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Miolo Genero 28-03
Miolo Genero 28-03
Trans e
Multidis ciplinar
ISBN: 978-85-8148-222-4
CDD: 302
IMPRESSO NO BRASIL
PRINTED IN BRAZIL
Foi feito Depósito Legal
Joanice Conceição
IMAGEM 1 .......................................................................................................................25
IMAGEM 2 .......................................................................................................................25
IMAGEM 3........................................................................................................................28
GRÁFICO 1......................................................................................................................32
IMAGEM 4........................................................................................................................33
TABELA 1.........................................................................................................................56
TABELA 2.........................................................................................................................57
TABELA 3.........................................................................................................................58
IMAGEM 5........................................................................................................................67
IMAGEM 6 .......................................................................................................................67
IMAGEM 7........................................................................................................................71
IMAGEM 8 .......................................................................................................................73
IMAGEM 9 .......................................................................................................................76
IMAGEM 10......................................................................................................................80
TABELA 4.......................................................................................................................106
TABELA 5.......................................................................................................................108
TABELA 6.......................................................................................................................139
TABELA 7.......................................................................................................................139
IMAGEM 11 E 12..........................................................................................................143
IMAGEM 13 E 14..........................................................................................................144
IMAGEM 15....................................................................................................................144
IMAGEM 16 E 17...........................................................................................................145
MAPA 1............................................................................................................................192
IMAGEM 18....................................................................................................................229
TABELA 8.......................................................................................................................237
TABELA 9.......................................................................................................................238
TABELA 10.....................................................................................................................239
PREFÁCIO
No Brasil, os estudos que abordam as relações de gênero acompanham os di-
ferentes momentos dos movimentos feministas, os quais, a partir dos anos 1980,
começaram a criticar a condição da mulher no Brasil, isso porque o país começou
lentamente a sair dos chamados “anos de chumbo” da Ditadura Militar iniciada em
1964. Desde então, as mulheres brasileiras já se mobilizavam contra o custo de vida,
por creches e, timidamente, buscavam uma maior abertura política. Contudo, na
década de 1990, a atenção da universidade para a questão social das desigualdades de
gênero tornou-se mais nítida, expressando-se, por um lado, no aumento numérico
da produção científica nesse campo e, por outro, no interesse em abrir espaço para
cursos de pós-graduação lato sensu.
É importante destacar que o conceito de gênero foi construído por estudio-
sas da língua inglesa, como, por exemplo, Gayle Rubin1, antropóloga e feminista.
Refiro-me, claro, a um dos seus textos “clássicos”, The Traffic in Women. Mas se o
Traffic é mundialmente considerado um trabalho pioneiro e marcante no campo dos
estudos de gênero, um segundo escrito, Thinking Sex2, que discute especificamente a
diversidade sexual e pensa as relações entre sexualidade e gênero, não é tão conhe-
cido no Brasil. Rubin procurou responder teoricamente à recorrência “da opressão
e subordinação social das mulheres” com base em um diálogo crítico com a teoria
antropológica de Lévy-Strauss, com a psicanálise freudiana e com o marxismo. Em
decorrência desse debate, a autora reitera a ideia de que gênero é uma divisão dos
sexos imposta socialmente e produzida nas relações sociais da sexualidade, as quais
compõem o que ela denomina de “sistemas de sexo/gênero”.
Por sua vez, a historiadora Joan W. Scott3 introduziu o conceito de gênero na
História com o seu famoso artigo “Gender a Useful Category of Historical Analy-
sis”, publicado em 1986 na American Historical Review e traduzido em 1990 no Brasil.
Scott dialoga com autores pós-estruturalistas, como Michel Foucault e Gilles De-
leuze, e critica com eles a ideia iluminista da existência de um sujeito único universal
com características biológicas consideradas a-históricas, que fundamentam os dis-
cursos da dominação masculina. Ao propor o uso da categoria Gênero para a análise
histórica – e, por decorrência, para as Ciências Sociais –, pretende compreender e
explicar significativamente o caráter relacional, transversal e variável dessa categoria
analítica. Gênero é uma categoria de análise histórica, cultural e política, e expressa
1. Gayle Rubin.. The traffic in women. Notes on the “Political Economy” of Sex. In: Rayna Reiter. (ed.)
Toward an anthropology of women. New York: MonthlyReview Press, 1975.
2. Id. Thinking sex: Notes for a radical theory of the politics of sexuality [1984]. In: Henry Abelove;
Michèle Barale; David Halperin. (eds.) The lesbian and gay studies reader. Nova York: Routledge, 1993.
3. J. Scott. Gender and the politics of history. New York: Columbia University Press, 1988.
______. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, 20 (2), p.71-99, 1995.
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Maria Helena Santana Cruz
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PARTE I –
GÊNERO, CORPO E
LINGUAGENS
CAPÍTULO I
OS ESTUDOS DE GÊNERO COMO
MODELO DE LEITURA
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Carlos Magno Gomes
sor, o ex-marido Marcos Antônio Herredia, que apesar de tentar matá-la duas vezes,
deixando-a paraplégica, teve direito a viver em liberdade.
Com essa Lei, a impunidade masculina passa a ser vigiada pelo poder público.
Além de condenar toda forma de violência doméstica, o Estado procura amparar as
vítimas garantindo segurança, saúde, alimentação e cultura. Tanto o poder público
como as instituições que cuidam dos direitos da mulher defendem que a principal
forma de integrar a mulher que sofreu violência passa por garantir-lhe direito “ao
trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar
e comunitária” (Brasil, 2006). Para isso, a Lei tenta garantir assistência às mulheres,
como atendimento médico, “entre outras normas e políticas públicas de proteção, e
emergencialmente quando for o caso” (Brasil, 2006).
Desse modo, a Lei Maria da Penha traz um avanço ao considerar que sua apli-
cação independe da orientação sexual da mulher e encaminha a vítima a buscar seus
direitos e a ter outra chance na sociedade. Todavia, para sua consolidação, as autori-
dades estão preocupadas com a divulgação dos avanços legislativos que ela traz. Para
isso, o governo promove assistência social para as mulheres e seus filhos vítimas da
violência, assegurando “discussões, oficinas sobre as bases da violência e estimular
os laços de confiança e solidariedade entre as mulheres” (Coelho; Silveira, 2007, p.
2). Outra forma de divulgar as conquistas dessa lei está na sua popularização. Tal es-
tratégia pode ser iniciada com formação crítica de leitores (as) no espaço da escola.
Em busca de uma proposta inovadora, defendemos o modelo cultural de leitura
como uma opção política de interpretação de textos literários e de consolidação
dos direitos humanos. Esse modelo privilegia as questões identitárias por meio da
recepção textual, sem deixar de lado o campo ideológico do texto, pois “estes não
ficam de fora nessa troca que não é apenas intelectual, mas que joga com crenças
e valores e trabalha com a sensibilidade e a imaginação” (Chiappini, 2005, p. 170).
Essa abordagem é sustentada pelas reflexões heterogêneas dos estudos de gêne-
ro na educação que abordam múltiplos discursos e diferentes histórias em conflito.
Assim, as tensões sexuais e as questões de raciais também podem ser incluídas no
debate sobre como as subjetividades do sujeito contemporâneo, visto que “as iden-
tidades sexuais e de gênero têm o caráter fragmentado, instável, histórico e plural”,
pois somos sujeitos de muitas identidades, ora atraentes, ora descartáveis, ou seja,
transitórias e contingentes (Louro, 2001, p. 12).
Os estudos de gênero nos dão base para o questionamento da identidade tra-
dicional, quando problematizam o deslocamento da mulher no espaço da família
opressora. Nessa perspectiva, a leitura se torna eficiente quando identifica as re-
presentações literárias como um questionamento social dos espaços da mulher na
sociedade. Sabemos que as identidades de gênero são parte da cultura e estão mar-
cadas pelas formas como usamos nossos corpos discursivamente, pois “a identida-
de, como a de gênero, a sexual, ou qualquer outra, é produto tanto da cultura e do
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Gênero Trans e Multidisciplinar
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Carlos Magno Gomes
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Gênero Trans e Multidisciplinar
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Gênero Trans e Multidisciplinar
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Carlos Magno Gomes
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Gênero Trans e Multidisciplinar
to dessa situação, o ensino de leitura deve também incluir tais preocupações como
parte da pedagogia inclusiva. Com isso, a abordagem cultural a partir dos estudos de
gênero pode explorar o caráter educativo por trás dessa Lei.
Assim, a leitura e a formação crítica do(a) leitor(a) é parte de um modelo cultu-
ral de leitura que dialoga com políticas públicas que devem ressaltar a proteção da
mulher, “garantindo-lhe fortalecimento e respaldo dos poderes públicos, aí sim, fa-
zendo valer a Lei em toda sua plenitude” (Silveira; Coelho, 2007, p. 2). Dessa forma,
ao priorizar a revisão da representação da mulher, estamos promovendo a formação
de leitores(as) críticos(as) capazes de mudar as interpretações sobre a submissão
feminina e os estereótipos de gênero, pois no “processo contínuo de significação do
mundo cultural e ideológico, que está sempre significando e ressignificando – esse
processo é sem fim” (Hall, 2003, p. 362).
Como visto neste capítulo, a revisão cultural questiona a memória coletiva das
representações de gênero impostas pelo sistema patriarcal. Daí a importância de um
modelo cultural de leitura que valorize a revisão das identidades de gênero, visto
que o leitor crítico é um coautor, um invasor com sua imaginação e experiência
para atualizar os significados do texto. Portanto, ao priorizarmos a formação de um
leitor cultural pelo viés de gênero, leituras passam a ser vistas como um processo de
instauração de sentidos que variam e revisam os já construídos.
Então, com o modelo cultural de leitura, temos a oportunidade de alargar os
horizontes interpretativos dos textos e fugir da “comunidade interpretativa” (Hall,
2003, p. 379) que aprisiona a mulher às representações patriarcais de submissão,
instalando novos sentidos, pois esse modelo amplia nosso espaço de ação ao nos
sugirir ferramentas adequadas contra o preconceito. Por tal viés, o modelo de leitura
aqui proposto “produz uma ruptura no interior das vivências do sujeito, apontando-
-lhe as possibilidades de outro universo e alargando suas oportunidades de compre-
ensão do mundo” (Zilberman, 2001, p. 55).
Tal processo de ressignificação parte da abertura do leitor de se identificar
“com” e “através” do outro representado no texto, isto é, a alteridade da mulher é
explicitada no texto analisado pelo caráter ambivalente das representações de gêne-
ro. Essa revisão não deve ser vista como um ato isolado de leitura, mas como uma
nova dinâmica da sociedade brasileira, pois ressalta a condição coletiva da leitura e
sua condição de ser historicamente construída como parte da vida em comunidade
(Silva, 2005, p. 85).
Portanto, o modelo de cultura de leitura valoriza a participação do(a) leitor(a),
que “é responsável pela atualização dos textos” (Zilberman, 2001, p. 88). Com a
inclusão do tema do pertencimento identitário, esse agente da leitura vai aos poucos
percebendo que o texto literário revela diferentes abordagens dos problemas sociais
que devem ser historicamente situados, mas que, principalmente, devem ser com-
parados e problematizados a partir da recepção atual. Com isso, pensamos em um
ensino de leitura que explore as contribuições dos estudos de gêneros e da recepção
crítica para tornar o ato de ler um ato social.
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Carlos Magno Gomes
REFERÊNCIAS
ZILBERMAN, Regina. Fim do livro, fim dos leitores? São Paulo: Senac, 2001.
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CAPÍTULO II
QUERO MARCAR, RISCAR,
PERFURAR MEU CORPO!
TATUAGENS E PIERCINGS COMO
REPRESENTAÇÃO DE
MASCULINIDADE E FEMINILIDADE
Fabiana Maria Gama Pereira1
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Fabiana Maria Gama Pereira
meiro contato, buscou-se pouco a pouco uma inserção nos estúdios de modificação
corporal, estabelecendo vínculos com técnicos e eventuais usuários.
Alguns circuitos urbanos na cidade do Recife permitiram uma maior intimidade
com determinadas pessoas, posteriormente complementada com as observações
nos bairros da Boa Vista e de Boa Viagem, nos quais há uma maior concentração de
estabelecimentos especializados nessas técnicas. Na Boa Vista, a pesquisadora rea-
lizou observações em três estúdios, onde os técnicos se dedicavam a serviços mais
tradicionais (tatuagens e piercings). Já em Boa Viagem, foi possível frequentar o body
art, que além de ser um local especializado nas técnicas tradicionais, também se volta
às inovações da body modificacion, ou seja, ali são realizadas intervenções consideradas
por alguns de seus frequentadores como “radicais”, haja vista não se tratar apenas
de fazer um desenho no braço ou um “furinho no nariz”, mas de práticas ou experi-
ências que demandam intervenções extremas, como por exemplo, as escarificações3.
Lugares de sociabilidade e de consumo estético, esses espaços, formam redes
entre pessoas que partilham de interesses comuns que, nesse caso, se voltam, sobre-
tudo, para a experiência estética da modificação corporal. A partir do momento em
que se começa a trabalhar nos estúdios, os técnicos passam a se conhecer, formando
uma rede de contatos, tanto entre os tatuadores4 quanto entre os piercers5 bem como
com os usuários6.
Os interiores dos estúdios foram os locais que permitiram um contato mais
intenso com esse universo, pois lá era possível ter acesso aos informantes; lugares
onde se penetrava em seus cotidianos, sendo mais fácil estabelecer vínculos os quais
permitiram chegar a outros adeptos. A regularidade e a intensidade dessas visitas
possibilitou a inserção nas redes de relações.
Através das observações diárias nos estúdios, nas convenções e até mesmo nas
residências de algumas pessoas, foi possível perceber o quanto alguns papéis e prá-
ticas sociais, relacionadas com este universo, estão atreladas às categorias de gênero,
se destacando neste sentido, o tatuador como figura masculina e central que ocupa
um lugar de destaque. Para entendermos esta afirmação, analisaremos a inclusão da
3. O termo escarificação vem do inglês “scar” e significa cicatriz. Diferentemente da tatuagem e do pier-
cing, é uma técnica que consiste em cortar a pele, geralmente com um bisturi seguindo a forma de um
desenho. Sarada a ferida, volta-se a abri-la várias vezes, com o objetivo de que a cicatriz chegue a ser bem
visível, o desenho ressalte sobre a pele e não se apague com o passar do tempo.
4. Definem-se como técnicos ou especialistas em pigmentação da pele, enfatizando geralmente o labor
artístico, criativo e artesanal com que tratam suas realizações.
5. São técnicos cuja principal atividade é perfurar a pele e introduzir objetos decorativos geralmente guiados
por experimentos estéticos.
6. É a categoria mais complexa de se definir, pois os usos que fazem das intervenções corporais variam,
podendo ir desde uma simples marca, como linguagem identitária, até a adoção de um estilo de vida e de
estética corporal alternativas, dependendo da atividade que ocupa, do gênero, da posição social, dos inte-
resses, dos valores no contexto social de origem e da faixa etária.
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Gênero Trans e Multidisciplinar
(...) homens e mulheres pintam o corpo, na sua língua, diz-se “tatuou”, isso se
faz injetando cor negra sob a pele de tal maneira que a marca fique indelével. Mr.
Stainsby, eu próprio e alguns outros submetemo-nos a operação e tivemos os
nossos próprios braços marcados: a marca deixada na pele não pode ser apagada,
é dum belo azul violeta, bastante semelhante à marca deixada pela pólvora. (Cook
apud Le Breton, 2004, p. 40 – 41)
(...) Em 1828, John Rutherford chega a Bristol com a pele coberta de tatuagens
maoris que ele afirma terem-lhe sido igualmente infringidas contra a sua vontade
com dores terríveis. Constrangido a casar com a filha do chefe de quem diz ter
três filhos, consegue, após seis anos de cativeiro, escapar num navio americano.
Reencontra a sua família britânica, aureolado com o estatuto de vítima. Em breve,
consciente do seu valor simbólico e mercantil, apresenta as suas tatuagens em
público em Bristol ou em Londres. (Le Breton, 2004, p. 65-66)
A ficção da violência garante o valor das suas afirmações e justifica a razão de tais
ornamentos. A tatuagem continua a ter uma reputação duvidosa, e é contada como
consequência de uma violência física e de uma ação perversa dos “primitivos”.
No ocidente, durante muito tempo, foi uma prática quase que exclusiva de ho-
mens e para homens. Poucos são os relatos de mulheres tatuadas e, nos momentos
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Fabiana Maria Gama Pereira
em que apareciam, sempre estavam ao lado do tatuador, como bem aponta a des-
crição a seguir:
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Gênero Trans e Multidisciplinar
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Fabiana Maria Gama Pereira
nacen con esa blancura que conservan absteniéndose del vino, bebiendo mucha
leche, recurriendo a sangrías muy frecuentes, a lavativas y también a otros medios:
por lo tanto no hay que maravillarse de que sus mejillas sean rosadas y sus senos
de color de lirio. (Locateli apud Vigarello, 2005, p. 78)
Criação divina, o corpo humano era associado ao sagrado. Marcá-lo era passá-lo
ao profano, ao proibido, pecaminoso e sujo (Douglas, 1966). Mexer na carne signi-
ficava contaminá-la. Dessa forma, a pele, invólucro protetor, deveria está coberta
para nem mesmo receber os raios do sol.
Os cristãos acreditavam que o homem era criado por Deus a sua imagem e
semelhança e, segundo o Gênesis, não se poderia mexer no corpo para preservá-lo
à eternidade. A integridade do organismo era um dos atributos para guerreiros e
sacerdotes; ser santo era ser total, ser uno. Quem tocava o corpo humano era dis-
criminado, pois infringia um tabu cristão, de forma que no século XII o Concílio
de Trento proibia os médicos monásticos de proceder à sangria, prática corrente na
época, já que violava os limites da carne.
Conforme a Bíblia faz referência: “Não fareis incisão no corpo de um morto
nem fareis em vós próprios tatuagens”(Bíblia apud Le Breton, 2004, p. 26).
Acreditava-se também que o Diabo marcava com um sinal a testa de bruxos récem-
-iniciados, conforme atestam pinturas do século XVIII. O Islamismo também pro-
íbe a tatuagem. No Alcorão está escrito: “A tatuagem é uma marca satânica, causa
maldição, as abluções rituais não tem efeito nenhum sobre a pele tatuada” (Vázquez
Hoys, 2003, p. 523, 524, 530).
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Gênero Trans e Multidisciplinar
3. A TRAJETÓRIA DO TATUADOR
Durante muito tempo, a tatuagem no ocidente se relacionou com os universos
considerados marginais: dos ladrões, assassinos, prostitutas e delinquentes (Le Bre-
ton, 2004).
As primeiras propostas de interpretação científica a respeito das marcas corpo-
rais partem da escola positivista italiana com Cesare Lombroso, em 1876, em seu
livro El hombre delincuente. Lombroso desenvolveu todo um postulado pautado na
criminalística e apoiado pela antropologia, psicologia, medicina, sociologia e direito
para explicar o que estaria por trás daquele que busca uma tatuagem. Em sua opi-
nião, havia uma conduta antissocial, fundamentalmente as que eram consideradas
como delitos, tentando explicar assim as causas ou os fatores que levavam o homem
a se tornar um delinquente (Alvarez Licona, 1998).
Os métodos usados para tatuar eram, inicialmente, ditos “pré-históricos”, con-
siderados não higiênicos e inadequados pela propensão à infecção:
No início do século XX, os bons tatuadores “eram aqueles que só faziam uma
picada na pele, ao passo que os inábeis chegavam a fazer até três para que a tatuagem
ficasse nítida, o que resultava em um extravasamento de sangue” (Da Cruz Ribeiro,
1912, p. 47).
Como se pode perceber, os procedimentos empregados na tatuagem eram bas-
tante rudimentares e muito dolorosos, mas ao que parece a valorização da dor para
esses grupos estaria relacionada a sinais de resistência, virilidade e sedução.
Inicialmente bastante marginalizado, o tatuador trabalhava nas ruas ou em qual-
quer lugar onde houvesse pessoas interessadas, e costumava levar consigo seu mate-
rial de trabalho, que consistia na máquina de tatuar, agulhas, tintas e rolos de papéis
com desenhos muitas vezes confeccionados por ele ou copiados de outros tatuado-
res, usados para atrair os clientes e motivá-los a se tatuarem.
(...) Conta-se que nesta época, no Rio de Janeiro, um tal Madruga é o chefe dos
tatuadores e que quase todos os seus auxiliares são crianças vagabundas, que visi-
tam prostíbulos, quartéis, fundos de tabernas e todo lugar que reina a ociosidade,
em busca de clientes. O tal Madruga tem no seu corpo todo a idealização do seu
cérebro doentio, desde a simples tatuagem religiosa ou amorosa, até as eróticas ou
extravagantes. (Da Cruz Ribeiro, 1912, p. 7)
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Fabiana Maria Gama Pereira
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Gênero Trans e Multidisciplinar
A tattoo prosperou na década de 1970 e aos poucos foi saindo das ruas e se in-
corporando a lugares comerciais próprios11. Pouco tempo depois o piercing passou
a fazer parte deste universo e com ele houve algumas transformações, sobretudo no
que se refere aos usos que estão associados a essas práticas. Apesar de o piercing ter
surgido no Ocidente quase um século depois da tatuagem, há dados de povos que
furavam o nariz com troncos de madeiras há cerca de 4.500 anos (Lautman, 1994).
Perfurar o corpo é um tipo de prática bastante antiga em outras culturas:
11. Atualmente há muita inspeção nos estúdios de tatuagens, o que levou a uma mudança significativa na
maneira de trabalhar com a técnica, sobretudo no que se refere à higiene e transmissão de doenças.
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Fabiana Maria Gama Pereira
Tenho esse na boca porque eu gosto. Os outros seriam mais uma forma de estimular sexualmente.
E isto eu gosto muito... sexo. Então, porque não fazê-lo? Por exemplo, eu faria um na sobran-
celha ou aqui (aponta ao canto da boca), mas não por conta da bobagem que tá todo mundo
fazendo. Me parece bem, na parte sexual (faz um gesto em direção ao seu pênis, como se estivesse
se referindo ao prazer genital). Se eu tenho uma namorada, eu daria a ela o maior prazer sexual
possível. Igual comigo, se eu quero ter mais prazer sexual, pode ser com o piercing. Eu também re-
corro a essas coisas, porque eu acho que é sadio. Se você tem um namorado que sexualmente é bom,
então queres que esteja contigo, também tens que dar algo, sabes... E também todos temos gostos,
fantasias e coisas que gostamos de provar. E por que não? Por que negar à tua namorada ou a
quem quer que seja, não sei, algum gosto? Algum desejo? Tem que ensinar a ela a jogar também.
(...) é engraçado porque quem vai fazer fica morrendo de vergonha. Eu queria fazer um,
mas eu tenho vergonha de fazer. Eu, namorando com Vinícios (se referindo ao tatuador
com quem mantém uma relação afetiva), não tenho coragem de fazer... não sei, é
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Gênero Trans e Multidisciplinar
porque é tão constrangedor, você pensar que vai ficar pelada com a perna aberta pra colocar
um piercing (risos).
Ao mesmo tempo em que ela se refere naturalmente ao uso destes adornos por
parte de homens, demonstrando inclusive que já tem suficiente experiência nes-
ta prática, com relação às mulheres se recusa a perfurá-las nas partes íntimas, por
sentir-se insegura: “Se chegar uma mulher pedindo pra eu colocar um piercing genital, eu não
vou fazer. Eu não tenho prática, tenho medo de pegar um vaso que não pode”. Como já obser-
vou Pierre Bourdieu (1982), é prática corrente os indivíduos se identificarem com
os seus grupos de referência. A eleição de amigos, namorados, geralmente se faz
no mesmo grupo e, no caso dos tatuadores e piercers, muitas vezes se dá no próprio
local de trabalho.
Dentro do estúdio de tatuagem a cabine onde os técnicos trabalham é o local
onde se pode ter um maior acesso à intimidade dos interlocutores, é onde passam
grande parte dos seus dias trazendo para dentro de tais espaços memórias de suas
vidas, de seus cotidianos: fotos, músicas, objetos pessoais, etc. Na cabine, tatuadores
e piercers assumem o controle da situação: são eles que ditam as regras. Mas para
além da questão do poder coloca-se a sexualidade, as modificações corporais mos-
tram a nudez. Naquelas salas privadas vivenciam momentos íntimos e secretos, em
geral, irreveláveis, e que guardam para si. Ali, o técnico tem contato com peles e par-
tes íntimas, manuseia seios, ventres, bocas, vaginas e pênis. Nesse sentido, trata-se
de um trabalho delicado, em que há o contato físico com o corpo do outro, lugar de
sua intimidade, conforme aponta Paulo (40 anos), tatuador da Conde da Boa Vista:
“Eu levo tanto tempo trabalhando nisso. Quando eu comecei sim, eu tinha aquele negócio. Pô, vou
tatuar uma bundinha, vou tatuar um peitinho... pô eu era novo, tinha aquela ideia. Hoje em dia
eu já tatuei tanto que já me tornei um ginecologista”.
Na opinião de Le Breton (2004), a relação é algumas vezes vivida sob a forma
de um contato sexual sublimado, citando alguns autores que comparam a tatuagem
a um ato sexual entre um parceiro ativo e outro passivo, que se conclui através da
injeção de tinta na pele. Segundo o autor, há relatos que chegam a descrever casos
de amor entre o tatuador e seu cliente, inclusive citando homens em que a tatuagem
os levou a um orgasmo.
De acordo com o que foi observado empiricamente, a entrada das mulheres nes-
te universo se dá geralmente a partir da relação afetiva com o técnico. Muitas vezes
trabalham inicialmente como recepcionistas e, com o tempo, vão aprendendo a per-
furar através do piercing12. Algumas interlocutoras que se tornaram piercers também
acham que, nesse universo, muitas passam a ser conhecidas e ter visibilidade por
12. A grande maioria passa a trabalhar como piercer, sendo ainda muito pequeno o número de tatuadoras.
31
Fabiana Maria Gama Pereira
intermédio de um homem e não pelos seus próprios méritos, até porque, segundo
elas, muitos dos técnicos não admitem que elas se sobressaiam mais do que eles.
No grupo aqui estudado, constituído por 64 pessoas que fazem uso de tatua-
gens, piercings e, em alguns casos, de intervenções corporais consideradas radicais,
verificou-se uma predominância de homens (62,5%) em relação a mulheres (37,5%).
GRÁFICO 1
80
70
62,5
60
50
40 37,5
30
20
10
0
Masculino Feminino
13. Durante o trabalho de campo realizado, a pesquisadora teve contato com 21 tatuadores; desses,
somente 1 mulher.
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Gênero Trans e Multidisciplinar
4. PONTUAÇÕES
O ato de marcar o corpo é uma prática exclusivamente humana e presente em
distintas culturas. Nas sociedades tradicionais a tatuagem, a escarificação, a perfura-
ção do corpo, entre outros costumes, estiveram relacionados a diferentes sentidos
e significados culturalmente atribuídos, exprimindo-se coletivamente por meio de
atividades simbólicas diversas: ritos de passagem, técnicas de embelezamento, luto,
distinção social, hierarquias, etc. No Ocidente houve uma releitura e ressignificação
das modificações corporais, visualizadas tanto através de seus aspectos negativos
quanto positivos.
No universo pesquisado, os tatuadores se constituem numa maioria. Quase to-
dos se dedicam exclusivamente à tatuagem e alguns são donos dos ateliês. Apesar de
ser um mundo masculino, há uma corte de mulheres que os rodeiam, seja trabalhan-
do em funções burocráticas, seja aprendendo a técnica de aplicação de piercings,
seja compondo o espaço de sedução.
O tatuador entra em cena primeiramente como alguém que se dedica a um cam-
po que é da ordem da marginalidade. Tentativas de análise científicas interpretaram
a tatuagem como uma técnica relacionada a indivíduos delinquentes. Aos poucos,
o tatuador vai deixando esse lugar de exclusão, ganhando espaço e visibilidade na
sociedade. Para além do técnico, passa a ser empresário.
As mulheres pouco se destacaram neste meio e, muitas vezes, estiveram ao lado
do tatuador, responsável pela arte em seus corpos. Atualmente, muitas já levam
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Fabiana Maria Gama Pereira
REFERÊNCIAS
ALVAREZ LICONA, Nelson. Las Islas Marías y la práctica del tatuaje: Es-
tudio de las estrategias de adaptación en una institución total. 1998. Dissertação
(Mestrado em Antropologia) – Faculdade de Ciências Humanas, Universidade
Complutense de Madrid – UCM, Madri.
ARAUJO , Leusa. Tatuagem, piercing e outras mensagens do corpo. São Pau-
lo: Cosac & Naify, 2005.
BOURDIEU, Pierre. La Distinction: Critique Sociale du Jugement. Paris: Minuit,
1982.
DA CRUZ RIBEIRO, Ângelo Ribeiro A. Tatuagens, estudo médico legal. 1912. Dis-
sertação (Mestrado em Medicina) – Faculdade de Medicina da Bahia – UFBA, Salvador.
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Gênero Trans e Multidisciplinar
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CAPÍTULO III
UMA PERSONAGEM DE MUITAS
FACES : UM OLHAR SOBRE O FILME
MADAME SATÃ DE KARIM AÏNOUZ1
Alberto da Silva2
Nascido em 1900, apenas doze anos após a abolição da escravatura, João Fran-
cisco dos Santos tornou-se uma figura conhecida e controvertida do Rio de Janeiro,
acumulando várias características extremamente contraditórias vistas por um olhar
mergulhado nos costumes da sociedade brasileira da primeira metade do século XX:
homem negro, viril, transformista, homossexual, cafetão, ladrão, malandro e assassi-
no. Assumindo todas essas contradições, João Francisco confundiu e embaralhou as
mentes desse período encarnando uma enigmática mistura inscrita sobre uma linha
tênue entre o que se esperava do comportamento masculino e do feminino. Nesse
ínterim, uma série de veículos construíram uma imagem mítica do travesti que, a
partir de 1938, ficou conhecido pelo nome de Madame Satã: apelido tirado de uma
fantasia com qual ele desfilara no carnaval, por sua vez inspirada na personagem do
filme homônimo, Madame Satan (1930) de Cecil B. DeMille.
