e membro do NPEJI, GEHFTIM e Grupo Recôncavo da
Bahia. E-mail:f_digregorio@hotmail.com

191
Maria de Fátima A. Di Gregorio

dessas mulheres, suas formas de construção identitárias, verificando a forma de


inserção no mercado de trabalho, a capacidade de empoderamento de cada grupo e
o papel no desenvolvimento local e regional.

MAPA 1
São Sebastião do Passé

Cabaceiras do
Paraguaçu SantoAmaro
Gov. Mangabeira Cachoeira
Muritiba São Felix S. Francisco do Conde
Cruz das almas
Saubará
Castro Alvez Sapeaçu
Conceição de Maragogipe
Almeida São Felipe
D. Macedo Costa
Itaparica S. Antônio de
Muniz Ferreira
Sertão do São Francisco Varzedo
Jesus

Nazaré
Piemonte
Norte de Semi Árido
Itapicuru Nordestino II

Piemonte da
Diamantina
Sisal
Irecê
Bacia do Litoral Norte
Oeste Baiano Jucuípe l Agreste de
Velho Chico rta
Po rtão Alagoinhas
Se
Chapada Piemonte do do
Diamantina Paraguaçu Recôncavo

Bacia do do Região
Vale iça
Bacia do Rio Paramirim Jiqu
ir Metropolitana
Baixo
Corrente Sul de Salvador
Médio Rio
utivo
Prod de Contas
Sertão
Vitória da
Conquista itapetinga Litoral
Sul

Extremo Sul

Nesse contexto do Recôncavo da Bahia, os estudos apontam que a participação


da mulher como elemento constitutivo no mercado de trabalho, marcado por de-
sigualdades como a segregação por sexo, a diferenciação de formas de trabalho, a
concentração do poder em mãos dos homens, não só no que se refere a ocupações
e remuneração, mas na manutenção de uma memória social excludente e masculi-
nizada. Portanto, a mulher que se encontra em situação de extrema pobreza ainda
encara a jornada intensa de trabalho e, na tentativa de minimizar a fome de seus
filhos, cuida da casa e da própria família, encontrando forças insuperáveis, pois é
ela a responsável pelos serviços de toda ordem: cuidar dos filhos, fazer compras,
sustentar a casa, dentre outras atividades cotidianas. Isso tem contribuído para que
ao longo desses anos, as mulheres sejam tratadas de forma desigual em relação aos
homens, na medida em que estão concentrados em diferentes funções e/ou ocupa-
ções e, consequentemente, recebem rendimentos diferenciados.
Assim, desvela-se um dos fatores decisivos para a preservação das desigualdades
perante a mulher − os salários no mercado de trabalho, além do excesso de jornada
de trabalho fora de casa, culminando na extensão e/ou manutenção do poder dos
homens sobre elas nos diversos campos da vida social. Ora, o processo histórico
da sociedade brasileira sempre foi excludente e criou caminhos antagônicos entre a
burguesia emergente, entre sexos e camadas populares – não que seja uma questão
de escolha, mas resultado de um conjunto de forças advindas de uma cruel dinâmica

192
Gênero Trans e Multidisciplinar

legitimada por hierarquias masculinas com bases em preconceitos e estigmatizações


constituídas a partir não só de gênero, mas de classe social, geração, mundo do tra-
balho, dentre outros.

1. A HISTÓRIA DAS MULHERES QUE


LABUTAM E LUTAM
A história de boa parte das mulheres do Nordeste brasileiro tem pilares cons-
truídos numa relação de exploração na dinâmica de compra e venda de mercadorias,
no abandono de seus companheiros e na capacidade de organização e de luta pela
sobrevivência. Considerando a comercialização e a força de trabalho, os indivíduos
se mostram divididos na sociedade: opressores e oprimidos. Mesmo oprimidas, as
mulheres trabalhadoras do Recôncavo da Bahia são capazes de fazer brotar força de
luta diária, amor, coragem, alegria e prazer em meio aos obstáculos e revezes que vi-
venciam no cotidiano repleto de carências, desigualdades e injustiças sociais. Efeitos
de um mercado de trabalho nacional que vem impondo o favorecimento de níveis
econômicos e socioculturais bastante antagônicos, excluindo cada vez mais grupos
empobrecidos que vivem sem condições de sobrevivência.
O estudo mostrou que, na região, as famílias são muitas vezes matrifocais, pois,
após abandono de seus companheiros, as mulheres assumem o papel de liderança e
exercem a função de trabalhar fora para prover o sustento da casa. As mulheres en-
volvidas com essas atividades disseram que são responsáveis por todos os afazeres,
desde a limpeza da casa, compras em geral, pagamentos de contas, até a condução
de crianças à escola, isso porque seus companheiros foram embora para trabalhos
em outros estados buscando melhores condições de vida. Isso é visto em muitos
depoimentos coletados:

Meu nome é Maria das Dores e quebro pedras o dia todo, pois sou homem e mulher da casa.
Meu companheiro foi embora para São Paulo faz alguns anos e eu tive que criar meus filhos
sozinha mais Deus. Tinha dias que quase parecia desistir, mas sabe como é... se não trabalhar
não comia.2

Como Maria, muitas mulheres sustentam suas famílias em atividades de pesca,


plantio e benefício do fumo, quebrando pedras. Atividades femininas que movimen-
tam o comércio regional, local, pois boa parte dos homens deixa suas casas para
todo tipo de aventuras, desde a busca por trabalho em outros locais, como a cons-
tituição de novos laços afetivos, gerando a migração masculina em outras regiões.

2. Maria da Dores é quebradeira de pedra no Recôncavo da Bahia e tem cinco filhos.

193
Maria de Fátima A. Di Gregorio

Rosália, marisqueira de Jaguaripe, relata: “essa tradição é de meus pais. Trabalho para
ajudar meu companheiro que é pescador e minha filha me ajuda a limpar e separar os mariscos
para ele vender. A gente ajuda para ganhar o sustento da casa”. Essas falas mostram a con-
dição de ser mulher guerreira, da força para a família. Nas observações de campo
realizadas por ocasião das entrevistas, percebi que os casais, quando estão juntos,
parecem ter convivência distante, muitas vezes conflituosa, por causa da situação
financeira, dos hábitos de bebida e rodas de amigos, sinalizando o baixo grau de afe-
tividade dos homens para as mulheres e crianças. Nas camadas mais empobrecidas,
o relacionamento afetivo, contudo, parece expressar a revolta da saída na madruga-
da, dos efeitos da não fartura, e das traições em bares. Mulheres que saem cedo de
casa deixando suas crianças com parentes e amigos, quando estas não acompanham
as mães. Nessas relações de cuidado a curto e longo prazo, as mulheres dependem
de outras mulheres ou adolescentes para a tarefa de olhar os filhos. Olhar não é
necessariamente cuidar. Olham nos passeios, e as mães saem para suas atividades
de sustento, confiantes nessa vizinhança. Bruschini (1990)3 diz: Da mesma forma que o
parentesco, as relações de vizinhança foram verificadas no que diz respeito às formas de convivência,
cooperação, solidariedade e conflito. Das mulheres investigadas, quase todas afirmaram
que o convívio com seus parceiros estavam em via terminal ou não existe mais, ha-
vendo muita violência no convívio família e comunidade.
A prática de mulheres apoiarem outras da mesma comunidade mostra que a
ausência dos companheiros no processo de criação dos filhos está sendo substituída
pelas relações de amizade e companheirismo, reflexo de uniões que foram temporá-
rias ou descompromissadas. Resultado de um conjunto de fatores que ao longo dos
anos têm interferido no cotidiano delas, dos meios de produção local, na herança
que veio do período colonial e do processo de coisificação das mulheres. Na história
do estado da Bahia, a produção açucareira trouxe a visão de lucro dos senhores atra-
vés da exploração da mão de obra escravista feminina e da exploração do trabalho
infanto-juvenil na cultura elástica.4
Uma das formas de luta dessas mulheres é a economia compartilhada, princípio
básico de organização e união para distribuição coletiva, na qual as mulheres se
associam, dividem e lutam pelos direitos ao capital, especialmente as marisqueiras e
fumageiras que conseguiram criar associações na comunidade, o que não é o caso
das britadeiras. A aplicação desses princípios une o grupo que passa a produzir com
os mesmos objetivos, criando estratégias dedefesa e apoio mútuo, instituindo o que
chamamos de empoderamento.

3. Cf.Cristina Bruschini. Mulher, casa e família: cotidiano nas camadas médias paulistanas. São Paulo:
Vértice, 1990, p 168
4. Cultura elástica é um termo utilizado nos estudos sobre a vida no período republicano aplicado aos
negros que vendiam mingaus, garrafas, bolos, acarajés, etc, para compra da carta de alforria ou mesmo após
a libertação dos escravos, meio de sobrevivência.

194
Gênero Trans e Multidisciplinar

2. O USO DA MÃO DE OBRA FEMININA NOS


MEIOS DE PRODUÇÃO DO RECÔNCAVO DA
BAHIA
O empoderamento das mulheres na força de trabalho na região vem aumen-
tando de forma consistente e significativa nas últimas décadas. As condições em
que essas mulheres trabalham, em contato direto com a natureza, lavando roupa,
manuseando mariscos, plantando e quebrando pedras, revelam certa insatisfação,
estimulando a vontade de a pessoa viver e lutar pela sobrevivência da família. Apesar
de sentirem orgulho da profissão, muitas ainda demonstram vergonha pelo serviço
duro que exercem, pois alem da poeira que solta das pedras, os cortes nas maris-
cadas, os vários tipos de doenças e acidentes estão presentes em suas atividades. O
trabalho transforma a natureza para obter sustento e bem-estar, criando entre as
pessoas relações sociais que marcam o cotidiano. No entanto, às vezes o trabalho é
algo penoso, forçado, um esforço obrigatório, pouco reconfortante e sem lucrativi-
dade. E isso pode ser percebido na origem da palavra que vem do latim tripallium,
o nome de um instrumento com o qual se castigavam os escravos no tempo do
Império Romano.
E quando se fala em má remuneração, desgaste físico e local adequado para o
desenvolvimento do trabalho, todas as entrevistadas possuem a mesma opinião, ou
seja, falam da falta de condições de alimentos, água e luz para a sobrevivência, na
maioria das vezes pela falta de outras oportunidades, dificultando a vida nas peque-
nas casas ou ranchos5 que não tem estrutura física adequada. Juntando-se a isso, as
péssimas condições de trabalho no árduo trabalho cotidiano dessas guerreiras. Para
Maria, “a marisqueira é acostumada com os incessantes cortes e mesmo aprendendo a profissão
desde pequena com a mãe, quando se deita o corpo está exausto, os olhos começam a arder e a cabeça
a doer”. O depoimento mostra que as formas de trabalho, os sinais de escravidão se
manifestam diretamente em práticas de vida, no cotidiano dessas mulheres.
Mas o que motiva essas mulheres a trabalhar desde cedo, catando, debulhando
e vendendo mariscos, quebrando pedras e trabalhando no fumo? Seria a falta de
outras atividades que possam gerar renda para a subsistência diária? Seria a condição
de ser mulher? Maria conta: “comecei a catar mariscos porque não tem trabalho, então essa é
nossa única alternativa para sustentar nossa casa. Ninguém vem aqui para nos ajudar, só apare-
cem em época de campanha política e depois somem”, acrescenta a marisqueira.O trabalho da
memória é, portanto, também uma dinâmica de presentificação do acontecido em
espaços e tempos. A narrativa dessas mulheres está atrelada às suas memórias, a for-
ma como construíram suas identidades nas relações sociais, no tempo, na história,

5. Ranchos: casas pequenas e sem estrutura básica.

195
Maria de Fátima A. Di Gregorio

nas experiências pessoais e coletivas. As diversas formas de expressar-se à categoria


Memória remete à sua etimologia, estreitamente ligada ao fato do narrar, do lem-
brar, recorrendo ao uso de reminiscências e enigmas pelo ato de testemunhar o que
se vive ou viveu, para que esses não se percam ao longo dos anos.
Mulheres que contam as más condições de vida6, os baixos salários, a luta pela
sobrevivência dentro dos padrões míninos, os abandonos, a capacidade de luta, de-
monstrando carências e formas de violência pela coerção física e moral, pela falta
de dignidade humana que cerceia suas ações e condições de trabalho. Nesse sentido,
pode haver escravidão mesmo sem o trabalhador ter consciência dela?7 Ora, o traba-
lho escravo continua sendo um tema de sérios problemas para a Justiça Trabalhista
Brasileira, e quando se fala no mundo do trabalho feminino, verifica-se a afronta
direta aos princípios e às garantias individuais previstos tanto na Declaração Uni-
versal dos Direitos Humanos quanto na Constituição Federal. A escravidão, vista
a partir de diversos aspectos inseridos em questões no cotidiano dessas mulheres,
ainda é algo para ser denunciada em plena mudança de século e muitas se dão conta
da situação em que vivem.
No cotidiano, mulheres que acordam cedo e acendem seus fogões para fazer
comidas sem muitas opções de ingredientes, lavam roupas e seguem para locais dis-
tantes de suas casas, uma desafiadora tarefa: quebrar pedra, catar mariscos, plantar
fumo e enrolar charutos, são exemplos de atuação delas na dinâmica socioeconô-
mica da região do Recôncavo da Bahia. Com efeito, verifica-se que essas atividades
perderam sua antiga importância econômica, no entanto, essas atividades persistem
no local como forma de manutenção de grupos empresariais que ainda exploram
as atividades.
Famílias que sofrem de exploração da mão de obra e que produzem para o auto-
consumo e sobrevivência sem nenhuma forma de salário justo. Em sua teoria, Karl
Marx (1985) reconhece o trabalho sob o modo de produção capitalista, estranhado
e alienado, na medida em que suas relações sociais de produção colocam em contra-
posição capital e trabalho. E historicamente, a dinâmica das forças produtivas e as
relações entre grupos são desveladas pela exploração dessa mão de obra feminina.
A região do Recôncavo da Bahia proporciona uma contradição dialética instaurada
na forma de apropriação do trabalho, em busca do capital, e quem dele se apropria
legitima o poder de grupos. Nesse cotidiano construído a partir da relação mulher,
espaço de trabalho, exploração e sobrevivência familiar, estão fixados os fundamen-

6. Normalmente qualquer atividade de saneamento tem os seguintes objetivos: controle e prevenção de


doenças, melhoria da qualidade de vida da população, da produtividade do indivíduo, além de facilitar a
atividade econômica.
7. Cf. Souza Martins. A escravidão nos dias de hoje e as ciladas de interpretação. In: Trabalho escravo no
Brasil Contemporâneo..

196
Gênero Trans e Multidisciplinar

tos do desenvolvimento regional e local, cuja participação da mão de obra feminina


é relevante e sem ela seria praticamente impossível a permanência dessas atividades.
Buscar a visibilidade da vida social a partir dos aportes conceituais de Norbert
Elias (1990) em seu atento aos desafios do processo de investigação social, quando
este chama atenção para o fato de que há sempre movimentos, fluxos, descontinui-
dades gerando sentimento de perplexidade diante de configurações que se mostram
nas relações sociais.

