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Rev Est 56
Rev Est 56
Resumo
Freud criticou normas sociais, sobretudo no âmbito moral sexual. Certos conceitos freudia-
nos, subversivos à época de sua elaboração, são ainda atualmente utilizáveis em críticas à nor-
matividade chamada por Butler (1990), décadas mais tarde, de matriz heterossexual. Mas,
não problematizando alguns enunciados, Freud reduziu a subversividade de alguns de seus
construtos teóricos. Neste artigo, foram analisadas duas obras de Freud, uma de 1924 e outra
de 1925, a fim de discutir enunciados relativos à conceituação dos complexos de Édipo e de
castração, e com o objetivo de investigar se esses conceitos atuam como dispositivos hetero-
normativos. Embora a consideração de Freud como um autor diretamente essencializador do
gênero consista em atitude anacronística, seus conceitos dos complexos teriam sido essencia-
lizados e uma recente mobilização acrítica de alguns de seus enunciados contribuiria para a
heteronormatividade.
1. Este artigo derivou da dissertação de mestrado de João Eduardo Torrecillas Sartori A articulação da noção de identidade na
teoria psicanalítica freudiana, apresentada em 2019 ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal
de São Carlos (PPGFil/UFSCar).
não somente constituidora, mas também es- buiriam para certa patologização de novos
sencializante das identidades de gênero nas modos de subjetivação (Sodré; Arán, 2012,
sociedades ocidentais e sustentou que, em p. 298). Entre os maiores debates públicos
tais sociedades, seriam comumente abjeta- contemporâneos acerca da teoria psicanalí-
dos os indivíduos não compatibilizados com tica, consta aquele referente ao “estatuto de
aquela matriz, isto é, nos quais seria ostensi- essencialização” dos seus construtos teóri-
vamente contrariada a correspondência so- cos (Sodré; Arán, 2012, p. 298). Em outros
cialmente normalizada entre sexo, gênero e termos, as teorias psicanalíticas consistiriam
sexualidade. Butler (1990) considerou como em modelos contingentes, históricos, ou
culturalmente construídas não somente a compreenderiam modelos transcendentais
crença na normalidade da correspondência da diferença?
entre sexos, gêneros e orientações sexuais, Embora a consideração de Freud como
mas sobretudo, essas categorias identitárias autor diretamente essencializador da matriz
em si. Por meio da reiteração constante da heterossexual (ou especificamente dos gê-
mencionada matriz, seria mantida a caracte- neros) consista numa atitude anacronística,
rização dos sexos, dos gêneros e das orien- seus conceitos de complexos de Édipo e de
tações sexuais como entidades extradiscur- castração teriam sido concebidos como en-
sivas. tidades extradiscursivas em algumas de suas
Freud desenvolveu sua teoria psicanalíti- obras. Possivelmente, nesse caso, uma recen-
ca na primeira metade do século XX e não te mobilização acrítica (isto é, não proble-
conceituou, por exemplo, o gênero (Sarto- matizada) de certos enunciados freudianos
ri; Mantovani, 2016). Contudo, décadas contribuiria para a reiteração da heteronor-
antes da teorização de Butler, Freud havia matividade.
criticado certas normatividades de sua épo- Neste artigo, objetivou-se examinar se os
ca, sobretudo no âmbito moral sexual. Nesse conceitos de complexo de Édipo e de com-
sentido, Sartori e Ceccarelli (2021) assevera- plexo de castração, como elaborados na teo-
ram que certos construtos teóricos freudia- rização freudiana, atuariam como dispositi-
nos seriam utilizáveis em críticas à matriz vos heteronormativos – independentemen-
heterossexual. Entretanto, não problema- te do estatuto de intencionalidade do autor
tizando alguns de seus enunciados, Freud nesse sentido. Estariam esses conceitos oca-
também teria reduzido a subversividade de sionando (ou reverberando) resistências em
alguns de seus conceitos, reiterando implici- analistas neste momento histórico, em que se
tamente normatizações. Em meio à sua aná- assevera o debate acerca de normas sociocul-
lise das identidades de gênero nas sociedades turais antes amplamente inquestionadas?