Neto de escravos, João Francisco ou Madame Satã vivia em uma família pobre
de 17 irmãos no Nordeste brasileiro. Chegando ao Rio de Janeiro em 1907, após
ter sido trocado por um burro, segundo ele, por sua mãe, João se instala no bairro
boêmio da Lapa, conhecido na época pela prostituição, malandragem e pelo jogo.
Personagem controvertido e inclassificável, Madame Satã sempre incomodou os
olhares influenciados pelos modelos normativos, pois se ele assume publicamente
sua homossexualidade, participando em vários shows de travesti, ele confunde e
incomoda o que se poderia esperar do estereótipo da “bicha” frágil e afeminada,
encarnando a figura do malandro, temido por todos do bairro: além de um exímio
capoeirista, ele ameaçava seus desafetos e até mesmo a polícia com uma lâmina de
gilete amarrada em um cordão.
1. Este artigo é uma versão traduzida do francês do texto “Le Carrefour performatif de genres dans
Madame Satã de Karim Aïnouz”, publicado na revista Inveses – Littérature, Arts & Hommosexualités, n° 12,
Châtillon : Société des amies d’Axieros, 2012, p. 23-34.
2. Professor na Université Rennes 2 e na Université Paris VII. Doutor em Estudos Ibéricos pela Univer-
sité Paris IV – Sorbonne, e em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Membro do Grupo de
Pesquisa Centre de Recherche Interdisciplinaire sur les Mondes Ibériques Contemporains (CRIMIC) – Uni-
versité Paris IV – Sorbonne. alberto1789@yahoo.fr
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Fabiana Maria Gama Pereira
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Gênero Trans e Multidisciplinar
gem, antes de João Francisco dos Santos cometer o crime que o levou à prisão. Tra-
ta-se de focalizar, centralizar o olhar sobre a personagem, pois, segundo o diretor:
Se você ficar olhando para uma pessoa durante três minutos há algo que vai, que
é quase sublime, religioso. É muito emocionante você poder ficar olhando para
uma pessoa durante três minutos. Não sei se é só uma questão intuitiva minha ou
se é uma questão também do tempo em que vivo, entendeu? Acho que no tempo
em que eu vivo, a gente quase não para e olha. E eu gosto de fixar o olhar... (...)
(Campion, 2003)
39
Fabiana Maria Gama Pereira
3. Sobre o Malandro na cultura brasileira ver igualmente Cândido, “Dialética da Malandragem (caracteriza-
ção das Memórias de um sargento de milícias)”, Revista do Instituto de estudos brasileiros, n.8, São Paulo,
USP, p. 67-89, 1970; Rocha, “Navalha não Corta Seda: Estética e Performance no Vestuário do Malandro”,
Revista do Departamento de História da UFF, v. 10, p. 133-154, 2006.
4. Ver Butlher, Le Pouvoir des mots: Politique du performatif e Butlher, Problemas de Gênero. Femi-
nismo e subversão da identidade.
40
Gênero Trans e Multidisciplinar
que atravessa o filme e contribui para criar uma atmosfera alegre e boêmia em con-
traponto com a miséria e adversidades nas quais vivem as personagens.
A personagem principal vive em dois mundos completamente antagônicos: ao
perseguir o sonho de uma carreira artística, João encarna a delicadeza e a doçura;
por outro lado, ele é obrigado a se confrontar com o racismo e preconceito, os quais
ele enfrenta com a agressividade e a violência das ruas. Dois mundos bem delimita-
dos na mise en scène proposta pelo diretor, divididos pelos arcos da Lapa filmados em
contraplongée e que aparecem em varias sequências estabelecendo uma delimitação
entre o luxo e a riqueza de um Rio de Janeiro enquanto capital federal e as ruas es-
curas e os botequins insalubres do bairro da Lapa.
No meio desses dois universos, a casa do protagonista representa ainda outras
possibilidades. Em várias sequências, ele aparece ao lado de sua protegida, a prosti-
tuta Laurita, e sua filhinha: seja na praia ou em um parque, momentos que revelam
um João Francisco doce e paternal. Os três dividem o mesmo teto com Tabu: per-
sonagem muito afeminado interpretado por Flávio Bauraqui, encarnando o estere-
ótipo da “bichinha”, na imitação dos trejeitos femininos.
Essa personagem se constrói como um espelho de Madame Satã; a fragilidade
de Tabu representa, de uma certa maneira, uma possibilidade que João Francisco
rejeita. As duas personagens se inserem em uma constante relação sadomasoquista,
em uma tensão inscrita sobre um tênue fio de uma profunda violência, complexifi-
cada por uma atmosfera que oscila entre a coqueteria e a sensualidade. Uma sensu-
alidade que ocupa um lugar importante na mise en scène do cineasta que, é reforçada
na pluralidade dos registros performáticos da personagem principal.
41
Fabiana Maria Gama Pereira
desfocadas e uma iluminação que fazem explodir as cores presentes no filme. Como
afirmara Joaquim Ferreira dos Santos, a encenação proposta por Karim Aïnouz é
“o resultado [de] uma vanguarda bem acabada, disposta a descer aos infernos da ex-
periência estética e humana, mas respeitosa de que essa aventura seja compreendida
pelo público” (Dos Santos, 2002, p. 2).
Algumas sequências, ao oscilar entre as imagens bem enquadradas e outras des-
focadas, metaforizam a instabilidade do protagonista quando elas se dissolvem se-
guindo o fluxo de suas emoções, em constante contradição entre o sonho da vida
artística e a dura realidade de sua condição de homem pobre, negro e homossexual
dentro de um contexto de uma sociedade racista e machista. Se o cineasta opta
sistematicamente por um enquadramento em close, o corpo da personagem prin-
cipal transborda várias vezes do quadro, mais uma vez criando uma metáfora que
nos remete por um lado aos excessos de uma personalidade instável e vulcânica, e
por outro, à dificuldade de canalizar os sentimentos de João Francisco. Nesse caso,
todos esses elementos que caracterizam a encenação humanizam e impedem o es-
pectador de qualquer tentativa de julgamento. Contrariamente a uma visão exterior,
feita de ideias preconcebidas, como apresentada no texto do processo lido no início
do filme, Karim Aïnouz propõe uma aproximação da personagem através de uma
demonstração do cruzamento de múltiplas possibilidades performativas inscritas
em um valor positivo, que, aliás, são igualmente o resultado de uma resistência à
construção sociocultural e uma reação corajosa às imposições de modelos aceitáveis
e esperados de raça, classe e gênero.
Nesse contexto, o corpo da personagem aparece como uma possibilidade de
expressão (Azeredo, 2002, p. 2). Segundo o cineasta, “a paisagem principal do filme
é o corpo. Ele é a tela onde a personagem se expressa, não só como travesti, mas
pela capoeira, pela presença” (Werneck, 2002, p. 1). Uma presença construída pela
iluminação, fotografia e mise en scène, mas também pela forte interpretação do ator
Lázaro Ramos. Desde os movimentos de capoeira, passando pelas sensuais sequ-
ências de amor com seu amante delinquente até as coreografias em todas as cenas
de cabaré, o ator oferece à personagem uma constante tensão que caracteriza toda
a encenação do filme; sempre no limite entre ternura e explosão, violência excessiva
e sofrimento.
Tendo em vista a história da personagem e a situação dos negros no Brasil após
a abolição da escravidão, o corpo foi, aos olhos do ator Lázaro Ramos, a única arma
de resistência e de sobrevivência utilizada por Madame Satã, “seja através da capo-
eira, da dança ou da exploração da sensualidade” (Arantes, 2002, p. 1). A partir do
final do século XIX, a passagem de uma economia escravocrata para uma mão de
obra assalariada confina uma numerosa população de negros e mestiços em espaços
bem delimitados e definidos, reinscrevendo seus corpos em estereótipos generefi-
42
Gênero Trans e Multidisciplinar
cados5 e sexuados. Nesse contexto, como questiona Judith Butler, “será que ‘o cor-
po’ em si é modelado por forças políticas com interesses estratégicos em mantê-lo
limitado e constituído pelos marcadores sexuais?” (Butlher, 2003, p. 185). É assim
que a figura da mulata, inscrita em uma sexualidade excessiva6, e a do malandro,
enganador, traiçoeiro e preguiçoso, se inscrevem no imaginário da cultura brasileira,
respectivamente, enquanto um registro do poder sexual e o da marginalidade. Se o
corpo aparece sempre como um simples veículo sobre o qual são inscritos os sig-
nificados culturais, a personagem de Madame Satã proposta pelo filme confunde,
distorce, complexifica essas significações e cria vários obstáculos a toda tentativa de
apropriação e interpretação.
Por outro lado, Karim Aïnouz opta por traçar o percurso da personagem antes
de sua mitificação e o insere em uma perspectiva nacional popular enquanto ele-
mento de certa “brasilianidade”, como ressaltara o pesquisador Hernani Heffner
(Heffener, 2002, p. 2). Além da valorização do carnaval, reivindicado inúmeras vezes
como um espaço possível de inversão social, política e sexual na cultura brasileira,
em via de “mundo às avessas bakhtiniano”, o filme possui igualmente uma trilha
sonora repleta de sambas que representam a força da cultura popular no país.
Todas essas questões estão presentes em uma das últimas sequências do filme,
quando João Francisco se prepara para entrar em cena. Em um primeiro momento,
essa cena estabelece um contraste com as primeiras sequências do início do filme,
nas quais a personagem principal admirava e imitava os gestos delicados e o canto
exótico que acompanhava a letra da música cantada por Vitória. Se a patroa e can-
tora, que não perdia uma oportunidade de humilhar um João Francisco apaixonado
e submisso, preparava-se em um camarim envolto em belos vestidos, joias, flores e
espelhos, nesta última sequência, João Joaquim dos Santos se prepara nos fundos
de um bar simples da Lapa. Ao invés de um público de uma elite que olhava aten-
tamente a bela cantora na cena do cabaré, são os habitués da Lapa que esperam, em
meio a gritos e risadas, em uma atmosfera carnavalesca e anárquica, o(a) protagonis-
ta que se prepara em um camarim improvisado. Filmado em primeiro plano, o cor-
po da personagem é, mais uma vez, colocado em evidência: com o tronco à mostra,
banhado em purpurina e rodeado por vários colares coloridos. Em sua encenação,
Aïnouz privilegia o contraste claro/escuro e um corpo que não cabe nos limites do
quadro, enquanto a personagem recita seu texto em frente a um espelho sujo e que-
brado. Mais uma vez, a personagem se inscreve em uma imagem às avessas daquela
apresentada pela cantora Vitória em uma versão de Mil e uma noites, na qual o sultão
5. Se em francês é normalmente utiliza-se a palavra “genré”, aqui optamos por “genereficada”, termo
proposto em Salih, Judith Butler e a Teoria Queer.
6. Por uma discussão a figura da mulata na cultura brasileira ver Corrêa, “Sobre a invenção da mulata”.
Cadernos Pagu, São Paulo, n. 6-7, p. 35-50, 1996; e Parker, Corpos, prazeres e paixões – A cultura no
Brasil contemporâneo.
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Gênero Trans e Multidisciplinar
REFERÊNCIAS
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Fabiana Maria Gama Pereira
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CAPÍTULO IV
“LEI DAS EMENDAS VAGINAIS”
REVISITADO
Braulino Pereira de Santana1
1. Doutor em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia (2010). Professor adjunto da Univer-
sidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), campus de Jequié-Ba.
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Braulino Pereira de Santana
ne se o pai deputado não vai levá-la imediatamente a mais cara das clínicas da cidade, para raspar
do seu útero de princesa o pedaço de carne indesejável. O filho será, sim, mais uma vez, da favelada.
Difícil acreditar sequer na possibilidade de uma emenda como essa vir a ser aprovada num
país de costumes liberais como o Brasil, em pleno ano 2000. Ora, se deve haver qualquer lei que
trate do corpo da mulher, que seja, no mínimo, elaborada por mulheres. O corpo é nosso, a vagina
é nossa, quem deve decidir que pênis vai entrar ou sair dela, ou que feto vai crescer ou não no nosso
útero somos nós. Alguma dúvida?
Esses homens brasileiros deviam ser tratados sob o chicote das feministas radicais da Europa.
Vi em Berlim pela primeira vez um homem urinar sentado no vaso sanitário, igual às mulheres.
Perguntei por que ele mijava sentado. Rindo da minha surpresa, contou que aquilo era comum
entre os homens alemães da nossa geração (ele tem 32 anos), obrigados a agir assim por uma rí-
gida sequência de mães, irmãs, mulheres e namoradas que detestavam a molhação de mijo que os
homens, ao urinar de pé, faziam nas bordas do vaso. Impressionante a eficácia do feminismo ger-
mânico. É preciso aplicá-lo ao psicodrama que vista de calcinhas e sutiãs no plenário da Câmara.
Prólogo
Este artigo, dividido em cinco pontos, analisa o texto “Lei das emendas vagi-
nais”, de autora e publicação referenciadas acima, no ponto l, “O texto”. Os pres-
supostos teóricos como concepções para a análise são oriundos da Análise de Dis-
curso (AD). A partir dos conceitos de texto para a linguística textual e para a AD,
formações discursivas e formações ideológicas, o artigo procura “ler” o texto de
Marilene Felinto numa perspectiva mobilizadora de múltiplos sentidos, planejados
para responder a posições ideológicas fundamentalistas cristãs que tentam imple-
mentar políticas de sonegação de direitos elementares de proteção a mulheres em
situação de vulnerabilidade social, e a autora movimenta uma contra palavra, mobi-
lizando, assim, um contradiscurso.
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Gênero Trans e Multidisciplinar
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Braulino Pereira de Santana
O discurso se constitui em seus sentidos porque aquilo que o sujeito diz se ins-
creve em uma formação discursiva e não outra para ter um sentido e não outro.
Por aí podemos perceber que as palavras não têm um sentido nelas mesmas, elas
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Gênero Trans e Multidisciplinar
Uma formação discursiva pode ser vista como um conjunto de regras que de-
termina o que pode e deve ser dito a partir de certa posição na vida social, e as
expressões têm significado apenas em virtude das formações discursivas em que
ocorrem, mudando de significado quando são transportadas para uma outra. (Ea-
gleton, 1991, p. 173)
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Braulino Pereira de Santana
O título do texto “Lei das emendas vaginais” lida com um valor polissêmico
da palavra emendas: que se refere, explicitamente, como o texto deixa bem claro,
a uma proposta de emenda constitucional que veta o aborto à gravidez resultante
de estupro, apresentada por um deputado na Comissão de Constituição e Justiça da
Câmara dos Deputados e, implicitamente, a uma manobra de homens na tentativa
de domínio da condição sexual e do corpo das mulheres, como sugere a predicação
emendas vaginais.
Um valor polissêmico, inerente e associado à própria língua, mexe com uma rede
de filiações de sentido a que as palavras pertencem. Por isso, foi possível esse jogo
de ambiguidades com o título do texto: não há discursos que não se relacionem com
outros, em que outros não estejam embutidos neles próprios; há uma simultaneidade
de movimentos de sentido a que se filiam os discursos. Estabelece-se, assim, uma
relação entre a tramitação da emenda na Câmara dos Deputados e o domínio de
certo tipo de discurso nessa instância de poder, questionando o lugar das mulheres
na sociedade e a percepção que essa instância de poder tem sobre elas.
Considerando-se a ambigidade do título, o texto instaura um conflito entre o
conteúdo da emenda e as consequências que ela acarretaria à vida das mulheres; a
autora do texto, portanto, uma mulher, propõe essas mesmas consequências, num
exercício ficcional aos homens que querem aprová-la no Congresso:
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Gênero Trans e Multidisciplinar
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Braulino Pereira de Santana
Essa proposta dos deputados veicula uma visão subalterna das mulheres, como
se elas tivessem donos, sujeita-as a uma condição de animal ou de objeto:
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Gênero Trans e Multidisciplinar
bilizar essa rede de sentidos. O texto “Lei das emendas vaginais” pode se instaurar
tanto no universo da denúncia de uma posição machista, como caracterizar uma
construção ideológica que defende o aborto em determinadas circunstâncias, ou
demonstrar que determinados homens que ocupam o poder querem legislar sobre o
corpo de mulheres, ou ainda mobilizar alianças contra o projeto em pauta, demons-
trando que direitos devem ser sempre vigiados senão corre-se o risco de perdê-los
nas circunstâncias dos embates sociais. Averigua que as religiões cristãs instituem
um lugar submisso e subalterno às mulheres na sociedade e movimenta sentidos
punitivos em relação ao comportamento de homens brasileiros.
Assim, um discurso mobiliza tantas representações, e somente aquelas, que não
é possível considerá-lo homogêneo, funcionando automaticamente, tratando de
uma temática monoliticamente. Muitos problemas de composição textual em sala
de aula compreendem queixas dos professores como: “você fugiu do tema”, ou “o
seu texto é uma salada de fruta”, ou “não há um eixo temático” ao qual seu texto se
filie. Tais falas apontam para a heterogeneidade discursiva inerente a qualquer prá-
tica construtiva de textos e suas possibilidades de cobrir de maneira linear o tema a
que se propõe discutir.
Não se trata de que o texto em questão seja ambíguo ao apontar para essas
variadas hipóteses de construção de sentido, trata-se dos efeitos de sentido que
pode dele usufruir um público-leitor. São forças confrontadas com outras numa
conjuntura ideológica determinada. Nesses termos, constitui-se um complexo de
atitudes e de representações sociais possíveis, que ultrapassam relações individuais
e se instauram nos conflitos das relações de poder, que são sociais, pois dizem res-
peito a interesses da sociedade como um todo. Os quadros apresentados abaixo ar-
ticulam discursos entre fronteiras de formação discursiva mobilizadas por possíveis
leituras do texto. Trata-se de uma representação didática, dentre outras possíveis.
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Braulino Pereira de Santana
TABELA 1
FD FD - HOMENS FD – MULHERES
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Gênero Trans e Multidisciplinar
TABELA 2
FD FD – CRISTÃ FD - LAICA
Ao associar a reli-
Quer-se, nesses termos, instau-
gião cristã a posições
rar leis que privilegiem posições
contrárias ao aborto,
“São evangélicos: protestantes religiosas cristãs como posições
o texto remete a uma
ou crentes...” de Estado, e submetê-las e
concepção histórica
todos os cidadãos, mesmo os
dessas religiões sobre
não religiosos.
esse tema.
O texto assume que
há não somente uma
A posição de um certo segmen-
concepção religiosa
to entre os católicos argumenta
contra o aborto, mas
“São católicos praticantes...” que só Deus tem o direito de
também uma espécie
“dar” e de “tirar” a vida de
de fundamentalismo
alguém.
religioso militante no
Congresso Nacional.
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Braulino Pereira de Santana
Ao chamar católicos,
protestantes e crentes
de corriola, termo
pejorativo que remete
Evidencia-se que cristãos, ao
São os religiosos cristãos os a complô, a autora se
ocupar as instâncias de poder,
que “encabeçam a corriola pelo põe ideologicamente
fragmentam o Estado em nome
veto ao aborto.” contra um tipo de
de suas concepções ideológicas.
concepção religiosa
que quer se apossar do
Estado como institui-
ção particular.
TABELA 3
FD FD – DIREITA FD – ESQUERDA
Ao questionar de forma
O histórico desses partidos e a
incisiva as concepções
Deputados: atuação desses Deputados no
políticas expostas por
Philemon Rodrigues Congresso Nacional sempre se
esses deputados na cena
(PTB-MG) e associaram a posições políticas
pública brasileira, o
Severino Cavalcanti assimiladas pela cultura políti-
pensamento da autora se
(PFL-PE) ca brasileira como posições de
assemelha a concepções
direita.
de esquerda.
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Gênero Trans e Multidisciplinar
59
Braulino Pereira de Santana
tes grupos, o poder que cada um desempenha sobre o outro e sobre suas
próprias construções lingüísticas. (Rios, 2002, p. 413)
As aspas constituem antes de mais nada um sinal construído para ser decifrado
por um destinatário. O sujeito que utiliza as aspas é obrigado, mesmo que isto não
esteja consciente, a realizar uma certa representação do leitor e, simetricamente,
oferecer a este último uma certa imagem de si mesmo, ou melhor, da posição de
locutor que assume através dessas aspas. (Maingueneau, op. cit. p. 91)
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Gênero Trans e Multidisciplinar
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Braulino Pereira de Santana
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este texto é uma leitura possível, à luz de pressupostos teóricos da Análise
de Discurso, de outro texto “Lei das emendas vaginais”, uma crônica publicada
em jornal. É uma abordagem que não lhe esgota possibilidades de construção
de sentido, pelo contrário: abre novas possibilidades de ser-lhe apresentada uma
nova contrapalavra.
Ao longo das discussões foi possível constatar que a ideia de texto como unidade
e como tessitura é incapaz de cobrir as variadas hipóteses de significação passíveis de
ser feitas. É preciso, portanto, relacionar o material linguístico a situações discursivas
e comunicacionais que estão ao redor e fora das relações semânticas e sintáticas: um
texto sempre demanda um novo texto para “ficar de pé” em sentido pleno. Durante
o percurso de leitura, constataram-se variadas hipóteses interpretativas, todas possí-
veis e todas capazes de serem definidas dentro do próprio texto. Tais hipóteses fo-
ram construídas e constatadas pelos conceitos de formação discursiva, sujeito e for-
mação ideológica. As formações discursivas como fronteiras de sentido ajudaram a
dar variadas dimensões sígnicas presentes no texto de Marilene Felinto: trata-se da
defesa do aborto em determinadas circunstâncias?Trata-se de uma denúncia de uma
manobra conservadora-cristã no Congresso Nacional? Trata-se de uma vingança fe-
minista contra homens machistas e insensíveis? Trata-se de uma crítica a uma visão
perturbadora e redutora da condição das mulheres? É um texto-militante?
Pode ser tudo isso, não pela incapacidade de o texto ser uma unidade temática,
ou porque não há uma coerência interna, ou porque ele seja ambíguo em sua cons-
trução. Pode ser “tudo isso” pois o discurso é construído por variadas estratégias
de criação e interpretação: variadas vozes atravessam um discurso (é a polifonia),
interdiscursos e intertextos compõem os fios dessa rede de significações que é um
texto, as posições e os sujeitos em interação são múltiplos, por vezes antagônicas, e
essa heterogeneidade instaura os conflitos.
Uma análise linguística que negligencie essas apreciações e essas interpretabili-
dades possíveis corre o risco de não levar em conta as multiplicidades de sentido e as
riquezas sígnicas inerentes a qualquer discurso. E mais, negligenciar essas múltiplas
capacidades interpretativas não é algo gratuito: é também uma opção ideológica que
neutraliza aspectos relevantes da construção de sentidos.
REFERÊNCIAS
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Gênero Trans e Multidisciplinar
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CAPÍTULO V
VOCÊ COLOCARIA UMA ALIANÇA?
SOLIDÃO, HOMOFOBIA E CONSUMO
NO VÍDEO “SINGLE MAN DANCES TO
SINGLE LADIES”
Aroldo Santos Fernandes Júnior1
65
Aroldo Santos Fernandes Júnior
Andrade (2010, p. 2), a partir das décadas de 1960 e 1970, com a diminuição da re-
ligiosidade, a criação e a disseminação do uso de anticoncepcionais, a conquista do
mercado de trabalho pelas mulheres e a difusão da psicanálise (o que impactou no
aumento do sexo pré-marital), diversas configurações de famílias, uniões conjugais
e relações amorosas, além das múltiplas possibilidades de exercício da sexualidade
tanto para homens quanto para mulheres, foram desencadeadas. No contexto da mú-
sica, o casamento é exposto como possibilidade de permanência e inclusão, no que
diz respeito ao modelo “heteronormativo” ou da “heterossexualidade compulsória”
(Butler, 2010), que está na base das construções dos gêneros e das relações sociais.
O videoclipe inspirou legiões de amadores a postarem, no Youtube, vídeos deles
mesmos executando a coreografia. Um dos mais vistos é o vídeo de Shane Mer-
cado. Tendo consciência da popularidade que o vídeo “Single Ladies” tomou no
Youtube, Beyoncé, durante seu show, mostrou fragmentos de muitos dos vídeos
postados como “pano de fundo” enquanto cantava e dançava a música. Conforme
Latika Young (2007, p. 4), com a explosão dos websites de vídeo compartilhamento
que divulgam a dança de uma maneira jamais vista antes, um momento de ruptura
dos normativos modos de divulgação está ocorrendo. A audiência de dança não
está mais limitada a apreciar apenas as noções conservadoras do que se constituiria
“Belo”. Ao contrário, estaria imersa em uma noção não convencional de dança, sem
a preocupação de como isto deve parecer (acabamento estético da obra), por quem
isso deve ser criado (formação acadêmica ou profissional) ou onde isso deve ser
apresentado (espaços tradicionais a exemplo das casas de espetáculo e dos teatros).
Este capítulo se detém a estudar o vídeo do dançarino norte-americano Shane
Mercado, postado no Youtube no dia 18 de outubro de 2008, apenas seis dias após
o lançamento mundial do clipe da música Single Ladies. Mercado é dançarino de
formação clássica. Enquanto ainda trabalhava como GoGoboy na boate Splash, em
Nova Iorque, postou o vídeo intitulado “Single Man Dances to Single Ladies”.
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Gênero Trans e Multidisciplinar
IMAGEM 5
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Aroldo Santos Fernandes Júnior
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Aroldo Santos Fernandes Júnior
Mercado quer ser Beyoncé, mas o que temos, ao contrário de uma mulher ne-
gra, forte e bem-sucedida na profissão, é um garoto gay, latino, magro, tentando,
com essa estratégia, mostrar suas habilidades como dançarino, para conseguir um
emprego melhor ou, simplesmente, fugir da solidão. Mercado está inserido numa
realidade norte-americana governada pelo então presidente George W. Bush. A crise
econômica e financeira começa a abalar instituições estáveis, a exemplo da família, e
as discussões e votações sobre a legitimidade do casamento gay explodem em vários
cantos do país.
Quando a música Single Ladies da Beyoncé foi lançada em 2008, eu morava em
Phoenix no Arizona. Dançava em algumas companhias locais e fazia alguns traba-
lhos como coreógrafo. Morava com meu namorado já fazia três anos e tentávamos
estar inteirados de toda movimentação política relativa à legalização do casamento
gay. Na época, várias proposições foram colocadas em votação e havia um empenho
dos grupos ativistas gays e parte da sociedade para que essas proposições fossem
aprovadas. Eu e meu namorado víamos na aprovação dessas proposições a possibi-
lidade de permanecermos juntos. Eu via também a possibilidade de não só perma-
necer nos EUA, mas me adonar naquele lugar, chamá-lo de meu. Via na legalização
do casamento gay o reconhecimento de um direito basilar, o de ter a possibilidade
de me descolar do estereótipo ao qual o gay solteiro é relacionado. O estereótipo
moralista da bicha promíscua que não sustenta relacionamentos duradouros e que,
por isso, acaba sendo vítima da violência homofóbica, ou se contaminando com o
vírus HIV/Aids e outras mazelas (Mott, 2003, p. 313).
Estou solteiro novamente. Novamente à procura de algum coração que quei-
ra compartilhar afetividade. Novamente nos sites de relacionamento gay, pois não
aguento a solidão. Penso que a solidão é uma morte em vida, uma desaparição.
Contudo, paradoxalmente, estou só no meu quarto, surfando por perfis virtuais,
tentando escapar dessa falta do “outro”. Segundo Barthes (1981, p. 27), “a ausência
amorosa só tem um sentido e só pode ser dita a partir de quem fica”. Mas como
pensar a ausência do outro, se, em “tempos líquidos” (Bauman, 2007), todos es-
tamos sempre partindo, mesmo que seja para buscar esse outro que se foi ou que
ainda não chegou?
Dançar Single Ladies não é apenas aparecer para se tornar estrela de um espaço
sem materialidade. É, também, criar uma estratégia para fugir do monstro da soli-
dão. Dançar Single Ladies é mostrar a solteirice para, paradoxalmente, não pertencer
mais a ela. Nesse jogo em que só há caçadores, a solidão se estabelece e, como con-
sequência, o encantamento melancólico da espera ou a cegueira brutal da procura.
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De acordo com Ramsey Burt (1995, p. 12), para a maior parte do século XX,
o mundo da dança tendeu a ser predominantemente um domínio feminino, em
termos de audiência, dançarinos e professores. Mercado se apresenta no vídeo em
trajes sumários, simulando o maiô da Beyoncé. O que o corpo de Mercado dubla é a
71
Aroldo Santos Fernandes Júnior
movimentação de uma mulher que terminou com o namorado e se utiliza das armas
de sedução para conquistar outro homem. Mercado quer conquistar quem? Essa
simulação diz respeito a que? Ele terminou algum relacionamento com alguém? Ou
ele está apenas celebrando sua solteirice de rapaz gay com seus 20 e poucos anos na
cidade de Nova Iorque? Devido ao grande sucesso de sua performance no vídeo,
cerca de 20.400 comentários foram postados, alguns positivos, elogiando a qualida-
de técnica de Mercado, e outros negativos, como usual resposta homofóbica ao ver
um corpo masculino in/trans/vestido na movimentação de uma mulher.