E se quatro pessoas se sentarem à volta de uma mesa e jogarem cartas, formam


uma configuração. As suas ações são interdependentes. Neste caso, ainda é pos-
sível curvarmo-nos perante a tradição e falarmos do jogo como se este tivesse
uma existência própria. É possível dizer: “O jogo hoje à noite está muito lento!”.
Porém, apesar de todas as expressões que tendem a objetivá-lo, neste caso o de-
curso tomado pelo jogo será obviamente o resultado das ações de um grupo e
indivíduos interdependentes. Mostramos que o decurso do jogo é relativamente
autônomo de cada um dos jogadores individuais, dado que todos os jogadores
têm aproximadamente a mesma força. Mas este decurso não tem substância, não
tem ser, não tem uma existência independente dos jogadores, como poderia ser
sugerido pelo termo “jogo”. (Elias, 1990, p 141-142)

Analisar essas relações no campo empírico, os modos de produção dessas mu-


lheres é perceber que elas constroem suas identidades num jogo das relações sociais,
nas relações interpessoais, na configuração estabelecida entre grupos. O elemento-
-chave para o autor é o jogo, que se volta para o conjunto de regras, mas para
combinação provisória inserida na dinâmica das relações sociais. A configuração
seria, portanto, uma abrangência relacional, o modo de existência do ser social e a
possibilidade conceitual de aproximação às emergências do cotidiano. Hall (2002)
mostra que nessas relações,

A identidade preenche o espaço entre o “interior” e o “exterior”- entre o mundo


pessoal e o mundo público. O fato de nós projetarmos a “nós próprios” nessas
identidades culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e
valores, tornado-os “parte de nós”, contribui para alinhar nossos sentimentos
subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural.
A identidade então costura (ou, para uma metáfora médica, “sutura”) o sujeito à
estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habi-
tam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis. (Hall, 2002:
p. 11-12)

Se as identidades resultam de processos histórico-sociais e, portanto, constru-


ídas nas interações sociais, a dinâmica identitária configura-se num jogo de per-
tencimento a um determinado grupo com peculiares e formas de comportamento

197
Maria de Fátima A. Di Gregorio

que são passadas por gerações, acrescida ao desejo de luta pela vida. A prática das
marisqueiras, charuteiras e quebradeiras de pedras não significava apenas uma ação
de produção. Estas traduzem a incorporação de novos elementos culturais adquiri-
dos pelas mulheres em seus espaços, associando-se ao universo cultural do campo
ao qual pertencem.
Dessa forma, a partir do encontro do universo cultural de suas atividades, as
mulheres (re) constroem suas identidades num cenário cuja característica marcante
é a relação de exploração, de abandono e de resistência e preservação das relações
de proximidade entre avó, mãe, filhas, vizinhas que se organizam e criam o empo-
deramento feminino. A matrifocalidade − característica encontrada nesses grupos
−, está diretamente ligada ao fato de essas mulheres se agruparem em atividades de
produção cotidiana em suas jornadas, na praça ou no mar, na igreja ou na rua, mos-
trando ações que tem um significado e valores entre os espaços públicos e privados.
Os princípios de expansão da matrifocalidade têm como base um esquema
bipartido: de um lado estão os homens que vêm e vão, e do outro, a dinâmica da
participação das mulheres no grupo. Eles vão embora por muitos fatores: a busca
pelo trabalho, a miséria em casa, a falta de interesse pela família no seu prover e
cuidar, aventurando-se. Para a mulher que foi abandonada não restam muitas es-
colhas. Se vê obrigada a trabalhar para o sustento dos filhos e exercer o papel de
pai/mãe. Por trazer uma sensibilidade aguçada, a mulher sente dificuldades para se
reerguer da decepção, e, na maioria das vezes, acaba optando por criar sozinha os
filhos do relacionamento.

3. A INSERÇÃO DAS MULHERES NO


TRABALHO E REPRESENTATIVIDADES
Contudo, a inserção dessas mulheres no mercado de trabalho provocou alte-
rações significativas no cotidiano da família. Sarti (1997)8 reforça esse pensamento
afirmando que esse processo social adquiriu dimensão estrutural no mundo con-
temporâneo com o desenvolvimento de métodos anticoncepcionais mais seguros,
um dos fatores que mais radicalmente contribuiu para a redefinição do lugar social
da mulher, e consequências se mostram nas relações familiares, modificando sua
organização, papéis. Se as atividades femininas têm aumentado em porcentagem na
participação social, prevalecendo como forte força de trabalho, no caso do Recôn-
cavo da Bahia, é sentido os efeitos do processo de abandono dos companheiros, das
formas de exploração: salarial, a prostituição pelo turismo no local, implicando em
luta pelo reconhecimento das formas de trabalho, abrindo espaços para que a escra-

8. Cf. Sarti, Os filhos dos trabalhadores: quem cuida das crianças? In: Bretas, Trabalho, saúde e gênero: na
era da globalização, p. 51-60.

198
Gênero Trans e Multidisciplinar

vidão e exploração permaneçam na região. E assim grupos que lideram o mercado


se apropriam desta mão de obra, cristalizando os padrões de exploração, violando
os Direitos Humanos.
Mulheres carregando em latas quilos de pedras vendidas em metro ou nas pró-
prias latas, culminando em recebimento irrisório de 50 centavos por lata, marisquei-
ras vendendo seus produtos para atravessadores comerciais, fumageiras com baixos
salários. Um árduo dia de labuta dessas mulheres do Recôncavo da Bahia, contra-
pondo-se à delicadeza de quem seleciona mariscos e de quem enrola os charutos de
fumos da região. Mulheres que participam desde o plantio até a colheita e comer-
cialização dos produtos, favorecendo a sustentabilidade de grande parte das pes-
soas que ali residem. Colhem folhas inteiras de tabaco que são utilizadas de forma
cilíndrica e após enchimento é colocado um papel em sua volta, que repousa quinze
dias para o molde. O papel utilizado atualmente substitui a antiga prensa de madeira.
E numa segunda etapa, retira-se o papel, quando são cortadas as extremidades do
charuto, fazendo o capeamento com a colocação da última folha do fumo, chamada
de capa. Essa folha necessita de uma produção especial, repousando mais quinze
dias em uma estufa até a fase da embalagem,na qual se insere o papel celofane e
um anel com finalidade voltada manter para a manutenção da umidade do produto
encaixotado, que é enviado às melhores tabacarias. Saberes passados de geração em
geração objetivando a reprodução de antigas práticas sociais da família atreladas à
unidade produtiva de subsistência e não meramente na acumulação de capital. Esses
processos de trabalho se caracterizam pelo estabelecimento de relações produtivas
com base na reciprocidade das obrigações familiares e não com base em relações
salariais, diz Santos (1984). Relações que instituem representatividades nos meios de
produção, e identidades:
Na primeira representatividade − as quebradeiras de pedras ou britadeiras –,
cuja atividade cotidiana se mostra compreendida desde a luta pela criação de filhos
e o sustento da família até a inserção no trabalho brutal de deslocamento a pé para
locais de difícil acesso pelas pedras. Grande parte das quebradeiras de pedras tem
vergonha da profissão e é sem dúvida um serviço muito duro, além da poeira que
solta das pedras causando vários tipos de doenças, somando-se ao risco de aciden-
tes. Suas atividades são estabelecidas de mãe para filha, demonstrando forma legal
de sobrevivência diante das limitações de escolaridade, da falta de oportunidades
para a construção de relações de trabalho numa sociedade tão dicotômica como a
brasileira, onde os serviços públicos nem sempre garantem a consolidação de medi-
das que apoiem essas mulheres.
Na segunda representatividade − as marisqueiras da região –, mulheres que
desenvolvem uma prática catando pequenas conchas nas areias das praias, das quais
são retirados mariscos como chumbinhos ou sarnabitingas. Essa atividade envolve
relações de trabalho em parceria, perpetuando uma tradição referenciada pela luta

199
Maria de Fátima A. Di Gregorio

e sobrevivência. Uma das alternativas para melhorar a qualidade de vida das maris-
queiras seria a criação de uma cooperativa para facilitar a comercialização da carne
do crustáceo e, com isso, agregar valores ao produto, pois a ausência de políticas
públicas para a pesca artesanal e para a garantia dessas unidades de conservação tem
sido notória.
Na terceira representatividade − as charuteiras ou fumageiras do Recôncavo
como parte significativa e integrante desse cenário, não apenas vistas como operárias
das fábricas, mas como mulheres que trabalharam desde cedo, vivendo fora de casa
e recebendo valores que nem sempre cobrem as despesas, tendo como face perversa
da fumicultura, o emprego de mão de obra infantil associado ao empobrecimento
das famílias, além do uso extensivo do trabalho familiar no cultivo do tabaco. Nesse
sentido é que se percebe quanto o dinheiro e o emprego representam para elas.
O Recôncavo da Bahia, a partir dessas representatividades, definiu-se como
território de luta pela sobrevivência dessas mulheres ativas, muitas advindas de his-
tórias de quilombos existentes no local, reconhecendo-se remanescentes de grupos
que delimitaram esse território revelando dinâmica em que as identidades se arti-
culam e se transformam em espaços de cultura e tradição. Os enfrentamentos com
grupos de diferentes interesses, as difíceis relações entre proprietários fundiários,
investidores privados e sua força de trabalho constituem grande desafio. A força do
trabalho é condição de vida, de construção de identidades locais e a nacional.
Pensar na labuta pela sobrevivência nesse local, em terras que não são suas, na
família matrifocal, na sociedade inserida num contexto capitalista, é pensar como os
valores se mostram presentes no cotidiano delas. Tais questões mostram a realidade
dessas mulheres, as identidades construídas a partir desse contexto, o sonho de en-
contrar outras possibilidades de trabalho.
Norberto Elias (1990)9 mostra que a constituição das identidades é atividade
socialpor excelência que envolve dois segmentos: o individual e o coletivo ligado à
tradição. O modelo de identificação desses grupos com a cultura local, com gera-
ções passadas, são emblemas identitários. Preservar a identidade no local é perma-
necer no grupo, se reconhecer como tal, compartilhando a identidade do trabalho,
a posição e participação na comunidade – participação que está ligada à construção
da cidadania.
Se as identidades têm como uma das características a posição dos sujeitos, essas
refletem a inserção e participação num tecido social, a exemplo da identidade po-
lítica que diz respeito às formas de vida que impõe a si mesmo para sobrevivência
dentro de num sistema desigual. Essa posição tende a suprir a existência do sujeito
e varia de acordo com o lugar e o momento histórico do qual se faz parte.Essa pro-
jeção mostra o lugar que ocupamos no mundo social e cultural, a estrutura em que

9. C Norberto Felias. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

200
Gênero Trans e Multidisciplinar

se vive e percebida, onde as identidades vão sendo (re)construídas, uma vez que elas
mudam de acordo com a forma como os sujeitos consentem e tutelam a participa-
ção na sociedade.

4. A INSERÇÃO DAS EMPRESAS NO ESPAÇO


DO RECÔNCAVO DA BAHIA
Na década de 1950, o Recôncavo ingressou no círculo das áreas destinadas a
investimentos federais e a chegada da CHESF – Companhia Hidroelétrica do São
Francisco – e da Petrobras – Petróleo Brasileiro S.A – com seus territórios de re-
finaria ali situados. Região sob grande transformação nos processos econômicos e
aumento populacional de processos migratórios de outras regiões do país, embora a
conjuntura estivesse ainda presa à estrutura social arcaica e dominadora. Com seus
campos de pesquisa e lavra, a Petrobras esvaziou matas, roças e fazendas e cortou o
Recôncavo com estradas que ignoraram seus velhos caminhos. Criou uma riqueza,
mas, foi a partir desse cotidiano de sobrecarga desses espaços populacionais, que
a região revitalizou-se e as relações com o ambiente foram alteradas na medida em
que surgiu a prostituição no local e atividades elásticas com vendas de produtos
alternativos e a dinâmica da exploração de serviços. Junto a isso, surgiram os proble-
mas de saúde, doenças e a saída de muitas mulheres para outras atividades na região
(Pinto, 1998, p 12-23).
Nas décadas de 1950 e 1960, o fumo dominou a região, e com o aumento do
turismo local, os mariscos foram buscados pelas redes de restaurantes que comer-
cializavam comidas típicas, acabando por trazer uma nova estrutura local e as pedras
subiram muito de preço pela comercialização na construção civil. O resultado dessa
significativa mudança foi que, economicamente, os efeitos de exploração feminina
continuaram e se intensificaram nos últimos anos, trazendo problemas variados na
velha paisagem do Recôncavo. Passado e presente se confundem nas expressivas
transformações econômicas e culturais, processos emergentes nas formas de pro-
dução na região, mulheres de camadas populares com traços de dependência do
modelo socioeconômico local.
Surge uma nova concepção de desenvolvimento e organização territorial no Re-
côncavo da Bahia e uma afirmação cultural, fazendo-se necessário repensar progra-
mas de desenvolvimento que se mostrem focalizando a complexidade do trabalho
na região, garantindo a comercialização regional com salários mais dignos. A falta
de infraestrutura nos programas e o patamar de desigualdade social representam
algo extremamente complexo e distante das políticas públicas brasileiras. Contudo,
o governo do estado da Bahia se apropria da imagem do Recôncavo para fomentar
turismo local, pois essa se constitui região de uma beleza rara, influenciada pela re-

201
Maria de Fátima A. Di Gregorio

ligiosidade misturada com magia, região geográfica localizada em torno da Baía de


Todos os Santos. Área que abrange a Região Metropolitana de Salvador, cidades im-
portantes como Candeias, São Francisco do Conde, Madre de Deus, Santo Amaro,
Cachoeira, Pedra do Cavalo, São Félix, Maragogipe, Jaguaripe e outras importantes
cidades que mantém a tradição voltada para a dinâmica de exploração deplantios de
laranja, cana-de-açucar, mandioca, algodão, fumo, além das práticas pesqueiras, ir-
mandades presentes numa região entre vasta vegetação e áreas cobertas por grandes
blocos de pedra.
Como assinala Milton Santos (1990)10,

A unidade do Recôncavo provinha e provém [1959] das relações mantidas de lon-


ga data entre suas várias porções com vocação e atividade diferentes (Recôncavo
canavieiro, Recôncavo fumageiro, Recôncavo mandioqueiro e da cerâmica, sem
falar nas zonas pesqueiras beirando mais proximamente o litoral, e do Recôncavo
ao norte da cidade, servindo-a de lenha e carvão vegetal. (Santos,1990, p. 59)

Diante das entrevistas realizadas, o registro dessas atividades com a presença


de mulheres cujas atividades contaram que a labuta diária nas diversas atividades
tidas como cansativas, afirmando Rosália que é marisqueira: “há grande esforço físico
e desorientação dentro dos mangues, tendo elas que percorrerem horas na lama para encontrar o
caminho de casa, além das péssimas condições de trabalho e sendo assim, a mariscagem em grupo
é bem mais segura”. Já para a quebradeira de pedras Maria das Dores, torna-se de
fundamental importância “a ida para locais perigosos com cobras e escorpiões, não só para
a sobrevivência dos grupos familiares, mas porque não há muita fiscalização e cobranças da pro-
dução, preferindo ficar livres para o trabalho, já que tendo em posse a matéria-prima, suas ações
podem ser mais autônomas”.
As charuteiras têm um trabalho que remonta a mais de três gerações na mesma
família, como é o caso da charuteira entrevistada que disse: “faço isso porque minha mãe
fazia e daí é que pode me criar e continuo o trabalho com muita dedicação”. As artesãs, depois
de transformar folhas secas em charutos, anotam seu nome e deixam o lote para o
crivo de Rosália11. “Se encontrar algo fora do padrão, eu sei pra quem devolver, revela a artesã
das folhas que, pela larga experiência, sabe exatamente o que os apreciadores de charuto esperam ao
abrir uma caixa”. É simples, mas funciona. A cada série de charutos, poucos são bar-
rados no controle de qualidade. O estilo artesanal de fabricação de charutos comum
nas cidades do Recôncavo Baiano, desde as mais simples residências às fábricas de
grande porte, encontrou nas mãos das mulheres a sua expressão de arte pela ciência
com que esmera a produção. A informalidade e a quase familiaridade observadas no

10. Cf.Milton Santos. O Espaço Total de nossos dias. In: Por uma Geografia Nova: da crítica da Geo-
grafia a uma Geografia Crítica. 3.ed. São Paulo: Hucitec, 1990.
11. Rosália é marisqueira da Jaguaripe e se orgulha de sua profissão.