Um dos comentários negativos foi postado pelo usuário com codinome Air-
Jordans1010, e diz: “You FUCKN FAGGET, Your such a douch u bitch azz craker! Why
dont you get a pair of balls and be a fuckin man. Ugh Ohhh... Some body’s playen for the other
team” . De acordo com Zigmunt Bauman (1998, p. 27), aquilo ou aqueles que não
se encaixam no mapa cognitivo, moral ou estético do mundo é um “estranho”, pois,
por sua insubordinação às normas estabelecidas, eles obscurecem e tornam frágeis
as linhas que estabelecem fronteiras e geram a incerteza e o mal-estar de se sentir
perdido. A homossexualidade e o sujeito homossexual foram inventados no século
XIX (Louro, 2004; Foucault, 1988). Com a incorporação das perversões e a nova es-
pecificação de indivíduos provocada pela caça às sexualidades periféricas, a sodomia
passa a ser um ato interdito. Com isso, o homossexual se torna um “estranho”, algo
misterioso que borra o sonho da pureza da heterossexualidade compulsória. Desse
estranhamento e desses medos associados à homossexualidade nasce a homofobia.
Sedgwick (1985) propõe que a homofobia, na sociedade ocidental, está direta-
mente relacionada ao modo como homens se relacionam uns com os outros ho-
mossocialmente. Ela argumenta que a estrutura triangular fundamental em nossa
sociedade patriarcal é aquela em que a mulher está situada em uma posição subordi-
nada e intermediária entre dois homens. O seu argumento é que, nas relações entre
homens na sociedade contemporânea ocidental, expressões emocionais e sexuais
são necessariamente suprimidas no interesse de manter o poder masculino. Para
Burt, a chave fonte do preconceito contemporâneo em relação ao dançarino ho-
mem é a associação deste com a homossexualidade. Segundo Louro (2004, p. 30),
alguns artistas, a partir dos anos 1970, no Brasil, como Ney Matogrosso e o grupo
Dzi Croquetes apostam na ambiguidade sexual, tornando-a isso uma marca em suas
performances. Essas características perturbam não apenas as plateias, como toda a
sociedade. Ora, o que fez o vídeo de Mercado se tornar um grande evento no You-
tube e, com isso, o tornar uma celebridade fora do mundo virtual foi exatamente
essa ambiguidade discursivamente produzida. Com o ideal de ficar parecido com a
Beyoncé no vídeo “Single Ladies”, Mercado estabeleceu uma marca, com sua apa-
rência e principalmente com sua desenvoltura técnica, borrando a ideia de original e
cópia, como em Andy Warhol, e desmantelando localizações normativas no tocante
ao que deve ou não ser dançado.
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Gênero Trans e Multidisciplinar
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Aroldo Santos Fernandes Júnior
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Gênero Trans e Multidisciplinar
Um ano antes de ter sido divulgado em Paris Is Burning, o vogue ressurge como
uma maneira de se movimentar e expressar desejos. Essa dança teve origem na cena
dos bailes do Harlem em 1960, mas foi com o videoclipe de Madonna “Vogue”,
lançado em 1990, que esse estilo de dança invadiu as pistas das boates no mundo
inteiro.
Segundo Slavoj Zizek (1989, p. 109), “na identificação simbólica nós nos iden-
tificamos com o outro exatamente no ponto em que ele é inimitável, no ponto
que escapa a semelhança”. Nesse sentido, Mercado está voguing e se enquadra na
perspectiva de identificação simbólica com a Beyoncé, ao ponto do que ele, como
dançarino, poderia estar mais próximo dela, nesse caso com sua movimentação. A
movimentação de Mercado é uma resposta no estilo batalha com a qual ele tenta,
de alguma forma, se aproximar ou mesmo superar a movimentação “original” da
Beyoncé no videoclipe.
4. COREOGRAFANDO O CONSUMO
Mercado realiza movimentos pequenos e rápidos com os braços ao redor da
cabeça e vira-se de perfil para a câmera. Alterna golpes com as mãos levantando os
joelhos alternadamente aos movimentos das mãos. Vira-se de frente. Dá pequenos
golpes com as mãos nos seus quadris. Repete a sequência e começa uma trajetória
semicircular até o fundo do quarto onde para de perfil e repete o gesto de negação,
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Aroldo Santos Fernandes Júnior
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Gênero Trans e Multidisciplinar
tido e duplicado pela câmera e pelo espelho, sua presença é intensificada. Mercado,
no vídeo, é mais verdadeiro que o verdadeiro, é o máximo do simulacro. Segundo
Baudrillard (1991, p. 8), o simulacro é “[...] a geração de modelos de um ‘real’ sem
origem, nem realidade: hiper-real”. Uma “simulação desencantada”. É Pornô.
Nessa perspectiva penso em simulação, mas uma simulação como sugere Bau-
drillard, “desencantada”. Não há encantamento na ausência presente de Merca-
do. Muitos dos movimentos realizados por ele são movimentos que se repetem,
mas uma repetição que está atrelada ao estabelecimento de padrões hegemônicos
politicamente engajados na consolidação dos discursos de uma mídia capitalista e
massificadora. Observo que a tentativa de Mercado em se aproximar da figura de
Beyoncé é perigosa. Caracteriza a anulação da identidade de Mercado como agente
performativo que produz conhecimentos, e firma-o como reprodutor de conceitos
hegemônicos de poder aquisitivo, beleza, fama e sucesso profissional, a partir da
vinculação da solteirice como modo de existência.
A intenção de Mercado de aproximar-se da figura da Beyoncé, a partir de uma
identificação de fã, é estabelecida genuinamente por uma subjetividade que vê a pos-
sibilidade de expressar seus desejos, sonhos, frustrações pela dublagem. Aqui, nesse
caso, uma dublagem que vai além da dublagem labial para uma dublagem de corpo
inteiro. O efeito disso ocasiona duas leituras diferentes. A primeira seria a aparição
do poder falogocêntrico2 da voz, pelo artifício da música dessa cantora, reproduzida
mecanicamente no aparelho de som. O vídeo mostra um feminino que não se revela
e que marca sua presença pela própria ausência, como no filme The Man Who Envied
Women, da coreógrafa e cineasta Yvonne Rainer (1985). No vídeo de Mercado, assim
como no filme de Rainer, a presença masculina (Mercado) é esmaecida pela força
deste feminino libertário (Beyoncé), que não aparece, mas, pela voz, dá comandos
e marca sua presença.
A coreografia executada tanto no vídeo de Mercado quanto no vídeo original
de Beyoncé é uma coreografia de comandos, em que ambos, Beyoncé e Mercado,
apenas ilustram o que a música está dizendo: “put a ring on it!”, “put your hands up!”.
Esse tipo de coreografia é muito comum no mercado da música pop, desde o sur-
gimento das grandes estrelas como Michael Jackson e Madonna nos idos de 1984.
Desde então, praticamente todas as coreografias estão implicadas em ilustrar o que
está sendo dito na música. O tipo de coreografia em questão coloca a dança em
uma posição de apenas reprodutora de conhecimentos e não passível de produção.
2. O argumento falogocêntrico se baseia na alegação de que a cultura ocidental moderna tem sido, e con-
tinua a ser, tanto cultural e intelectualmente subjugada pelo “logocentrismo” e pelo “falocentrismo”. O
logocentrismo é o termo que Derrida usa para se referir à filosofia da determinidade, enquanto o falocen-
trismo é o termo que ele usa para descrever a maneira como o logocentrismo foi absorvido por uma agenda
“patriarcal” “masculinista (fálica)”. Assim, Derrida intencionalmente mescla os dois termos, falocentrismo
e logocentrismo, como “falogocentrismo”.
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Aroldo Santos Fernandes Júnior
Jussara Setenta (2008, p. 19) diz que “neste tipo de criação, o assunto não inventa
uma língua na qual quer ser falado, nem um modo próprio ao assunto que o faça
articular-se dentro de uma língua já existente”. Assim, essa investida de Mercado em
marcar sua diferença, se igualando metaforicamente a Beyoncé, neutraliza politica-
mente sua voz coreográfica como produtora de conhecimentos e o torna apenas um
fantoche que executa movimentos.
A segunda leitura é a ratificação da condição de subalterno a uma normativida-
de que não se expõe e que nunca é atingida por esses discursos. Mercado é uma drag
da Beyoncé, posto que o corpo midiático de Beyoncé aparece pela imagem de Mer-
cado com a execução da coreografia. Louro (2004) afirma que a drag não tem como
propósito se passar por uma mulher, mas, com o proposital exagero dos traços
convencionais do feminino, exorbita e reforça marcas corporais, comportamentos e
atitudes, para com a paródia de gênero aproximar-se e legitimar e, ao mesmo tempo,
subverter o sujeito que copia. Dessa forma, a figura da drag permite pensar sobre os
gêneros e a sexualidade, questionar a autenticidade dessas dimensões e refletir sobre
seu caráter construído. Já Butler (1993, p. 125) diz que não há, necessariamente, uma
relação entre drag e subversão e a drag pode, muito bem, ser usada a serviço tanto
da desnaturalização quanto da reidealização das normas heterossexuais de gênero.
No vídeo de Mercado, a mídia é corporificada na imagem da cantora (entendo
Beyoncé também como uma drag da mídia) e estabelece um domínio subjetivo da
identidade de Mercado a partir do estético, da coreografia, da roupa, da música e
da sedução do mundo das celebridades instantâneas. A coreografia que Mercado
realiza nesse vídeo reproduz as informações da mídia que está interessada na re-
produção de conceitos que possam facilmente ser consumidos. “Esses violentos
efeitos socioculturais têm o corpo como agente que argumenta, estrategicamente,
os discursos na artificialidade dos enunciados, em que a lógica do consumo dita a
compreensão de cultura, identidade, gênero e sexualidade” (Garcia, 2004, p. 4).
Atualmente, o incentivo ao consumo gay cresce desenfreadamente; boates,
bares, festas, shows, cruzeiros, dentre outros, são os produtos mais consumidos
por gays solteiros. Com a perspectiva de legalização do casamento gay e de todos
os direitos conquistados ou ainda a serem conquistados, a exemplo da adoção, da
constituição de família, do direito de inclusão do parceiro em planos de saúde e
previdência social, outras possibilidades de consumo são desencadeadas e o que,
a princípio, estaria apenas relacionado a uma hegemonia heterossexual passa a ser
alvo de interesse do público gay.
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Gênero Trans e Multidisciplinar
No título deste capítulo fiz a pergunta: “Você colocaria uma aliança?” O intui-
to era questionar outra possibilidade de existir além da solteirice apresentada pelo
vídeo de Mercado. Penso que a solteirice se estabelece como um lugar de vulnera-
bilidade, que se aproxima do efêmero. O medo de não existir, de perecer, de desa-
parecer é forte, mas o medo de existir solitariamente é muito maior. A solidão se
configura como uma “morte em vida” e isso é aterrador. Então, performativamente,
digo “sim, eu colocaria uma aliança”, “sim, eu aceito”. Aceito o casamento gay
como a forma de resistência e fuga desse lugar de solidão, apesar de saber que esse
não redime a violência, a homofobia ou a morte a que estamos sujeitos.
REFERÊNCIAS
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Aroldo Santos Fernandes Júnior
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Gênero Trans e Multidisciplinar
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CAPÍTULO VI
REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO
SOBRE O TRABALHO E A
APOSENTADORIA DE DOCENTES DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE1
INTRODUÇÃO
As últimas décadas, particularmente em meados dos anos 1980 e 1990, testemu-
nharam intensas mudanças econômicas e políticas, trazidas pela influência neolibe-
ral e pela reestruturação produtiva, as quais flexibilizaram o mercado de trabalho em
todos os setores da economia, nos de comunicação, nos educacionais, nos sistemas
de ensino/aprendizagem e nas formas de consumo, afetando as relações de trabalho
em todos os setores, com inúmeras implicações sociais. Tal como o trabalho manu-
al, o trabalho intelectual também passa a sofrer um processo de desqualificação e
precarização que leva, cada vez mais, à perda de seus valores, sejam eles simbólicos
ou materiais.
É possível afirmar que o século passado foi caracterizado por profundas
transformações histórico-culturais, entre elas a concepção de velhice (que se
apresenta de maneira múltipla e diversificada. Não existe velhice, mas velhices) e a
organização familiar como um modelo único (a família continua mas transformou-
se). O feminismo, o trabalho e a possibilidade de carreira para as mulheres, em todas
as áreas profissionais, a pílula anticoncepcional, que deu poder às mulheres para
decidirem se querem ou não ter filhos, e as novas formas de reprodução humana
1. Este texto é produto de pesquisa realizada com o apoio financeiro do CNPq –Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, e insere-se nos propósitos do Projeto
Institucional do Grupo de Pesquisa do Diretório do CNPq: “Educação, Formação, Processo de
Trabalho e Relações de Gênero” e do “Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher e
Relações de Gênero” (NEPIMG) da Universidade Federal de Sergipe.
2. Professora Associada da Universidade Federal de Sergipe; dos Programas de Pós-Graduação em Educa-
ção (NPGED) e Sociologia (NPPCS); mestra e doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia;
realizou estágio de Pós-Doutorado em Educação (UFS); lidera o grupo de pesquisa do Diretório do CNPq:
“Educação, Formação, Processo de Trabalho e Relações de Gênero”(UFS); integra a coordenação
do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher e Relações de Gênero (NEPIMG) na mesma ins-
tituição. Email: helenacruz@uol.com.br
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Maria Helena Santana Cruz
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Gênero Trans e Multidisciplinar
1. APORTES TEÓRICO-METODOLÓGICOS
Educação, trabalho, gênero e envelhecimento são consideradas categorias cen-
trais para a análise, entendidas como conceitos dinâmicos, na perspectiva de cons-
trução histórica e cultural. A associação do indivíduo, da cultura e da sociedade,
possibilita integrar os níveis psicológicos (do indivíduo), culturológicos (da cultura)
e sociológicos (da sociedade) evitando-se cair em uma abordagem cristalizada. A
questão própria do sentido do trabalho relaciona-se com a produção de identidade,
isso porque, as identidades profissionais são as formas socialmente construídas pe-
los indivíduos a fim de se reconhecerem uns aos outros no campo do trabalho e do
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Maria Helena Santana Cruz
3. É questionada a visão determinista que relaciona, de forma estreita, situação de trabalho e formas de
identificação dos trabalhadores. A situação, considerada apenas no sentido objetivo, não seria suficiente
para compreender as identidades no trabalho. Os desafios atuais da docência universitária parecem estar
requerendo saberes que até então representam baixo prestígio acadêmico no cenário das políticas globali-
zadas, porque extrapolam a possibilidade de quantificar produtos.
86
Gênero Trans e Multidisciplinar
É uma questão de como se vive numa sociedade que se descobre rompendo com
as tradições.
A abordagem do envelhecimento focaliza a constituição do sujeito docente, suas
representações e subjetividades, dando condições de compreender a constituição da iden-
tidade no transcurso das sucessivas identificações, entendendo o envelhecimento
como um processo de perdas e aquisições.
Tomaz Tadeu da Silva (1996) afirma que os modos como os grupos sociais são
representados podem nos indicar o quanto esses grupos sociais exercitam opoder,
podem nos apontar quem é, mais frequentemente “objeto” ou “sujeito da represen-
tação”. A representação constitui uma forma de conhecimento prático e sistemas de
diferenciação que orientam a comunicação e o comportamento entre as pessoas. Entre
as várias concepções de representação, a de Jodelet detém amplo consenso, por incluir
a dimensão ideológica e permitir identificar os elementos da cognição, os investi-
mentos afetivos, os elementos axiológicos, ressaltando-se os elementos históricos
identificados: “A representação4 social é uma forma de conhecimento socialmente
elaborada e partilhada, tendo uma visão prática e concorrendo para a construção de
uma realidade comum a um conjunto social” (Jodelet, 1989, p. 36).
A subjetividade é o resultado de múltiplas determinações em geral, contraditó-
rias entre si e em permanente tensão mútua. Se a identidade se constitui e funciona
num sistema de relações sociais, sua representação pressupõe crença e valores que
estão presentes nessas relações como formas de conhecimento e de significados que
fazem parte do processo de criação e manutenção de identidades sociais de grupos.
Em sua discussão sobre a constituição de subjetividade, Weedon (1987) destaca que
a subjetividade nos permite reconhecer e tratar das formas pelas quais os indivíduos
dão sentido a suas experiências através do discurso, incluindo seus entendimentos
conscientes e inconscientes e as formas culturais disponíveis, através das quais tal
entendimento é reprimido ou permitido.
Sabe-se que explicar as diferenças de gênero não é tarefa fácil, principalmente
quando as investigações nacionais sobre o tema ainda são escassas. O que a refle-
xão internacional nos indica é que esse fenômeno, embora variando entre países
e contextos, assume certa regularidade, em que as mulheres estão em permanente
4. Em seu estudo A representação social da Psicanálise, Moscovici (1978, p. 29), ao contestar Durkheim,
parte da concepção de “representação coletiva” para efetuar e desenvolver o seu estudo sobre representa-
ção social. Nesse aspecto, sem dúvida, sua contribuição ao entendimento quanto à possibilidade da aplica-
ção do conceito de representação social é considerada equivalente à criação de um novo paradigma para a
produção de trabalhos científicos. O seu conceito de representação social é“um corpus organizado de co-
nhecimentos e uma das atividades psíquicas graças às quais os homens tornam inteligível a realidade física e
social, inserem-se num grupo ou numa ligação cotidiana de trocas e liberam os poderes de sua imaginação”.
Para o autor, os conceitos de opinião e de imagem são muito semelhantes ao de representação social, se
considerarmos os conceitos interpretados em “sentido estrito”.
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Gênero Trans e Multidisciplinar
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Maria Helena Santana Cruz
Ser professor da UFS foi uma grande oportunidade profissional, consolidando a minha condição
de professora e de pesquisadora. O contato com os alunos e a oportunidade de aprendizado são
intensos, uma vez que a atividade exige muito estudo e dedicação... [...]. Tive a oportunidade de
contribuir para o desenvolvimento dos alunos de uma Instituição de nível superior que contribui
para desenvolvimento de Estado; tenho a sensação de missão cumprida Reporto-me às condições
de trabalho que nem sempre eram as desejadas. Entretanto, dentro das minhas limitações e as
da Instituição, procurei fazer o melhor que pude. (Entrevistada)
90
Gênero Trans e Multidisciplinar
p. 16). Por isso, como a depressão apresenta características tidas como femininas, é
difícil para os homens admitirem a doença.
Não se pode dizer que o trabalho do professor nas universidades federais não
tenha sido valorizado nos últimos anos. Resta saber como, por que e a que preço
se deu essa valorização. Isso nos remete à análise das condições de trabalho do
professor e das mudanças na cultura e na identidade da instituição universitária:
“Quando entrei há 30 anos, ser professor da UFS quando significava status social, os salá-
rios eram dos mais elevados no funcionalismo público federal, o perfil do docente era elitizado e
hoje é muito heterogêneo/massificado” (Entrevistada). Destacam-se os novos turnos de
funcionamento dos cursos, novos projetos pedagógicos, introdução das inovações
tecnológicas, ampliação/interiorização da universidade, aumento significativo do
número de doutores e mestres, ampliação de novos cursos de pós-graduação e
graduação, aumento da produção cientifica e da titulação dos docentes. Sobre as
condições do trabalho na universidade:
Nesses últimos anos a UFS cresceu, se expandiu demais e os professores sentem a sobrecarga, as
mudanças nas condições de trabalho em relação à estrutura e à forte desvalorização/defasagem
dos salários; só obtemos melhorias através de greves. As novas tecnologias, particularmente a
internet, facilitam a comunicação, também promovem uma invasão do espaço público no espaço
privado, no cotidiano e na vida das/os docentes. (Entrevistada)
3. RELAÇÕES DE PODER/CONTROLE NO
COTIDIANO
As entrevistadas reconhecem a existência de normas e regras não objetivadas na
Instituição que orientam escolhas para postos elevados e melhor remunerados com
funções gratificadas:
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Maria Helena Santana Cruz
Sinto que entrei em um trabalho altamente competitivo, tenho sido resistente e mantenho
um embate constante, porque continuo trabalhando na área. Já lutei muito para manter a
coerência. Sempre fui ajudada por amigos, colegas, psiquiatras, psicólogos. Na sala de aula,
sente-se a influência de grupos que tendem a lutar pelo poder para imprimir sua hegemonia.
Sentem-se as relações de poder, lutas de forças que existem muito em todos os contextos de
trabalho. (Entrevistada)
Os conflitos por desempenho, ou mesmo por titulação, são vividos por professores que são mais
dedicados, presentes, e geram dificuldades, chegando, às vezes, ao enfrentamento. Às vezes, as
disputas e discussões ocorrem em decorrência da divergência de formas de pensar, o que é uma
contradição, pois a Universidade é o lugar da diversidade, conforme indica o próprio nome. Ou-
tras vezes, as disputas se dão a partir dos cargos existentes na instituição, pelo posicionamento
político, este último, principalmente, em períodos eleitorais. (Entrevistada)
92
Gênero Trans e Multidisciplinar
de trabalho (Castro, 1994. p. 72). Ocupar cargos de direção, envolver-se nos jo-
gos das negociações e alianças significa não só estabelecer práticas nesse sentido,
como também modificar todo um conjunto de símbolos e representações sobre
si mesmas.
Retrospectivamente, as aposentadas mudariam alguns aspectos de suas trajetórias
docentes que obedecem a um processo de construção pessoal:
Faria um esforço maior para cursar o doutorado mais cedo. As condições de trabalho de um
professor com doutorado no ensino superior são maisfavoráveis. Também olharia para os outros
colegas com mais atenção e não recusaria cargos com função gratificada como ocorreu comigo
antes. (Entrevistada)
No meu acesso ao trabalho docente, eu fui prejudicada por pedir demissão do outro emprego; hoje
eu tentaria conciliar os dois trabalhos que desenvolvia para ter duas aposentadorias. Confiei em
orientações que recebi e fui prejudicada, não fui bem assessorada. (Entrevistada)
5. SENTIDO DA APOSENTADORIA,
EXPERIÊNCIAS APÓS A APOSENTADORIA
Se aposentar pode significar para muitos um período difícil e de tensão, prin-
cipalmente no contexto da sociedade em que vivemos. Interromper um fluxo de
atividades, de anos de dedicação não é tarefa fácil, por mais que se canse do traba-
lho, do emprego, da rotina. O trabalho é a ação que enobrece o homem e quando
chega a aposentadoria, o ser humano vive uma ambiguidade, uma contradição.
Todos querem se aposentar, mas continuar na “roda viva” sem vinculação à velhi-
ce, a algo descartável, desvalorizado. Aposentar pode ser continuidade, renovação,
aprendizado, recolocação, porque uma pessoa com bagagem terá sempre habilida-
des e perspectivas.
Para o presidente da Associação dos Aposentados da UFS, as experiências da
aposentadoria são muito variadas. Lá, ouvem-se vozes daquelas(es) que por ve-
zes se mostram arrependidos, descartados, insatisfeitos com o curso da vida atual.
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Maria Helena Santana Cruz
Após a aposentadoria, venho mantendo vínculo com a UFS, como professora voluntária da
pós-graduação, ministro aulas, oriento os alunos; Também presto serviços de consultoriaa em-
presas e órgãos dos governos municipal e estadual, na área de planejamento urbano e regional.
(Entrevistada)
Minha a aposentadoria foi por tempo de serviço. Não quis esperar para receber a carta de
agradecimento do MEC. Alguns colegas contam os dias para a aposentadoria e criticam os
que voltama ensinar. Sempre gostei de ensinar e de fazer pesquisa. Optei por continuarna pós-
-graduação com o contrato de voluntária. O prazer da docência na pós-graduação é para mim
um fator a ser destacado. (Entrevistada)
Meu marido é de classe média e sempre trabalhou. Eu sempre trabalhei muito e isto incomodava
a ele. Por exemplo, a questão das viagensde serviço sempre foi um problema que senti. Isto porque
o meu marido cobrava de mim uma presença mais constante em casa. Fiz uma opção em minha
vida, aos dezanos de casada pedi o desquite, e, logo depois, voltamos a ficar juntos. Hoje conci-
94
Gênero Trans e Multidisciplinar
liamos os papéis, mas eu sempre assumi a responsabilidade pela educação de meus dois filhos um
rapaz e uma moça, esta já casada e com filhos. Nossa renda era administrada em conjunto. Nos
trabalhos domésticos, entretanto, ele nunca ajudou. (Entrevistada)
Sempre fui censurada por algumas colegas que achavam que eu priorizava o meutrabalho no
mesmo patamar da família. O sentimento de profissionalismo era exagerado. Hoje, revendo o
passado, vejo que vivemos a ideologia do descartável, todos são descartáveis, em pouco tempo
são esquecidos, inclusive, aqueles docentes que tiveram uma forte atuação no contexto da UFS.
Lembro que, ao visitar o Pe. Ovídio Valois Correia5, meu professor de sociologia na UFS,
com doença terminal, ao final de sua vida, me disse: trabalhem, mas não esqueçam a família.
(Entrevistada)
5. Ver importante contribuição de Ovídio ao ensino, pesquisa e extensão In: Correia, A Extensão Univer-
sitária no Brasil; um resgate histórico, p. 2000.
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Maria Helena Santana Cruz
Devemos empregar o tempo menos para fazer projetos para um futuro distante
ao qual já não pertencemos, e mais para tentar entender se pudermos, o sentido
ou a falta de sentido de nossas vidas. Concentremos-nos. Não desperdicemos o
pouco tempo que nos resta.(Bobbio, 1997, p. 55)
CONCLUSÃO
O trabalho intelectual, como é o caso do trabalho docente no ensino superior,
costuma ser entendido como elemento definidor das atividades de integrantes da
classe média, e que, ao priorizar o conhecimento, implica uma forte valorização
simbólica, o que tradicionalmente trouxe certo status às profissões relacionadas a
essas atividades. A construção das subjetividades, às quais o trabalho acadêmico
reorganizado dá lugar, caracteriza-se por formas particulares de pensar, sentir e agir
com relação a si mesmo, às demais pessoas e ao mundo; assim, cada indivíduo se su-
jeita, insere e submete às relações saber-poder ou se rebela e resiste a esta realidade.
96
Gênero Trans e Multidisciplinar
Através dos ditos e não ditos as(os) aposentadas(os), reconstroem suas histórias
a partir do micro, ou seja, de trajetórias do trabalho no ensino superior, equacionan-
do uma representação macro (guardadas as devidas proporções) das representações
coletadas, configurando num resultado que aponta para a efetivação dos modos do
trabalho, bem como do perfil das(os) participantes da pesquisa. Tradição e moder-
nidade se imbricam produzindo contradições.
A noção de envelhecimento ativo refere-se à possibilidade de envelhecer com
saúde e autonomia, continuando a participar plenamente na sociedade enquanto
cidadão ativo. Os(as) participantes da pesquisa expressam diferentes dimensões de
identificação que se sucedem continuamente, confrontando a imagem que foi idea-
lizada pelo ser que envelhece e a realidade da condição de docente idosa(o). Assim,
é possíveldizer que envelhecer é uma experiência única para cada indivíduo, diversi-
ficada entre pessoas do mesmo grupo de docentes aposentados e heterogênea tanto
entre indivíduos como entre diversos grupos sociais. Em outras palavras, o processo
de envelhecimento, em função de sua múltipla determinação, implica diversidade,
individualidade e variabilidade entre indivíduos.
As imagens de gênero condicionam as formas (diferenciadas) de inserção de ho-
mens e mulheres no mundo do trabalho produtivo e reprodutivo, tanto as oportuni-
dades de acesso ao emprego como as condições emque se desenvolve o trabalho. Há
uma heterogeneidade deste segmento etário, dadas as diferentes trajetórias, a multi-
plicidade de pertencimentos e inserções diferenciadas na vida social, por meio e em
meio a diferentes discursos e práticas que acabaram por compor suas identidades,
de modo diverso, conforme o contexto. Na condição de aposentado, de idosas(os),
constroem expectativas e projetos, estruturam representações visando à elevação da
autoestima, à melhoria da qualidade de vida, à ampliação do protagonismo, dentre
outros aspectos. Nos arranjos familiares a divisão sexual do trabalho reprodutivo-
ainda permanece de forma assimétrica, significando que a igualdade ainda será uma
utopia, uma pré-condição para concretizar a cidadania mundial através de uma efe-
tiva igualdade social e sexual.
Os docentes aposentados expressam posturas com relação à posição social da
mulher e do homem na sociedade que, invariavelmente, influem sobre a “ciência”que
realizam. Aqueles que não estão atentos para as discriminações de gênero não in-
cluem a temática em seu trabalho, mesmo que ministrem disciplinas fundamentais
para a compreensão da questão. Frequentemente, nome de uma ciência “positiva”,
da “objetividade”, são afastados temas de conotação ética, religiosa, controversos,
mas nem por isso ausentes das práticas sociais. Em geral, temas relacionados com
a questão da desigualdade entre grupos vulneráveis, dividem os docentes e pesqui-
sadores, mas são de interesse da sociedade e têm provocado a reação de vários mo-
vimentos sociais demandando soluções legais ou implantação de políticas públicas,
mas não encontram o proporcional eco na universidade.
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Maria Helena Santana Cruz
É importante ressaltar que com a enorme contribuição dos professores das uni-
versidades públicas, hoje temos uma infraestrutura acadêmica invejável. Temos a
capacidade de pensar e de encontrar soluções para muitos dos problemas nacionais
graças a brasileiros bem formados em universidades públicas em várias áreas do co-
nhecimento. É preciso que se pense nos professores que vêm fazendo nossas boas
universidades públicas, no respeito aos seus direitos e suas expectativasde direitos.