202
Gênero Trans e Multidisciplinar

interior da fábrica não tiram a hierarquia e a liderança: “As mulheres que trabalham na
produção não podem reclamar comigo caso algum charuto precise ser refeito”. É preciso sempre
muito capricho e uma das funções de uma charuteira é ter delicadeza no tocar as
folhas do fumo.
Mulheres que lutam para o desenvolvimento econômico e cultural da região,
tornando-se símbolo de luta, força e trabalho num território onde as forças hege-
mônicas de grupos lideram o comércio regional exercendo pressões nas relações
de trabalho local. Mas o território não pode ser visto apenas como a projeção das
relações sociais num espaço, mas a projeção desse espaço nas relações sociais. Sobre
territórios, define Souza (1995)12:

Territórios, que são no fundo antes relações sociais projetadas no espaçoque es-
paços concretos (os quais são apenas os substratos materiais dasterritorialidades)
– (...) podem (...) formar-se e dissolver-se, constituir-se e dissipar-se de modo
relativamente rápido (ao invés de uma escala temporal de séculos ou décadas,
podem ser simplesmente anos ou mesmo meses, semanas ou dias), ser antes
instáveis que estáveis ou, mesmo, ter existência regular mas apenas periódica, ou
seja, em alguns momentos – e isto apesar de que o substrato espacial permanece
ou pode permanecer o mesmo. (p. 87)

É sob a ótica do olhar territorial que se analisa a condição de ocupação dessas


mulheres trabalhadeiras: marisqueiras, quebradeiras de pedras e côco – que nascem,
crescem, têm seus filhos no Recôncavo e nas mesmas condições: recebem a profis-
são de geração a geração, preservando a tradição familiar, construindo suas identida-
des entre relações e conflitos, empoderando-se. E na perspectiva de territorialização
ou processo de apropriação do espaço através de ações cotidianas, surge um espaço
de territorialidade que é resultado da ação, havendo uma dinâmica reproduzida e
preservada pela tradição do trabalho. Como poderiam sobreviver essas mulheres
sem a atividade que lhes ensinaram? Atividades que lhe dão uma referência cultural
por vários séculos.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No contexto cotidiano dessas mulheres, as identidades se relacionam com a me-
mória social dos grupos e pelas atividades aprendidas e passadas pela tradição pre-
servada entre gerações, definindo a identidade de referência, embora abrindo ou não
um espaço para o empoderamento feminino. A tradição preservada contribuiu para
o sentimento de pertencimento e execução de papéis exercidos na sociedade pelos

12. Cf. Souza, O Território: sobre espaço e poder, autonomia edesenvolvimento. In: Castro; Costa; Corrêa,
Geografia: Conceitos e Temas.

203
Maria de Fátima A. Di Gregorio

membros da família, e no Recôncavo, manter a identidade de ser quebradeira de pedras,


de marisqueira, de charuteira é uma missão ainda de orgulho, apesar do sonho de buscar
outras alternativas de vida pelas duras condições de atuação nos meios de produção.
Reconhecer-se como trabalhadora é o mesmo que indicar pertença ao grupo, ao lo-
cal, segurança de origem, de identidade, de história. Pensar em identidade individual
seria o mesmo que quebrar laços de pertencimento, dando descontinuidade a essa
dinâmica. Portanto, as identidades dessas mulheres são construídas através da parti-
cipação em práticas sociais, destacando-se, desse modo, a importância social desses
grupos femininos sobre as comunidades, os meios de produção local, o modo a
entender as dinâmicas sociais e territoriais que animam esses espaços e o próprio
capital socioeconômico do Recôncavo da Bahia.
Identificou-se que as relações de gênero perpassam nessas questões, uma vez que
as mulheres, na grande maioria, são discriminadas, exploradas, tornando-se campo
acoplado para as desigualdades, não só nas relações de trabalho, mas de direito, cons-
tituindo a marca de luta em defesa dos Direitos Humanos. Às mulheres, cabe uma
maior reflexão sobre o papel feminino nas atividades familiares, produtivas, além da
conscientização e necessidade efetiva de discussões sobre o tema. E ao governo, a
implantação de consolidação de políticas mais voltadas para a melhoria de qualidade
de vida desses grupos, analisando as formas de trabalho de cada região, tornando-se
possível a garantia e o reconhecimento social desses grupos explorados.
Nesse sentido, o desempenho diferencial no trabalho, as legislações para tra-
balhadores, as novas rotas de inserção no mercado de trabalho, as lutas femininas,
poderão ser um espaço com vozes ouvidas, propriciando diálogo social e superação
desse quadro social que se mantém por séculos na historiografia brasileira.

REFERÊNCIAS

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São Paulo:Edições Vértice, 1990.
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PERRENOT, Michelle. Minha história das mulheres. Trad. Angela Correia. São
Paulo: Contexto, 2007.

204
Gênero Trans e Multidisciplinar

PINTO, Luiz Aguiar Costa. Recôncavo Laboratório de uma experiência huma-


na. In: BRANDÃO, Maria de Azevedo (org.) Recôncavo da Bahia: sociedade e
economia em transição. Salvador: Academia Baiana de Letras, Casa Jorge Amado;
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SANTOS, J. V. T. dos. Colonos do vinho: estudo sobre a subordinação do trab-
alho camponês ao capital. São Paulo: HUCITEC, 1984.
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Fundação Casa de Jorge Amado; Academia de Letras da Bahia; Universidade Fed-
eral da Bahia, 1998. (Original datado de 1959)
SARTI, C.A. Os filhos dos trabalhadores: quem cuida das crianças? In: BRETAS,
A.C.P. Trabalho, saúde e gênero: na era da globalização. Goiânia, 1997
SOUZA, Marcelo José Lopes de. O Território: sobre espaço e poder, autonomia
edesenvolvimento. In: CASTRO, Iná Elias de. COSTA, Paulo César da Costa.
CORRÊA, Roberto Lobato. Geografia: Conceitos e Temas. Rio de Janeiro: Ber-
trand Brasil, 1995.
SOUZA MARTINS. A escravidão nos dias de hoje e as ciladas de interpretação.In:
Trabalho escravo no Brasil Contemporâneo, São Paulo:CPT/Loyola,1999.
TURNER, J. H. Sociologia: Conceitos e Aplicações. São Paulo: Pearson Education
do Brasil. 2000.

205
CAPÍTULO XIV
MEU MUNDO É MELHOR ASSIM, DE
TERESA CRISTINA: NOTA DE
PESQUISA SOBRE O SAMBA
CARIOCA E MULHER
Núbia Regina Mereira1

Cantar (Teresa Cristina)


Cantar/Desnudar-se diante da vida/Cantar é
vestir-se com a voz que se tem/Achar o tom
da alegria perdida/E não ter que explicar pra
ninguém/A razão/Encharcada de sorriso
e pranto/No cantar, a lembrança se cria/E
envelhece de repente/Vai solta no ar/Canto
para amenizar/Grande dor que me traz/O
sorriso de alguém/Se a minha escola queri-
da/Cruzar a avenida/Eu canto também/No
canto/Vou jogando a minha vida pra você/
Por isso, fecho os olhos pra não ver.

INTRODUÇÃO
O título do artigo é uma brincadeira de junção entre um dos primeiros traba-
lhos da sambista Teresa Cristina, denominado O Mundo é Meu Lugar, gravado no ano
de 2005.E também o seu mais recente trabalho, Melhor Assim, DVD gravado em
2009. A intenção do texto é apresentar a trajetória da sambista carioca Teresa Cristi-
na entendendo que só é possível fazê-lo a partir da inserção da artista no mundo do
samba. Interessa muito mais compreender as redes de interdependências que for-
jaram as modificações no samba carioca e possibilitaram o aparecimento, nos anos
1990, de grupos de jovens compositores de samba, dentre os quais Teresa Cristina.
Na primeira parte do texto faremos algumas incursões históricas que se debruçaram
em analisar as transformações no universo do samba carioca desde sua constituição
como gênero urbano e nacional até a década de 1990. Na segunda parte, exporemos
a trajetória da sambista entendendo-a como fruto das interdependências sociais,

1. Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1995); mestre em Socio-
logia pela Universidade Estadual de Campinas (2007); professora assistente da Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia.

207
Núbia Regina Moreira

políticas e culturais que provocaram deslocamentos dos valores, as hierarquias entre


os vários grupos de pessoas na sociedade brasileira e, consequentemente, no samba.

I
É apartir da década de 1870 que a palavra “samba” começa a ser registrada na
cidade do Rio de Janeiro. Assim fazendo, ela começa a diluir as fronteiras que se
mostravam tão nítidas até então; e assim, pouco a pouco, “o samba já não será mais
só da Bahia, nem só da roça, nem só de negros” (Sandroni, 2001, p. 90).
Inicialmente considerado como dança, festa, o samba do Rio de Janeiro tem
sua origem, segundo Sandroni, na casa da Tia Ciata2. Essa famosa baiana realizava,
em sua casa, festas que reuniam sambistas, tendo inclusive sido o local onde fora
composto Pelo Telefone (1916, gravado em 1917), considerado a primeira composição
do gênero. Nesse período, eram os migrantes oriundos da Bahia que gostavam de se
reunir em torno da dança, da bebida e dos cantos acompanhados de instrumentos
como pandeiro, chocalho, mas contavam com a presença de Pixinguinha, Donga e
Sinhô, assíduos frequentadores dessas festas.
Porém, o chamado samba urbano apresenta novo formato a partir das criações
dos sambistas do bairro do Estácio de Sá que, com o bloco carnavalesco “Deixa Fa-
lar”, introduziram objetos de percussão como tambores graves (surdos), tambores
agudos (tamborins) e tambores de fricção (cuícas) (Cf. Sandroni, 2001).
A Deixa Falar era uma das inúmeras agremiações carnavalescas que surgiam a
cada ano nos bairros localizados na zona portuária da cidade. “A Praça Onze, nos
anos 1920, funcionava como uma espécie de convergência de todo o mundo do
samba durante o carnaval. Ranchos, blocos, cordões que perambulavam pela cidade,
e em algum momento passavam na Praça Onze” (Fenerick, 2002, p. 108), região
considerada subúrbio, embora estivesse sua localização próxima à região central da
capital federal. A separação entre as zonas suburbana e central do Rio de Janeiro
obedecia às transformações espaciais provenientes da política de modernização que
formataria uma sociedade civilizada aos moldes capitalistas. Entenda-se que, naque-
le momento, o significado da lógica capitalista-industrial era aderir ao mundo do
trabalho assalariado, instaurando novas modas e comportamentos e intensificando
a circulação da produção (Abreu, 2003; Fenerick, 2002).
Anterior a esse período, no final do século XIX, as remodelações do centro do
Rio de Janeiro já se faziam notar. As transformações foram impulsionadas por uma
corrida pela inserção do país à ordem capitalista, a qual requeria um ordenamento
2. Nascida em Salvador, em 1854, presumivelmente de escravos forros, isto é, libertos após conquista ou
compra de alforria, Tia Ciata chegou ao Rio de Janeiro em 1876. Lá se casou com João Batista da Silva,
também negro e baiano que, em Salvador, chegara para cursar dois anos de Faculdade de Medicina e, mais
tarde, conseguiu emprego no gabinete do chefe de polícia da capital federal (Cf. Moura, 1995).

208
Gênero Trans e Multidisciplinar

espacial da capital federal, que “simbolizasse a integração efetiva do País na divisão


internacional do trabalho” (Abreu, 2003, p. 220).
Esse processo de remodelação estava presente no discurso das classes domi-
nantes e do Estado sob a forma de combate aos cortiços, que funcionavam como
moradias de trabalhadores livres ou escravos de ganho. A condução do processo de
desaparecimento dos cortiços e controle da zona central da cidade era feita através
das denúncias da Inspetoria Geral de Higiene e de outros órgãos, que tinham como
objetivos, além de controlar essa parte do espaço urbano, também diminuir o “foco
potencial de agitações populares” presentes nos cortiços (Abreu, 2003, p. 212).
A nomeação do prefeito Pereira Passos pelo então presidente Rodrigues Alves
(1902-1906) impôs àquele a responsabilidade de intervenção sobre o espaço urbano,
promovendo, assim, um agudo processo de reurbanização da cidade carioca, cujo
foco se colocava para além do controle da habitação popular.
A modernização da parte central da cidade trazia o projeto de divisão do espaço
social, a construção de dois mundos, um das elites e outro dos grupos populares.
No entanto, apesar dos esforços empreendidos pelas elites locais, não foi possível
evitar a interação desses dois mundos.
Nesse contexto, o samba já contava com aproximação entre os grupos negro-
-mestiços e frações da população intelectualizada. As mediações eram, então, es-
tabelecidas num processo de aproximação e trânsito entre diferentes segmentos e
domínios sociais, resultando em interações de múltiplos estilos de vida.
A respeito do processo de legitimação do samba a ícone nacional, Leticia Vidor
Reis (2003) questiona as mediações estabelecidas entre os diferentes segmentos da
população como potencializadoras do processo de transformação do samba em
música nacional. Para a autora, o reconhecimento do samba como símbolo da bra-
silidade é impulsionado por um movimento que ocorre de fora para dentro do país;
há uma busca, por parte desse movimento exterior, das raízes negras nas manifes-
tações populares, o que impõe aos artistas locais uma aproximação àquelas raízes
até então desconhecidas. A prática de fazer samba se constituía como uma atividade
restrita ao mundo privado, que acontecia tanto nas casas das tias baianas como na
mansão dos Guinle, espaços de integração de diferentes classes sociais.
Ainda segundo a autora, a convivência entre esses dois mundos no espaço públi-
co não é “revelada, uma vez que significaria reconhecer o negro como ator político”
(Reis, 2003, p. 272); isso também afirmaria que a matéria-prima do samba e de outras
manifestações populares é negra. Como se vê, a associação entre música popular e
identidade étnica faz parte de uma operação complexa, muitas vezes orquestrada
por camadas intelectualizadas da população, que confere a esse gênero um valor de
autenticidade devido à sua ligação às classes inferiores, negros, mestiços e pobres3.

3. Fernandes (2010) demonstrou, em sua tese, o percurso de entendimento do registro de intelectuais


inventores de “autenticidade” do samba e do choro. O autor faz um estudo de longa duração através das
gerações de intelectuais classificados como a “inteligência da música popular”, ressaltando como eles con-
tribuíram para a atual feição do samba.

209
Núbia Regina Moreira

Apesar das relevantes considerações de Reis, não podemos esquecer que o sam-
ba esteve associado à prática cultivada majoritariamente por negros que migravam
de outros estados para o Rio de Janeiro, no início do século XX. Mas as variações
do samba ao longo desse século resultaram de “diferentes cruzamentos, de expe-
riências individuais, musicais, culturais, ocorridos no cenário múltiplo das cidades
modernas” (Trotta, 2006, p. 56). A apropriação do samba pelos segmentos negros
e camadas baixas da população são práticas de afirmação e integração destas à so-
ciedade brasileira, momento de uma incipiente industrialização e de reordenamento
do espaço urbano, substituição do trabalho escravo pelo trabalho assalariado e o
desenvolvimento ainda que tímido de um mercado musical.
As construções da nação e de uma identidade nacional passam a ser uma questão
crucial a partir do fim do sistema escravista, quando emergem os ex-escravizados
negros como categoria social; era preciso que essa pluralidade racial, composta de
negros, brancos e indígenas, fosse arrolada numa identidade coletiva. Intelectuais
como Silvio Romero, Nina Rodrigues, Manuel Bonfim, Euclides da Cunha, Gilberto
Freyre, dentre outros, se empenharam na busca de “formulações de uma teoria do
tipo étnico brasileiro, ou seja, na questão da definição do brasileiro enquanto povo e
do Brasil como nação” (Munanga, 1999. p. 52). Para evitar confusão e a generalização
desses autores, é preciso ressaltar que Gilberto Freyre tem, na ideia de cultura, o fun-
damento para construir uma teoria de identidade nacional, e não as teorias raciológi-
cas que orientavam as construções de um tipo étnico nacional presentes nos demais
autores (Ortiz, 1994). Para ele, não cabia na discussão sobre a formação da nação
reiterar as teorias raciológicas, pois a emergência de uma sociedade urbano-industrial
e capitalista requeria outro paradigma para definir o elemento nacional. A adesão de
Gilberto Freyre ao culturalismo possibilita positivar o mestiço, resultado do mito das
três raças, ao tempo que mestiçagem se tornaria a melhor definição do nacional.
Vianna (2004, p. 151) afirma que a consolidação ou o processo de transforma-
ção do samba em gênero musical nacional foi fruto de relações entre grupos hete-
rogêneos, em que “muitos grupos e indivíduos participaram com maior ou menor
tenacidade, de sua ‘fixação’ como gênero musical e de sua nacionalização”. Porém,
ao reforçar a contribuição de heterogêneos grupos na conformação do samba como
música nacional, não dispensamos a perspectiva das lutas e disputas neste processo,
fato exemplificado nas tensões, nos anos de 1930, entre Donga e Ismael, Wilson Ba-
tista e Noel e, nos anos de 1950, entre os defensores do samba tradicional e aqueles
ligados à bossa nova (Werneck, 2007).
Foi também no decorrer das décadas de 1930 e 1940 que o samba ganhou legiti-
midade na mesma proporção que seus artistas iniciavam o ritmo de profissionaliza-
ção, redundando numa estrutura comercial, embora ainda permanecesse a discussão
em torno à adjetivação do samba ruim – feito por negros, mestiços e pobres – e

210
Gênero Trans e Multidisciplinar

samba bom – que era tocado nos salões. Essa divisão reverberava na consagração
precoce do samba como símbolo nacional (Fernandes, 2010).
Na década de 1960, a sociedade carioca respirava em termos culturais a atmos-
fera da bossa nova, que reunia jovens da classe média alta, politizada à esquerda.
Instituía-se novamente, nesse período, a discussão do tradicional ou autêntico no
samba, sendo que a relação entre “os setores intelectualizados da classe média e o
samba promove no mercado da música uma ampliação no alcance dos sambistas,
seja através de shows como Rosa de Ouro e Opinião ou de rodas de samba profis-
sionalizadas em diversos pontos da cidade” (Trotta, 2006, p. 76).
A exclusão temporária do samba no grande mercado da música, nos anos de
1980, levou alguns sambistas a ressuscitarem as rodas de samba, procurando conci-
liar tradição e mercado. A estratégia foi bem-sucedida e, aos poucos, os espaços se
expandiram nos subúrbios cariocas, atraindo a simpatia do grande público.
O endereço situado na Rua Uranos, 1326, no Bairro de Ramos, sede do bloco
carnavalesco Cacique de Ramos, abrigava uma roda de samba que resultaria no gru-
po musical Fundo de Quintal; seus integrantes inserem, nas suas reuniões, sambas
de partido alto e sambas de roda, que deixaram de ser tocados nas escolas de samba.
Para Moura (2004), os caciqueanos mantêm, em certa medida, as formas tradicio-
nais de fazer e executar samba, ao mesmo tempo em que disseminam e selam um
espaço de articulação entre o mercado e os pagodeiros.
Pereira (1995 apud Goes, 2007, p. 94) considera que o mercado do samba se am-
pliou com o movimento do pagode, ganhando espaço em outras cidades do país, a
exemplo de São Paulo, ao associar “a tradicional batucada e roda de samba misturan-
do elementos das duas expressões e fortalecendo a tradição musical do samba com
os elementos da modernidade: mercado, mídia e grande público consumidor” (p. 94).
A proliferação das rodas de samba no Rio de Janeiro adentra os anos 1990,
sedimentando-se como um gosto musical entre a camada jovem na sua variação de
samba de “raiz”. A literatura adverte que o samba e o choro vão se revitalizar com
o auxílio de pequenas gravadoras, formando um nicho de mercado. O mercado fo-
nográfico, ao longo dos anos 1990, sofre alterações técnicas, econômicas e estéticas
paralelamente ao surgimento de novas formas de comercialização de música por
meio digital (Góes, 2007). A alteração econômica, fruto da instabilidade da política
econômica do Plano Cruzado no final dos anos 1980 e início dos 1990, atinge a
indústria de bens duráveis com implicações negativas no setor de lazer e entreteni-
mento, levando inclusive à redução de consumo de disco. Aliada a essa instabilidade
econômica por que passara o país naquele momento, a ascensão de outros gêneros
musicais, a partir dos anos 1980, como o pagode, na sua variação romântica, o ser-
tanejo e o axé music abalaram o espaço do samba no mercado.
O pagode romântico, no seu tom paulista, segundo Trotta (2006, p. 167), viria a
operacionalizar uma síntese entre duas tendências estéticas: a sertaneja e o axé music,

211
Núbia Regina Moreira

“suprindo tanto as demandas românticas e introspectivas das canções de amor ser-


tanejas quanto a animação entusiástica da música de carnaval da Bahia”. O mercado
fonográfico se beneficiou com a grande vendagem de CDs dos meados dos anos
1990 em diante, possibilitado por uma nova conjuntura econômica4 e política, que
favorecia o retorno de um consumo mais ativo por parte da população, que tinha
diante de si um mercado musical esteticamente diversificado.
A popularização de acesso e consumo, a adesão à cultura por parte de “uma
elite jovem, dinâmica, globalizada”, o sucesso de vendagem das grandes gravadoras,
são contemporâneos ao processo de digitalização que promoveu um “barateamento
dos custos de produção e fabricação de discos” (Trotta, 2006, p. 168). Ao mesmo
tempo, gravadoras de pequeno e médio porte apareceram no mercado, utilizando a
aproximação mais direta com músicos e artistas que já estavam esquecidos.
Reacendem-se, assim, as classificações, as lutas simbólicas e as realocações em
torno do samba, explicitadas na dicotomia estética entre o samba de “raiz” – deno-
minação defendida pela mídia, intelectuais, jornalistas, artistas, e por uma parte dos
sambistas – e o pagode romântico, exemplificado pelo grupo paulista Raça Negra.
Segundo Trotta (2006), o pagode romântico é caracterizado por uma estética em que
o amor é abordado nas letras, melodias, refrões e na elaboração rítmica e harmônica.
O autor esclarece que essa tendência de cantar o amor pode ser associada a uma
influência do cancioneiro romântico brasileiro, a exemplo das modinhas seresteiras,
boleros, sambas-canções, que tiveram seu auge nos anos 1950. O sentimentalismo
romântico presente nesse estilo foi combatido por uma parcela intelectualizada da
classe média que, investida de uma sensibilidade moderna, difundia a tradição e a
modernidade como duas vertentes de consagração da música popular brasileira.
A aderência à temática romântica por alguns estilos musicais, como os já citados
acima, é também observada na vertente sertaneja dos anos 1980, período em que o
mercado musical divulga o trabalho de jovens artistas do mundo sertanejo, a exem-
plo de Chitãozinho e Xororó. O alcance de suas músicas, nesse momento, extrapola

os eventos do mundo rural, das feiras e do circuito mercadológico do interior; no


aspecto simbólico, a dupla inaugura no mercado musical um novo imaginário do
mundo rural, não mais identificado com o caipira atrasado, mas com fazendeiro
moderno e civilizado (Trotta, 2006, p.114).

Mas a obediência aos ditames do mercado no sentido de produzir um produto


de massa, aliada à incorporação de elementos da cultura pop, como eletrificação de
4. Estamos nos referindo ao processo que o Brasil está vivendo desde a abertura política até a eleição de
Fernando Henrique Cardoso como presidente da República. FHC, que tinha sido ministro da Fazenda de
Itamar Franco, sucessor de Fernando Collor, que foi destituído do cargo de presidente sob o processo de
impeachment. Durante o governo de Itamar Franco, com a implantação do Plano Real, houve um reaviva-
mento do consumo, tendo implicações positivas sobre a indústria fonográfica.

212
Gênero Trans e Multidisciplinar

teclados e guitarras, por exemplo, não garantiram aos artistas uma posição de pres-
tígio no campo da música popular brasileira.
O grupo paulista Raça Negra5 é apontado como o precursor de um estilo pa-
gode romântico e não faz nenhuma menção ao samba considerado “tradicional” e
nem ao seu congênere carioca Fundo de Quintal. O Raça Negra, portanto, demar-
ca uma diferença em relação aos outros grupos de pagode que surgem na capital
paulista nesse momento, que possuem na tradição uma referência (Trotta, 2006;
Fernandes, 2010).
Embora bastante diferenciado do pagode romântico, o samba também não fi-
cou imune à incorporação do tema amor em suas letras e à influência da cultura
pop. Nas décadas de 1930 e 1940, o amor já se fazia presente nas letras de sambas,
relatando o sentimento como uma carga de sofrimento afetivo envolvendo casais,
marcando negativamente o amor idealizado e impossível de ser concretizado. A in-
corporação dessa temática nas letras dos sambas produzidos nos anos 1980, como
os dos compositores pertencentes ao grupo Fundo de Quintal, era vista com des-
confiança, pois eles antes preferiam “tratar em sua obra, do próprio samba, de crô-
nicas urbanas, inventar personagens e descrever situações embaraçosas ou engra-
çadas”. As narrativas daí decorrentes tinham como cenários as rodas de samba, as
festas, espaços em que a temática do amor remetia aos elos de uma vivência coletiva,
diferente da narrativa do amor feliz concretizado por um casal, com um conteúdo
verbal “aproximando-se dos ditames comerciais do individualismo do mercado”
(Trotta, 2006, p. 122).
A variedade do mercado fonográfico dos anos 1990 sugere a presença de um
movimento de valorização do samba como possibilidade de arregimentar um públi-
co jovem. Particularmente, no Rio de Janeiro, no fim dessa década, o samba e suas
variações, como o pagode, vão se deparar com o funk. Abrimos aqui uma observa-
ção: em parágrafos anteriores, já citamos a presença dos gêneros musicais, como o
sertanejo e o axé music, que também vão disputar mercado com o samba; trazemos
para a roda, neste momento, o funk, por ser um movimento agregador de jovens
dos segmentos subalternizados, que utilizam a música como meio de questionar a
unidade nacional.
Segundo Yúdice (2004), a cultura funk brasileira dos anos 1970 era influenciada
pelo soul norte-americano e reunia jovens nos bailes em fins de semana. Esse mo-
vimento trouxe para o interior dos bailes funk a cultura negra, divulgada através de
artistas e figuras ligadas ao esporte. A apropriação do lema Black is beautiful como
símbolo do orgulho negro não se “popularizou” no meio funk, ao contrário do que
5. O grupo Raça Negra surgiu em 1983, no bairro da Vilha Nhocuné, zona leste de São Paulo, formado
por Luiz Carlos (compositor e cantor); Fininho (bateria); Fena (surdo); Fernando (tantã); Gabú (pandeiro);
Edson Café (tumbadora) e Paulinho (baixo). Outros grupos seguirão o mesmo padrão estético do Raça
Negra, a exemplo do Negritude Júnior, em São Paulo, Só Pra Contrariar, em Uberlândia. (Trotta, 2006).

213
Núbia Regina Moreira

aconteceu nos blocos afro-baianos, cuja conversão à negritude fazia parte da pedago-
gia da tomada de consciência das formas tradicionais afros de expressão. No entanto,
a preferência dos funkeiros pela música negra norte-americana se coloca, nos anos
1980, como elemento “diferenciador do rock, a música mais popular do Brasil entre
os jovens da classe média (que assumem a ‘brancura’ em sua versão brasileira)” (Yú-
dice, 2004, p. 177). Os jovens funkeiros não reiteram o discurso da cultura nacional
muito menos os projetos do movimento negro, porém reivindicam um espaço no
qual possam expressar o seu prazer, não mais como representativo da comunidade
carioca, que fora manifestada através de práticas como samba e o carnaval.
Nessa querela, o samba de “raiz” é visto como símbolo de valor estético, união
entre passado e futuro que “satisfaz uma demanda de parte dos consumidores de
música na virada do milênio, ansiosa por reatar vínculos identitários fundados em
práticas musicais amadoras, valorizando as relações sociais, a coletividade e a festa”
(Trotta, 2006, p. 236, apud Goes, 2007, p. 113).
As discussões sobre a classificação do samba como “autêntico”, “de raiz”, “tradi-
cional”, “puro”, “impuro” ainda encontram terreno nos tempos atuais. Sustentamos,
porém, que a permanência dessa querela nos dias atuais atende muito mais a uma
lógica de mercado do que a um sentimento de pertencimento ou de preservação.
Para efeitos do nosso projeto, o cenário ganha relevância no sentido de estruturar a
percepção em torno da composição de sambas de autoria feminina na cidade carioca,
porque Teresa Cristina, cuja trajetória será apresentada, adentra esse mundo na con-
dição de compositora, logo, numa posição diferenciada de até então no mundo do
samba, visto que, na variedade estética da música dos anos 1990, o comparecimento
da composição feminina nos gênero sertanejo e no funk é desconhecido, sendo que,
neste último, as mulheres assumem o papel de dançarinas, movimentando seus cor-
pos de maneira sensual e erotizada (Mizrahi, 2007), como das performances desen-
volvidas durante os bailes. Portanto, a partir desse momento apresentaremos Teresa
Cristina, explicitando que a sua trajetória se refere à constituição e formatação que a
sociedade brasileira, particularmente o Rio de Janeiro, vem adquirindo ao longo do
século XX enredando grupos e segmentos sociais em relações políticas, culturais e
afetivas formando configurações como, por exemplo, o samba.