Na Universidade Federal de Sergipe, o docente aposentado podereinserir-se no
ensino superior, formalizando o contrato de professor voluntário (não remunera-
do), de professor da ativa (reinserido por concurso público) ou professor substituto,
também por meio de concurso. Além de incentivar o protagonismo do idoso e o
exercício de sua cidadania, taisiniciativas favorecem o reconhecimento do idoso/do-
cente pela sociedade, por seu papel socialmente produtivo. Desmistifica-se, assim,
a concepção de queo indivíduo, ao se afastar do mercado de trabalho, perde a iden-
tidade e o convívio com o mundo exterior, confinando-se em uma menor realidade,
o que o faz sentir- se muitas vezes, incapaz.
O desenvolvimento de atitudes mais adaptadas ao contexto da diversidade cul-
tural incide diretamente sobre a educação para a cidadania, a promoção de coesão
social, a igualdade de oportunidades e equidade, participação crítica na vida demo-
crática e aceitação natural da diversidade cultural. As argumentações desenvolvidas
emergem de uma realidade na qual a interação, complexa e de caráter multidi-
mensional, ocorre entre indivíduos diferentes e de culturas díspares. A perspectiva
adotada visa a desenvolver conceitos e estratégias educacionais que favoreçam a
superação de conflitos, preconceitos, discriminações e exclusão social, gerados a
partir da contraposição irracional de concepções ideológicas, e do emprego de me-
canismos psicossociais e de fatores sociopolíticos capazes de produzir intolerância
com o outro, o diferente.
O caráter deste estudo não é, por conseguinte, o de esgotar o universo das
informações potencialmente disponíveis, mas de lançar a discussão sobre a atri-
buição de significação à vida do docente aposentado, desvelando os seus múltiplos
sentidos e direções, bem como ampliar a discussão sobre as políticas públicas para
os professores aposentados/idosos no Brasil. Ao fechar a página do agora, fica a
sensação de que logo, ao voltar ao final dessa história, deixar-se-á para trás o pensar
especialmente das mulheres docentes.
REFERÊNCIAS
98
Gênero Trans e Multidisciplinar
99
Maria Helena Santana Cruz
100
Gênero Trans e Multidisciplinar
101
CAPÍTULO VII
AS REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO
SOBRE A VALORIZAÇÃO DAS
QUALIFICAÇÕES/COMPETÊNCIAS DO
TRABALHO DOCENTE
Alfrancio Ferreira Dias1
INTRODUÇÃO
Os estudos da Sociologia do Trabalho têm mostrado que nas últimas décadas
um novo paradigma de organização do trabalho e dos trabalhadores surgiu dando
início à superação das formas de organizações do trabalho dos modelos tayloris-
ta/fordista, nos quais a qualificação dos trabalhadores se limitava ao preparo e a
execução de tarefas rotinizadoras, sequenciadas e preestabelecidas. No caso desses
modelos, o processo de qualificação era centrado na construção de trabalhadores
executadores de funções básicas para a construção do produto. De acordo com
Cruz (2005, p. 92), nesse processo “o preparo do trabalhador seria limitado ao
mínimoindispensável de conhecimentos gerais e técnicos, direta e indiretamente
relacionados ao conteúdo das tarefas e operações que compusessem a ocupação
tanto do uso de máquinas “versáteis” quanto da “cooperação do chão-de-fábrica”.
Das novas demandas e necessidades do mercado de trabalho foi instituída uma
nova forma de organizar as ações dos trabalhadores e o processo de trabalho, o co-
nhecido “modelo produtivo” ou “especialização flexível” que possuía a finalidade
de ampliar a atuação, a qualificação/treinamentos dos trabalhadores e as formas de
gerenciar o trabalho.
Na perspectiva de Hirata (2004), o modelo produtivo trouxe uma mobilidade
maior na forma de organização do trabalho, na medida em que passou a existir
nas relações de trabalho cooperação, menos determinação de tarefas vinculadas aos
setores e de forma individualizadas e espaço de rotatividade das atividades desenvol-
vidas. O resultado disso, mais precisamente, foi uma gestão do trabalho polivalente
e multifuncional, que além das qualificações técnicas, os trabalhadores tiveram outro
103
Alfrancio Ferreira Dias
tipo de qualificação solicitada e valorizada como, por exemplo, das “qualificações tá-
citas” ligadas às identificações e subjetividades dos trabalhadores. Para Cruz (2005),
as novas competências para o desenvolvimento do trabalho são atributos da dimen-
são social, tais como “envolvimento, participação, cooperação, responsabilidade e
motivação do trabalhador” (p. 92).
Nessa linha de reflexão, o que os pesquisadores destacam é que a partir das
novas formas de organizar o trabalho, ponto como referência os novos atributos
e competências requeridos dos trabalhadores no interior das relações de trabalho,
possibilitou um novo paradigma da “Especialização flexível” do trabalho. Nesse
novo contexto de trabalho, as características subjetivas do trabalhador são essenciais
para a construção das relações interpessoais, nos momentos de tomada de decisões,
de agir sobre o novo, de recuar em situações coletivas, que influenciam as identifi-
cações dos trabalhadores.
As discussões sobre as “novas competências” para o trabalho passaram a fazer
parte de todos os setores da economia, tendo com eixo central o avanço tecnoló-
gico. O campo da educação também teve que se reestruturar para suprir as novas
demandas de qualificação da força de trabalho que o mercado necessitava. Leis
foram criadas, novos cursos, métodos de ensino e currículos repensados para sanar
as necessidades de cada época. Particularmente, a década de 1990 foi o marco desse
processo, visto que além da reformulação da LDB em 1996, o trabalho docente
passou a ser gerido também pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, que trouxe
uma nova forma de organizar as etapas do ensino, tendo como justificativa desse
processo a “consolidação do Estado democrático, as novas tecnologias e as mudan-
ças na produção de bens, serviços e conhecimentos exigem que a escola possibilite
aos alunos integrarem-se ao mundo contemporâneo nas dimensões fundamentais
da cidadania e do trabalho” (PCN, 2000, p. 4).
A busca pela contextualização e a interdisciplinaridade foram essenciais para a
criação de currículos que se adequassem ao novo perfil do aluno e do docente a ní-
vel nacional/regional/local, bem como o desenvolvimento das “competências bási-
cas” para o desenvolvimento social. A criação e implantação dos PCN na educação
brasileira e nos cursos de formação de professores teve como finalidade principal, o
“duplo papel de difundir os princípios da reforma curricular e orientar o professor,
na busca de novas abordagens e metodologias” (PCN, 2000, p. 5). Contudo, cabe
refletir sobre quais habilidades, competências e saberes que foram adquiridos no de-
correr dessas mudanças no campo do trabalho docente, para que esses professores
desenvolvam suas práticas profissionais para alcançar os objetivos preestabelecidos
de seus planos de ensino.
104
Gênero Trans e Multidisciplinar
1. A QUALIFICAÇÃO/TREINAMENTOS PARA
O/A DOCENTE
A intenção deste item é apresentar as tendências recentes do trabalho docente,
na perspectiva de mostrar a evolução das qualificações do trabalho – as tendências,
os tipos de treinamentos, a formação complementar em exercício – e suas consequ-
ências a partir das mudanças tecnológicas e organizacionais da Instituição, que estão
configurando a emergência de novos paradigmas.
Os saberes profissionais dos docentes têm estado no centro da problemática da
profissionalização do ensino e da formação de professores. Questiona-se que saberes
profissionais docentes (conhecimentos, competências, habilidades, qualificações) são
utilizados em suas práticas profissionais para desempenhar tarefas e alcançar metas
e objetivos. Na perspectiva de encontrar subsídios que permitam responder a essa
indagação sobre o processo de treinamento e qualificação docente que se constitui
105
Alfrancio Ferreira Dias
como eixo central da docência, apresentamos na Tabela2 alguns dados estatísticos co-
letados através de questionários aplicados a um grupo de professores e professoras.
TABELA 4
2. Nas Tabelas 4 e 5, está exposto o resultado do item do questionário sobre as atividades de formação de
que os(as) docentes participam e os benefícios para sua atuação. Não foi possível, porém, chegar a 100%
entre homens e mulheres, visto que poderiam marcar mais de uma opção. Assim, os números em porcen-
tagem correspondentes aos itens da tabela foram tabulados a partir das respostas de cada professor(a) por
item dividido pelo número total de professores(as) que responderam o questionário.
106
Gênero Trans e Multidisciplinar
107
Alfrancio Ferreira Dias
TABELA 5
108
Gênero Trans e Multidisciplinar
O dilema é o seguinte: as categorias básicas que eu aprendo ao longo da minha formação são
ressignificadas permanentemente. Se eu não tiver o cuidado de acompanhar essas ressignificações,
eu posso estar tão démodé a ponto da minha fala não representar a leitura que meu aluno faz
da sociedade e do mundo. Então, ou eu me atualizo frequentemente para essas ressignificações
que agora a ética apresenta, que as relações sociais apresentam, que as construções politicas
estabelecem, ou eu vou começar ter uma leitura do mundo, de um mundo virtual, de um mundo
que não existe mais e que meu aluno vai apresentar para mim frequentemente, será nesse caso
um contraste em que eu vivo em um mundo e os alunos estão em outro. Assim, agente tem a
necessidade de frequentemente em atualizar-se. (Professor, casado, 39 anos, três filhos,
mestre, 15 anos na rede estadual)
109
Alfrancio Ferreira Dias
Uma das principais habilidades hoje para trabalhar com o diverso é a capacidade de dialogar
e compreender, visto que no cotidiano do trabalho docente percebemos as diversas realidades dos
alunos (famílias, lugares, rendas, valores, crenças variadas) que nos põem em um espaço de deba-
tes e diálogos que não nos permite homogeneizar o discurso. Como a escola hoje é diversa, plural
e multicultural, cabe ao docente a sensibilidade para desenvolver seu trabalho mais próximo da
realidade dos alunos possível. (Professor, casado, 42 anos, três filhos, mestrando, 13
anos na rede estadual)
Primeiramente, a formação com qualidade, pois eu diria que esse professor teria que ser
pesquisador, ou seja, ao adentrar no Ensino Médio ele tem que ser um pesquisador porque isso
estaria no campo das competências. As habilidades do docente hoje são, principalmente, saber
conduzir o processo, ser mediador, pois acredito que não adianta o professor esta inserido sem
ajudar a transformar o processo de aprendizagem autônoma desse aluno. Seria principalmente
conduzir o processo, pois a dinâmica da escola pública possui um alunado diversificado, que
também, necessita de um trabalho de integração. (Professora, solteira, 46 anos, dois filhos,
doutora, 15 anos na rede estadual)
O docente tem que ser um eterno pesquisador. Acredito que o que está faltando hoje para
nós docentes é tempo para pesquisar, visto que sem tempo não podemos realizar atividades de
capacitação e pesquisa complementar para ampliar nossa ação. As habilidades e competências
dos docentes estão sendo testadas cotidianamente e só com qualificação processual para dar
conta desse cenário. (Professora, solteira, 37 anos, sem filhos, especialista, 12 anos
na rede estadual)
110
Gênero Trans e Multidisciplinar
a Educação é muito dinâmica, os serviços prestados pela escola têm que acompanhar
as necessidades da sociedade, assim como as do mercado de trabalho. Dessa forma
não podemos nos ater apenas ao que aprendemos nas universidades, ir à busca de
conhecimento é vital para desempenharmos nosso papel na escola.
Acredito que os minicursos, encontros educativos, oficinas é importante para um bom trabalho
docente, ou seja, a troca de experiências contribui muito para um bom planejamento. As princi-
pais dificuldades em minha opinião esta no calendário escolar que é mal elaborado, pois dificulta
111
Alfrancio Ferreira Dias
muito para o professor, a carga horária de trabalho do mesmo em relação ao calendário não pos-
sibilita um bom desenvolvimento em relação à organização devido a grande quantidade de alunos
por séries. (Professor, casado, 28 anos, um filho, especialista, 4 anos na rede estadual)
Esse contexto de qualificação foi importante para mim, pois eu não tinha percebido como era
importante o trabalho com a diversidade cultural, principalmente, com ênfase na sexualidade.
Dessas novas necessidades cursei um curso de extensão sobre “a diversidade de gênero na escola”,
a partir dessas novas leituras eu pude ampliar o meu conhecimento a cerca da sexualidade, aí eu
pude entender melhor o que é sexualidade, o que eu educação sexual, orientação sexual, orientar
na sexualidade e ensinar numa perspectiva de gênero. Eu pude fazer dentro do meu trabalho
esse diferencial e isso me enriqueceu muito, visto que a partir desse curso eu ampliei as discussões
112
Gênero Trans e Multidisciplinar
dessa temática nas minhas aulas e na minha formação. (Professora, solteira, 46 anos, dois
filhos, doutora, 15 anos na rede estadual)
Acredita-se que qualquer que seja o curso realizado o professor sempre terá algo
novo para aprender, pois o conhecimento não é acabado, ele se transforma sempre.
A formação é importante porque lhe dá base para trabalhar com o diverso, com a di-
versidade da sala de aula hoje, pois na maioria das vezes, os(as) docentes tendenciam
e se centram em uma determinada área do conhecimento para uma maior produção
cientifica. Esse fato pode afetar o entendimento de que os(as) docentes não devem
esquecer a misticidade das escolas hoje, visto que é no cotidiano que percebemos a
necessidade de trabalhar de forma interdisciplinar a diversidade e isso pede ao do-
cente uma busca maior sobre os mais variados assuntos. As argumentações da pro-
fessora sinalizam para esse aspecto, pois a identidade de mulher-professora permeia
o modo de atuação no trabalho, suas expectativas e projetos pessoais e profissionais,
ou seja, sinaliza as formas com que ela vai produzindo significados ao seu processo
de qualificação para o trabalho e como media sua identificação/subjetividade a par-
tir da socialização e experiências nas práticas escolares.
As diversas mudanças na proposta pedagógica da instituição e as especificidades
do cotidiano do trabalho docente requerem uma nova consciência sobre a efetiva
necessidade de repensar a educação e as práticas escolares, tomando como ponto de
partida a realidade escolar para a modificação do fazer docente. Daí a importância
de o professor ser um pesquisador e viver sempre se atualizando, de uma forma
continuada. Assim, as reflexões sobre o trabalho docente extraídas dos depoimen-
tos dos(as) docentes estão ligadas à articulação dos saberes científicos, pedagógicos,
experimentais e políticos, num espécie de ciclo formativo-reflexivo.
Dessa premissa, surge a ideia tão bem trabalhada pelos interacionistas3 de que
o processo do aprender é um processo que se passa num espaço de interações so-
ciais e que essa aprendizagem é um processo de construção sociocultural. A partir
desse contexto, cabe entender, também, a necessidade dessas novas competências e
habilidades para o trabalho dos profissionais formadores da educação básica, bem
como a importância das trocas de experiências entre os docentes e a criação de um
espaço de reflexão sobre o trabalho desenvolvido. Parte-se da ideia de que o traba-
lho docente se situa na relação entre escola/conhecimento, aluno/saber, ensino/
aprendizagem (Lima, 2003), bem como que essas relações intensificam e modificam
as relações entre os agentes escolares. Em outras palavras, pode-se dizer que o espa-
ço da docência é um espaço que possibilita integrar as questões teóricas às questões
práticas, vivenciadas ao longo do processo de formação/trabalho, possibilitando a
construção de conhecimento significativo pela ação – reflexão – ação, a partir da
113
Alfrancio Ferreira Dias
classificação dos saberes docentes, das fontes sociais de aquisição e das formas de
interação no trabalho.
Observa-se que os saberes docentes são plurais, com espaços e fontes de aqui-
sições diversas, e que se integram nas vivências de formação e atuação dos(as) do-
centes. A partir das formas de interação/socialização, os docentes atribuem sentido
e significado aos seus saberes, relacionando-os com suas atuações, aos instrumentos
utilizados e às suas experiências cotidianas, ou seja, numa relação próxima entre as
influências externas e internas do trabalho. Assim, o“saber profissional está, de um
certo modo, na confluência entre várias fontes de saberes provenientes das história
de vida individual, da sociedade, da instituição escolar, dos outros atores educativos
e dos lugares de formação” (Tardife Raymond, 2000, p. 114)4.
3. AS REPRESENTAÇÕES SOBRE AS
DIFERENÇAS/DESVANTAGENS ENTRE
HOMENS E MULHERES
Outro aspecto relevante da pesquisa foi a sondagem sobre a existência ou não
de diferenças e desvantagens entre homens e mulheres no processo de qualificação
e atuação no trabalho docente. Os argumentos da equipe diretiva direcionam para a
importância de manter o quadro docente mais qualificado para o desenvolvimento
das diversas ações preestabelecidas no plano anual de trabalho e no Projeto Po-
lítico Pedagógico. Os entrevistados reafirmam que, em geral, não há diferenças e
desvantagens nas habilidades e competências femininas e masculinas no processo
de treinamento. Entretanto, apenas no campo das inter-relações pessoais a mulher
pode ter uma maior habilidade em determinadas situações, mas a “competência
é a mesma, entre homens e mulheres”. O que de fato há é um espaço educativo
mais competitivo, no qual o desenvolvimento da qualidade do trabalho docente
está ligado à ampliação das habilidades e novas competências para a dinâmica das
práticas escolares no ensino médio. No contexto especifico da instituição, a própria
inserção e permanência dependem do alto nível de escolarização, de capacitações,
de treinamentos, ou seja, configurando um novo perfil de docente e que este esteja
em permanente processo de requalificação. Com disseminação de novos espaços
de formação continuadas, a equipe técnica busca criar um ambiente que favoreça a
troca de experiências entre os docentes e cooperação.
4. Neste estudo, Tardif e Raymond (2000) identificam e classificam os saberes docentes, dando ênfase às
formas de aquisições e de interações. Os saberes docentes são plurais e adquiridos nos diversos ambientes
como na família, na escola, nos cursos de formação acadêmica e nos métodos, instrumentos e procedi-
mentos didáticos.
114
Gênero Trans e Multidisciplinar
Acho que não, pois hoje isso está bem tranquilo, até porque na atualidade a maioria são mu-
lheres na profissão docente, já se reconhece isso. Acredito que os homens que atuam no trabalho
docente vêm por paixão, por gostar, por querer, por uma referência de uma professora, e acaba
entrando na docência com essa paixão pelo que faz. Embora se perceba que o número de do-
centes do sexo masculino não são muitos, estes estão mais abertos para entender as questões da
sexualidade, afetividade, diferenças e a ligação entre família e trabalho, visto que o processo de
qualificação e treinamentos contribui para a ampliação e disseminação de novos conhecimentos.
(Professora, solteira, 46 anos, dois filhos, doutora, 15 anos na rede estadual)
as mulheres tem mais cuidado e dedicação, sempre se tornam mais próximas dos alunos, tipo mãe
sabe. Até porque de uma forma equivocada ou não a sociedade educou e formou esses estereótipos
masculinos e femininos, na qual a mulher tem que ser afetuosa, mãe, educadora; e os homens
sejam duros, pai, dar ordens, onde infelizmente à sociedade titulou o que é ser homem ou mulher
e isso influencia diretamente nas funções que homens e mulheres desempenham. (Professor,
casado, 42 anos, três filhos, mestrando, 13 anos na rede estadual)
115
Alfrancio Ferreira Dias
REFERÊNCIAS
116
Gênero Trans e Multidisciplinar
117
CAPÍTULO VIII
TRABALHO DOCENTE, FAMÍLIA E
VIDA PESSOAL – PERMANÊNCIAS,
DESLOCAMENTOS E MUDANÇAS
CONTEMPORÂNEAS
Silmere Alves Santos1
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Silmere Alves Santos
120
Gênero Trans e Multidisciplinar
2. Para Manuel Castells (1999), há três hipóteses para transformação nas relações entre homens e mulheres:
1) abertura na área da educação; 2) transformações tecnológicas na biologia, farmacologia e na medicina,
propiciando controle sobre a gravidez; e 3) rápida difusão de ideias na cultura globalizada em um mundo
interligado. O autor argumenta que, apesar de a discriminação contra a mulher ter diminuído, aumentaram
a violência interpessoal e o abuso psicológico, devido ao desrespeito à alteridade feminina e ao não confor-
mismo do homem diante da perda de poder. Estes também são aspectos que precisam ser analisados para
melhor entendimento dos processos de dominação nesta sociedade.
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Silmere Alves Santos
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Gênero Trans e Multidisciplinar
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Silmere Alves Santos
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Gênero Trans e Multidisciplinar
2. CONSTATAÇÕES DO ESTUDO
O estudo constatou que existem, na sociedade contemporânea, mudanças nas
relações entre homens e mulheres que caracterizem outros comportamentos, outros
padrões de sociabilidade que podem levar à construção de relações entre os sexos,
pautadas em valores mais equitativos no âmbito da conjugalidade e que, eventual-
mente, podem favorecer a conciliação trabalho docente-família para mulheres que
trabalham na Academia.
Entretanto, na condição de crise entre um modelo tradicional e um novo mode-
lo de organização das relações entre os sexos, ainda predominam as situações de su-
125
Silmere Alves Santos
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Gênero Trans e Multidisciplinar
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Silmere Alves Santos
128
Gênero Trans e Multidisciplinar
taca-se que as potencialidades da educação formal precisam ser mais bem utilizadas
pelos projetos feministas, emancipatórios e humanistas.
Confirma-se que a maternidade e a paternidade têm consequências diferencia-
das sobre a vida profissional dos docentes baseadas nos papéis sociais atribuídos a
homens e mulheres.
Na dimensão da alteridade e da vida pessoal, em nome do amor e do dever
materno, há mulheres que não conseguem negociar e estancam a progressão de sua
carreira acadêmica. Moralmente isso não é condenável, pois o decidido por mim
(estas docentes) é pelos outros e para os outros, principalmente quando os outros
são os filhos e os entes queridos. Na perspectiva dos direitos humanos e da repro-
dução da humanidade, tal decisão deveria ser louvável e aplaudida e não passível de
expressão de preconceitos pelos pares e barreiras postas pelos sistemas institucio-
nais de dominação-exploração. Isso denota que outras mulheres resistem e algumas
sobrevivem profissionalmente, pois para se sentirem realizadas pessoalmente, a di-
mensão do trabalho profissional também é imprescindível, por ser entendida como
dignificadora e enobrecedora do indivíduo.
No âmbito da reprodução do Ser Humano biologicamente homens e mulheres
devem ser corresponsáveis. Verifica-se que as mulheres que constituem ou constitu-
íram família, são levadas à externalização do trabalho doméstico, contratando outras
mulheres ou contando com a ajuda de familiares e companheiros, aparecendo ainda
como incipiente, ao menos no nordeste do Brasil, os serviços oferecidos pelo mer-
cado, por exemplo, escolas em regime integral, hotelzinho (quando existem custam
por volta de dois salários mínimos, por criança) entre outros e a participação efetiva
e concreta do cônjuge.
Por outro lado, na sociedade contemporânea, outras mulheres optam por não
constituir família e priorizam os projetos profissionais e outras formas de vida, evi-
tando, assim, entrar na polêmica de articular carreira e família/divisão sexual, tra-
balho profissional e das responsabilidades familiares ou vivenciar as dificuldades de
externalização do trabalho doméstico ou arcar com os custos deste conflito, o que
consequentemente aponta outros padrões de identidade feminina.
Dessa forma, as mulheres ainda assumem, em nome da natureza e do dever
materno, os cuidados com os filhos, mas não abrem mão de sua realização pessoal e
profissional. Infere-se, portanto, que a maternidade ainda não foi reconhecida como
uma função social e como uma questão social. Também foi identificada a perspecti-
va de constituição de família de caráter homoafetiva, na medida em que, apenas um
docente declara ser homossexual e pretender assumir uma relação estável e oficial
com outro homem e adotar uma criança, no futuro.
Sendo a articulação trabalho, família e vida pessoal uma questão social, exige-se,
portanto, medidas estruturais no âmbito das instituições e mudanças de mentalida-
des, ou se pesam sobre as mulheres os estereótipos de gênero ou a falta de empo-
129
Silmere Alves Santos
130
Gênero Trans e Multidisciplinar
lutem por melhores condições de viver. É inerente a alguns seres humanos a sensa-
ção de incompletude e de sempre buscar avançar. Como, por outro lado, é inerente
também a alguns seres humanos a alienação e a reprodução de formas de preconcei-
to, dominação, opressão, discriminação porque ainda não tiveram em seus processos
de socialização, experiências que os levassem a refletir sobre os antigos modelos aos
quais estão aprisionados, consciente ou inconscientemente.
Isso significa que, além das estruturas (trabalho, família), é necessário compre-
ender como o indivíduo se localiza e se movimenta nesse contexto; como age, quais
as suas trajetórias e experiências. Nesse contexto, o novo não se faz somente com o
novo, mas também com o velho, ou seja, transição da modernização simples para a
modernização reflexiva.
A perspectiva das relações entre os sexos constata-se que homens e mulheres da
sociedade contemporânea ocupam múltiplos papéis (profissionais, mães/pais, espo-
sas/esposas, estudantes e mulheres/homens propriamente), transitam por diversas
lógicas de ação e agem não com uma postura vitimista e, por isso, sua subjetividade
não pode ser reduzida ao determinismo social, ideológico, cultural ou de sexualida-
de; ou aos determinismos do capitalismo ou do patriarcalismo.
É incontestável que se vivencia outro modelo de socialização (diverso,
heterogêneo, plural, reflexivo, tecnológico) que desloca o antigo modelo
de socialização (rígido, determinista, linear, hierarquizado, binário, sexista,
institucionalizado, instrumental), mas não o elimina. É incontestável também que as
transformações sociais não são lineares; são dialéticas e acontecem em processos, às
vezes muito lentos. Significa dizer que os modelos coexistem e, por isso, essa sensação
teórica de caos e incertezas, mas de mudanças, deslocamentos e permanências.
Assim, pode-se depreender que as mulheres são vencedoras e perdedoras da re-
flexividade. Enquanto vencedoras da reflexividade, destaca-se a capacidade das mu-
lheres de ter controle sobre suas próprias vidas, inclusive sobre seus corpos. O que
remete ao conceito de empoderamento, o qual implica no reconhecimento das restri-
ções sociais a que a categoria está submetida e da necessidade de reversão dessa situ-
ação, por meio de mudanças em um contexto amplo/público (inserção no mercado
de trabalho, bons níveis de escolaridade e serviços de saúde adequados) e também
em contextos mais específicos, ou individuais (aumento de autoestima e autonomia,
reorganização das responsabilidades familiares, maternidade reflexiva, etc).
Nesse sentido, algumas mulheres, a partir das contradições dos processos de
modernização da sociedade, alcançaram liberdade colocando-se em oposição aos
pressupostos patriarcais e tradicionais. Para a mulher, os efeitos da educação e da
inserção no mercado de trabalho, no seu empoderamento, se manifestam de formas
variadas, até mesmo pelo aumento do potencial de geração de renda, da autonomia
nas decisões pessoais, do controle sobre a própria fertilidade e da maior participação
na vida pública. Mas tais efeitos dependem muito de circunstâncias individuais e do
131
Silmere Alves Santos
132
Gênero Trans e Multidisciplinar
público. O conflito social vivenciado por mulheres que precisam articular trabalho,
estudo, família evida pessoal também passa pela ordem moral, pois transitar por
essas esferas da vida social diz respeito à sua emancipação enquanto indivíduo e a
sua autorrealização pessoal e, nesse ponto, a luta por justiça social envolve as lutas
por reconhecimento e redistribuição. Desinstitucionalização dos padrões de valora-
ção cultural que regulam as regras das instituições econômicas, políticas, jurídicas
e culturais, impedindo que alguns sujeitos sejam excluídos ou sofram preconceito
quando incluídos nos processos de interação social.
O que se constata é que os arquétipos tradicionais ligados ao patriarcalismo e os
papéis direcionados à mulher, ao feminino (cozinhar, cozer e cuidar), foram substi-
tuídos paulatinamente por estudar, trabalhar, amar e procriar ou não, e cuidar (não
necessariamente ligados ao casamento ou à heterossexualidade) através de proces-
sos de transformações no cotidiano e na mentalidade das mulheres. No tocante aos
homens, os arquétipos tradicionais de chefe de família e provedor também sofreram
deslocamentos, dado o agravamento econômico para sustentar a família, ou ao con-
sumismo e a participação do salário da mulher nesse processo.
Alguns direitos sociais e políticos foram inseridos na legislação no que diz respei-
to à violência doméstica, mas a igualdade deve ser de direitos e de deveres, e as res-
ponsabilidades para com a família devem ser compartilhadas efetivamente. Articular
trabalho, família e vida pessoal não é uma questão só de mulheres. É uma questão
dos homens e das mulheres enquanto procriadores de seres humanos; do Estado,
enquanto questão social e objeto de políticas públicas; das empresas, enquanto objeto
de ações de responsabilidade social; da sociedade civil, organizadas numa perspectiva
de atuação coletiva na luta por direitos humanos igualitários e equitativos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sugere-se que as pesquisas que se propõem a produzir conhecimento sobre as
relações entre os sexos, na epistemologia histórico-crítica e feminista, devem consi-
derar seis dimensões:
1) Dimensão Econômica, que caracteriza a sociedade urbano-burguesa-indus-
trial que direcionara e contribui para a redefinição da função materna que deixa de
ser confinada ao lar e estendida à esfera pública com a inserção da mulher no mer-
cado de trabalho, sendo preparada para assumir determinadas áreas ligadas às habi-
lidades biológicas e naturais femininas, mas segundo os preceitos técnico-científicos
e a expansão do capitalismo reestruturado. A divisão sexual do trabalho profissional
e o salário da mulher como parte significativa ou principal da renda familiar;
2) Dimensão Estrutural e de Poder, presentes no âmbito das instituições de tra-
balho profissional, que nos espaços da universidade dificultam o acesso aos níveis
133
Silmere Alves Santos
134
Gênero Trans e Multidisciplinar
alguns homens e mulheres. Para outros, a realização pessoal está ligada somente aos
projetos profissionais e materialistas para aquisição de bens e projeções profissio-
nais. Para outros homens e mulheres, a realização pessoal envolve prioritariamente
o projeto familiar, e o trabalho é apenas um meio de sobrevivência. Diante de tudo
isso, não se pode afirmar a generalização da tese da vitimização, pois as mulheres
não se veem como vítimas. É preciso considerar o desejo do sujeito e o contexto de
sociedade e instituições nas quais estão inseridos o trabalho profissional e a família
e as escolhas dos indivíduos.
Numa perspectiva da totalidade da vida dos sujeitos humanos das relações entre
os sexos, da articulação trabalho profissional, família e vida pessoal, a condição de
ser homem e mulher na sociedade contemporânea ainda é marcada pela desigualda-
de entre os sexos. Principalmente pela violência psicológica, sofrida no âmbito da
academia com o agravante de que algumas mulheres nem se dão conta quando são
desrespeitadas e humilhadas, ou seja, quando são vítimas de violência de gênero ou
quando são vítimas de assédio moral.
Cabe à universidade desempenhar seu papel na construção de identidades de
gênero, pois sendo parte de uma sociedade que discrimina, produz e reproduz desi-
gualdades de classe, gênero, raça/etnia; cumprindo seu papel de ampliar o conheci-
mento dos atores sociais, favorecendo a produção de saberes que contribuam para
a emancipação e posicionem-se contra relações desiguais de poder.
As possibilidades de transformação estão relacionadas às dimensões: econômi-
cas, estruturais (da universidade e da família, nas quais perpassam relações de poder);
culturais (exige formação em gênero nas escolas/universidades/faculdades, pois só
através da educação podem ser provocadas mudanças na cultura); no que se referem
à ação dos sujeitos, as possibilidades estão relacionadas ao desejo e a consciência,
da dimensão da alteridade, da individualidade, das condições de empoderamento e
reconhecimento da sua consciência social e política das identidades de gênero.
No contexto da sociedade reflexiva, os sujeitos fazem escolhas mediante seus
desejos, sua individualidade, suas experiências de vida a partir de valores diversos
que causam deslocamento, mudanças nos valores patriarcais e androcêntricos. Se
somos diferentes, fazemos escolhas diferentes. Sendo seres humanos, somos iguais,
numa perspectiva do direito e diversos em nossas escolhas. Por outro lado, por hi-
pótese alguma, nas sociedades democráticas, pode-se permitir que os processos de
dominação, opressão e de expressão de preconceitos sejam vivenciados por aqueles
e aquelas que têm projetos profissionais, familiares e pessoais definidos, mas encon-
tram barreiras que os cristalizam nas instituições de trabalho.
135
Silmere Alves Santos
REFERÊNCIAS
136
CAPÍTULO IX
EDUCAÇÃO INFANTIL E RELAÇÕES
DE GÊNERO: ESTUDO EM UMA
CRECHE NO MUNICÍPIO DE VITÓRIA
DA CONQUISTA-BA1
Benedito G. Eugenio2
Eliane R. Mascarenhas3
INTRODUÇÃO
Este artigo apresenta os resultados de uma investigação sobre as relações de gê-
nero no cotidiano da educação infantil. Relações de gênero são aqui compreendidas
como relações de masculinidades e feminilidades socialmente construídas.
O interesse em investigar as relações de gênero surgiu a partir do contato da dis-
cente com algumas turmas de educação infantil numa escola situada no bairro Pata-
gônia, na cidade de Vitória da Conquista – BA, local onde trabalhou como secretária.
A observação de situações intrigantes no que diz respeito a “ser menino” e o “ser
menina”, motivou a realização do estudo. Dentre essas situações, destacamos duas:
um aluno de 6 anos de idade foi “ridicularizado” por seus colegas da mesma idade,
quando recebeu das mãos de uma professora uma bolsa cor de rosa para ser entregue
à sua mãe. O garoto tratou de se defender, dizendo bem alto: “É de minha mãe!”.
Outro exemplo ocorreu com um menino de apenas 6 anos. Ele comentou com
o colega da mesma idade: “Eu odeio minha mãe!”. Falava enquanto mostrava as
mãos para o colega: “ela pintou minha unha de rosa”. Era uma base e não um esmal-
te de cor rosa – “Eca! Eca!”. O colega observou as unhas e começou a dar risadas
dizendo: “Eca! É mulherzinha”.
Essas situações, presentes no cotidiano da educação infantil com crianças ain-
da em processo de formação, demonstram que os papéis de gênero são construí-
dos social e culturalmente. Além disso, é necessário investigar essa temática porque
os estudos sobre gênero na educação infantil ainda não se constituem como tema
consolidado no campo educacional. Segundo Carvalho, Costa e Melo (2009, p. 2),
1. Pesquisa desenvolvida no âmbito do projeto Educação e diversidades nas relações escolares.
2. Professor adjunto da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – campus de Vitória da Conquista.
Doutor em Educação (Unicamp). Coordenador do projeto Educação e diversidades nas relações escolares.
E-mail: beneditoeugenio@bol.com.br
3. Graduanda em Pedagogia pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – campus de Vitória da
Conquista. E-mail: elianerezende10@hotmail.com
137
Benedito G. Eugenio e Eliane R. Mascarenhas
138
Gênero Trans e Multidisciplinar
provocaram grande satisfação por parte de todos, pois o espaço hoje apresenta-se
como um atrativo para toda a comunidade.
No ano de 2009 a Secretaria Municipal de Educação – SMED reformou o muro
da frente e parte da lateral, aumentando a altura, porém, a outra parte da lateral e os
fundos permanecem baixos e deteriorados.
Atualmente, os sujeitos que compõem o contingente dos alunos são bastante
diversificados. Segundo o Projeto Político Pedagógico da instituição, os alunos são
filhos de mães trabalhadoras, que usam a creche como um lugar seguro para que
as crianças permaneçam durante a sua ausência; filhos de pessoas desempregadas e
em risco social, que necessitam dos serviços básicos de cuidado; e também filhos de
pessoas que acreditam na qualidade dos serviços básicos e, principalmente, educati-
vos oferecidos pela instituição.
No ano de 2012 a Creche atendia a 289 crianças de 2 a 5 anos, distribuídas da
seguinte maneira:
TABELA 6
Quantidade
Idade Horário
de turmas
02 anos 02 Integral – das 07:30h às 16:30h
03 anos 03 Integral – das 07:30h às 16:30h
04 anos 05 Mat./Vesp. – das 08:00h às 12:00/ das 13:00h às 17:00h
05 anos 03 Mat./Vesp. – das 08:00h às 12:00/ das 13:00h às 17:00h
TABELA 7
Quantidade
Turma Profissionais que trabalham com o(a) aluno(a)
de alunos
02 anos A 21 02 Monitoras Pedagógicas e 01 assistente de creche
02 anos B 21 02 Monitoras Pedagógicas e 01 assistente de creche
03 anos A 22 02 Monitoras Pedagógicas e 01 assistente de creche
03 anos B 24 02 Monitoras Pedagógicas e 01 assistente de creche
03 anos C 26 02 Monitoras Pedagógicas e 01 assistente de creche
04 anos A 22 01 Professora
04 anos B 22 01 Professora
04 anos C 22 01 Professora
04 anos D 21 01 Professora
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Benedito G. Eugenio e Eliane R. Mascarenhas
04 anos E 21 01 Professora
05 anos A 23 01 Professora
05 anos B 22 01 Professora
05 anos C 22 01 Professora
A professora entra e pede para fazer a roda de conversa (fala sobre importância da água). Em
um determinado momento da aula a professora dá alguns exemplos:
- “Ninguém nunca viu mamãe cozinhando, não?” (tentando explicar o vapor da água)
- “Se o papai botar a mão no bolso e num tira nada, ele tem o que? zero” (falava enquanto
preenchia o cartaz da quantidade de menino (dez). (Caderno de campo).
era comum as meninas se oferecerem para varrer a sala ou catar os objetos fora
do lugar; quanto aos meninos, as observações demonstraram que: eles preferiam
conversar entre si, ou brincarem com algum brinquedo que um deles trouxera de
casa, já que os dá classe estavam sendo guardados. (Observação de campo)
140
Gênero Trans e Multidisciplinar
algumas meninas estavam brincando de casinha, sendo que uma delas estava com
as mãos embaixo da blusa aparentemente simulando uma gravidez, enquanto que
as outras passavam a mão sobre a barriga, posteriormente a menina retira as mãos
de debaixo da roupa, pega a blusa que estava sobre a cabeceira de sua cadeira e
simula enrolar o “bêbê”, as outras simulam estarem felizes com a presença do
neném, querendo pega-lo e dizendo: – “que bonitinho”, – “coisinha fofa”, – “ele
tá com fome (risos)”. (Observação de campo)
Tal episódio nos reporta mais uma vez aos relatos de Beauvoir (1980, p. 40),
quando afirma que:
Durante o lanche em uma das mesas as crianças conversam. –“Vamos brincar no recreio de
mãe”.
Gabriel diz: – “Quem vai ser a mãe e quem beija na boca? Ela me beijou, então ela é a mãe”.
(Abraça Samilly).
Samily diz: – “eu quero ser a mãe”
Tamires responde: – “então tá, você é a mãe”.
Gabriel comemora rindo: – “ainda bem que você vai ser a mãe” -, abraçado e olhando para
Samilly. (Caderno de campo).
Uma das meninas se aproxima de mim e pergunta: – “Você tem esposo?”. Eu disse: sim. Ela
perguntou: – “Qual o nome dele?”. Eu respondo e ela continua o interrogatório quanto aos
outros membros da família. Outra menina interrompe a conversa e diz: – “Tia, quando eu tiver
um filho, se for menino eu vou por o nome de JoãoVítor, se for menina eu vou por Vitória”.
(Caderno de campo)
Assim, percebe-se, a partir das indagações das meninas, que nos dias atuais ainda
existem vestígios da educação apresentada por Del Priore (2000, p. 155 ) em seus
estudos sobre Brasil Império, no qual ela afirma que
141
Benedito G. Eugenio e Eliane R. Mascarenhas
A professora solicita uma menina que conte a quantidade de meninas, a menina começa a
chorar e ela diz:- “porque tá chorando? Tem que parar com a timidez. Olha só nós vamos ter
outras aulas e vocês vão dramatizar a história da branca de neve, Cinderela. Você quer ser a
princesa? (Falava segurando o queixo da criança para manter a cabeça erguida) olha só, esperar
o príncipe, você quer?” (A criança balançava a cabeça de um lado para o outro). Não! Como
não? Vai ser bom, você vai ficar com o príncipe. Agora pronto, parou o choro, outro dia você
conta. (Caderno de campo)
Nesse aspecto, Beauvoir (1980, p. 33), diz que a menina recebe uma educação
na qual “[...].Ela aprende que para ser feliz é preciso ser amada; para ser amada
é preciso aguardar o amor. A mulher é a Bela adormecida no bosque, Cinderela,
Branca de neve, a que recebe e suporta”. Menina, princesa, mulher, mãe, do lar são
estereótipos destinados à menina. Esses são os campos de atuação despertados nas
crianças pela família, pela sociedade e ao que se percebe pela escola.
142
Gênero Trans e Multidisciplinar
IMAGEM 11 E 12
Essa perspectiva também era seguida pelos cadernos utilizados pelos alunos da
turma pesquisada. A figura da esquerda representa os cadernos dos meninos e a da
direita, das meninas.
143
Benedito G. Eugenio e Eliane R. Mascarenhas
IMAGEM 13 E 14
Além das cores, é importante relatar que as imagens que ilustravam os objetos
possuíam características diferentes. Para os meninos estavam relacionadas a carros
e super-heróis. Em relação os objetos das meninas, as imagens traziam personagens
de desenho animado, principalmente a Barbie.
Na escola pesquisada há uma demarcação de cores e objetos descritos ante-
riormente: os pregadores de carrinho em cores coloridas arquivavam as atividades
dos meninos e os pregadores de bonecas com vestidos cor de rosa, arquivavam as
atividades das meninas.
As crianças reproduziam em suas ações as divisões quanto às cores. As meninas
visivelmente se chateavam quando não conseguiam receber o lanche nas canecas ou
pratos rosa. A foto a seguir nos dá uma ideia da preferência das meninas pela cor de
rosa, pois, nesse dia, nesse grupo, uma não conseguiu a caneca cor de rosa e por isso
ficou o tempo todo reclamando, enquanto que as outras comemoram.
IMAGEM 15
144
Gênero Trans e Multidisciplinar
As cadeiras cor de rosa da sala também recebiam a prioridade das meninas, além
de se perceber que as meninas sempre se sentavam com as meninas e meninos com
meninos. Dessa forma, as mesas na grande maioria das observações eram ocupadas
de forma distintas quanto ao gênero.
IMAGEM 16 E 17
Isso também vem muito de casa, aquelas ali as mães são amigas (apontava para as meninas).
Tá faltando uma que tá na outra sala; aquelas ali algumas são vizinhas, a gente tenta misturar,
mas, não adianta. Já os meninos eles sentam assim juntos, mas às vezes misturam-se entre si,
hoje aquele pode estar sentado ali, amanhã ele pode tá sentado com aqueles, eles se misturam
mais que as meninas, elas são muito individualistas. (Caderno de campo).
A professora afirma que as distribuições entre as crianças nas mesas são influen-
ciadas pela família, e que ela tentou misturar menino com meninas nas mesas, porém
está tentativa não foi observada durante a pesquisa, sendo que tais ocupações foram
utilizadas algumas vezes, não para socializar, mas sim como forma de punição.
Dessa forma, é possível compreender porque nos espaços escolares meninas
apreciam tanto o tom de rosa enquanto que os meninos o detestam. Afinal, meninos
e meninas devem se comportar como tais, o que compreende terem características
e ações socialmente aceitas. Dessa forma, o caminho seguido por eles é o de repro-
duzirem aquilo que lhes ensinam e o que lhes ensinam. Segundo Carvalho, Costa e
Melo (2009, p. 8) são:
145
Benedito G. Eugenio e Eliane R. Mascarenhas
REFERÊNCIAS
146
CAPÍTULO X
O NÓ QUE NOS UNE –
POSSIBILIDADES E SABERES
DOS(AS) JOVENS NOS ESPAÇOS
DAS ONGS
Maria da Anunciação Silva*
INTRODUÇÃO
Ao falar sobre juventude, estudiosos da temática, como Sposito (1999) e Dayrell
(2003), advertem para se utilizar o plural – juventudes –, em função da diversidade
de valores culturais e crenças que constitui o modo de ser Jovem. Ao definir o per-
fil do público pesquisado, buscou-se fidedignidade na descrição dos valores e das
crenças que constituem o modo de ser, estar e posicionar-se socialmente. Afrodes-
cendentes, o público pesquisado são moradores de bairros populares como Uru-
guai, Maçaranduba, subúrbio ferroviário, Santa Cruz, Vale das Pedrinhas, Nordeste,
Cosme de Farias, Federação (...) da cidade do Salvador – BA.
Neste estudo, dos 40 jovens entrevistados, 60% são do sexo masculino e 40%
do sexo feminino. Vale considerar que, em relação às jovens, 25% estão cursando o
segundo grau, 50% têm segundo grau completo, 15% cursam universidades públicas
em cursos da área de humanas, a exemplo de Pedagogia e Filosofia na Universidade
Federal da Bahia-UFBA e Letras na Universidade do Estado da Bahia - Uneb. As
outras integram, na condição de estudantes, os programas de fluxo, aceleração ou
alfabetização de jovens e adultos na rede pública de ensino. Das jovens entrevistadas
com segundo grau completo, pelo menos 10% sinalizam o desejo de ingressarem na
universidade e destacam ter dificuldades financeiras para custear as despesas. Com
efeito, passam a considerar o ingresso no ensino superior como uma via possível,
embora desafiadora, quer seja a curto ou médio prazo.
Dos 65% dos jovens do sexo masculino, 2% estudam em universidades públicas
nos cursos de Geografia e Matemática, Uneb e UFBA, respectivamente. 14% estão
concluindo o segundo grau. E os demais integram, na condição de estudante, os
programas de fluxo, aceleração ou alfabetização de jovens e adultos na rede pública
de ensino.
Dos 40 jovens entrevistados, 20% estão em trabalhos tidos, entre eles, como
“mais qualificados”, em lojas de departamento, supermercados, postos de gasolina,
147
Maria da Anunciação Silva
148
Gênero Trans e Multidisciplinar
No meu bairro passei a ser “imitado” por muita gente. Pois, comecei a usar roupas e sandálias
mais soltas e coloridas. Meu cabelo trançado, de vez em quando, conhecia lugares legais. E com
muita “argumentação” sempre com papo reto, olho no olho. Daí tudo que acontecia no bairro
me chamavam. (MPS, 19 anos, morador de Cosme de Farias).
149
Maria da Anunciação Silva
Em alguns momentos eu sou jovem, quando trabalho, tenho grana e posso bancar alguma coisa
em casa. Quando estou sem “tampo”, para minha família, sou um “menino” irresponsável, um
adolescente imaturo que não consegue arranjar um trabalho. (PSD, 20 anos, sexo masculi-
no, residente na cidade baixa, segundo grau incompleto)
150
Gênero Trans e Multidisciplinar
Por isso, são raros os que buscam no trabalho alguma centralidade além da renda. O
trabalho, nessa fase da vida, tem simbolismos, imprime a valores e crenças interge-
racionais mesmo que na prática não se materialize. Essa forma de pensar, na maioria
das vezes, se contrapõe a toda e qualquer visão de investir unicamente na trajetória
educacional regular e exitoso.
Logo, o acesso ao mundo do trabalho deixa de ser um espaço de escolhas, ao
contrário, são raros aqueles que gostam do que fazem ou trabalham na profissão
que desejam.Na maioria das vezes, chegam à idade adulta sobrevivendo do trabalho
informal os “bicos”. E desconhecem que o acesso ao trabalho, notadamente para
a população jovem, tem raízes em questões estruturais.Nesse sentido, não pode ser
compreendido apenas pelo contexto de pobreza em que estão inseridos.
Em outra perspectiva de análise, Bourdieu (1983), no artigo “Juventude apenas
uma palavra”, resgata três situações inerente a condição juvenil: a arbitrariedade entre
as idades, as relações de poder e a relação entre juventude e sistema escolar como de-
terminante fundamental de estar ou ser jovem. Entende a idade como dado biológico
e facilmente manipulável. Enquanto unidade social, o poder dos mais velhos sobre
os jovens, como grupo constituído de interesses comuns e dentro de uma faixa etária
definida, pode configurar-se como um modelo de manipulação, em que as relações
de classe e poder representam uma dimensão ou arbitrariedade intergeracional.
Na concepção dos coordenadores pedagógicos das ONGs, a noção de juven-
tude está associada à inserção dos jovens no mundo do trabalho e encontra sina-
lizações em aspectos que podem ser assimilados e associados a outros fatores que
demarcam tanto a juventude quanto as relações de poder, classe e gênero. Para essa
análise tomaremos como referência o depoimento abaixo.
Ser jovem para este público é estar inserido no mercado de trabalho. Principalmente, para os
jovens do sexo masculino, que no ambiente familiar são mais cobrados financeiramente. As
meninas, por deterem maior nível de escolaridade, ou por verem no casamento uma possibilidade
de “tranquilidade financeira” e por ajudarem nas tarefas domesticas, são menos cobradas. Por
outro lado, para as jovens a gravidez indesejada está mais frequentemente associada à necessi-
dade de assumir responsabilidades no ambiente familiar. Cobrança que não se apresenta no
mesmo grau para os jovens do sexo masculino. (Coordenadora pedagógica da ONG, sexo
feminino, soteropolitana)
151
Maria da Anunciação Silva
152
Gênero Trans e Multidisciplinar
3. COMPARTILHANDO DIÁLOGOS:
EDUCAÇÃO E ASSISTÊNCIA SOCIAL
A relação entre educação e assistência social provoca a reflexão sobre ordem e
caos, unidade e diferença, inclusão e exclusão frente às situações contraditórias e
presentes na sociedade. Se a ordem é o que mais ocupa o ser humano, a ambivalên-
cia é o que mais lhe preocupa. Melo (2004, p. 123-124) revela que, na modernidade,
a diversidade foi abordada de duas formas: “buscando assimilar tudo que é diferente
ao considerado padrão”, ou “segregando” as categorias consideradas como fora da
“normalidade dominante”. A educação e a assistência social são direitos constitu-
cionais nem sempre usufruídos como por quem de direito. Pois refletem campos de
tensão e interesses políticos emblemáticos da política social brasileira. Em algumas
153
Maria da Anunciação Silva
situações tais políticas carecem de articulação para que possa, de fato, potencializar
transformações a quem de direito.
O debate em torno do compromisso do Estado com as políticas educativas nas
sociedades modernas tem início com a Revolução Industrial. As mudanças econô-
micas e as relações sociais decorrentes deste novo modelo de produção capitalista
na sociedade contemporânea têm influenciando a educação. Segundo Santos:
154
Gênero Trans e Multidisciplinar
recer à sua comunidade e aos seus pares. As políticas, quando aplicadas de forma
integrada, fortalecem a comunicação entre família, escola e as diferentes instâncias
do governo e da sociedade civil e estabelece conexões de corresponsabilidade entre
as partes. Referidas ações, coadunam para o desenvolvimento e a construção de
conteúdos curriculares mais democráticos, pois, o processo educativo é construído
coletivamente, tendo como foco mudanças nas condições de vida do sujeito da
aprendizagem. Para Taylor (1994, p. 58) “[...] um indivíduo ou um grupo de pessoas
pode sofrer um verdadeiro dano, uma autêntica deformação se a gente ou a socie-
dade [...] lhe mostra, como reflexo, uma imagem limitada, degradante, depreciada
sobre ele [...]”.
A relevância desses programas em nível social e político adverte que a escola
sozinha é insuficiente para promover uma mudança na realidade social existente ou
para o saneamento dos problemas da aprendizagem que têm as mais diversas raízes.
Implica reconhecer que esse movimento em prol do respeito e valorização da educa-
ção potencializa discussões em torno da democratização do acesso a educação, forta-
lece e inova procedimentos didático-pedagógicos. Apresenta-se, portanto, como um
dos caminhos paracompreender a trama complexa que envolve a tríade juventude,
educação e transformação social, e constitui meio para o enfrentamento dos proble-
mas que afetam a vida de todos os sujeitos vinculados à escola. Ciente que:
Ante esses fatos, os objetivos da relação entre educação e assistência social gi-
ram em torno da ideia de congregar políticas e relações pedagógicas necessárias
à promoção do desenvolvimento humano e social entre Estado e sociedade civil,
no propósito de atender especificidades e demandas do sujeito da aprendizagem.
Como preceituam o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8069/91, e a Lei
de Diretrizes e Bases da Educação, Lei 9394/96, essa transformação significa uma
mudança na cultura e no desempenho de papéis, os quais possibilitam condições
adequadas ao compartilhamento de responsabilidades por diferentes atores.
Movimento que poderá se constituir uma contraposição à perspectiva da teoria
materialista de origem marxista definida por Santos: “O sistema educacional não
tem autonomia, pois a classe dominante evoca a si o monopólio das decisões, no
que tange a sua organização e estabelece os fins, os meios da educação e manipula
todo seu funcionamento, em qualquer nível ou grau de ensino” (2005, p. 160). Em
155
Maria da Anunciação Silva
REFERÊNCIAS
ALENCAR, Chico. Educação no Brasil: um breve olhar sobre nosso lugar. In:
______; GENTILI, Pablo (org.). Educar na esperança em tempos de desen-
canto. Petrópolis: Vozes, 2004.
BOURDIEU, Pierre. Juventude apenas uma palavra. In: Questões de sociologia.
Rio de Janeiro: Menos Zero, 1983.
DICK Hilário. Gritos Silenciados, mas Evidentes: Jovens construindo juventude
na história. 2000. Dissertação de Doutorado em Educação – USP, São Paulo. São
Paulo: Loyola, 2002
156
Gênero Trans e Multidisciplinar
157
PARTE III
GÊNERO,
HISTÓRIA E
CULTURAS
CAPÍTULO XI
A TRAJETÓRIA DE UMA
INTELECTUAL NEGRA: UMA VOZ
SUBALTERNIZADA?
Ana Cláudia Lemos Pacheco1
INTRODUÇÃO
Bell Hooks (1995, p. 468), discutindo o conceito de intelectual, acentua que tal
conceito é:
161
Ana Cláudia Lemos Pacheco
162
Gênero Trans e Multidisciplinar
Se a mulher do terceiro mundo não pode falar, como adverte Spivak, nós inte-
lectuais negras, brasileirassubalternizadas, do século XXI, podemos?
Souza, ao analisar as produções textuais dos intelectuais negros nos séculos XIX
e XX no Brasil, demonstra que os intelectuais e suas obras não foram reconhecidos
nos cânones acadêmicos. Em suas palavras (2010, p.188):
163
Ana Cláudia Lemos Pacheco
164
Gênero Trans e Multidisciplinar
165
Ana Cláudia Lemos Pacheco
pracitada refere-se à origem social precarizada das mulheres negras acadêmicas. Boa
parte delas tenta “burlar” as desigualdades sociais através de estratégias familiares e
de ajuda na manutenção e no acesso à educação. No caso da trajetória de Mahim,
tais mecanismos sociais foram importantes para ela se tornar uma intelectual.
No final de 2003, quando fui entrevistá-la pela segunda vez, Mahin tinha 61
anos de idade. No entanto, quando lhe perguntei a idade, ela desconversou e parecia
constrangida com a pergunta. Só depois de muito tempo, no decorrer da entrevista,
sem querer, revelou-me sua idade, apesar de já ter calculado o tempo entre a primei-
ra e a segunda entrevista.
A informante autoclassifica-se como negra. É liderança do Movimento Negro
em Salvador há três décadas. Sua linguagem corporal lhe denuncia. Quando eu a
entrevistei, estava vestida com um lindo vestido estilo africano, em tons claros. Tem
um porte mediano e um rosto bem mais jovem do que a idade que possui. Também
usa símbolos referentes à cultura afro-brasileira. Seu cabelo é crespo, natural, estilo
black power.
Mahim é pedagoga. Mestre e doutora em educação. É professora de uma grande
Universidade do estado da Bahia. É escritora. Tem muitas publicações na área de
educação e populações afro-brasileiras. É solteira, nunca foi casada e não tem filhos.
Nasceu em Salvador num bairro periférico. É a filha mais velha do segundo casa-
mento de seu pai com sua mãe. Seu pai casou-se duas vezes, sendo que no primeiro
casamento tivera 6 filhos e, no segundo, com sua mãe, tivera mais seis. Ao todo
eram 12 filhos, sendo que 3 faleceram. Do segundo casamento ficaram 2 mulheres
e 3 homens.
Os pais de Mahim eram pobres e negros, e ambos provieram do interior da
Bahia. Seu pai era pescador e, depois, tornou-se operário, e sua mãe trabalhava na
lavoura, colhendo frutas e café. Após migrar para Salvador, trabalhou como empre-
gada doméstica. Conheceram-se nessa cidade, casaram e constituíram família. Seu
pai faleceu na década de 1970 e sua mãe está com 90 anos de idade. Mahin e seus
irmãos, apesar da pobreza, todos estudaram e a maioria deles ingressou na universi-
dade. Ela mesma diz com orgulho: “todos eu puxei, eu puxei os meus irmãos para o
estudo”. Como Mahim conseguiu educar-se e torna-se uma intelectual?
2. A EDUCAÇÃO FORMAL
A educação formal é um meio importante de mobilidade individual dos grupos
sociais considerados excluídos (Bourdieu, 1997). Na trajetória de Mahim, a edu-
cação cumpriu um papel importante em sua vida e na vida de sua família. Dife-
rentemente de outras trajetórias, em que geralmente um dos membros consegue
mobilidade social e outros não, na família de Mahim, todos os seus irmãos, homens
166
Gênero Trans e Multidisciplinar
Meu pai, ele pedia que eu lesse a bíblia para ele, o jornal, todos os dias, eu lia,
lia, lia para ele. Naquele tempo a gente não tinha televisão, não tinha rádio, não
tinha nada, a nossa casa era muito pobre, todo mundo estudou com dinheiro de
arremate, a gente fazia arremate para vender, para comprar comida, comprar livro,
para não faltar à escola.
167
Ana Cláudia Lemos Pacheco
Eu sou uma intelectual negra, uma pesquisadora e sou muita discriminada, a gente
nunca é chamado para as coisas dentro da Universidade, só quando é para fazer
palestras para fora, essascoisas, mais qualquer coisa que você precise dentro da
Universidade chamam pessoas de fora, é o não reconhecimento da sua competên-
cia, é o não reconhecimento de você enquanto pesquisador, profissional, é muito
ruim; é uma das militâncias mais duras é dentro da Universidade.
O relato acima de Mahim revela uma tensão existente entre a academia e sua
atuação política no movimento social. Isso é tão significativo em sua narrativa que,
ao falar dessa tensão, a entrevistada se emociona e chora. A sua legitimação enquan-
to uma intelectual negra é conflituosa na academia. Contou-me que certo dia uma
colega sua de trabalho chegou para ela e disse: “você quer trazer o Ilê Aiyê para
dentro da sala?”. Mahim desenvolve e coordena trabalhos educativos com jovens
do Ilê Aiyê, aliás, mais do que isso, ela acompanha o bloco desde o seu surgimento
na década de 1970. A sua militância política no Movimento Negro se iniciou nessa
época. Foi ali que tudo começou.