II

Teresa Cristina Macedo Gomes, nascida em 28 de fevereiro de 1968, se define


como compositora-cantora, integrando um time juntamente como outras mulhe-
resque vem preenchendo o mundo de samba com suas composições, tais como:
Nilze Carvalho, Mart’nália, Telma Tavares, Ana Costa (Burns, 2007). A presença de

214
Gênero Trans e Multidisciplinar

compositora no mundo do samba é restrita; a maioria das composições é de autoria


masculina cabendo às mulheres o papel de intérpretes.
O pioneirismo no oficio de escrever samba é atribuído a Dona Ivone Lara,
considerada a primeira mulher, nos anos de 1940, a integrar a ala de compositores
do Império Serrano, inovação que lhe dará o lugar de ser “na história da música bra-
sileira como a primeira mulher a compor um samba-enredo oficial” (p. 123). Dona
Ivone Lara marca época ao instituir no mundo do samba a posição de compositora;
estabelece, assim, “uma nova posição para além das posições estabelecidas” (Bour-
dieu, 1996, p. 181).
A carreira de Teresa Cristina se inicia, ou pelos menos veio a público, nos anos
1990, acompanhado do grupo Semente, concomitante ao movimento de “recupe-
ração da Lapa” (Froés, 2007). A geração do samba carioca dos anos 1990, à qual
nos referimos como guia do nosso estudo, é representada pela cantora-compositora
Teresa Cristina e o grupo Semente, o grupo Sururu na Roda, Galocantô, Nilze Car-
valho, grupo Casuarina, Telma Tavares, Dorina, entre outros.6 A proliferação desses
grupos de artistas é caracterizada pela divulgação do samba entre os jovens durante
o processo de revitalização da Lapa, nos anos 1990, uma iniciativa do governo do
estado do Rio de Janeiro através do projeto “Quadra da Cultura” e, posteriormente,
o “Distrito Cultural da Lapa”.
A transferência de imóveis comerciais para abrigar instituições culturais, recu-
peração do patrimônio imobiliário público, treinamento de mão de obra em cursos
artísticos e profissionalizantes, implantação de serviços essenciais à comunidade,
destinação de espaços para atividades artísticas e culturais, investimentos no turismo
foram ações promovidas para o desenvolvimento socioeconômico do bairro. Aliado
às ações do estado, “empresários e proprietários de bares e restaurantes antiquários
da região já começaram a criar, de forma ainda incipiente, um público atraído tam-
bém pelas rodas de samba e choro que se formavam no local” (Requião, 2008, p. 7).
Os anos 1990 revelam o momento apontado pela imprensa como aparecimento
de uma safra de jovens de classe média7 interessados em compor os seus próprios
sambas e interpretar canções de Wilson das Neves, Donga, Wilson Batista, Noel
Rosa, Nelson Cavaquinho, Candeia, Argemiro, Cartola, Paulinho da Viola, Silas de

6. Informações retiradas das seguintes fontes: Burns (2006); Froés (2007); Disponíveis em:<www.anovade-
mocracia.com.br/blog>. Acesso em: 03 de maio de 2010; <http://blogdaphydia.blogspot.com>. Acesso
em: 2 jul. 2010.
7. O termo classe média, nesse momento, se refere à classificação, ou melhor, à posição social desses
jovens sambistas, definida em jornais on-line e sites como: Jornal Brasil Econômico (Acesso em: 2 jul.
2010); site do Yahoo notícias (Acesso em: 9 jul. 2009). No entanto, para efeitos iniciais de apresentação
deste texto, me aproprio da definição de Pochmann (2006, p. 16), que considera a classe média como certo
agrupamento que, “apesar de pouca propriedade, se localiza em posições altas e intermediárias na estrutura
sócio-ocupacional como na distribuição pessoal de renda e da riqueza compreendida então como portadora
de autoridade e status social reconhecidos, bom como avantajado padrão de consumo”.

215
Núbia Regina Moreira

Oliveira, Nelson Sargento, Nei Lopes, João Nogueira e Paulo Cesar Pinheiro8. A
pesquisa e o estudo das obras desses artistas por parte dos mais jovens tem sido
uma atividade corrente na estruturação do repertório e inspiração para compor seus
sambas, servindo como parâmetro para que intervenções nos aspectos formais dos
arranjos não pressuponham a descaracterização estética e perdas no plano simbóli-
co, como, por exemplo, distanciamento da tradição9. Quando a aproximação é pos-
sível, ela se manifesta através de convites feitos geralmente pelos mais experientes
para os mais jovens. Essa relação representa um passo para imprimir a marca de
respeitabilidade e consagração à carreira dos iniciantes.
Carioca, nascida em Bonsucesso, Teresa Cristina cresceu na Vila da Penha, bair-
ro do subúrbio do Rio de Janeiro. De família de classe média baixa, “baixíssima”10,
a escassez do dinheiro não impedia a fartura de alimentação e roupas. Sua formação
escolar se deu em instituições públicas desde ensino fundamental ao superior; sen-
do que não finalizou o curso de Letras na Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(UERJ). Começou a trabalhar aos 13 anos como manicure. Seu pai, baiano, feirante,
escutava Candeia enquanto ensacava limão. Na época, a menina Teresa debochava
do pai, sorria e se envergonhava das músicas ao ouvir os discos de vinil de Nelson
Candeia, por acreditar que aquela música não fazia parte do seu mundo. O encontro
com Candeia acontecerá na fase adulta quando ouviu o CD de Candeia, presente de
um amigo, com excelentes recomendações sobre a música do artista. Lembra tam-
bém que as musicas de exaltação da negritude fez com que descobrisse sua beleza,
afirma: “Achei meu lugar no mundo”.
Além de manicure, trabalhou como vendedora, auxiliar de escritório e presta-
dora de serviços no Detran do Rio de Janeiro. Segundo a sambista “não tive sonho de
cantar desde menina, troquei muito de profissão, mas depois que peguei o gosto por cantar, não
quero mais mudar”.
Aos 25 anos se casou com o músico Bernardo Dantas, que na época fazia parte
do grupo Acorda Bamba. “Estava em contato com a música, mas sem nenhum compromis-
so”. É nesse período que Teresa começa a redescobrir Candeia e o subúrbio. “Do
Leblon comecei a ir para longe, Madureira. Tem artistas que vão morar no exterior, descobrem
a música brasileira e voltam. Meu exterior foi a zona sul”. Nesse momento também que a
sambista passa a definir os rumos da sua profissionalização nas redes de relações via
casamento e/ou nos encontros com os mestres das velhas guardas. Um e outro ar-
ticulados entre si, atuaram com mecanismos positivos na conformação dos projetos
de Teresa Cristina.
8. Esses compositores aqui citados são considerados “a tradição” no campo do samba carioca. Ainda en-
contram-se vivos Nei Lopes, Paulo César Pinheiro, Paulinho da Viola e Nelson Sargento.
9. Em entrevista no programa Samba na Gamboa, na TV Brasil, apresentado por Diogo Nogueira, o grupo
Casuarina afirmou que a pesquisa e o estudo de sambas antigos se constituíram como uma prática para a
formação e a inserção deles na posição de compositores.
10. Frisado pela sambista em entrevista ao Jornal do Brasil no dia 24 de abril de 2010.

216
Gênero Trans e Multidisciplinar

Em entrevista Revista Raça Brasil, Teresa Cristina diz que sua vida se divide em
antes de Candeia e depois de Candeia11. A participação em rodas de samba a co-
loca em contato direto com a Velha Guarda da Portela, momento em que a artista
realizava uma pesquisa sobre Candeia e se descobria como compositora. O canto
veio no rastro do interesse em fazer um show (que não aconteceu) em homenagem
a Candeia, com a colaboração dos músicos indicado por Bernardo Dantas. Esses
músicos formariam mais adiante o grupo Semente.

Existir socialmente é ocupar uma posição determinada na estrutura social e tra-


zer-lhe as marcas, sob a forma especialmente, de automatismos verbais ou de
mecanismos mentais, é também depender, ter e ser tido, pertencer a grupos e estar
encerrado em rede de relações que tem a objetividade, a opacidade e a permanên-
cia da coisa e que se lembram sob a forma de obrigações, de dívidas, de deveres,
em suma de controles e de sujeições. (Bourdieu, 1996, p. 42-43)

Com aproximação da Velha Guarda da Portela, Teresa é chamada por Monarco


para cantar em shows; Guaracy da Portela a indica para cantar numa casa de show
que abriria. A artista, no entanto, admite que antes, no final de 1997, fez uma música
para o grupo Acorda Bamba a partir de uma melodia de um ponto de umbanda:
“tirei uma letra e coloquei outra. Eles gravaram e adoraram”. Após esse fato foi chamada
para participar de um projeto que revelava novos talentos; momento que se sente
impelida a compor O Candeeiro.

Candeeiro/Eu careço de luz o ano inteiro/Minha gente inda dança


fevereiro/E eu correndo na rua a lhe chamar, candeeiro/Candeeiro/A es-
trada já vai escurecendo/Minha gente se olha e não tá vendo/Querosene aca-
bou, vou lhe chamar, candeeiro/Querosene acabou, vou lhe chamar/Cande-
eiro/Cor dourada que ilumina o meu peito/Essa dor, candeeiro, não tem jeito
No vazio não tem como queimar, candeeiro/Candeeiro/Vó me disse, inda era
pequenina/Vento bate com força na cortina/Candeeiro no chão pode queimar,
candeeiro/Candeeiro no chão pode queimar/Pode queimar/Candeeiro no chão
pode queimar, candeeiro/Candeeiro no chão pode queimar.

As redes de sociabilidade que forjaram sua inserção no mundo do samba servi-


ram como base para a formação da sua trajetória. A ida à zona sul como moradora
fez com que Teresa Cristina participasse de uma comunidade de jovens músicos
instrumentistas e interessados nos sambas de Nelson Candeia.
11. Antonio Candeia Filho (1935-1978), sambista, fundador em 1975 do Grêmio Recreativo de Arte Negra
Escola de Samba Quilombo, nascido no subúrbio de Oswaldo Cruz, pertenceu aos quadros da Policia Civil
e desde os 13 anos de idade seu grande projeto foi a busca de um caráter negro e autêntico do sambafrente
ao que ele chamava dedescaracterização que o gênero vinha passando durante a década de 1970(Varges,
2008 apud Fernandes, 2009).

217
Núbia Regina Moreira

A entrada do Candeia na minha vida foi uma coisa divina. Além de me colocar
no meu devido lugar, aumentou a minha perspectiva, a minha esperança de vida.
Virei outra pessoa, me tornei cantora. Minha infância tinha sido discoteca. Minha
adolescência heavy metal, Iron Maiden. E de repente me descobrir num mundo
totalmente diferente. Como a Velha Guarda. São pessoas talentosas, celebridades
legítimas da música que têm outro jeito de ser, de viver, de lidar com o fã, com a
música. (Entrevista concedida ao Jornal do Brasil em 24 de abril de 2010)

Diante dessa fala de Teresa sobre o gosto de cantar desenvolvido mediante uma
sucessão de eventos favoráveis constituem o espaço dos possíveis que, ao revelar as
disposições como espaço de tomada de posição, demonstra que os indivíduos apre-
endem em outros espaços contrapartidas, resultantes de uma coletividade, mas que
no interior de determinado campo encontram oportunidades de desenvolver suas
disposições exigidas como uma lógica de participação do campo (Bourdieu, 1996).
Nesse sentido, a compreensão da carreira de Teresa Cristina, que segundo ela,
está melhor em 2010, foi forjada num processo de revitalização da Lapa e pelas
mudanças que ocorreram no seio do campo do samba, terreno propício à inserção
de jovens aspirantes a ocupar uma posição no mundo do samba. Ela é apontada
pelos integrantes de sua geração como a responsável da revitalização da boemia na
Lapa e como a nova diva do samba. O atributo como compositora de samba, aos
poucos, tem sido ressaltado pela mídia, mas o que torna esta mulher incomum den-
tre às outras que compõem a nova geração do samba carioca, é sua capacidade de
reavivar em cada um de nós uma memória do samba como espaço da alegria e do
aconchego. Deixo para vocês uma parte de matéria jornalística reforçando a posição
de Teresa Cristina como a representante mais legítima das sambistas cariocas dos
nossos tempos.

Tem muita mulher cantando samba atualmente, mas poucas querem ser rotuladas
de sambista. Com razão. Para ser sambista tem que ser como Teresa Cristina.
Começou a carreira em 1988, interpretando Candeia, fez a fama no terreiro do
samba e é hoje, de fato, a mais legítima representantedo gênero. Ainda que se
mostre versátil, como faz ao cantar A história de Lily Braun(Chico Buarque e
Edu Lobo) no show Melhor Assim. Registrada em CD/DVD, a apresentação
faz uma retrospectiva precisa dessa pouca mais de uma década e revela a quem
ainda não conhece a essênciada artista. Teresa Cristina é uma intérprete que pri-
ma pela simplicidade de que o samba pede – e tira disso a beleza de seu canto
– e uma compositora que explicita em ótimas composições (há nove delas no
repertório) a comunhão com a obra de mestres como Candeia, Cartola e Nelson
Cavaquinho”.12 (Lima, 2010)

12. A essência de Teresa é título da crítica ao DVD “Melhor Assim”, de Teresa Cristina, escrita por Irlam
Rocha Lima no Jornal Correio Braziliense em 14 de maio de 2010.

218
Gênero Trans e Multidisciplinar

Durante a realização do nosso estudo podemos perceber que o processo que


conformou a formação de uma geração de jovens sambistas cariocas nos anos de
1990, teve comofoco o estudo das trajetória de profissionalização de compositora
Teresa Cristina no campo do samba, sendo que a composição se constituiu como
um espaço majoritariamente masculino. Porém, as posições que ela e outras mulhe-
res ocupam nesse espaço, e as disposições necessárias e fundamentais para inserção
não sugerem subordinação feminina no campo musical. Mesmo afirmando que o
exercício de composição de sambas tem sido uma atividade predominantemente
masculina, que se expressa na posiçãohistoricamente ocupada por eles, os composi-
tores, e elas, as intérpretes. Este estudo focou as relações profissionais e pessoais do
universo do samba através das trajetórias priorizando destacar os critérios estabele-
cidos pelas relações inerentes à geração a que ela pertence, e pelo habitus trazido de
suas origens, isto é, os recursos e capitais políticos, sociais, musicais que, no interior
do samba, serviram como baliza para definir escolhas e áreas de atuação. As noções
de campo e habitus de orientação bourdieusiana nos ajudaram a elucidar que as tra-
jetórias são construídas através de um processo de negociação e manobras onde se
manifestam energias, dilemas, tensões e pulsões, devido aos posicionamentos assi-
métricos de seus membros e gerações.

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221
CAPÍTULO XV
“DE NADA TENHO MEDO”: TENSÕES
E CONFLITOS DAS RIXOSAS E
TURBULENTAS
Mariana Emanuelle Barreto de Gois1

Amores, paixões, rixas, turbulências e intrigas constituíram alvos de conflitos no


século XIX, na Província de Sergipe. Em 16 de maio de 1890, a autoridade da Vila
de Riachão indiciou a ré Josefa Urbana, que deixou traços de sua identidade nos
processos crimes.
Josefa Urbana dos Santos, jovem de 23 anos, analfabeta, solteira, lavradora e
moradora do Cipó, da Vila de Riachão, tentou assassinar Nicolau da Costa Lima,
colocando veneno numa porção de sal que havia na casa do mesmo. Mas, além de
Nicolau, a principal vítima, outras pessoas também comeram da comida temperada
e, segundo se constata no corpo de delito, todos apresentaram um grave incômodo
de saúde. Por que será que Josefa Urbana tentou envenenar a pessoa que amava?
Seria a sua insegurança, quanto ao sentimento por Nicolau?2.
A realidade histórica do período reservava à mulher um espaço econômico, so-
cial e político, relativamente, restrito, comum aos padrões que a sociedade impusera
a elas3. Contudo, os comportamentos dessas rixosas demonstraram que as influ-
ências da ordem pública não conseguiram acabar com as suas desordens. Havia,
constantemente, uma quebra de estereótipos femininos tanto nas classes abastadas
quanto nas menos abastadas da população. Essas mulheres Oitocentistas brigaram,
mataram, se prostituíram, roubaram e espancaram. É exemplo dessa perspectiva o
caso de Maria Capenga, indiciada pela Justiça na noite de 2 de março de 1890, na
Rua do Botequim, em que se encontrava armada de um cacete para espancar Maria
Thereza, que, no momento, trazia nos braços o seu filho de alguns meses, este caiu

1. Mestre em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS/BA, professora substituta
de História do Instituto Federal de Sergipe – campus/Lagarto. O referido artigo é um recorte do primeiro
capítulo da Dissertação de Mestrado intitulada Rixosas e Turbulentas: mulheres nas vilas de Lagarto e
Riachão Oitocentista, Sergipe (1850-1890), defendida em fevereiro de 2012 no Mestrado em História da
UEFS.
2. No Capítulo III dessa dissertação você poderá conferir o destino de Josefa Urbana.
3. Nesse sentido, as abordagens que se referem ao contexto nos fazem lembrar Michel de Certeau, sobre
aspráticas comuns, e as introduz como as experiências particulares, as frequentações, as solidariedades e
as lutas organizam o espaço aonde essas narrações vão abrindo um caminho e delimita um campo. Michel
Certeau. A Invenção do Cotidiano: Artes de Fazer. Petrópólis: Rio de Janeiro, 2009.