O começo mesmo... o despertar para a questão negra foi o Ilê Aiyê. A passagem
dele em setenta e quatro, eu estava na rua com duas colegas minhas, e apareceu o
Ilê, aí elas disseram que“coisa horrível aqueles negros de vermelho”, eu achei tão
bonito, e aquilo me tocou muito, e eles começaram a cantar, eu chorei de emoção,
aquilo me despertou para a questão negra.
168
Gênero Trans e Multidisciplinar
169
Ana Cláudia Lemos Pacheco
4. A SOLIDÃO
Mahim aos 61 anos de idade, nunca foi casada e não tem filhos. Desde cedo,
quando ainda era jovem, auxiliava sua mãe na administração da casa e na sociali-
zação dos seus irmãos menores, preocupando-se com a formação educacional e
profissional destes. Perguntada porque nunca se casou, respondeu-me que desde sua
juventude não pensara em casar e nem ter filhos, pois “praticamente viveu para essa [sua]
família”, referindo-se a sua mãe, seus irmãos e sobrinhos e logo em seguida retrucou
“mas eu me sinto realizada em muitas coisas”.
Um dado a ser analisado nas trajetórias sociais das mulheres negras intelectuais
não é apenas o seu “isolamento” acadêmico devido as tensões e conflitos já expos-
tos na trajetória de Mahim. A solidão afetiva das mulheres negras, em particular, da
intelectual negra analisada não pode ser percebida sem atentarmos para a intersec-
cionalidades das categorias de gênero-raça, geração e outras que informam a sua
posição no campo acadêmico, como por exemplo, sua afetividade.
Poucos são os estudos, inclusive os de Hooks sobre as intelectuais negras es-
tadunidenses, que enfocam a importância da questão afetiva. No relato de Mahim,
percebe-se que os fatores de gênero-raça e geração (a filha mais velha) lhes possibi-
170
Gênero Trans e Multidisciplinar
litou estudar, mesmo com sacrifícios, e se tornar uma intelectual; porém, por outro
lado, a posição que experimentara enquanto uma mulher negra de prestígio, a impe-
diu de ter relacionamentos afetivos estáveis com seus parceiros. A política, o ativismo
negro, associado à condição de ser uma mulher negra intelectual não lhes permitiu
a possibilidade de “ser mulher” do ponto de vista da realização afetiva. Isso ficou
evidente em sua narrativa, quando lhe perguntei o porquê de nunca ter se casado.
Ao falar desse momento, percebi que Mahin se emocionara. Houve um silêncio
por alguns segundos, depois recompôs a voz, ainda num tom emocionado, e disse:
“na minha cabeça, eu sempre quis ter um carro, e um apartamento pra eu morar; filho, nem pensar,
coisas da vida passada”. A entrevistada evitou contar detalhes dessa fase de sua vida.
Na continuação de sua narrativa, relatou-me que, após ter “perdido” à oportunidade
de se casar, teve outras propostas de casamento, no entanto, não se sentia atraída
por seus pretendentes.
Na década de 1980, Mahin teve relacionamentos afetivos transitórios com vá-
rios homens. Perguntei-lhe se os homens eram negros, ela respondeu-me que sim.
Lembrou-se que só tivera um relacionamento com um homem branco, quando era
universitária, este era mais velho do que ela. Tal relacionamento não dera certo por-
que a família de seu namorado não aceitou o namoro por causa da questão racial, o
que teria abalado a relação e levado ao seu término.
Na década de 1990, Mahim mantivera um relacionamento de seis anos com um
homem estrangeiro (africano), porém, a distância entre eles não permitiu a estabili-
dade afetiva almejada. Em 2001, tivera outra paixão, cujo relacionamento durou um
ano, com outro africano que “tinha duas esposas e queria que eu fosse a terceira”; por esse
motivo terminou a relação. Depois de várias relações instáveis, Mahim revelou-me
que, a partir da década de 1990, vem mudando seu modo de se relacionar com o
“outro”. Acentua que o sentimento, o envolvimento emocional é um importante
fator para constituir uma relação a dois e revela:
Eu acho que com a aproximação dos 60 [anos de idade] a gente vai ficando... eu não sei, está
sendo muito difícil de se encontrar hoje um parceiro..., porque esta questão de só querer ter rela-
ções sexuais sem sentimento não dá, eu vou até voltar para a minha terapia de novo.
Segundo seu relato, os seus relacionamentos afetivos “não deram certo” porque
preenche sua solidão com a convivência familiar: “desde os 22 anos que eu moro sozinha,
mas sempre perto da minha família”. Além desse fato, o trabalho acadêmico lhe ocupa
boa parte de seu tempo: “eu viajo muito fazendo pesquisa, dando entrevistas” e afirma: “eu
não tenho este sentimento de solidão, eu sou uma pessoa só, mas quando eu posso, eu fico em minha
casa, lendo, estudando, vendo televisão”. Em relação ao lazer, relatou-me que “adora sair
só” ou com a irmã ou com as amigas, gosta de ir ao cinema, ao teatro e participar
das atividades festivas e políticas do Movimento Negro.
171
Ana Cláudia Lemos Pacheco
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Retomemos algumas discussões do texto de Hooks e de Spivak. Através da
análise da trajetória de Mahim, percebemos que a educação (pública) foi o principal
meio de mobilidade social e individual, através das redes familiares, de parentesco
consanguíneo ou das redes de ajuda, que possibilitaram a sua inserção na esfera
educacional e no mercado profissional.
Porém, as hierarquias de gênero-raça atrelada à atuação política de Mahim foram
marcadores importantes na sua trajetória acadêmica. A discriminação vivenciada no
ambiente acadêmico foi acionada à medida que a informante percebe que não há
um reconhecimento por parte de seus pares não negros(as) e negros acadêmicos
não ativistas pelo seu trabalho intelectual. Tal fato foi percebido por Hooks no
contexto estadunidense, as intelectuais negras são poucas citadas ou reconhecidas
no meio acadêmico se comparada com os intelectuais / homens negros. No caso
estudado, o não reconhecimento enquanto intelectual está fortemente relacionado
com a produção de um conhecimento não aceito pelo staff científico eurocêntrico/
colonialista, gerando o isolamento da intelectual no meio acadêmico. O que revela o
forte impacto de gênero e raça no reconhecimento ou não de uma intelectual negra,
cujo imaginário social a associa ao “servilismo sexual e doméstico”; negando-lhe
o trabalho intelectual, ou como adverte Spivak, na sujeição do “outro” construído
pelo olhar ocidental.
A prática política conjugada com os dispositivos do gênero desestabilizou outras
categorias sociais, como a de raça, classe e geração, gerando um campo de tensões
permanentes no campo acadêmico e político-afetivo da entrevistada, colaborando
com suasituação de solidão. Isso se constatou na maneira como Mahim aciona em
sua narrativa as preocupações com a idade/geração, com as responsabilidades que
tivera desde cedo com os afazeres domésticos; com a socialização e educação dos
seus irmãos menores; assim com a ocupação constante com suas atividades intelec-
tuais e acadêmicas que a impediu de casar.
172
Gênero Trans e Multidisciplinar
REFERÊNCIAS
173
Ana Cláudia Lemos Pacheco
174
CAPÍTULO XII
TRADIÇÃO, SEXISMO E
MASCULINIDADE SUBALTERNIZADA
NAS IRMANDADES NEGRAS
Joanice Conceição1
INTRODUÇÃO
Desde as pesquisas realizadas sobre as irmandades para o mestrado, acerca da
Irmandade da Boa Morte, sempre me intrigou o fato de encontrar nos Estatutos e
Compromissos itens que falavam clara ou indiretamente sobre a discriminação fe-
minina nos espaços religiosos. Alguns anos se passaram e após concluir o doutorado
estou eu a refletir sobre o tema. Penso que a inquietação advinda dos primeiros anos
do milênio 2000 só agora encontra elementos basilares para que a pesquisadora em
questão se aventure por esse universo. É claro que os temas das relações étnico-
-espaciais, o sexismo2 e o classismo terão muitas lacunas que só serão preenchidas
por mim, com o meu próprio amadurecimento, ou ainda, se contar com um estudo
mais acurado de outra estudiosa ou estudioso, porque, em certa medida, para mim,
o tema ainda é muito incipiente. Retrocedamos agora alguns séculos para iluminar
os fatos atuais.
Na diáspora, as negras e os negros criaram espaços de sociabilidade, no interior
dos quais se teciam solidariedade, espaços como os moçambiques, as congadas, os
candomblés e as irmandades, alguns deles possuíam a função implícita de repre-
sentar socialmente, se não politicamente, os diversos grupos nas hierarquias sociais
(Reis, 1991, p. 51). No Brasil do início do século XVIII, as irmandades eram grandes
núcleos que agregavam devotos de um determinado santo; eram compostas basica-
mente por leigos, embora recebessem religiosos; essas associações faziam caridade
aos seus membros e carentes não associados; conservavam o funeral acima de qual-
quer outro privilégio, já que para a maioria do povo africano a morte é vista como
princípio de vida (Conceição, 2011, p. 17). Em geral, a estrutura organizacional
seguia o modelo português, conservando do catolicismo barroco as elaboradas pro-
1. Pesquisadora da do Programa Nacional de Pós-Doutorado -PNPD∕CAPES, junto ao Programa de Pós-
-graduação em Antropologia da UFPB; Doutora em Ciências Sociais/Antropologia pela Pontifícia Univer-
sidade Católica de São Paulo – PUC-SP; Integrante do grupo de pesquisa “Ritual, festa e performance”.
2. O termo é utilizado para se referir à discriminação praticada em função do sexo, dentro da visão dico-
tômica difundida pela biologia.
Joanice Conceição
3. Para maiores detalhes sobre a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, ver Conceição, 2004, no
trabalho intitulado Mulheres do partido alto: elegância, fé e poder – um estudo de caso sobre a Irmandade
da Boa Morte.
176
Gênero Trans e Multidisciplinar
A citação de Reis deixa entrever que os homens entendiam haver certa inca-
pacidade nas mulheres para o exercício de qualquer atividade que não estivesse de
acordo com a visão hegemônica do ser mulher. Note que as atividades relegadas às
mulheres dizem respeito às tarefas desenvolvidas no âmbito doméstico. Portanto,
as categorias raça, classe e religião, de modo geral, modelam a imagem do que é
ser mulher nos espaços religiosos, particularmente entre as mulheres e os homens
negros nas irmandades mistas e negras da Bahia. Para se ter uma ideia mais precisa
do fato, a atuação das mulheres nos espaços religiosos sempre foi ocultada tanto
na história quanto na antropologia, visto que a história dos movimentos religiosos
sempre foi contada pelos homens, sobretudo o branco. Todavia, com o movimento
feminista brasileiro e as novas exigências que o conceito impunha aos novos estudos
sócio-histórico-antropológicos, foram aparecendo estudos que tinham uma preocu-
pação no sentido de trazer à visibilidade personagens femininos, mas, ainda assim,
eram personagens brancos, portanto, ainda existia uma defasagem em relação à per-
sonagem negra. É verdade que, na época, o número de pesquisadoras que se interes-
177
Joanice Conceição
savam pelo feminismo negro brasileiro era parco, dada a realidade de essa população
ser maioria nos bancos acadêmicos. A nossa história era contada por Roger Bastide,
Nina Rodrigues, Pierre Verger, Edson Carneiro e outras tantas vozes masculinas.
A religião de atriz africana foi inicialmente levada para os debates acadêmicos pela
intelectualidade heterossexual e, acima de tudo, branca e católica. E assim foi por
muito tempo! Bell Hooks, intelectual negra norte-americana, ao discorrer sobre a
produção negra, revela não apenas o silenciamento dessas produções como também
o seu ocultamento.
A realidade explicitada por Hooks não difere muito da vivenciada aqui no Brasil;
além da negativa em relação à produção negra, aqui também a história é feita apenas
pelos homens; quando lemos a história brasileira, parece que não havia mulheres na
luta. As narrativas masculinizadas não apenas nos colocam no recalque como tam-
bém nos tiram a intelectualidade, o pensar, o construir. Para além do fortalecimento
do tema feminino na agenda dos congressos e seminários, verificou-se a necessidade
de aprofundar e investigar em qual base se constituía a participação feminina nas
territorialidades religiosas. Geertz salienta que a religião é:
178
Gênero Trans e Multidisciplinar
179
Joanice Conceição
Inscritas nas coisas, a ordem masculina se inscreve também nos corpos através
das injunções tácitas, implícitas nas rotinas da divisão do trabalho ou dos rituais
coletivos ou privados (basta lembrarmos, por exemplo, as condutas de marginali-
zação impostas às mulheres com sua exclusão dos lugares masculinos). As regu-
laridades da ordem física e da ordem social impõem e inculcam as medidas que
excluem as mulheres das tarefas mais nobres (sic), assinalando-lhes lugares infe-
riores (sic) ensinando-lhes a postura correta do corpo (sic) atribuindo-lhes tarefas
penosas, baixas e mesquinhas (sic), enfim, em geral tirando partido, no sentido
dos pressupostos fundamentais, da diferença biológica que parecem assim estar à
base das diferenças sociais. (Bourdieu, 2010, p. 34)
No caso das irmandades negras a mulher era levada para um lugar socialmente
sem prestígio; tudo aparentava uma falsa harmonia à medida que eram aceitas sem
restrições, entretanto, havia um longo caminho para que elas pudessem ocupar um
lugar de relevância social. Para Saffioti (2004), os avanços feitos nos estudos sobre a
questão da mulher, principalmente nos anos 1960 e 1970, não condizem com a fre-
quente inferioridade atribuída a elacomo marca natural. Embora tenhamos consci-
ência de que os homens negros das irmandades reproduziam as ideologias da classe
dominante, em que o poder do homem era visto como superior e decisivo, não nos
180
Gênero Trans e Multidisciplinar
refuta a ideia de que os reflexos dessa atitude coincidiam com a distribuição desigual
dos papéis, na medida em que as mulheres eram discriminadas. Como já salientamos
antes, as tarefas de maior prestígio estavam nas mãos masculinas, como a cobrança
de aluguéis, a administração das terras e a representação junto às autoridades gover-
namentais e do clero; eram, sim, para a visão do dominador, tarefas que somente os
homens podiam desempenhar.
Analisando essa situação num conjunto mais amplo, não obstante as injunções
feitas ao feminino, paradoxalmente, tanto homens negros quanto mulheres negras
encontravam-se em igual situação de dominação e exploração. Os homens brancos
também praticavam a discriminação contra os homens negros. Mulheres e homens
negros são iguais na diferença. Voltaremos a esse tema mais adiante.
Para Scott (1990) é preciso identificar as estruturas basilares da discriminação,
a fim de combatê-las, ainda que se saiba que tais estruturas estejam fortemente
ancoradas na produção, reprodução, socialização e sexualidade. Entretanto, Saffioti
acrescenta-lhe o androcentrismo ou falogocentrismo, posto que permitem compre-
ender a gênese do exercício da dominação sobre as mulheres, em que, segundo o
modelo vigente, coloca o homem na esfera do poder, da força e a mulher, na secun-
dariedade, isto é, do lado da submissão e da fragilidade.
Assim, as irmandades mostram suas armas clássicas da masculinidade hegemô-
nica uma vez que a mulher desde os primórdios é considerada como sexo frágil.
Sendo assim, suas habilidades não comportam o acesso a determinados espaços, a
exemplo, a representação junto às autoridades eclesiásticas e governamentais. Sa-
ffioti acrescenta que, “as representações de gênero de uma sociedade falocrática
não cobrem todo o espaço social. Quer dizer que existem lugares sociais vazios do
ângulo do androcentrismo em que a mulher não é representada e irrepresentável,
visto de uma perspectiva machista” (1995, p. 17).
Assim fica claro que a aceitação das mulheres como cota de gênero não é o
mesmo que pensar que, por essa razão, estão fora da égide do sexismo na medida
em que as relações sociais são hierarquizadas e socialmente desiguais, portanto, não
existe valência; o termo gênero guarda, sobretudo, características de relações igua-
litárias, o que não é verdade. Não foi à toa que a sociedade patriarcal logo definiu
e legitimou a inferioridade das mulheres, hierarquizando as desigualdades entre os
sexos por meio da divisão sexual dos papéis.
181
Joanice Conceição
afirmação estou a dizer que o homem negro possui um valor menor no mercado
racializado; esse fato está presente desde os tempos que remontam à invasão das
terras brasileiras, focalizando o homem no período colonial, no advento das irman-
dades negras, brancas e mistas. Com o nascimento de tais organizações, poderiam
até pensar não haver tratamentos diferenciados, já que, perante os dogmas religiosos
cristãos, toda pessoa é filha de Deus. Mas não é bem assim: a realidade que se des-
lindou vem recheada de conflitos raciais que se apresentam ora implícitos, ora reve-
lados. Entretanto, a base desses conflitos está fundamentada no racismo religioso e
no classismo que sempre foi um forte aliado da Igreja.
Dentro da visão hegemônica, o homem negro sempre foi considerado o viril, o
bem dotado e outras adjetivações que negam o negro como um sujeito, no sentido
mais amplo do termo. Entretanto, quando colocamos esse mesmo homem dentro da
política de gênero, em particular no processo escravista, percebemos que sua atuação
foi negada, por não fazer parte do modelo normativo, isto é, o modelo branco, he-
terossexual e rico (Hooks, 1995). A constatação da negação da masculinidade ou da
masculinidade subalterna do homem negro e as constantes interiorizações negativas
sofridas ao longo da história criaram uma imagem negativa do ser homem negro
frente a outros homens, embora os aspectos inferiorizantes não fossem levados em
conta no momento da avaliação do seu progresso material. “Numa sociedade como
a brasileira, com clivagens de gênero, de distintas raças∕etnias em interação e de classe
sociais, o pensamento, reflete as subestruturas antagônicas” (Saffioti, 2004, p. 37-38).
A visão de uma masculinidade hegemônica advém da visão patriarcal, cuja base
ancora a ideia de um homem trabalhador, provedor de família, enquanto à mulher
reserva-se a fragilidade e a submissão, visão essa que foi levada quase que integral-
mente para as organizações negras, de modo a se refletir na relação com seus pares,
ou seja, entre as mulheres e os homens negros. Vamos nos deter um pouco mais
nesse aspecto, focando o olhar para as discriminações sofridas pelo negro nos es-
paços religiosos. Já ressaltamos que, via de regra, as irmandades seguiam o modelo
português, embora saibamos que houve especificidades entre os negros, como, por
exemplo, do candomblé da Barroquinha, que surgiu na intersecção das irmandades
dos Martírios e Boa Morte, ambos em Salvador.
As representações sociais do masculino e do feminino envolvem reflexões para
além da dicotomia fundante, envolvem raça, classe e religião. O sexo pode ser en-
tendido como um produto biológico; enquanto gênero é uma construção social,
contudo, não podemos analisá-los isoladamente, devemos, pois, considerá-los como
unidade, dentro da variante do contexto social em que é exercida. Dessa forma,
apontando para as muitas faces que o gênero revela, entendemos que categorias
como raça/etnia e classe podem somar-se para melhor definir um determinado
campo. Assim como podemos entender, que a masculinidade negra é vista de forma
diferenciada pelos brancos:
182
Gênero Trans e Multidisciplinar
Mesmo o termo patriarcado, que nos remete à opressão masculina contra a mu-
lher5, não obstante esteja baseado na figura masculina, prevê que as representações
de homem ancoram-se no conceito de homem branco, heterossexual e de classe
média. Ora, sendo o membro da irmandade um negro, já não se pode pensar nesse
homem de igual modo, mas de forma dissimétrica, portanto díspares. O exercício
da masculinidade nem sempre pode ser lido de uma mesma forma; o homem negro
da diáspora enfrentou e continua a enfrentar uma série de obstáculos, sobretudo
no aspecto financeiro. Se, por um lado, a sua virilidade, a sua performancesexual
é ressaltada, por outro, o ser humano negro fica no plano de um lugar menor; a
modernidade não lhe assegura o lugar reservado a todo homem, ao contrário, a re-
presentação hegemônica e da tradição lhe reserva um lugar diferenciado. O homem
branco busca na tradição eurocêntrica as bases da discriminação. Como mostra o
excerto abaixo:
A tradição fornece o laço crítico entre atributos locais das formas e os estilos
culturais e suas origens africanas. A história interveniente na qual a tradição e mo-
dernidade se juntam, interagem e se confrontam é posta de lado juntamente com
as consequentes implicações deste processo para a mediação da pureza africana.
A tradição torna-se, assim, o meio de demonstrar a contiguidade de fenômenos
contemporâneos selecionados com um passado africano que os moldou, mas que
eles não mais reconhecem e a eles apenas se parecem. (Giloy, 2001, p. 358)
As ideias contidas nas palavras de Paul Gilroy encontram eco nas práticas das
irmandades mistas, homens discriminando outros homens, seria por assim dizer, a
discriminação do sexo pelo sexo.
Do ponto de vista das desigualdades e enquanto mulher negra, nos acostuma-
mos a pensar nos problemas da mulher negra, porém nem tudo se aplica apenas ela,
mas, no caso das irmandades do Período Colonial, tanto o homem quanto a mulher
negros sofreram com a discriminação e, ainda hoje, os homens negros têm a sua
masculinidade subalternizada quando relacionada ao homem branco. A dominação
5. O termo patriarcado é utilizado para se referir à discriminação da mulher negra pelo homem negro.
183
Joanice Conceição
O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo
que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está
nas mãos de alguns, nunca é apropriado como riqueza ou bem. O poder
funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circu-
lam, mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua
ação; nunca são o alvoinerte ou consentido do poder são sempre centros
de transmissão. (sic) O poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles.
(Foucault, 1979, p. 183)
Nessa mesma obra, Foucault mostra que existem vários tipos de poder; mesmo
em uma situação de dominação, o dominado também o tem. São poderes que o au-
tor denomina de micropoderes, mas igualmente servem para dar sustentação a um
sistema; o fato de serem considerados micros não quer dizer que eles sejam menos
importantes. A análise simbólica do poder e da diferença entre os sexos foi apreen-
dida socialmente pelas organizações negras, como em qualquer outro espaço, apesar
184
Gênero Trans e Multidisciplinar
de ser perpetrada de forma diferente; no caso do homem negro, ele usava o poder
que possuía contra as mulheres, principalmente as negras, que eram igualmente des-
tituídas de poder face à esfera dominante.
3. TERRITORIALIDADE E GÊNERO
O estudo de grupos afro-brasileiros requer uma investigação não apenas das
questões históricas, mas um estudo acerca do espaço que esses corpos negros ocu-
pavam e ocupam na sociedade, uma vez que foi no corpo que os escravizados cria-
ram condições para a sobrevivência de suas culturas, foi nele e sobre ele que os
negros e as negras conservaram e conservam os traços mais significativos de suas
culturas para tornar realidade aquilo que hoje chamamos de culturas afro-brasileiras.
A afirmação de que “O corpo é o primeiro e o mais natural instrumento do homem,
ele é modelado conforme os hábitus culturais” (Le Breton, 2006, p. 39) produz efi-
cácias simbólicas e materiais. A assertiva é reveladora no sentido de mostrar que o
corpo serve como instrumento de dominação ou de resistência, quando instrumen-
talizado para tal.
O corpo no espaço das irmandades e também fora dele revela-se como peça
estratégica na configuração dos papéis desempenhados. Homens usam as armas do
sexismo, do racismo para assegurarem o poder; para eles, não importa se é um poder
usado contra grupos que supostamente deveriam caminhar do mesmo lado ou o
poder de dominar alguém e, nesse sentido, essa prática não difere dos atos mágicos,
religiosos ou simbólicos. Assim aponta a análise:
O corpo é uma realidade mutante de uma sociedade para outra: as imagens que o
definem e dão sentido à sua existência invisível, os sistemas de conhecimento que
procuram elucidar-lhe a natureza, os ritos e símbolos que o colocam socialmente
em cena, as proezas que poderia realizar, as resistências que oferecem ao mundo,
são incrivelmente variados, contraditórios até mesmo para nossa lógica aristoté-
lica do terceiro excluído, segundo a qual se a coisa é comprovada seu contrário é
impossível […]. (Le Breton, 2006, p. 28-29)
185
Joanice Conceição
6. O autor, no livro Senhores de si: uma interpretação antropológica da masculinidade (Almeida, 2000), traz uma
reflexão sobre o conceito de gênero, focando especialmente a masculinidade de um povoado de Portugal,
ao tempo em que aponta para a vivência diferenciada da categoria.
7. A historiadora norte-americana e autora do artigo Gênero: uma categoria útil faz uma reflexão da cate-
goria gênero, porém aponta caminhos para o seu uso adequado.
186
Gênero Trans e Multidisciplinar
4. PALAVRAS FINAIS
Foi mostrado ao longo do texto o antagonismo de gênero dentro das irman-
dades negras e mistas. O efeito do sexismo, do racismo e do classismo gerou nos
séculos anteriores grandes entraves para a população escravizada e recém-liberta,
contudo, no século XXI, os efeitos dessas atitudes, embora transformados, são cau-
sa de desconforto para uma população majoritária, mas inferiorizada pela maioria.
Ainda vivemos numa sociedade excludente, machista e racista, tal como no Período
Colonial, que incita os conflitos sociorraciais, de gêneros e de classes. Não nego os
avanços pelos quais passamos em todos os campos, porém isso não me impede de
olhar o passado para analisar o presente e verificar que ainda temos uma longa ba-
talha, pois a cada dia aparecem novas formas de discriminações.
Diante do quadro que foi traçado, é urgente a necessidade de um empodera-
mento tanto das mulheres quanto da população negra para enfrentar o projeto de
violência que foi produzido desde os primeiros anos da invasão das terras brasilei-
ras; enfrentar o projeto de genocídio da população e da subalternidade feminina. De
um modo indireto apresentei a resposta para a pergunta inicial: O que levaria os ho-
mens negros a discriminarem as mulheres igualmente negras? Gostaria de ampliar e
reforçar a ideia que foi trabalhada ao longo de todo o texto.
A dominação masculina aliada à violência subjetiva contra as mulheres, como
o controle e a exclusão dos negros dos espaços de prestígio, é fruto de um projeto
187
Joanice Conceição
forjado pela classe dominante para manter o poder. Os homens expressam a re-
partição e a hierarquização das atividades, as quais se estendem para outras esferas
da vida em sociedade. O que acontece nas irmandades é apenas um reflexo daqui-
lo que ocorre nos domínios mais amplos do poder. Com efeito, entendemos que,
para romper ou destruir as históricas estruturas da dominação masculina contra as
mulheres e a inferiorização do negro, é necessária a participação nas lutas libertá-
rias, tal como foi nos movimentos abolicionistas, pelo direito ao voto feminino, nas
Revoluções Francesa e Industrial e mais recentemente pelos direitos civis, incluindo
o casamento de pessoas do mesmo sexo, conjugando à tomada de consciência da
união dos membros, reconhecendo a diferença de cada um, mas acima de tudo con-
testando as formas violentas da dominação, seja ela sexual, religiosa e∕ou de classe.
REFERÊNCIAS
188
Gênero Trans e Multidisciplinar
189
CAPÍTULO XIII
MULHERES QUE LABUTAM NO
RECÔNCAVO DA BAHIA
Maria de Fátima A. Di Gregorio1
INTRODUÇÃO
Não foi por acaso que, dentro de um leque de possibilidades de temas relacio-
nados à condição feminina, a questão do trabalho e da identidade despertasse meu
interesse como pesquisadora do grupo que atua no Projeto Recôncavo da Bahia.
Enquanto lugar de memórias e história, o local é muito propício para pesquisas de
campo, pela riqueza natural e pelos constantes desafios na cultura do trabalho, sina-
lizando aspectos econômicos e sociais que marcam a região. Estando o espaço inse-
rido em foco de pesquisas da universidade, interessada em estudos de identidades de
grupos socialmente distintos ou não, pude participar desse grupo de pesquisas, apli-
cando procedimentos exploratórios para coleta de dados, e levantando informações
sobre a participação das mulheres trabalhadoras do local. O intuito foi o de captar
a presença da mão de obra feminina em todos os segmentos socioeconômicos, cul-
turais e políticos da região/do local, marcas ligadas ao processo de colonização do
país, repensando as identidades, definindo níveis de participação na comunidade.
As cidades do Recôncavo Baiano se originam com o processo de ocupação
do território brasileiro e se configuram como aglomerações citadinas com intensos
fluxos e relações com as culturas agrícolas – fumo e cana-de-açúcar – destinadas à
exportação e que eram desenvolvidas na região. Segundo Milton Santos (1959), foi
no Recôncavo Baiano onde se constituiu a primeira rede urbana no Brasil, impul-
sionada pelo papel de destaque na economia colonial e mesmo durante o Período
Imperial. Os vínculos entre as cidades e o mundo rural sempre foram marcantes na
paisagem e na constituição dos lugares.
Certamente, um dos elementos empíricos que serviu para essa análise foi a par-
ticipação in locus, que possibilitou a observação do grau de desigualdade social exis-
tente numa determinada fatia da sociedade, repensando o processo de participação
191
Maria de Fátima A. Di Gregorio
MAPA 1
São Sebastião do Passé
Cabaceiras do
Paraguaçu SantoAmaro
Gov. Mangabeira Cachoeira
Muritiba São Felix S. Francisco do Conde
Cruz das almas
Saubará
Castro Alvez Sapeaçu
Conceição de Maragogipe
Almeida São Felipe
D. Macedo Costa
Itaparica S. Antônio de
Muniz Ferreira
Sertão do São Francisco Varzedo
Jesus
Nazaré
Piemonte
Norte de Semi Árido
Itapicuru Nordestino II
Piemonte da
Diamantina
Sisal
Irecê
Bacia do Litoral Norte
Oeste Baiano Jucuípe l Agreste de
Velho Chico rta
Po rtão Alagoinhas
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Chapada Piemonte do do
Diamantina Paraguaçu Recôncavo
Bacia do do Região
Vale iça
Bacia do Rio Paramirim Jiqu
ir Metropolitana
Baixo
Corrente Sul de Salvador
Médio Rio
utivo
Prod de Contas
Sertão
Vitória da
Conquista itapetinga Litoral
Sul
Extremo Sul
192
Gênero Trans e Multidisciplinar
Meu nome é Maria das Dores e quebro pedras o dia todo, pois sou homem e mulher da casa.