223
Mariana Emanuelle Barreto de Gois

no chão na hora do ataque. A ré Maria Capenga, no processo, fala: “De nada tenho
medo”4. Maria Capenga era tachada vulgarmente de “mulher rixosa e turbulenta” que
provocava diariamente barulhos na Rua do Botequim5.
Tensões e conflitos não param por aqui. Maio de 1869, na Vila de Lagarto, no
sítio Limoeiro, os dias corriam com trabalho diário típico dos habitantes da zona
rural, principalmente os envolvidos com a cultura açucareira.
Esse cenário traz à tona a história de Mariana do Querino, disfarçada de homem
que se junta a Manoel de tal, seu co-réu, tornando-se autores de um surpreendente
episódio, ocorrido no dia 21 de maio. Nesta noite, Maria Francisca Vidal estava no
interior de sua casa na Vila de Lagarto, quando apareceu o corréu desse processo, o
senhor Manoel, que estava a cavalo, convidando-a para ir com ele ao sítio do Limo-
eiro. Maria Francisca, imediatamente, montou na garupa do animal e, ao atravessar
a casa do cidadão Serafim da Silva Vieira, foi empurrada do cavalo pelo próprio
Manoel. Desse momento em diante, Maria Francisca passa a ser agredida pela ré
Mariana do Querino que, empunhando uma faca, corta os cabelos da vítima, bem
como faz ferimentos no seu corpo.
Do processo de Mariana do Querino, não se sabe sua qualificação, idade, estado
civil, profissão, residência, filiação e grau de instrução, o que se sabe é através dos
relatos de testemunhas, do corpo policial e promotor. Sendo assim, pouco se co-
nhece da ré, porém, é interessante notar que Mariana do Querino estava, na hora do
ocorrido, usando vestes de homem, mas que, em decorrência do fato, teve seu cha-
péu derrubado, vindo à tona a sua verdadeira identidade, quando ficaram à mostra
os seus cabelos compridos e as rosetas que trazia na orelha.
No exame de corpo de delito da vítima, Maria Vidal, encontraram um ferimento
atrás da orelha do lado esquerdo e direito, do qual houve derramamento de san-
gue, e, na nuca, uma contusão ou arranhão com quatro polegadas de comprimento.
Ocorreu também um ferimento no dedo indicador, um ferimento de meia polegada,
e, no dedo anular, dois ferimentos, tendo meia polegada, lesões no braço, o qual
houve sangramento, como também encontraram no pescoço alguns arranhões e os
cabelos da cabeça cortado. Diante do exposto, constituiu-se em um crime de ofen-
sas físicas com instrumento cortante.
A ofendida, Maria Francisca Vidal, de 24 anos, solteira, nascida na Vila de Cam-
pos, sobre o fato afirmou:

que estando em sua casa, certa hora da noite, ali lhe apareceu Manoel de tal, filho
de Joaquim Baptista, morador num lugar denominado “Limoeiro” convidando-a
a ir para o dito lugar, e que em troca lhe daria um corte de vestido, e que ela aceitou,

4. AJES. Rda/c – 2º of. Sumário de Culpa, 1890.


5. Estes são apenas pequenos fragmentos de histórias que ocorreram nas vilas de Lagarto e Riachão, as
quais retratam a violência no espaço rural nas ações das mulheres tidas como rixosas e turbulentas.

224
Gênero Trans e Multidisciplinar

montando o dito Manoel a fim de seguir viagem até o início do caminho, e apa-
rece no momento um vulto, o qual dera sinal. Aproximando-se o vulto agarra-o
pelo vestido, e sendo empurrada pelo referido Manoel, cai do cavalo, e no ato o
vulto sobre ela lança mão de uma faca que trasia no bolso, corta-lhe os cabelos e procu-
rando ela respondente desvia-se do dito vulto e, foi recebendo os ferimentos do
auto de corpo delicto.6(grifo nosso)

Questionada se a vítima era amiga da indiciada, esta respondeu que eram ini-
migas, e que, quando a ré chamou o corréu, ele correu e não apareceu mais. Disse
ainda que Manoel perguntou-lhe se no momento que estava na garupa, se ela não
tinha receio ao encontrar um vulto na estrada, respondeu que não, por estar em
companhia de um homem, e o corréu respondeu que, para isso, não contasse com
ele, pois tinha um filho e família.
A vítima foi questionada ainda se ela conhecia o vulto que lhe fizera os ferimentos:

Respondeu que conhecia e que foi Mariana de tal, conhecida por Mariana do Que-
rino. Perguntado como era que ela respondente (Maria Francisca Vidal), conhecia
ser Mariana de tal autora dos ferimentos. Respondeu que na luta caiu o chapéu do
referido vulto e reconheceu chamando-o pelo nome e pedindo que não a matasse, e ovulto diz não
sou eu não quem lhe esta fazendo isto é o irmão de Vicente Pereira, afirma ainda que conhe-
cesse ser a Mariana do Querino, por trazer na orelha rosetas pretas e ter cabelos
compridos e disse ainda que estivesse a ré com vestes de homem.7(Grifo nosso)

Já o ourives José Francisco Barbosa, de 50 anos, casado, morador na vila do


Lagarto, e natural da cidade de Estância, aos costumes disse jurando os evangelhos:

Respondeu que estando em sua casa nesta vila no dia vinte e dois, por volta das
10 horas da noite, ouvia tropeças de cavalo, chegando a janela reconheceu Manoel
de tal, dito Manoel Joaquim de Santana, que estava na casa da ofendida, passando
ainda muntado, e depois veio a sua casa a ofendida consultar-lhe se devia vir em
companhia do Manoel, até o lugar de sua residência, dando-lhe em troca o corte de
um vestido. Disse mais que depois, quando já estava agasalhado ouvia gritos, mas
pensava ser das pessoas que acostumavam se banhar. Mas que de madrugada,
ouvindo-lhe baterem na porta e abrindo-a entra a ofendida toda ensangüentada
com cabelos cortados e disse-lhe que quem tinha sido autora dos ferimentos fora
Mariana do Querino, a qual vestida de homem atacou-a com uma faca que trasia
e cortara os cabelos, fazendo os ferimentos constantes no corpo de delicto. Disse
ainda que a ofendida sabe que na casa de Serafim, ela montava na garupa do ca-
valo em que estava montado o co-réu Manoel Joaquim de Santana, e que este na
ocasião auxiliava Mariana do Querino a derrubar a ofendida do cavalo e depois

6. AJES.Lag/c 2º of.Sumário de Culpa, 1869.


7. AJES.Lag/c 2º of.Sumário de Culpa, 1869.

225
Mariana Emanuelle Barreto de Gois

bate as rédeas do cavalo e desaparece deixando a ofendida lutando com Mariana


do Querino.8(grifo nosso)

É revelador o depoimento do lavrador José Gregório de Moreira, de 25 anos,


casado, morador no Limoeiro, ao afirmar que poucos dias depois, na estrada, um
“vulto” que ouviu dizer ser Mariana do Querino, disfarçada com vestes de homens,
agrediu Maria Vidal com uma faca, cortando-lhe os cabelos e impondo-lhe ferimen-
tos constantes do corpo de delito. E disse ainda que a ré estava com um pau, uma
chave e outros objetos pertencentes à ofendida. Foi perguntado ainda, se sabia de
outros delitos praticados por Mariana do Querino, e respondeu que ouviu dizer que,
quando ela morava no lugar denominado Boa Vista, fizera ferimentos em Virgínio
de tal, e que, depois de se mudar para sua residência no Limoeiro, fizera ferimentos
em Joaquim de tal.
O senhor Felipe José dos Santos, qualificado como negociante volante, de 24
anos, morador do Limoeiro, do termo de Lagarto, continuou a falar sobre o fato
ocorrido. Disse que sabia por ouvir dizer que o corréu Manoel Joaquim levará a
ofendida na garupa de seu cavalo e no caminho, perguntou a Maria Francisca, que
se aparecesse algum vulto, se ela teria medo, respondeu que não teria medo. Logo
apareceu o “vulto” Mariana do Querino disfarçada em trajes de homens, usando
calça, camisa e chapéu de couro sobre a cabeça, e cometeu o crime com uma faca
que trazia. Foi perguntado ainda se sabia que a ré Mariana, há alguns anos, feriu com
uma foice um indivíduo de nome Virgínio de tal, morador do termo do Lagarto.
Respondeu aos fatos que sim, e que ela praticou ferimentos na pessoa de Virgínio,
como também ouviu dizer que a mesma Mariana do Querino tivera um barulho
com a rapariga de Joaquim, a qual lhe dera empurrões e ameaças e, ocultamente,
lançou mão a uma faça justamente na ocasião. Perguntado ainda se Mariana do Que-
rino morava em sua companhia, foi dito que sim, mas que, chegando de viagem, e
sabendo desse ocorrido, não queria se comprometer.
Confirmou os fatos Antônio Félix dos Santos, 40 anos, solteiro, lavrador e mo-
rador do Limoeiro desse termo, natural da Rainha dos Anjos, Província da Bahia.
Este respondeu que ouviu dizer que a ré ia em direção do Limoeiro em trajes de
homem e trazia na cabeça chapéu de couro. Ainda sobre a ré, informa que Mariana
do Querino espancara fisicamente a rapariga de Joaquim.
Quase no final do processo, aparece a declaração de Maria da Cruz de São José,
ao falar por ouvir dizer que a autora dos ferimentos perpetrados na ofendida foi
Mariana de tal, conhecida por Mariana do Querino, e que, na ocasião, estava com
um dos filhos de Joaquim Batista na lavoura, em direção ao sítio Limoeiro.
Esse depoimento nos faz indagar sobre a relação que, possivelmente, teria Ma-
riana do Querino e Joaquim. Em depoimentos anteriores, testemunhas afirmaram
que a ré fez ferimentos na rapariga de Joaquim. Provavelmente Mariana do Querino
8. AJES.Lag/c 2º of.Sumário de Culpa, 1869.

226
Gênero Trans e Multidisciplinar

possuía alguma relação amorosa ou desavenças antigas com Joaquim, e, em virtude


disso, teria realizado os ferimentos, bem como fez na vítima Maria Francisca Vidal.
Sobre as relações entre vítimas e agressões, Carneiro afirma que os crimes ocorrem
em âmbitos de conhecimento ações contra pessoas a quem conhecem e mantêm algum tipo
de relacionamento (parentesco, amizade, vizinhança etc.)”9. Nas entrelinhas deste processo
e através dos relatos das testemunhas, percebe-se, de alguma forma, que o relacio-
namento, seja ele amoroso, de parentesco ou amigável, acabaria tendo resolução no
Tribunal do Júri.
Verificando-se os indícios desse processo, é notório pensar: qual seria a razão te
ter estado Mariana do Querino na estrada com vestes de homem? Certamente, para
passar despercebida, saiu, também à noite, a fim de esconder sua identidade femini-
na. Algo curioso é que a ré tanto premeditou o crime que acabou esquecendo-se de
tirar suas rosetas (brincos), deixando vestígios de sua pessoa.
Artimanhas a fim de esconder a identidade feminina também foram evidentes
nos estudos da historiadora Maria Odila, que, ao analisar a realidade de São Paulo,
encontrou os registros de mulheres que se vestiam como homens e desempenhavam
atividades consideradas masculinas no século XIX. Não eram raras as referências às
mulheres vestidas de homens. Muitas usavam essa tática como recurso de defesa, no
cotidiano, fosse para viajar em incógnitas e a salvo da violência das estradas ou para
exercer ofícios masculinos, como o de carapina10.
Mariana do Querino não é condenada pela sua falsa identidade e sim pelas ofen-
sas físicas. Até porque o Código Criminal do Império não traz, em seus artigos,
especificações sobre a questão das “vestes” masculinas e/ou femininas. No entanto,
nos permite fazer uma análise com relação à inversão das vestimentas, relacionadas
à moral e ao decoro público, prescrito em seu artigo 28011: praticar qualquer ação
que na opinião pública seja considerada como evidentemente ofensiva da moral e
dos bons costumes, sendo em lugar público e ainda estabelecida nos parâmetros
religiosos como aponta o livro de Deuteronômio 22:5: “A mulher não usará veste
de homem nem o homem vestido de mulher, pois quem o fizer, será abominável
diante do Senhor teu Deus”. Logo, os valores e tradições não impediram que as
ações ousadas de Mariana do Querino rompessem a ordem, em um tempo em que
a identidade feminina era preservada, colocando em evidência uma mulher que es-
condeu sua identificação a fim de cometer um crime.
9. Deivy Ferreira Carneiro. Conflitos, Crimes e Resistência: Uma análise dos Alemães e Teuto-Descen-
dentes através de Processos-Criminais (Juiz de Fora – 1858/1921). 2004. Dissertação (Mestrado) – Univer-
sidade Federal do Rio de Janeiro.
10. Dias, Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX, p. 33. Carapina significa o ofício de carpinteiro.
11. Penas: Máximo – 40 dias de prisão simples e multa correspondente á metade do tempo. Médio – 25 dias
de prisão simples e multa correspondente à metade do tempo. Mínima – 10 dias de prisão simples e multa
correspondente á metade do tempo. In: Tinoco, Código criminal do Império do Brasil annotado, p. 503.