Meu companheiro foi embora para São Paulo faz alguns anos e eu tive que criar meus filhos
sozinha mais Deus. Tinha dias que quase parecia desistir, mas sabe como é... se não trabalhar
não comia.2
193
Maria de Fátima A. Di Gregorio
Rosália, marisqueira de Jaguaripe, relata: “essa tradição é de meus pais. Trabalho para
ajudar meu companheiro que é pescador e minha filha me ajuda a limpar e separar os mariscos
para ele vender. A gente ajuda para ganhar o sustento da casa”. Essas falas mostram a con-
dição de ser mulher guerreira, da força para a família. Nas observações de campo
realizadas por ocasião das entrevistas, percebi que os casais, quando estão juntos,
parecem ter convivência distante, muitas vezes conflituosa, por causa da situação
financeira, dos hábitos de bebida e rodas de amigos, sinalizando o baixo grau de afe-
tividade dos homens para as mulheres e crianças. Nas camadas mais empobrecidas,
o relacionamento afetivo, contudo, parece expressar a revolta da saída na madruga-
da, dos efeitos da não fartura, e das traições em bares. Mulheres que saem cedo de
casa deixando suas crianças com parentes e amigos, quando estas não acompanham
as mães. Nessas relações de cuidado a curto e longo prazo, as mulheres dependem
de outras mulheres ou adolescentes para a tarefa de olhar os filhos. Olhar não é
necessariamente cuidar. Olham nos passeios, e as mães saem para suas atividades
de sustento, confiantes nessa vizinhança. Bruschini (1990)3 diz: Da mesma forma que o
parentesco, as relações de vizinhança foram verificadas no que diz respeito às formas de convivência,
cooperação, solidariedade e conflito. Das mulheres investigadas, quase todas afirmaram
que o convívio com seus parceiros estavam em via terminal ou não existe mais, ha-
vendo muita violência no convívio família e comunidade.
A prática de mulheres apoiarem outras da mesma comunidade mostra que a
ausência dos companheiros no processo de criação dos filhos está sendo substituída
pelas relações de amizade e companheirismo, reflexo de uniões que foram temporá-
rias ou descompromissadas. Resultado de um conjunto de fatores que ao longo dos
anos têm interferido no cotidiano delas, dos meios de produção local, na herança
que veio do período colonial e do processo de coisificação das mulheres. Na história
do estado da Bahia, a produção açucareira trouxe a visão de lucro dos senhores atra-
vés da exploração da mão de obra escravista feminina e da exploração do trabalho
infanto-juvenil na cultura elástica.4
Uma das formas de luta dessas mulheres é a economia compartilhada, princípio
básico de organização e união para distribuição coletiva, na qual as mulheres se
associam, dividem e lutam pelos direitos ao capital, especialmente as marisqueiras e
fumageiras que conseguiram criar associações na comunidade, o que não é o caso
das britadeiras. A aplicação desses princípios une o grupo que passa a produzir com
os mesmos objetivos, criando estratégias dedefesa e apoio mútuo, instituindo o que
chamamos de empoderamento.
3. Cf.Cristina Bruschini. Mulher, casa e família: cotidiano nas camadas médias paulistanas. São Paulo:
Vértice, 1990, p 168
4. Cultura elástica é um termo utilizado nos estudos sobre a vida no período republicano aplicado aos
negros que vendiam mingaus, garrafas, bolos, acarajés, etc, para compra da carta de alforria ou mesmo após
a libertação dos escravos, meio de sobrevivência.
194
Gênero Trans e Multidisciplinar
195
Maria de Fátima A. Di Gregorio
196
Gênero Trans e Multidisciplinar
197
Maria de Fátima A. Di Gregorio
que são passadas por gerações, acrescida ao desejo de luta pela vida. A prática das
marisqueiras, charuteiras e quebradeiras de pedras não significava apenas uma ação
de produção. Estas traduzem a incorporação de novos elementos culturais adquiri-
dos pelas mulheres em seus espaços, associando-se ao universo cultural do campo
ao qual pertencem.
Dessa forma, a partir do encontro do universo cultural de suas atividades, as
mulheres (re) constroem suas identidades num cenário cuja característica marcante
é a relação de exploração, de abandono e de resistência e preservação das relações
de proximidade entre avó, mãe, filhas, vizinhas que se organizam e criam o empo-
deramento feminino. A matrifocalidade − característica encontrada nesses grupos
−, está diretamente ligada ao fato de essas mulheres se agruparem em atividades de
produção cotidiana em suas jornadas, na praça ou no mar, na igreja ou na rua, mos-
trando ações que tem um significado e valores entre os espaços públicos e privados.
Os princípios de expansão da matrifocalidade têm como base um esquema
bipartido: de um lado estão os homens que vêm e vão, e do outro, a dinâmica da
participação das mulheres no grupo. Eles vão embora por muitos fatores: a busca
pelo trabalho, a miséria em casa, a falta de interesse pela família no seu prover e
cuidar, aventurando-se. Para a mulher que foi abandonada não restam muitas es-
colhas. Se vê obrigada a trabalhar para o sustento dos filhos e exercer o papel de
pai/mãe. Por trazer uma sensibilidade aguçada, a mulher sente dificuldades para se
reerguer da decepção, e, na maioria das vezes, acaba optando por criar sozinha os
filhos do relacionamento.
8. Cf. Sarti, Os filhos dos trabalhadores: quem cuida das crianças? In: Bretas, Trabalho, saúde e gênero: na
era da globalização, p. 51-60.
198
Gênero Trans e Multidisciplinar
199
Maria de Fátima A. Di Gregorio
e sobrevivência. Uma das alternativas para melhorar a qualidade de vida das maris-
queiras seria a criação de uma cooperativa para facilitar a comercialização da carne
do crustáceo e, com isso, agregar valores ao produto, pois a ausência de políticas
públicas para a pesca artesanal e para a garantia dessas unidades de conservação tem
sido notória.
Na terceira representatividade − as charuteiras ou fumageiras do Recôncavo
como parte significativa e integrante desse cenário, não apenas vistas como operárias
das fábricas, mas como mulheres que trabalharam desde cedo, vivendo fora de casa
e recebendo valores que nem sempre cobrem as despesas, tendo como face perversa
da fumicultura, o emprego de mão de obra infantil associado ao empobrecimento
das famílias, além do uso extensivo do trabalho familiar no cultivo do tabaco. Nesse
sentido é que se percebe quanto o dinheiro e o emprego representam para elas.
O Recôncavo da Bahia, a partir dessas representatividades, definiu-se como
território de luta pela sobrevivência dessas mulheres ativas, muitas advindas de his-
tórias de quilombos existentes no local, reconhecendo-se remanescentes de grupos
que delimitaram esse território revelando dinâmica em que as identidades se arti-
culam e se transformam em espaços de cultura e tradição. Os enfrentamentos com
grupos de diferentes interesses, as difíceis relações entre proprietários fundiários,
investidores privados e sua força de trabalho constituem grande desafio. A força do
trabalho é condição de vida, de construção de identidades locais e a nacional.
Pensar na labuta pela sobrevivência nesse local, em terras que não são suas, na
família matrifocal, na sociedade inserida num contexto capitalista, é pensar como os
valores se mostram presentes no cotidiano delas. Tais questões mostram a realidade
dessas mulheres, as identidades construídas a partir desse contexto, o sonho de en-
contrar outras possibilidades de trabalho.
Norberto Elias (1990)9 mostra que a constituição das identidades é atividade
socialpor excelência que envolve dois segmentos: o individual e o coletivo ligado à
tradição. O modelo de identificação desses grupos com a cultura local, com gera-
ções passadas, são emblemas identitários. Preservar a identidade no local é perma-
necer no grupo, se reconhecer como tal, compartilhando a identidade do trabalho,
a posição e participação na comunidade – participação que está ligada à construção
da cidadania.
Se as identidades têm como uma das características a posição dos sujeitos, essas
refletem a inserção e participação num tecido social, a exemplo da identidade po-
lítica que diz respeito às formas de vida que impõe a si mesmo para sobrevivência
dentro de num sistema desigual. Essa posição tende a suprir a existência do sujeito
e varia de acordo com o lugar e o momento histórico do qual se faz parte.Essa pro-
jeção mostra o lugar que ocupamos no mundo social e cultural, a estrutura em que
200
Gênero Trans e Multidisciplinar
se vive e percebida, onde as identidades vão sendo (re)construídas, uma vez que elas
mudam de acordo com a forma como os sujeitos consentem e tutelam a participa-
ção na sociedade.
201
Maria de Fátima A. Di Gregorio
10. Cf.Milton Santos. O Espaço Total de nossos dias. In: Por uma Geografia Nova: da crítica da Geo-
grafia a uma Geografia Crítica. 3.ed. São Paulo: Hucitec, 1990.
11. Rosália é marisqueira da Jaguaripe e se orgulha de sua profissão.
202
Gênero Trans e Multidisciplinar
interior da fábrica não tiram a hierarquia e a liderança: “As mulheres que trabalham na
produção não podem reclamar comigo caso algum charuto precise ser refeito”. É preciso sempre
muito capricho e uma das funções de uma charuteira é ter delicadeza no tocar as
folhas do fumo.
Mulheres que lutam para o desenvolvimento econômico e cultural da região,
tornando-se símbolo de luta, força e trabalho num território onde as forças hege-
mônicas de grupos lideram o comércio regional exercendo pressões nas relações
de trabalho local. Mas o território não pode ser visto apenas como a projeção das
relações sociais num espaço, mas a projeção desse espaço nas relações sociais. Sobre
territórios, define Souza (1995)12:
Territórios, que são no fundo antes relações sociais projetadas no espaçoque es-
paços concretos (os quais são apenas os substratos materiais dasterritorialidades)
– (...) podem (...) formar-se e dissolver-se, constituir-se e dissipar-se de modo
relativamente rápido (ao invés de uma escala temporal de séculos ou décadas,
podem ser simplesmente anos ou mesmo meses, semanas ou dias), ser antes
instáveis que estáveis ou, mesmo, ter existência regular mas apenas periódica, ou
seja, em alguns momentos – e isto apesar de que o substrato espacial permanece
ou pode permanecer o mesmo. (p. 87)
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No contexto cotidiano dessas mulheres, as identidades se relacionam com a me-
mória social dos grupos e pelas atividades aprendidas e passadas pela tradição pre-
servada entre gerações, definindo a identidade de referência, embora abrindo ou não
um espaço para o empoderamento feminino. A tradição preservada contribuiu para
o sentimento de pertencimento e execução de papéis exercidos na sociedade pelos
12. Cf. Souza, O Território: sobre espaço e poder, autonomia edesenvolvimento. In: Castro; Costa; Corrêa,
Geografia: Conceitos e Temas.
203
Maria de Fátima A. Di Gregorio
REFERÊNCIAS
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Gênero Trans e Multidisciplinar
205
CAPÍTULO XIV
MEU MUNDO É MELHOR ASSIM, DE
TERESA CRISTINA: NOTA DE
PESQUISA SOBRE O SAMBA
CARIOCA E MULHER
Núbia Regina Mereira1
INTRODUÇÃO
O título do artigo é uma brincadeira de junção entre um dos primeiros traba-
lhos da sambista Teresa Cristina, denominado O Mundo é Meu Lugar, gravado no ano
de 2005.E também o seu mais recente trabalho, Melhor Assim, DVD gravado em
2009. A intenção do texto é apresentar a trajetória da sambista carioca Teresa Cristi-
na entendendo que só é possível fazê-lo a partir da inserção da artista no mundo do
samba. Interessa muito mais compreender as redes de interdependências que for-
jaram as modificações no samba carioca e possibilitaram o aparecimento, nos anos
1990, de grupos de jovens compositores de samba, dentre os quais Teresa Cristina.
Na primeira parte do texto faremos algumas incursões históricas que se debruçaram
em analisar as transformações no universo do samba carioca desde sua constituição
como gênero urbano e nacional até a década de 1990. Na segunda parte, exporemos
a trajetória da sambista entendendo-a como fruto das interdependências sociais,
1. Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1995); mestre em Socio-
logia pela Universidade Estadual de Campinas (2007); professora assistente da Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia.
207
Núbia Regina Moreira
I
É apartir da década de 1870 que a palavra “samba” começa a ser registrada na
cidade do Rio de Janeiro. Assim fazendo, ela começa a diluir as fronteiras que se
mostravam tão nítidas até então; e assim, pouco a pouco, “o samba já não será mais
só da Bahia, nem só da roça, nem só de negros” (Sandroni, 2001, p. 90).
Inicialmente considerado como dança, festa, o samba do Rio de Janeiro tem
sua origem, segundo Sandroni, na casa da Tia Ciata2. Essa famosa baiana realizava,
em sua casa, festas que reuniam sambistas, tendo inclusive sido o local onde fora
composto Pelo Telefone (1916, gravado em 1917), considerado a primeira composição
do gênero. Nesse período, eram os migrantes oriundos da Bahia que gostavam de se
reunir em torno da dança, da bebida e dos cantos acompanhados de instrumentos
como pandeiro, chocalho, mas contavam com a presença de Pixinguinha, Donga e
Sinhô, assíduos frequentadores dessas festas.
Porém, o chamado samba urbano apresenta novo formato a partir das criações
dos sambistas do bairro do Estácio de Sá que, com o bloco carnavalesco “Deixa Fa-
lar”, introduziram objetos de percussão como tambores graves (surdos), tambores
agudos (tamborins) e tambores de fricção (cuícas) (Cf. Sandroni, 2001).
A Deixa Falar era uma das inúmeras agremiações carnavalescas que surgiam a
cada ano nos bairros localizados na zona portuária da cidade. “A Praça Onze, nos
anos 1920, funcionava como uma espécie de convergência de todo o mundo do
samba durante o carnaval. Ranchos, blocos, cordões que perambulavam pela cidade,
e em algum momento passavam na Praça Onze” (Fenerick, 2002, p. 108), região
considerada subúrbio, embora estivesse sua localização próxima à região central da
capital federal. A separação entre as zonas suburbana e central do Rio de Janeiro
obedecia às transformações espaciais provenientes da política de modernização que
formataria uma sociedade civilizada aos moldes capitalistas. Entenda-se que, naque-
le momento, o significado da lógica capitalista-industrial era aderir ao mundo do
trabalho assalariado, instaurando novas modas e comportamentos e intensificando
a circulação da produção (Abreu, 2003; Fenerick, 2002).
Anterior a esse período, no final do século XIX, as remodelações do centro do
Rio de Janeiro já se faziam notar. As transformações foram impulsionadas por uma
corrida pela inserção do país à ordem capitalista, a qual requeria um ordenamento
2. Nascida em Salvador, em 1854, presumivelmente de escravos forros, isto é, libertos após conquista ou
compra de alforria, Tia Ciata chegou ao Rio de Janeiro em 1876. Lá se casou com João Batista da Silva,
também negro e baiano que, em Salvador, chegara para cursar dois anos de Faculdade de Medicina e, mais
tarde, conseguiu emprego no gabinete do chefe de polícia da capital federal (Cf. Moura, 1995).
208
Gênero Trans e Multidisciplinar
209
Núbia Regina Moreira
Apesar das relevantes considerações de Reis, não podemos esquecer que o sam-
ba esteve associado à prática cultivada majoritariamente por negros que migravam
de outros estados para o Rio de Janeiro, no início do século XX. Mas as variações
do samba ao longo desse século resultaram de “diferentes cruzamentos, de expe-
riências individuais, musicais, culturais, ocorridos no cenário múltiplo das cidades
modernas” (Trotta, 2006, p. 56). A apropriação do samba pelos segmentos negros
e camadas baixas da população são práticas de afirmação e integração destas à so-
ciedade brasileira, momento de uma incipiente industrialização e de reordenamento
do espaço urbano, substituição do trabalho escravo pelo trabalho assalariado e o
desenvolvimento ainda que tímido de um mercado musical.
As construções da nação e de uma identidade nacional passam a ser uma questão
crucial a partir do fim do sistema escravista, quando emergem os ex-escravizados
negros como categoria social; era preciso que essa pluralidade racial, composta de
negros, brancos e indígenas, fosse arrolada numa identidade coletiva. Intelectuais
como Silvio Romero, Nina Rodrigues, Manuel Bonfim, Euclides da Cunha, Gilberto
Freyre, dentre outros, se empenharam na busca de “formulações de uma teoria do
tipo étnico brasileiro, ou seja, na questão da definição do brasileiro enquanto povo e
do Brasil como nação” (Munanga, 1999. p. 52). Para evitar confusão e a generalização
desses autores, é preciso ressaltar que Gilberto Freyre tem, na ideia de cultura, o fun-
damento para construir uma teoria de identidade nacional, e não as teorias raciológi-
cas que orientavam as construções de um tipo étnico nacional presentes nos demais
autores (Ortiz, 1994). Para ele, não cabia na discussão sobre a formação da nação
reiterar as teorias raciológicas, pois a emergência de uma sociedade urbano-industrial
e capitalista requeria outro paradigma para definir o elemento nacional. A adesão de
Gilberto Freyre ao culturalismo possibilita positivar o mestiço, resultado do mito das
três raças, ao tempo que mestiçagem se tornaria a melhor definição do nacional.
Vianna (2004, p. 151) afirma que a consolidação ou o processo de transforma-
ção do samba em gênero musical nacional foi fruto de relações entre grupos hete-
rogêneos, em que “muitos grupos e indivíduos participaram com maior ou menor
tenacidade, de sua ‘fixação’ como gênero musical e de sua nacionalização”. Porém,
ao reforçar a contribuição de heterogêneos grupos na conformação do samba como
música nacional, não dispensamos a perspectiva das lutas e disputas neste processo,
fato exemplificado nas tensões, nos anos de 1930, entre Donga e Ismael, Wilson Ba-
tista e Noel e, nos anos de 1950, entre os defensores do samba tradicional e aqueles
ligados à bossa nova (Werneck, 2007).
Foi também no decorrer das décadas de 1930 e 1940 que o samba ganhou legiti-
midade na mesma proporção que seus artistas iniciavam o ritmo de profissionaliza-
ção, redundando numa estrutura comercial, embora ainda permanecesse a discussão
em torno à adjetivação do samba ruim – feito por negros, mestiços e pobres – e
210
Gênero Trans e Multidisciplinar
samba bom – que era tocado nos salões. Essa divisão reverberava na consagração
precoce do samba como símbolo nacional (Fernandes, 2010).
Na década de 1960, a sociedade carioca respirava em termos culturais a atmos-
fera da bossa nova, que reunia jovens da classe média alta, politizada à esquerda.
Instituía-se novamente, nesse período, a discussão do tradicional ou autêntico no
samba, sendo que a relação entre “os setores intelectualizados da classe média e o
samba promove no mercado da música uma ampliação no alcance dos sambistas,
seja através de shows como Rosa de Ouro e Opinião ou de rodas de samba profis-
sionalizadas em diversos pontos da cidade” (Trotta, 2006, p. 76).
A exclusão temporária do samba no grande mercado da música, nos anos de
1980, levou alguns sambistas a ressuscitarem as rodas de samba, procurando conci-
liar tradição e mercado. A estratégia foi bem-sucedida e, aos poucos, os espaços se
expandiram nos subúrbios cariocas, atraindo a simpatia do grande público.
O endereço situado na Rua Uranos, 1326, no Bairro de Ramos, sede do bloco
carnavalesco Cacique de Ramos, abrigava uma roda de samba que resultaria no gru-
po musical Fundo de Quintal; seus integrantes inserem, nas suas reuniões, sambas
de partido alto e sambas de roda, que deixaram de ser tocados nas escolas de samba.
Para Moura (2004), os caciqueanos mantêm, em certa medida, as formas tradicio-
nais de fazer e executar samba, ao mesmo tempo em que disseminam e selam um
espaço de articulação entre o mercado e os pagodeiros.
Pereira (1995 apud Goes, 2007, p. 94) considera que o mercado do samba se am-
pliou com o movimento do pagode, ganhando espaço em outras cidades do país, a
exemplo de São Paulo, ao associar “a tradicional batucada e roda de samba misturan-
do elementos das duas expressões e fortalecendo a tradição musical do samba com
os elementos da modernidade: mercado, mídia e grande público consumidor” (p. 94).
A proliferação das rodas de samba no Rio de Janeiro adentra os anos 1990,
sedimentando-se como um gosto musical entre a camada jovem na sua variação de
samba de “raiz”. A literatura adverte que o samba e o choro vão se revitalizar com
o auxílio de pequenas gravadoras, formando um nicho de mercado. O mercado fo-
nográfico, ao longo dos anos 1990, sofre alterações técnicas, econômicas e estéticas
paralelamente ao surgimento de novas formas de comercialização de música por
meio digital (Góes, 2007). A alteração econômica, fruto da instabilidade da política
econômica do Plano Cruzado no final dos anos 1980 e início dos 1990, atinge a
indústria de bens duráveis com implicações negativas no setor de lazer e entreteni-
mento, levando inclusive à redução de consumo de disco. Aliada a essa instabilidade
econômica por que passara o país naquele momento, a ascensão de outros gêneros
musicais, a partir dos anos 1980, como o pagode, na sua variação romântica, o ser-
tanejo e o axé music abalaram o espaço do samba no mercado.
O pagode romântico, no seu tom paulista, segundo Trotta (2006, p. 167), viria a
operacionalizar uma síntese entre duas tendências estéticas: a sertaneja e o axé music,
211
Núbia Regina Moreira
212
Gênero Trans e Multidisciplinar
teclados e guitarras, por exemplo, não garantiram aos artistas uma posição de pres-
tígio no campo da música popular brasileira.
O grupo paulista Raça Negra5 é apontado como o precursor de um estilo pa-
gode romântico e não faz nenhuma menção ao samba considerado “tradicional” e
nem ao seu congênere carioca Fundo de Quintal. O Raça Negra, portanto, demar-
ca uma diferença em relação aos outros grupos de pagode que surgem na capital
paulista nesse momento, que possuem na tradição uma referência (Trotta, 2006;
Fernandes, 2010).
Embora bastante diferenciado do pagode romântico, o samba também não fi-
cou imune à incorporação do tema amor em suas letras e à influência da cultura
pop. Nas décadas de 1930 e 1940, o amor já se fazia presente nas letras de sambas,
relatando o sentimento como uma carga de sofrimento afetivo envolvendo casais,
marcando negativamente o amor idealizado e impossível de ser concretizado. A in-
corporação dessa temática nas letras dos sambas produzidos nos anos 1980, como
os dos compositores pertencentes ao grupo Fundo de Quintal, era vista com des-
confiança, pois eles antes preferiam “tratar em sua obra, do próprio samba, de crô-
nicas urbanas, inventar personagens e descrever situações embaraçosas ou engra-
çadas”. As narrativas daí decorrentes tinham como cenários as rodas de samba, as
festas, espaços em que a temática do amor remetia aos elos de uma vivência coletiva,
diferente da narrativa do amor feliz concretizado por um casal, com um conteúdo
verbal “aproximando-se dos ditames comerciais do individualismo do mercado”
(Trotta, 2006, p. 122).
A variedade do mercado fonográfico dos anos 1990 sugere a presença de um
movimento de valorização do samba como possibilidade de arregimentar um públi-
co jovem. Particularmente, no Rio de Janeiro, no fim dessa década, o samba e suas
variações, como o pagode, vão se deparar com o funk. Abrimos aqui uma observa-
ção: em parágrafos anteriores, já citamos a presença dos gêneros musicais, como o
sertanejo e o axé music, que também vão disputar mercado com o samba; trazemos
para a roda, neste momento, o funk, por ser um movimento agregador de jovens
dos segmentos subalternizados, que utilizam a música como meio de questionar a
unidade nacional.
Segundo Yúdice (2004), a cultura funk brasileira dos anos 1970 era influenciada
pelo soul norte-americano e reunia jovens nos bailes em fins de semana. Esse mo-
vimento trouxe para o interior dos bailes funk a cultura negra, divulgada através de
artistas e figuras ligadas ao esporte. A apropriação do lema Black is beautiful como
símbolo do orgulho negro não se “popularizou” no meio funk, ao contrário do que
5. O grupo Raça Negra surgiu em 1983, no bairro da Vilha Nhocuné, zona leste de São Paulo, formado
por Luiz Carlos (compositor e cantor); Fininho (bateria); Fena (surdo); Fernando (tantã); Gabú (pandeiro);
Edson Café (tumbadora) e Paulinho (baixo). Outros grupos seguirão o mesmo padrão estético do Raça
Negra, a exemplo do Negritude Júnior, em São Paulo, Só Pra Contrariar, em Uberlândia. (Trotta, 2006).
213
Núbia Regina Moreira
aconteceu nos blocos afro-baianos, cuja conversão à negritude fazia parte da pedago-
gia da tomada de consciência das formas tradicionais afros de expressão. No entanto,
a preferência dos funkeiros pela música negra norte-americana se coloca, nos anos
1980, como elemento “diferenciador do rock, a música mais popular do Brasil entre
os jovens da classe média (que assumem a ‘brancura’ em sua versão brasileira)” (Yú-
dice, 2004, p. 177). Os jovens funkeiros não reiteram o discurso da cultura nacional
muito menos os projetos do movimento negro, porém reivindicam um espaço no
qual possam expressar o seu prazer, não mais como representativo da comunidade
carioca, que fora manifestada através de práticas como samba e o carnaval.
Nessa querela, o samba de “raiz” é visto como símbolo de valor estético, união
entre passado e futuro que “satisfaz uma demanda de parte dos consumidores de
música na virada do milênio, ansiosa por reatar vínculos identitários fundados em
práticas musicais amadoras, valorizando as relações sociais, a coletividade e a festa”
(Trotta, 2006, p. 236, apud Goes, 2007, p. 113).
As discussões sobre a classificação do samba como “autêntico”, “de raiz”, “tradi-
cional”, “puro”, “impuro” ainda encontram terreno nos tempos atuais. Sustentamos,
porém, que a permanência dessa querela nos dias atuais atende muito mais a uma
lógica de mercado do que a um sentimento de pertencimento ou de preservação.
Para efeitos do nosso projeto, o cenário ganha relevância no sentido de estruturar a
percepção em torno da composição de sambas de autoria feminina na cidade carioca,
porque Teresa Cristina, cuja trajetória será apresentada, adentra esse mundo na con-
dição de compositora, logo, numa posição diferenciada de até então no mundo do
samba, visto que, na variedade estética da música dos anos 1990, o comparecimento
da composição feminina nos gênero sertanejo e no funk é desconhecido, sendo que,
neste último, as mulheres assumem o papel de dançarinas, movimentando seus cor-
pos de maneira sensual e erotizada (Mizrahi, 2007), como das performances desen-
volvidas durante os bailes. Portanto, a partir desse momento apresentaremos Teresa
Cristina, explicitando que a sua trajetória se refere à constituição e formatação que a
sociedade brasileira, particularmente o Rio de Janeiro, vem adquirindo ao longo do
século XX enredando grupos e segmentos sociais em relações políticas, culturais e
afetivas formando configurações como, por exemplo, o samba.
II
214
Gênero Trans e Multidisciplinar
6. Informações retiradas das seguintes fontes: Burns (2006); Froés (2007); Disponíveis em:<www.anovade-
mocracia.com.br/blog>. Acesso em: 03 de maio de 2010; <http://blogdaphydia.blogspot.com>. Acesso
em: 2 jul. 2010.
7. O termo classe média, nesse momento, se refere à classificação, ou melhor, à posição social desses
jovens sambistas, definida em jornais on-line e sites como: Jornal Brasil Econômico (Acesso em: 2 jul.
2010); site do Yahoo notícias (Acesso em: 9 jul. 2009). No entanto, para efeitos iniciais de apresentação
deste texto, me aproprio da definição de Pochmann (2006, p. 16), que considera a classe média como certo
agrupamento que, “apesar de pouca propriedade, se localiza em posições altas e intermediárias na estrutura
sócio-ocupacional como na distribuição pessoal de renda e da riqueza compreendida então como portadora
de autoridade e status social reconhecidos, bom como avantajado padrão de consumo”.
215
Núbia Regina Moreira
Oliveira, Nelson Sargento, Nei Lopes, João Nogueira e Paulo Cesar Pinheiro8. A
pesquisa e o estudo das obras desses artistas por parte dos mais jovens tem sido
uma atividade corrente na estruturação do repertório e inspiração para compor seus
sambas, servindo como parâmetro para que intervenções nos aspectos formais dos
arranjos não pressuponham a descaracterização estética e perdas no plano simbóli-
co, como, por exemplo, distanciamento da tradição9. Quando a aproximação é pos-
sível, ela se manifesta através de convites feitos geralmente pelos mais experientes
para os mais jovens. Essa relação representa um passo para imprimir a marca de
respeitabilidade e consagração à carreira dos iniciantes.
Carioca, nascida em Bonsucesso, Teresa Cristina cresceu na Vila da Penha, bair-
ro do subúrbio do Rio de Janeiro. De família de classe média baixa, “baixíssima”10,
a escassez do dinheiro não impedia a fartura de alimentação e roupas. Sua formação
escolar se deu em instituições públicas desde ensino fundamental ao superior; sen-
do que não finalizou o curso de Letras na Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(UERJ). Começou a trabalhar aos 13 anos como manicure. Seu pai, baiano, feirante,
escutava Candeia enquanto ensacava limão. Na época, a menina Teresa debochava
do pai, sorria e se envergonhava das músicas ao ouvir os discos de vinil de Nelson
Candeia, por acreditar que aquela música não fazia parte do seu mundo. O encontro
com Candeia acontecerá na fase adulta quando ouviu o CD de Candeia, presente de
um amigo, com excelentes recomendações sobre a música do artista. Lembra tam-
bém que as musicas de exaltação da negritude fez com que descobrisse sua beleza,
afirma: “Achei meu lugar no mundo”.