227
Mariana Emanuelle Barreto de Gois

Vestir-se de homem foi um aspecto perceptível em diversos pontos da Província


de Sergipe. Um caso ocorrido no mesmo jornal foi publicado em página inicial com
o título “A Mulher Homem”:

Acaba de ser descoberto nesta cidade um caso semelhante ao que apouco tem-
po nos foi comunicado12. Cerca das onze horas da noite de ontem-ontem havia
grave vozeira em uma casa de alugar quartos na praça da Constituição. A vozeira
foi crescendo e chegou a tal ponto que a polícia teve de intervir.
Lá dentro passava-se uma cena horrível, figuravam nela Antônio de Faia, Ma-
noel Antônio Barboza e Bertholdo Alves, que se espancavam mutuamente, acom-
panhado de insultos.
O primeiro efeito da intervenção policial foi separar os lutadores. Conseguindo
isso, tratou-se de saber o motivo da briga.
— É que respondeu o Faia, este dois não me querem entregar uma mulher que
amo e que se ocultou nesta casa.
— É falso, respondeu os dois, a que não há, alguma.
— Há sim, senhor.
— Não há, não seja teimoso.
E novamente iam passando de palavras a factos, quando a polícia tomou então
a grave resolução de busca à casa em procura da mulher.
Faia acompanhava a polícia com a ansiedade dos apaixonados, que esperavam
ver o objeto amado.
Os outros dois trocavam sorrisos maliciosos e pareceu não se inquietar.
As pequizes chegaram até o telhado, justamente na ocasião em que um vulto
se precipta à rua.
— Ali está ela! Exclamou Faia.
— Está enganado, é um homem é Antônio de Souza Marques.
— Não há tal, é a mulher Helena.
— Então ele é ela?
Tal e qual como na Morgadinha de Val-Flor.
— É exato, respondeu a pessoa de quem se tratava. Eu não sou o que pareço.
Sob estas roupas masculinas palpita o mais terno coração de uma filha de Eva.
Desde muito criança que habituei a estes trajes. Assim tenho vivido em diversos
lugares sem que pessoa alguma tenha descoberto o meu segredo. Ultimamente
estive empregada em um hotel como caixeiro, de onde me despedir a oito dias.
Chamo-me Helena, tenho 17 anos de idade e sou natural de Pernambuco. Estive
na Bahia, onde recebe educação e depois passei pelo Piauhy.
Ai está minha história. Terminando este monologo, ficaram todos sabendo, ao
certo que ele era ELA.13

12. Fez referência ao caso anterior de 22 de maio de 1879.


13. O Raio, Aracaju, 27 de julho de 1879, p. 2

228
Gênero Trans e Multidisciplinar

As manchetes, por sua vez, não trouxeram notícias de estereótipos femininos es-
perados pela sociedade do oitocentos, como de uma mulher dócil, recatada, submis-
sa, mas sim de mulheres que, a fim de se afirmarem, preferiam viver como homens e
que, consequentemente, renunciavam as relações amorosas e o cotidiano que a con-
dição do ser feminino lhes reservava. No caso de Helena, ela é o pivô de uma briga
em casa de alugar quartos, fato esse condizente com a desproporção da população
feminina em relação à masculina, contudo, ela mesma acaba declarando-se ser uma
mulher e que, desde pequena, se veste em trajes masculinos. Interessante notar que
Helena trabalhava como caixeira14. Diante dos casos, o semelhante com a história de
Mariana do Querino é, sem dúvida, a ocultação da identidade feminina. Encerra-se,
assim, um dos capítulos da vida de Mariana do Querino, os outros referentes à sua
trajetória de vida, a fonte não nos permitiu aferir.
Após ter inquirido as oito testemunhas constantes e realizado exame de corpo
de delito, concluiu-se que os ferimentos feitos na ofendida produziram inabilitação
de serviços por mais de 30 dias. Sendo presos na Cadeia da Vila de Lagarto15 os réus
Mariana do Querino e Manoel Joaquim de Santana e pronunciados no artigo 20516
do Código Criminal, pelo crime de ofensas físicas e lançado seus nomes no livro
de rol de culpados. Já o corréu Manoel não deixou vestígios de sua vida nas fontes.

IMAGEM 18

14. Atividade ligada a profissões industriais e comerciais, constante do censo populacional das vilas de
Lagarto e Riachão.
15. Neste ano a cadeia era uma casa alugada, somente pela Resolução de nº 921 de 11 de março de 1871,
em seu Art. 1º prescreve: “fica o Presidente da Província autorizado a contratar, logo que se publique a
presente lei a construção de uma casa de detenção de pedra e cal na Vila do Lagarto”.
16. Se o mal corpóreo resultante do ferimento de saúde ou inabilitação de serviço por mais de um mês. IN:
Tinoco, Código Criminal do Império do Brasil annotado, p. 386.

229
Mariana Emanuelle Barreto de Gois

Vale apena lembrar um fato que chegou à subdelegacia da Vila do Riachão no dia
19 de junho de 1883, assim escrito pela pena do escrivão, José Etelvino de Barros:

Ilm.º Sr. Subdelegado de Polícia;


Nós abaixo assinados, cidadãos brasileiros, livre, residente nesta vila, a bem do
socego e tranquilidade pública, tem a honra de levar ao conhecimento de V.S, que
na rua das bandinhas desta Vila, é residente umamulher de nome Josefa de tal, co-
nhecida por Josefa Peba, a qual costuma não só insultar aos moradores da mesma
rua e de outras ruas vizinhos com palavras ofensivas a boa moral, como se em-
briaga de aguardente, fora sobre este pretexto com mais facilidade discompor fa-
mílias honestas com palavras ofensivas, andando quase sempre armada com uma
faca. Estas cenas ilustríssimo senhor produzida pela má índole e gênio turbulento
desta mulher repete-se, quase todos os dias, são testemunhas também pessoas de
diversas ruas.17(grifo nosso)

A ré Josefa Péba, 28 anos, era solteira, vivia de negócios, natural de Itapicuru,


Província da Bahia, não sabia ler nem escrever, teve seu rogo assinado por terceiros.
Vivia nas ruas da vila provocando desordem e turbulências, a ponto de incomodar
a sociedade e causar situações constrangedoras às pessoas que a ouviam proferir
palavras insolentes.
Sobre o ocorrido, Manoel Vitorino de Souza, 40 anos, morador nessa vila, ca-
sado, natural da Província da Bahia, por meio de seu depoimento, incrimina Josefa
Péba. Sendo inquirido pelo Juiz, responde:

Por ouvir dizer da boca de José Caetano, que a ré presente insultasse a ele. Pergun-
to se a ré insultava outras pessoas?. Respondeu que sabe por ouvir dizer que a ré
tinha insultado outras pessoas, disse mais que sabe que a ré presente costuma a se
embriagar-se. Perguntado e a ré anda armada de faca?. Respondeu que a ré anda
armada com foice, mas que quando brigou com Margarida de tal, foi [ilegível]
armada com uma baiêta de soldado.18

A ré em nada contesta a testemunha Manoel, mas o depoimento de Maria Vitó-


ria Souza, 50 anos, moradora da vila do Riachão, natural de Itabaiana, lavradora, so-
bre o fato disse que tinha ouvido dizer que a ré incomodava o sossego público, disse
ainda que a ré bebia aguardente e insultava uns e outros com palavras injuriosas.
As testemunhas afirmavam ser a ré uma mulher turbulenta e de proferir palavras
injuriosas, contudo, se negavam a dizer quais esses nomes. Não foi o que ocorreu no
depoimento de Francisco Horta, 57 anos, solteiro, lavrador, natural de Pernambuco.
Sobre o ocorrido diz:

17. AJES.Riac/c 2º of.Termo de Bem Viver, 1883.


18. AJES.Riac/c 2º of.Termo de Bem Viver, 1883.

230
Gênero Trans e Multidisciplinar

Respondeu que sabe por ter lhe dito Caetano e sua família, disse mais que di-
versas pessoas queixa-se da ré, como turbulenta e que não respeita os familiares
ao dizer palavras desonestas chamando José Caetano, respondia por nomes in-
juriáveis impróprias da essência, corno, puta e outros semelhantes, por ouvir dizer
que não só a José Caetano como a outras pessoas a ré insulta com os mesmos
nomes.19(Grifo nosso)

As demais testemunhas citadas disseram por “ouvir dizer”. Já Eusébio Nunes


de Jesus, 40 anos, casado, residente na vila do Riachão, lavrador, vindo da roça com
José Caetano, viu a ré dirigir a José Caetano palavras injuriosas, e falou que ouviu
dizer que a ré andava armada com uma faca, para se vingar das filhas de José Caeta-
no, e ainda disse que viu a ré insultar outras pessoas e desonrar sua família. Naquele
momento, na Casa da Câmara Municipal, em audiência pública às 10 horas do dia 22
de junho do ano de 1883, a ré contesta a testemunha e diz que pronunciou palavras
injuriosas, mas que não andava armada.
Assim, são conclusos os autos:

Não tendo a ré contestado a defesa no processo que lhe foi acusada, julgo proce-
dente denúncia de folhas e consiste de depoimento das testemunhas condenarem
a mesma ré José Rosa do Nascimento, conhecida por Josefa Péba a assinar o ter-
mo de bem viver com o público, a fim de não insultar mais nem decompor pessoa
alguma com palavras injuriosas, finalmente a não perturbar mais as pessoas, sob
pena de 16 dias de cadêa e 30$000 réis de multa, quando prática semelhante ato.
Retira-se a mesma ré desta sentença, se a mesma assinar o Termo de Bem Viver,
às 10 horas do dia que segue a intimação na casa da Câmara Municipal. Seja reco-
nhecida a ré como uma mulher de trinta, há quarenta anos e de cor clara.
Vila do Riachão, 3 de julho de 1888, João Etelvino de Barros.20

O Termo de Bem Viver regulava o cotidiano daquelas pessoas que eram vistas
com comportamentos desviantes, mas não só eles como as Posturas Municipais que
controlavam as vilas, penalizando aqueles que as infligiam, fazendo das ruas espaços
vigiados pela Justiça por conta dos comportamentos dissidentes.
Martins, em seu estudo sobre os termos de bem viver, aponta:

Os processos-crime que envolve esse estudo são produtos de um período que


retrata o conflito do poder que expropria saberes pertinentes ao modo de vida,
cultura, e comportamento dos populares. Tais saberes eram provenientes do meio
rural, formados pela miscigenação de índios, europeus e negros forros, que, sem
oportunidades de inserção no mundo do trabalho, vagavam pelo Império entre-
gues à própria sorte. É preciso salientar que a expropriação desse tipo de saber já

19. AJES.Riac/c 2º of.Termo de Bem Viver, 1883.


20. AJES.Riac/c 2º of.Termo de Bem Viver, 1883.

231
Mariana Emanuelle Barreto de Gois

ocorria no período colonial, diferenciando-se agora pelo seu caráter mais dissi-
mulado e minucioso.21

Josefa Péba andava na rua da bandinha e demais ruas circunvizinhas, tirando


o sossego público. Na vida imperial das vilas durante o século XIX era evidente o
controle desses comportamentos através do Código do Processo Criminal que ma-
nipulava o viver nas vilas através dos inspetores, em seu artigo 16, estabelecia que,
em cada quarteirão, deveria haver um inspetor, nomeado também para a Câmara
Municipal sob proposta do juiz de paz, dentre as pessoas bem conceituadas do quar-
teirão, e que fossem maiores de 21 anos22. Competiam aos inspetores as seguintes
atribuições, estabelecidas no artigo 18:

1º Vigiar sobre a prevenção dos crimes, admoestando aos comprehendidos no


art. 12, § 2º23
2º Fazer prender os criminosos em flagrante delicto, os pronunciados não afian-
çados, ou os condemnados á prisão.
3º Observar e guardar as ordens e instrucções que lhe forem dadas pelos juízes de
paz para o bom desempenho destas suas obrigações.24

De acordo ainda com a Legislação vigente no período em questão, era atribuição


dos chefes de Polícia, em todas as províncias, obrigar a assinar Termo de Bem Viver
aos vadios, mendigos, bêbados por hábitos, prostitutas que perturbavam o sossego
público e aos turbulentos que, por palavras e ações, ofendem os bons costumes e a
tranquilidade pública e a paz das famílias25.
A ré foi chamada a assinar o Termo de Bem Viver, por perturbar a Vila, causan-
do desordem, além disso, ela poderia também ser autuada no Código Criminal do
Império de 1830 sobre a embriaguez, expõe as circunstâncias atenuantes dos crimes:

§9º Ter o delinquente commetido o crime no estado de embriaguez. Para


que a embriaguez se considere circunstancias attenuante, deverão intervir
conjunctamente os seguintes requisitos: 1º
que o delinqüente não tivesse antes della formada o projecto do crime; 2º que
a embriaguez não fosse procurada pelo delinqüente como meio de animá-lo à

21. Martins, Os pobres e os termos de bem viver: novas formas de controle social no Império do Brasil.
22. Júnior Filgueiros, Código do Processo Criminal. Tomo I.
23. Obrigar a assinar o termo de bemviver aos vadios, mendigos, bêbados por hábito, prostitutas, que
perturbam o sossego público; aos turbulentos, que por palavras ou ações offendem os bons costumes, a
tranquilidade, e a paz das famílias. In: Júnior Filgueiros, Código do Processo Criminal. Tomo I.
24. Júnior Filgueiros, Código do Processo Criminal. Tomo I.
25. Regulamento nº 120, de 31 de janeiro de 1842, Capítulo IV, Secção I das atribuições do Chefe de Polí-
cia, artigo 58. O referido regulamento regula a execução da parte policial e criminal da Lei nº 261 de 3 de
dezembro de 1851. In: Ibidem.

232
Gênero Trans e Multidisciplinar

perpretação do crime; 3º que o delinqüente não seja costumado em tal estado a


cometter crimes26.

O artigo 20º vem advertir ainda que as circunstâncias mencionadas deveriam ser
provadas e, em dúvidas, a ré cumpria pena em grau médio. Ainda sobre a questão da
embriaguez, no processo abordado em capítulo posterior, uma das testemunhas do
processo de Termo de Bem Viver da ré Helena Cassiana aponta que viu “a ré gritan-
do nomes injuriáveis como ‘bestas e putas’ e não vi ninguém por perto dela, cheguei
a pensar que ela estivesse embriagada, e por isso falava sozinha e tinha alucinações”.
Os inspetores eram os “olhos do governo imperial”, responsáveis pela ordem
nos arredores das vilas, autuando nos comportamentos que eram intolerantes e
ofensivos ao decoro público como foi o caso da Josefa Péba, que aproveitou de seu
estado de ébria como forma de defesa perante acusação, e por esse pretexto lançava
palavras ofensoras à sociedade em função de andar bêbeda27 pela Vila.
O ato de “beber aguardente” era tido como vício e traduzido em comportamen-
tos desviantes acompanhados de perturbações dos sentidos. Os jornais da segunda
metade do século XIX também faziam referência a esse problema social na resposta
de um bêbado: “Bebeu e saiu da tosca; e à casa jamais chegou; na parede se encos-
tou; passa um diz que embirra; com tudo e diz-lhe: rapaz; que fazes aí, monado; que
para a casa não vaes?”.28
Como já previsto, e tido como algo cultural, eram também constantes em vários
pontos da província anúncios de vendas de alambiques, como vimos: “vende-se
uma propriedade de alambique com a força de 480 litros por dia, edificado na Rua
Lacise, da cidade de Maroim, quem pretendê-la dirija-se a Irenio de Motta na cidade
do Aracaju e na Bahia a Manoel de Silveira Nunes”.29 Os aguardentes que circula-
vam na vila de Riachão provinham do alambique da região em que era predominan-
te o fabrico de açúcar em engenhos.
O uso do álcool de forma frequente era um costume geralmente não tolerado
e considerado incompatível com os perfis femininos e masculinos idealizados. Ele
poderia ser um fator importante de desagregação familiar, desregramento de cos-

26. Tinoco, Código Criminal do Império do Brasil annotado, p. 232.


27. Joana Maria Pedro apontou algumas mulheres em papéis bastante diferentes dos normativos: são os
acasos das célebres bêbadas da cidade. Trata-se de Micaela e Carlota. Ambas frequentadoras, em épocas
diferentes, dos registros da polícia: “A Micaela era amiga da branquinha e, quando se excedia, entrava na
fase de leão, ficava braba e proferia cada nome cabeludo que daria para assustar o Sindicato dos Bárbaros”.
Pedro, Mulheres Honestas e mulheres faladas: uma questão de classe.
28. O Espião, 25 de fevereiro de 1883, p. 3.
29. O Raio, 2 de abril de 1876, p.5.