Além de manicure, trabalhou como vendedora, auxiliar de escritório e presta-
dora de serviços no Detran do Rio de Janeiro. Segundo a sambista “não tive sonho de
cantar desde menina, troquei muito de profissão, mas depois que peguei o gosto por cantar, não
quero mais mudar”.
Aos 25 anos se casou com o músico Bernardo Dantas, que na época fazia parte
do grupo Acorda Bamba. “Estava em contato com a música, mas sem nenhum compromis-
so”. É nesse período que Teresa começa a redescobrir Candeia e o subúrbio. “Do
Leblon comecei a ir para longe, Madureira. Tem artistas que vão morar no exterior, descobrem
a música brasileira e voltam. Meu exterior foi a zona sul”. Nesse momento também que a
sambista passa a definir os rumos da sua profissionalização nas redes de relações via
casamento e/ou nos encontros com os mestres das velhas guardas. Um e outro ar-
ticulados entre si, atuaram com mecanismos positivos na conformação dos projetos
de Teresa Cristina.
8. Esses compositores aqui citados são considerados “a tradição” no campo do samba carioca. Ainda en-
contram-se vivos Nei Lopes, Paulo César Pinheiro, Paulinho da Viola e Nelson Sargento.
9. Em entrevista no programa Samba na Gamboa, na TV Brasil, apresentado por Diogo Nogueira, o grupo
Casuarina afirmou que a pesquisa e o estudo de sambas antigos se constituíram como uma prática para a
formação e a inserção deles na posição de compositores.
10. Frisado pela sambista em entrevista ao Jornal do Brasil no dia 24 de abril de 2010.
216
Gênero Trans e Multidisciplinar
Em entrevista Revista Raça Brasil, Teresa Cristina diz que sua vida se divide em
antes de Candeia e depois de Candeia11. A participação em rodas de samba a co-
loca em contato direto com a Velha Guarda da Portela, momento em que a artista
realizava uma pesquisa sobre Candeia e se descobria como compositora. O canto
veio no rastro do interesse em fazer um show (que não aconteceu) em homenagem
a Candeia, com a colaboração dos músicos indicado por Bernardo Dantas. Esses
músicos formariam mais adiante o grupo Semente.
217
Núbia Regina Moreira
A entrada do Candeia na minha vida foi uma coisa divina. Além de me colocar
no meu devido lugar, aumentou a minha perspectiva, a minha esperança de vida.
Virei outra pessoa, me tornei cantora. Minha infância tinha sido discoteca. Minha
adolescência heavy metal, Iron Maiden. E de repente me descobrir num mundo
totalmente diferente. Como a Velha Guarda. São pessoas talentosas, celebridades
legítimas da música que têm outro jeito de ser, de viver, de lidar com o fã, com a
música. (Entrevista concedida ao Jornal do Brasil em 24 de abril de 2010)
Diante dessa fala de Teresa sobre o gosto de cantar desenvolvido mediante uma
sucessão de eventos favoráveis constituem o espaço dos possíveis que, ao revelar as
disposições como espaço de tomada de posição, demonstra que os indivíduos apre-
endem em outros espaços contrapartidas, resultantes de uma coletividade, mas que
no interior de determinado campo encontram oportunidades de desenvolver suas
disposições exigidas como uma lógica de participação do campo (Bourdieu, 1996).
Nesse sentido, a compreensão da carreira de Teresa Cristina, que segundo ela,
está melhor em 2010, foi forjada num processo de revitalização da Lapa e pelas
mudanças que ocorreram no seio do campo do samba, terreno propício à inserção
de jovens aspirantes a ocupar uma posição no mundo do samba. Ela é apontada
pelos integrantes de sua geração como a responsável da revitalização da boemia na
Lapa e como a nova diva do samba. O atributo como compositora de samba, aos
poucos, tem sido ressaltado pela mídia, mas o que torna esta mulher incomum den-
tre às outras que compõem a nova geração do samba carioca, é sua capacidade de
reavivar em cada um de nós uma memória do samba como espaço da alegria e do
aconchego. Deixo para vocês uma parte de matéria jornalística reforçando a posição
de Teresa Cristina como a representante mais legítima das sambistas cariocas dos
nossos tempos.
Tem muita mulher cantando samba atualmente, mas poucas querem ser rotuladas
de sambista. Com razão. Para ser sambista tem que ser como Teresa Cristina.
Começou a carreira em 1988, interpretando Candeia, fez a fama no terreiro do
samba e é hoje, de fato, a mais legítima representantedo gênero. Ainda que se
mostre versátil, como faz ao cantar A história de Lily Braun(Chico Buarque e
Edu Lobo) no show Melhor Assim. Registrada em CD/DVD, a apresentação
faz uma retrospectiva precisa dessa pouca mais de uma década e revela a quem
ainda não conhece a essênciada artista. Teresa Cristina é uma intérprete que pri-
ma pela simplicidade de que o samba pede – e tira disso a beleza de seu canto
– e uma compositora que explicita em ótimas composições (há nove delas no
repertório) a comunhão com a obra de mestres como Candeia, Cartola e Nelson
Cavaquinho”.12 (Lima, 2010)
12. A essência de Teresa é título da crítica ao DVD “Melhor Assim”, de Teresa Cristina, escrita por Irlam
Rocha Lima no Jornal Correio Braziliense em 14 de maio de 2010.
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Gênero Trans e Multidisciplinar
RFEFERÊNCIAS
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Núbia Regina Moreira
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Gênero Trans e Multidisciplinar
221
CAPÍTULO XV
“DE NADA TENHO MEDO”: TENSÕES
E CONFLITOS DAS RIXOSAS E
TURBULENTAS
Mariana Emanuelle Barreto de Gois1
1. Mestre em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS/BA, professora substituta
de História do Instituto Federal de Sergipe – campus/Lagarto. O referido artigo é um recorte do primeiro
capítulo da Dissertação de Mestrado intitulada Rixosas e Turbulentas: mulheres nas vilas de Lagarto e
Riachão Oitocentista, Sergipe (1850-1890), defendida em fevereiro de 2012 no Mestrado em História da
UEFS.
2. No Capítulo III dessa dissertação você poderá conferir o destino de Josefa Urbana.
3. Nesse sentido, as abordagens que se referem ao contexto nos fazem lembrar Michel de Certeau, sobre
aspráticas comuns, e as introduz como as experiências particulares, as frequentações, as solidariedades e
as lutas organizam o espaço aonde essas narrações vão abrindo um caminho e delimita um campo. Michel
Certeau. A Invenção do Cotidiano: Artes de Fazer. Petrópólis: Rio de Janeiro, 2009.
223
Mariana Emanuelle Barreto de Gois
no chão na hora do ataque. A ré Maria Capenga, no processo, fala: “De nada tenho
medo”4. Maria Capenga era tachada vulgarmente de “mulher rixosa e turbulenta” que
provocava diariamente barulhos na Rua do Botequim5.
Tensões e conflitos não param por aqui. Maio de 1869, na Vila de Lagarto, no
sítio Limoeiro, os dias corriam com trabalho diário típico dos habitantes da zona
rural, principalmente os envolvidos com a cultura açucareira.
Esse cenário traz à tona a história de Mariana do Querino, disfarçada de homem
que se junta a Manoel de tal, seu co-réu, tornando-se autores de um surpreendente
episódio, ocorrido no dia 21 de maio. Nesta noite, Maria Francisca Vidal estava no
interior de sua casa na Vila de Lagarto, quando apareceu o corréu desse processo, o
senhor Manoel, que estava a cavalo, convidando-a para ir com ele ao sítio do Limo-
eiro. Maria Francisca, imediatamente, montou na garupa do animal e, ao atravessar
a casa do cidadão Serafim da Silva Vieira, foi empurrada do cavalo pelo próprio
Manoel. Desse momento em diante, Maria Francisca passa a ser agredida pela ré
Mariana do Querino que, empunhando uma faca, corta os cabelos da vítima, bem
como faz ferimentos no seu corpo.
Do processo de Mariana do Querino, não se sabe sua qualificação, idade, estado
civil, profissão, residência, filiação e grau de instrução, o que se sabe é através dos
relatos de testemunhas, do corpo policial e promotor. Sendo assim, pouco se co-
nhece da ré, porém, é interessante notar que Mariana do Querino estava, na hora do
ocorrido, usando vestes de homem, mas que, em decorrência do fato, teve seu cha-
péu derrubado, vindo à tona a sua verdadeira identidade, quando ficaram à mostra
os seus cabelos compridos e as rosetas que trazia na orelha.
No exame de corpo de delito da vítima, Maria Vidal, encontraram um ferimento
atrás da orelha do lado esquerdo e direito, do qual houve derramamento de san-
gue, e, na nuca, uma contusão ou arranhão com quatro polegadas de comprimento.
Ocorreu também um ferimento no dedo indicador, um ferimento de meia polegada,
e, no dedo anular, dois ferimentos, tendo meia polegada, lesões no braço, o qual
houve sangramento, como também encontraram no pescoço alguns arranhões e os
cabelos da cabeça cortado. Diante do exposto, constituiu-se em um crime de ofen-
sas físicas com instrumento cortante.
A ofendida, Maria Francisca Vidal, de 24 anos, solteira, nascida na Vila de Cam-
pos, sobre o fato afirmou:
que estando em sua casa, certa hora da noite, ali lhe apareceu Manoel de tal, filho
de Joaquim Baptista, morador num lugar denominado “Limoeiro” convidando-a
a ir para o dito lugar, e que em troca lhe daria um corte de vestido, e que ela aceitou,
224
Gênero Trans e Multidisciplinar
montando o dito Manoel a fim de seguir viagem até o início do caminho, e apa-
rece no momento um vulto, o qual dera sinal. Aproximando-se o vulto agarra-o
pelo vestido, e sendo empurrada pelo referido Manoel, cai do cavalo, e no ato o
vulto sobre ela lança mão de uma faca que trasia no bolso, corta-lhe os cabelos e procu-
rando ela respondente desvia-se do dito vulto e, foi recebendo os ferimentos do
auto de corpo delicto.6(grifo nosso)
Questionada se a vítima era amiga da indiciada, esta respondeu que eram ini-
migas, e que, quando a ré chamou o corréu, ele correu e não apareceu mais. Disse
ainda que Manoel perguntou-lhe se no momento que estava na garupa, se ela não
tinha receio ao encontrar um vulto na estrada, respondeu que não, por estar em
companhia de um homem, e o corréu respondeu que, para isso, não contasse com
ele, pois tinha um filho e família.
A vítima foi questionada ainda se ela conhecia o vulto que lhe fizera os ferimentos:
Respondeu que conhecia e que foi Mariana de tal, conhecida por Mariana do Que-
rino. Perguntado como era que ela respondente (Maria Francisca Vidal), conhecia
ser Mariana de tal autora dos ferimentos. Respondeu que na luta caiu o chapéu do
referido vulto e reconheceu chamando-o pelo nome e pedindo que não a matasse, e ovulto diz não
sou eu não quem lhe esta fazendo isto é o irmão de Vicente Pereira, afirma ainda que conhe-
cesse ser a Mariana do Querino, por trazer na orelha rosetas pretas e ter cabelos
compridos e disse ainda que estivesse a ré com vestes de homem.7(Grifo nosso)
Respondeu que estando em sua casa nesta vila no dia vinte e dois, por volta das
10 horas da noite, ouvia tropeças de cavalo, chegando a janela reconheceu Manoel
de tal, dito Manoel Joaquim de Santana, que estava na casa da ofendida, passando
ainda muntado, e depois veio a sua casa a ofendida consultar-lhe se devia vir em
companhia do Manoel, até o lugar de sua residência, dando-lhe em troca o corte de
um vestido. Disse mais que depois, quando já estava agasalhado ouvia gritos, mas
pensava ser das pessoas que acostumavam se banhar. Mas que de madrugada,
ouvindo-lhe baterem na porta e abrindo-a entra a ofendida toda ensangüentada
com cabelos cortados e disse-lhe que quem tinha sido autora dos ferimentos fora
Mariana do Querino, a qual vestida de homem atacou-a com uma faca que trasia
e cortara os cabelos, fazendo os ferimentos constantes no corpo de delicto. Disse
ainda que a ofendida sabe que na casa de Serafim, ela montava na garupa do ca-
valo em que estava montado o co-réu Manoel Joaquim de Santana, e que este na
ocasião auxiliava Mariana do Querino a derrubar a ofendida do cavalo e depois
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Mariana Emanuelle Barreto de Gois
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Gênero Trans e Multidisciplinar
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Mariana Emanuelle Barreto de Gois
Acaba de ser descoberto nesta cidade um caso semelhante ao que apouco tem-
po nos foi comunicado12. Cerca das onze horas da noite de ontem-ontem havia
grave vozeira em uma casa de alugar quartos na praça da Constituição. A vozeira
foi crescendo e chegou a tal ponto que a polícia teve de intervir.
Lá dentro passava-se uma cena horrível, figuravam nela Antônio de Faia, Ma-
noel Antônio Barboza e Bertholdo Alves, que se espancavam mutuamente, acom-
panhado de insultos.
O primeiro efeito da intervenção policial foi separar os lutadores. Conseguindo
isso, tratou-se de saber o motivo da briga.
— É que respondeu o Faia, este dois não me querem entregar uma mulher que
amo e que se ocultou nesta casa.
— É falso, respondeu os dois, a que não há, alguma.
— Há sim, senhor.
— Não há, não seja teimoso.
E novamente iam passando de palavras a factos, quando a polícia tomou então
a grave resolução de busca à casa em procura da mulher.
Faia acompanhava a polícia com a ansiedade dos apaixonados, que esperavam
ver o objeto amado.
Os outros dois trocavam sorrisos maliciosos e pareceu não se inquietar.
As pequizes chegaram até o telhado, justamente na ocasião em que um vulto
se precipta à rua.
— Ali está ela! Exclamou Faia.
— Está enganado, é um homem é Antônio de Souza Marques.
— Não há tal, é a mulher Helena.
— Então ele é ela?
Tal e qual como na Morgadinha de Val-Flor.
— É exato, respondeu a pessoa de quem se tratava. Eu não sou o que pareço.
Sob estas roupas masculinas palpita o mais terno coração de uma filha de Eva.
Desde muito criança que habituei a estes trajes. Assim tenho vivido em diversos
lugares sem que pessoa alguma tenha descoberto o meu segredo. Ultimamente
estive empregada em um hotel como caixeiro, de onde me despedir a oito dias.
Chamo-me Helena, tenho 17 anos de idade e sou natural de Pernambuco. Estive
na Bahia, onde recebe educação e depois passei pelo Piauhy.
Ai está minha história. Terminando este monologo, ficaram todos sabendo, ao
certo que ele era ELA.13
228
Gênero Trans e Multidisciplinar
As manchetes, por sua vez, não trouxeram notícias de estereótipos femininos es-
perados pela sociedade do oitocentos, como de uma mulher dócil, recatada, submis-
sa, mas sim de mulheres que, a fim de se afirmarem, preferiam viver como homens e
que, consequentemente, renunciavam as relações amorosas e o cotidiano que a con-
dição do ser feminino lhes reservava. No caso de Helena, ela é o pivô de uma briga
em casa de alugar quartos, fato esse condizente com a desproporção da população
feminina em relação à masculina, contudo, ela mesma acaba declarando-se ser uma
mulher e que, desde pequena, se veste em trajes masculinos. Interessante notar que
Helena trabalhava como caixeira14. Diante dos casos, o semelhante com a história de
Mariana do Querino é, sem dúvida, a ocultação da identidade feminina. Encerra-se,
assim, um dos capítulos da vida de Mariana do Querino, os outros referentes à sua
trajetória de vida, a fonte não nos permitiu aferir.
Após ter inquirido as oito testemunhas constantes e realizado exame de corpo
de delito, concluiu-se que os ferimentos feitos na ofendida produziram inabilitação
de serviços por mais de 30 dias. Sendo presos na Cadeia da Vila de Lagarto15 os réus
Mariana do Querino e Manoel Joaquim de Santana e pronunciados no artigo 20516
do Código Criminal, pelo crime de ofensas físicas e lançado seus nomes no livro
de rol de culpados. Já o corréu Manoel não deixou vestígios de sua vida nas fontes.
IMAGEM 18
14. Atividade ligada a profissões industriais e comerciais, constante do censo populacional das vilas de
Lagarto e Riachão.
15. Neste ano a cadeia era uma casa alugada, somente pela Resolução de nº 921 de 11 de março de 1871,
em seu Art. 1º prescreve: “fica o Presidente da Província autorizado a contratar, logo que se publique a
presente lei a construção de uma casa de detenção de pedra e cal na Vila do Lagarto”.
16. Se o mal corpóreo resultante do ferimento de saúde ou inabilitação de serviço por mais de um mês. IN:
Tinoco, Código Criminal do Império do Brasil annotado, p. 386.
229
Mariana Emanuelle Barreto de Gois
Vale apena lembrar um fato que chegou à subdelegacia da Vila do Riachão no dia
19 de junho de 1883, assim escrito pela pena do escrivão, José Etelvino de Barros:
Por ouvir dizer da boca de José Caetano, que a ré presente insultasse a ele. Pergun-
to se a ré insultava outras pessoas?. Respondeu que sabe por ouvir dizer que a ré
tinha insultado outras pessoas, disse mais que sabe que a ré presente costuma a se
embriagar-se. Perguntado e a ré anda armada de faca?. Respondeu que a ré anda
armada com foice, mas que quando brigou com Margarida de tal, foi [ilegível]
armada com uma baiêta de soldado.18
230
Gênero Trans e Multidisciplinar
Respondeu que sabe por ter lhe dito Caetano e sua família, disse mais que di-
versas pessoas queixa-se da ré, como turbulenta e que não respeita os familiares
ao dizer palavras desonestas chamando José Caetano, respondia por nomes in-
juriáveis impróprias da essência, corno, puta e outros semelhantes, por ouvir dizer
que não só a José Caetano como a outras pessoas a ré insulta com os mesmos
nomes.19(Grifo nosso)
Não tendo a ré contestado a defesa no processo que lhe foi acusada, julgo proce-
dente denúncia de folhas e consiste de depoimento das testemunhas condenarem
a mesma ré José Rosa do Nascimento, conhecida por Josefa Péba a assinar o ter-
mo de bem viver com o público, a fim de não insultar mais nem decompor pessoa
alguma com palavras injuriosas, finalmente a não perturbar mais as pessoas, sob
pena de 16 dias de cadêa e 30$000 réis de multa, quando prática semelhante ato.
Retira-se a mesma ré desta sentença, se a mesma assinar o Termo de Bem Viver,
às 10 horas do dia que segue a intimação na casa da Câmara Municipal. Seja reco-
nhecida a ré como uma mulher de trinta, há quarenta anos e de cor clara.
Vila do Riachão, 3 de julho de 1888, João Etelvino de Barros.20
O Termo de Bem Viver regulava o cotidiano daquelas pessoas que eram vistas
com comportamentos desviantes, mas não só eles como as Posturas Municipais que
controlavam as vilas, penalizando aqueles que as infligiam, fazendo das ruas espaços
vigiados pela Justiça por conta dos comportamentos dissidentes.
Martins, em seu estudo sobre os termos de bem viver, aponta:
231
Mariana Emanuelle Barreto de Gois
ocorria no período colonial, diferenciando-se agora pelo seu caráter mais dissi-
mulado e minucioso.21
21. Martins, Os pobres e os termos de bem viver: novas formas de controle social no Império do Brasil.
22. Júnior Filgueiros, Código do Processo Criminal. Tomo I.
23. Obrigar a assinar o termo de bemviver aos vadios, mendigos, bêbados por hábito, prostitutas, que
perturbam o sossego público; aos turbulentos, que por palavras ou ações offendem os bons costumes, a
tranquilidade, e a paz das famílias. In: Júnior Filgueiros, Código do Processo Criminal. Tomo I.
24. Júnior Filgueiros, Código do Processo Criminal. Tomo I.
25. Regulamento nº 120, de 31 de janeiro de 1842, Capítulo IV, Secção I das atribuições do Chefe de Polí-
cia, artigo 58. O referido regulamento regula a execução da parte policial e criminal da Lei nº 261 de 3 de
dezembro de 1851. In: Ibidem.
232
Gênero Trans e Multidisciplinar
O artigo 20º vem advertir ainda que as circunstâncias mencionadas deveriam ser
provadas e, em dúvidas, a ré cumpria pena em grau médio. Ainda sobre a questão da
embriaguez, no processo abordado em capítulo posterior, uma das testemunhas do
processo de Termo de Bem Viver da ré Helena Cassiana aponta que viu “a ré gritan-
do nomes injuriáveis como ‘bestas e putas’ e não vi ninguém por perto dela, cheguei
a pensar que ela estivesse embriagada, e por isso falava sozinha e tinha alucinações”.
Os inspetores eram os “olhos do governo imperial”, responsáveis pela ordem
nos arredores das vilas, autuando nos comportamentos que eram intolerantes e
ofensivos ao decoro público como foi o caso da Josefa Péba, que aproveitou de seu
estado de ébria como forma de defesa perante acusação, e por esse pretexto lançava
palavras ofensoras à sociedade em função de andar bêbeda27 pela Vila.
O ato de “beber aguardente” era tido como vício e traduzido em comportamen-
tos desviantes acompanhados de perturbações dos sentidos. Os jornais da segunda
metade do século XIX também faziam referência a esse problema social na resposta
de um bêbado: “Bebeu e saiu da tosca; e à casa jamais chegou; na parede se encos-
tou; passa um diz que embirra; com tudo e diz-lhe: rapaz; que fazes aí, monado; que
para a casa não vaes?”.28
Como já previsto, e tido como algo cultural, eram também constantes em vários
pontos da província anúncios de vendas de alambiques, como vimos: “vende-se
uma propriedade de alambique com a força de 480 litros por dia, edificado na Rua
Lacise, da cidade de Maroim, quem pretendê-la dirija-se a Irenio de Motta na cidade
do Aracaju e na Bahia a Manoel de Silveira Nunes”.29 Os aguardentes que circula-
vam na vila de Riachão provinham do alambique da região em que era predominan-
te o fabrico de açúcar em engenhos.
O uso do álcool de forma frequente era um costume geralmente não tolerado
e considerado incompatível com os perfis femininos e masculinos idealizados. Ele
poderia ser um fator importante de desagregação familiar, desregramento de cos-
233
Mariana Emanuelle Barreto de Gois
tendo ontem as oito horas mais ou menos em casa da mãe Maria delinqüente co-
nhecida como Naninha Péba, na terra Vermelha, lhe feito os ferimentos com que
se acha, e não podendo logo prendê-la por ter corrido, seguiu em procura dela
234
Gênero Trans e Multidisciplinar
e só hoje ao clarear do dia pode efetuar a prisão dela em casa de Lourenço Dias
Veloso, conhecido por Lourenço Groço, nesta Vila na rua nova cuja prisão foi
presenciada por Manoel Victoriano Soares e Maria Joaquina de Jesus.33
O fato ocorrido causou espanto nas ruas da Vila de Riachão. Manoel Victorino
Soares, natural da Sambaiba, Província da Bahia, negociante, em seu depoimento,
afirmou que estava varrendo sua casa ao clarear do dia, quando ouviu e viu José
Piancó dizendo “prenda esta mulher”. A mesma entra na casa de um tal Lourenço
Groço, e, após instantes, a vítima sai com a delinquente presa e segurada pelo braço.
Na mesma ocasião, Manoel Victorino Soares vê José Piancó ensanguentado e com
ferimentos no nariz e na face.
Esse fato nos faz pensar quais os motivos que devem ter levado a ré a cometer
tal delito. A Justiça faz a qualificação da ré, interrogando-a sobre seu nome. A mes-
ma responde chamar-se Josefa Rosa do Nascimento, ter mais ou menos 30 anos e
ser solteira, com ocupação de doméstica. Josefa vivia de trabalho alugado aos outros
e de fazer louça, bem como morava em todo lugar. Sobre o fato violento, Josefa
contesta todas as acusações, afirmando que José Piancó foi à casa dela espancá-la.
Afirma ainda que o agrediu em legítima defesa.
O exame de corpo de delito foi realizado pelos professores Manoel José de
Oliva e o exator34 José Amâncio da Silva. Nos exames, os peritos encontraram feri-
mentos no nariz e na sobrancelha e talhos na face.
A vítima José Rodrigues da Silva, 28 anos, casado, lavrador, natural da Província
de Pernambuco, morador na Terra Vermelha do termo de Riachão, relata como se
deu o fato.
Seguindo do Engenho Coronel Dantas para sua casa, às oito horas da noite pou-
co mais ou menos, pouco antes de chegar à casa da senhora Anna, por apelido
Naninha Peba, colhera-lhe o chapéu ao mesmo tempo em que também passava
uma mulher a quem lhe pedira para lhe dar o dito chapéu, que não encontrando
pelo escuro da noite, resolveu chegar até a casa da referida Naninha afim de traser
dali uma luz com que achasse o chapéu. Ao chegar, e dizendo que ia, mandando-
-lhe que entrasse e apanhasse um tição de fogo: ele vendo que estavão no escuro
teve que advertir-lhes... Entretanto segui por apanhar o fogão, quando recebeu
um golpe de foice, que lhe saia de uma pessoa que se achava dentro de um quarto
junto ao fogão. A esta ação o respondente suspendeu o braço no sentido de pegar
quem o ofendia, quando recebeu de novo outra pancada que he feriu bastante a
mão direita. Não querendo penetrar no quarto, e recaindo mesmo que lhe pudes-
se fazer aquele dano maior, retirou-se perguntando a dona de casa e mesmo uma
filha a senhora Custódia quem lhe fazia aqueles ferimentos, e ela respondeu-lhe
que era sua irmã Josefa. A vista disto tomou-lhe a resolução de esperar ate que ela
saísse, dizendo querer pega-lá para trazer a justiça; mais sabia que ela havia aberto
235
Mariana Emanuelle Barreto de Gois
a cobertura da casa (que era de sapé) por onde se esvairá. Então levou o respon-
dente em sua companhia a irmã de Josefa, para não avisa - lá deste plano em que
se achava, e segui por todo o correr da noite, até que de manhã pode pega-lá.35
Respondeu que ouviu dizer pela ofendida que vindo do Giraú, um pouco embria-
gado, junto à casa da ré, perdeu o chapéu e veio a casa da mesma pedir um tição
de fogo para caçar, mandarão que ele entrasse e apanhasse o tição, e ele entrando
para apanhar o tição, foi quando recebeu a pancada de uma foice. Perguntou o
que era isso, deram-lhe, foice nas mãos, e ele querendo pega-la, ela trancou-se
num quarto, e do dito quarto escapou por cima, pelo telhado de sapé, que na mes-
ma noite ele veio ate esta vila e quando dormiu, no dia seguinte dez de novembro
deste mesmo, pela manhã foi esperá-la no Tanque da Nação por ele dizerem
que era o lugar mais certo encontrá-la, e quando estava no Tanque ela ofendeu e
vendo-lhe correu a ponto que ele corre atrás ate a casa de Lourenço Dias, a onde
pode julgá-la e trazida para a prisão.37
236
Gênero Trans e Multidisciplinar
um ano, é condenada pelo crime de ofensas físicas. Notamos também que a ré, ao
assinar o Termo de Bem Viver, já andava com instrumentos cortantes como faca,
embora não tenha ferido ninguém, mas já possuía pretensões. Após sua detenção, as
ruas das vilas de Riachão já não foram as mesmas, pois ela conduzia seus dias com
difamações ocasionando algazarras.
A criminalidade feminina na Província de Sergipe, com relação aos crimes mas-
culinos, não alcançava números elevados. Era preocupante também a questão da
instrução dos jurados, já que constituíam elementos fundamentais para a elaboração
do fato ocorrido. As notícias do estado de segurança individual e de propriedade da
Província tornaram-se manchetes principais nas páginas dos jornais, enfocando que
o estado era pouco satisfatório e diversas eram as causas, que, para isso, concorriam,
sendo o principal fato de não serem raras as pessoas, que, além da falta absoluta de
instrução, não tinham uma ocupação certa de trabalho ou indústria, de que viviam38.
As mulheres das Vilas de Riachão e Lagarto eram domésticas, costureiras e, em
sua grande maioria, lavradoras. Foram analisados 27 processos crimes, o registro das
profissões nos autos criminais auxilia e traz à tona a estrutura econômica regional e
local. São estas pequenas peculiaridades que são encontradas nos processos crimi-
nais das mulheres rés das vilas. Como se observa:
TABELA 8
Ocupações das mulheres rés
Profissão Quantidade
Lavradora 10
Costureira 1
Doméstica 8
Não especificado 7
Tear 1
Fonte: Processos Crimes do Arquivo Judiciário do Estado de Sergipe (La-
garto e Riachão 1850/90)
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Mariana Emanuelle Barreto de Gois
TABELA 9
Tipologia dos crimes
Crime Quantidade
Ofensas físicas 11
Termo de Bem Viver 2
Homicídio 1
Crime contra a propriedade 2
Infanticídio 2
Furto 1
Ofensas verbais 7
Fonte: Processos Crimes do Arquivo Judiciário do Estado de Sergipe (La-
garto e Riachão 1850/90)
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Gênero Trans e Multidisciplinar
TABELA 10
Motivos alegados pela ré
REFERÊNCIAS
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Mariana Emanuelle Barreto de Gois
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Gênero Trans e Multidisciplinar
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Conselho Editorial
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