233
Mariana Emanuelle Barreto de Gois

tumes, maus exemplos para os filhos e, portanto, atraso social e distanciamento do


sentido de moralidade.30
Na imprensa sergipana, a mulher aparecia de uma forma mais recatada, e a
sociedade definia papéis sociais atribuídos a homens e mulheres, tendo em vista os
valores dominantes da época. No entanto, eram comuns manchetes de crimes na
Província de Sergipe e demais, em que as mulheres cometiam delitos ou algazarras.
O que reforça a tese de que as mulheres podiam não só ser vítimas da violência
como produtoras da mesma em um dado contexto social. Eram comuns, também,
os relatos de ditados populares sobre aspectos folclóricos da cachaça31, em que tam-
bém se encontra o ser feminino, sendo fonte inspiradora da poesia popular condu-
zida pela aguardente:

Bebem também as mulheres:


As que são de altas famílias
E mui nobre geração
Debaixo da cama trazem
Escondido um garrafão
E bebem muito, acrescente-se:
Saiba você, se não sabe
Creia você, se quizer
Não é com cachaça pouca
Que se embebeda a mulher32.

Como se pode observar nos versos populares, a cachaça era intrínseca ao


cotidiano Oitocentista. Josefa Péba aproveitava a caninha para praticar atos im-
próprios. Contudo, se não fossem as bebedeiras da ré, jamais se saberia de suas
histórias turbulentas.
Aqui, reencontra-se Josefa Rosa do Nascimento, vulgo Josefa Péba, em uma
nova trama. Na noite de novembro do ano de 1884, ocorreu um ato de prisão em
flagrante. A ré, dessa vez, fez ferimentos com uma foice em José Rodrigues da Silva,
conhecido como José Piancó. Segundo a vítima:

tendo ontem as oito horas mais ou menos em casa da mãe Maria delinqüente co-
nhecida como Naninha Péba, na terra Vermelha, lhe feito os ferimentos com que
se acha, e não podendo logo prendê-la por ter corrido, seguiu em procura dela

30. Matos, Meu Lar é o Botequim: Alcoolismo e masculinidade, p. 50.


31. Para Câmara Cascucdo, seria uma novidade cultural e psicológica (...). “De fato o aguardente de cana, que
os africanos denominaram cachaça, está intimamente ligada à vida do povo brasileiro, mui principalmente
nas regiões, onde floresceu a civilização açucareira e, conseqüentemente, sua contribuição ao folclore na-
cional é das mais expressivas”. Calazans, Aspectos Folclóricos da Cachaça.In: Revista de Aracaju,Aracaju,
n. 1, p.89-107, 1942.
32. Calazans, Aspectos Folclóricos da Cachaça. In: Revista de Aracaju,Aracaju, n. 1, p. 89-107, 1942.

234
Gênero Trans e Multidisciplinar

e só hoje ao clarear do dia pode efetuar a prisão dela em casa de Lourenço Dias
Veloso, conhecido por Lourenço Groço, nesta Vila na rua nova cuja prisão foi
presenciada por Manoel Victoriano Soares e Maria Joaquina de Jesus.33

O fato ocorrido causou espanto nas ruas da Vila de Riachão. Manoel Victorino
Soares, natural da Sambaiba, Província da Bahia, negociante, em seu depoimento,
afirmou que estava varrendo sua casa ao clarear do dia, quando ouviu e viu José
Piancó dizendo “prenda esta mulher”. A mesma entra na casa de um tal Lourenço
Groço, e, após instantes, a vítima sai com a delinquente presa e segurada pelo braço.
Na mesma ocasião, Manoel Victorino Soares vê José Piancó ensanguentado e com
ferimentos no nariz e na face.
Esse fato nos faz pensar quais os motivos que devem ter levado a ré a cometer
tal delito. A Justiça faz a qualificação da ré, interrogando-a sobre seu nome. A mes-
ma responde chamar-se Josefa Rosa do Nascimento, ter mais ou menos 30 anos e
ser solteira, com ocupação de doméstica. Josefa vivia de trabalho alugado aos outros
e de fazer louça, bem como morava em todo lugar. Sobre o fato violento, Josefa
contesta todas as acusações, afirmando que José Piancó foi à casa dela espancá-la.
Afirma ainda que o agrediu em legítima defesa.
O exame de corpo de delito foi realizado pelos professores Manoel José de
Oliva e o exator34 José Amâncio da Silva. Nos exames, os peritos encontraram feri-
mentos no nariz e na sobrancelha e talhos na face.
A vítima José Rodrigues da Silva, 28 anos, casado, lavrador, natural da Província
de Pernambuco, morador na Terra Vermelha do termo de Riachão, relata como se
deu o fato.

Seguindo do Engenho Coronel Dantas para sua casa, às oito horas da noite pou-
co mais ou menos, pouco antes de chegar à casa da senhora Anna, por apelido
Naninha Peba, colhera-lhe o chapéu ao mesmo tempo em que também passava
uma mulher a quem lhe pedira para lhe dar o dito chapéu, que não encontrando
pelo escuro da noite, resolveu chegar até a casa da referida Naninha afim de traser
dali uma luz com que achasse o chapéu. Ao chegar, e dizendo que ia, mandando-
-lhe que entrasse e apanhasse um tição de fogo: ele vendo que estavão no escuro
teve que advertir-lhes... Entretanto segui por apanhar o fogão, quando recebeu
um golpe de foice, que lhe saia de uma pessoa que se achava dentro de um quarto
junto ao fogão. A esta ação o respondente suspendeu o braço no sentido de pegar
quem o ofendia, quando recebeu de novo outra pancada que he feriu bastante a
mão direita. Não querendo penetrar no quarto, e recaindo mesmo que lhe pudes-
se fazer aquele dano maior, retirou-se perguntando a dona de casa e mesmo uma
filha a senhora Custódia quem lhe fazia aqueles ferimentos, e ela respondeu-lhe
que era sua irmã Josefa. A vista disto tomou-lhe a resolução de esperar ate que ela
saísse, dizendo querer pega-lá para trazer a justiça; mais sabia que ela havia aberto

33. AJES.Riac/c 2º of.Sumário de Culpa, 1884.


34. Cobrador de impostos e contribuições nos Oitocentos.

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Mariana Emanuelle Barreto de Gois

a cobertura da casa (que era de sapé) por onde se esvairá. Então levou o respon-
dente em sua companhia a irmã de Josefa, para não avisa - lá deste plano em que
se achava, e segui por todo o correr da noite, até que de manhã pode pega-lá.35

Os fatos foram mencionados em diversas vertentes. A ré Josefa Péba também


ficou ferida, segundo o exame de corpo de delito, realizado pelos tenentes Manoel
José de Oliva e José Ananias Silva. Estes encontraram uma raladura no lado direito
do rosto, na maçã do rosto, no nariz e no olho.
Josefa Péba, em seus atos de perguntas ao Juiz sobre o fato, mencionou que
estava na casa de sua mãe Custódia36, na Terra Vermelha, chegando Piancó que lhe
feriu com um pedaço de pau, alegando que ele não tinha nenhum motivo para lhe
causar tal ferimento. Comentou, ainda, que ele já foi lhe metendo o pau, não atendendo
ao pedido de sua mãe para que fosse embora e deixasse a sua filha.
Os testemunhos descritos do fato ainda não eram suficientes para decifrar o
caso de Josefa Péba, mas o depoimento de Francisco Martins, 37 anos, casado e
lavrador, é esclarecedor:

Respondeu que ouviu dizer pela ofendida que vindo do Giraú, um pouco embria-
gado, junto à casa da ré, perdeu o chapéu e veio a casa da mesma pedir um tição
de fogo para caçar, mandarão que ele entrasse e apanhasse o tição, e ele entrando
para apanhar o tição, foi quando recebeu a pancada de uma foice. Perguntou o
que era isso, deram-lhe, foice nas mãos, e ele querendo pega-la, ela trancou-se
num quarto, e do dito quarto escapou por cima, pelo telhado de sapé, que na mes-
ma noite ele veio ate esta vila e quando dormiu, no dia seguinte dez de novembro
deste mesmo, pela manhã foi esperá-la no Tanque da Nação por ele dizerem
que era o lugar mais certo encontrá-la, e quando estava no Tanque ela ofendeu e
vendo-lhe correu a ponto que ele corre atrás ate a casa de Lourenço Dias, a onde
pode julgá-la e trazida para a prisão.37

A testemunha Lourenço Dias presenciou o flagra da ré, quando a mesma ia para


o tanque pegar água e, na correria, entra na casa de Lourenço, indo à sua direção
Piancó quando a prende. Josefa Rosa do Nascimento, vulgo Josefa Péba, foi presa
na Cadeia da Vila de Riachão.
É interessante observar que, no ano de 1883, Josefa Rosa do Nascimento, vulgo
Josefa Péba, é chamada pelo Juiz de Paz para assinar um Termo de Bem Viver, por
proferir palavras injuriosas e por suas bebedeiras de aguardentes. Decorrido quase
35. AJES.Riac/c 2º of.Sumário de Culpa, 1884.
36. Custódia irmã da ré, solteira de 27 anos de idade, doméstica e moradora na Terra Vermelha, sobre o fato
testemunhou que ao escurecer do dia nove, estava na casa de sua mãe na Terra Vermelha, ali chegou Piancó
e foi dizendo que sua irmã Josefa desse conta de um chapéu e ela informante foi para sua casinha com seus
filhos, e ouviu cacetada, não sabendo quem dera e nem apanhara, por está em casa.
37. AJES, Riac/c 2º of.Sumário de Culpa, 1884.

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Gênero Trans e Multidisciplinar

um ano, é condenada pelo crime de ofensas físicas. Notamos também que a ré, ao
assinar o Termo de Bem Viver, já andava com instrumentos cortantes como faca,
embora não tenha ferido ninguém, mas já possuía pretensões. Após sua detenção, as
ruas das vilas de Riachão já não foram as mesmas, pois ela conduzia seus dias com
difamações ocasionando algazarras.
A criminalidade feminina na Província de Sergipe, com relação aos crimes mas-
culinos, não alcançava números elevados. Era preocupante também a questão da
instrução dos jurados, já que constituíam elementos fundamentais para a elaboração
do fato ocorrido. As notícias do estado de segurança individual e de propriedade da
Província tornaram-se manchetes principais nas páginas dos jornais, enfocando que
o estado era pouco satisfatório e diversas eram as causas, que, para isso, concorriam,
sendo o principal fato de não serem raras as pessoas, que, além da falta absoluta de
instrução, não tinham uma ocupação certa de trabalho ou indústria, de que viviam38.
As mulheres das Vilas de Riachão e Lagarto eram domésticas, costureiras e, em
sua grande maioria, lavradoras. Foram analisados 27 processos crimes, o registro das
profissões nos autos criminais auxilia e traz à tona a estrutura econômica regional e
local. São estas pequenas peculiaridades que são encontradas nos processos crimi-
nais das mulheres rés das vilas. Como se observa:

TABELA 8
Ocupações das mulheres rés

Profissão Quantidade
Lavradora 10
Costureira 1
Doméstica 8
Não especificado 7
Tear 1
Fonte: Processos Crimes do Arquivo Judiciário do Estado de Sergipe (La-
garto e Riachão 1850/90)

Sobre as profissões, podem-se observar, ainda, em relatos, algumas caracterís-


ticas. Como foi o caso da ré Joaquina da Rocha Nunes, que dizia viver de “prestar
serviços ao marido” e Josefa Rosa do Nascimento por “viver de trabalho alugado aos outros
e de fazer louça”, e também de “viver de suas lidas diárias e de seus bicos e de criar filhos”. Já
nas falas de Afra e Egnácia, ambas ex-escravas, viviam de carregar água e lenha e de botar
lenha pra vender, após a abolição da escravidão, as escravas não tinham outro meio de
vida, ambas analfabetas, seu rogo era assinado por terceiros.

38. Correio Sergipense, 22 de abril de 1854. p. 3

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De um universo de 27 mulheres, 7 foram absolvidas, uma despronunciada, 18


condenadas e 1 desistência de processo. Dentre estas, vejam que as representações
da tipologia do crime (tabela 9) demonstram que é elevado o índice dentre os pro-
cessos analisados de mulheres envolvidas em crimes contra pessoas e verifica-se um
respeito maior com relação ao crime contra a propriedade. São encontrados casos
em que a honra estava em jogo, mães tiveram que dar um fim no fruto de seus amo-
res praticando infanticídios, a fim de preservarem a honra da família e não serem
“faladas” perante a sociedade.

TABELA 9
Tipologia dos crimes

Crime Quantidade
Ofensas físicas 11
Termo de Bem Viver 2
Homicídio 1
Crime contra a propriedade 2
Infanticídio 2
Furto 1
Ofensas verbais 7
Fonte: Processos Crimes do Arquivo Judiciário do Estado de Sergipe (La-
garto e Riachão 1850/90)

Sobre os motivos alegados pelas rés, muitos deles originavam-se de desenten-


dimentos, ocasionando o conflito, como é o caso da ré Maria Joaquina, que diz ter
cometido o crime por Geralda Maria insultar sua filha e chamar toda a família de
“ladrões e desgraçados” (tabela 10).
No relato das testemunhas e vítimas e nas alegações das rés, nota-se que essas
mulheres cometiam crimes em virtude de desejarem resolver rixas antigas, piegas
atuais da conquista de amores, para além da defesa da honra. Estas mulheres que
agiam com transgressões, muitas das vezes, contavam com a ajuda de corréus, que
eram seus cúmplices, foram eles, amigos e vizinhos, que ajudaram as rés em alguns
casos, por interesses em objetos ou ganhos. Podemos aqui citar o caso de Mariana
do Querino, que tem como parceiro o corréu Manoel, e o mesmo recebe “um corte
de vestido” para ajudá-la.

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TABELA 10
Motivos alegados pela ré

Motivação para o crime Quant.


Marido tinha relações ilícitas 3
Rixas 7
Palavras injuriosa (xingamento) 5
Defesa da honra 2
Não especificado 6
Altercação 4
Fonte: Processos Crimes do Arquivo Judiciário do Estado de Sergipe (La-
garto e Riachão 1850/90)

Os processos judiciais trouxeram histórias de violência que causaram temor por


suas descrições, em alguns casos, risos pela forma dissimuladas que agiam, e, em
outros, surpresas. As testemunhas constituíram principal instrumento usado para
julgá-las, reproduzindo o ato acontecido. Durante o ato de inquirição das teste-
munhas, era perguntado se conhecia a procedência das rés, em muitos dos relatos,
eram taxadas de rixosas e turbulentas, e, assim, as testemunhas caracterizavam as rés,
atribuindo-lhes valores e juízos.
As rés começavam as desavenças nas ruas, em espaços públicos, bem como pri-
vados, e apresentavam-se com comportamentos desviantes e transgressores frente
à moralidade e ordem exigidas e que faziam parte do convívio sociocultural de cada
uma destas. Elas viveram à margem quebrando condutas estabelecidas, eram forras,
livres, pobres e abastadas, que emergia no meio rural a violência nas relações coti-
dianas e afetivas das Vilas de Lagarto e Riachão, e que, em sua maioria, provinham
de desentendimentos por razões frívolas.
Foram exemplos de mulheres que transgrediram regras normativas da imagem
idealizada de mulher no século XIX e defenderam seus interesses próprios ao mo-
verem processos e, em diversos casos, foram atuantes de crimes contra a pessoa ou
propriedade. Certamente, foi, na Cadeia, a finalização dos conflitos atuados pela
Justiça das Vilas de Riachão e Lagarto.

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