ocidentais, Butler (1990) evidenciou alguns Para tanto, na seção 1. Qual é o estatuto
aspectos teóricos nos quais teorias psicanalí- de subversividade da psicanálise freudiana?
ticas – entre as quais, a freudiana – se trans- Considerações entre a clínica e a política, se
formaram, tacitamente, em instrumentos de discutiu sobre implicações mais amplas da
manutenção de uma estrutura normativa, recusa de alguns psicanalistas em reconhecer
nos âmbitos identitários e sexuais. a historicidade de certas categorias psicanalí-
Sodré e Arán (2012) consideraram que ticas de Freud. Na seção 2. A essencialização
Butler desconstruiu conceitos caros à teo- dos complexos freudianos, se recorreu à aná-
ria freudiana da sexualidade, concebendo lise de duas importantes obras de Freud: A
-os como reiteradores do modelo binário e dissolução do complexo de Édipo (1924) e Al-
hierárquico tradicional – heteronormativo. gumas consequências psíquicas da diferença
Em última análise, certos conceitos psicana- anatômica entre os sexos (1925). Em meio a
líticos, alguns dos quais freudianos, contri- essa análise, se discutiram enunciados freu-
dianos relacionados com a sua conceituação dos. Para ser mantida a sua subversividade
dos complexos de Édipo e de castração, e se e a consistência da utilização de teorias psi-
evidenciaram esquemas normativos indire- canalíticas como instrumentos teóricos em
tamente constituídos no modo como o autor análises da cultura recentes, deve ocorrer
os conceituou. Finalmente, se evidenciaram certo desenvolvimento constante dessas teo-
as conclusões. rias (Ceccarelli, 2017).
Entretanto, a convicção de muitos sobre
1. Qual é o estatuto de subversividade um suposto caráter aprioristicamente sub-
da psicanálise freudiana? versivo da psicanálise contribuiu para a reite-
considerações entre a clínica e a política ração de problemáticas históricas. Recorren-
A obra de Freud conteve – e ainda contém temente, indivíduos autodeclarados “freu-
– conceitos subversivos. Em 1905, o autor dianos” resistiram a aceitar críticas a certos
supôs a inexistência de uma relação de cau- enunciados constitutivos da teoria de Freud
salidade entre sexo e objeto sexual. Freud não problematizados por ele. A mobilização
considerou que, originariamente, as pulsões acrítica de certas teorias reiteraria normati-
sexuais independeriam de um objeto. Indi- vidades a exemplo das analisadas por Butler
retamente, estabeleceu que, a despeito de (1990) e relacionadas com a matriz heteros-
seu sexo, o indivíduo é originariamente um sexual. Justamente nesse contexto, a autora
perverso-polimorfo. O perverso-polimorfis- interrogou se a concepção do caráter subver-
mo individual originário consistiria na po- sivo da psicanálise teria sido ilusória em cer-
tencialidade intrínseca de um indivíduo às tos contextos sociopolíticos.
mais variadas modalidades de investimento Muitos autores do campo psicanalítico
sexual objetal. Precisamente, a conceituação ainda consideram anormais as identidades
freudiana do perverso-polimorfismo origi- sociais incompatíveis com a matriz heteros-
nário manteria, como condição necessária, a sexual, tais como as identidades trans. Assim,
suposição de uma não determinação da se- esses autores contribuem com a manutenção
xualidade pelo sexo (Sartori, 2019). de um ordenamento socialmente opressivo
Muitos autores, a exemplo de Santos e aos indivíduos identificados com ao menos
Ceccarelli (2010), consideraram que certas uma dessas identidades.
teorias de Freud ([1908] 1996), tais como a Nesse sentido, Sartori e Ceccarelli (2021)
contida em Moral sexual ‘civilizada’ e doen- ressaltaram que o gênero veio a ser norma-
ça nervosa moderna, contrariariam contun- tizado não somente em setores abertamente
dentemente ideais constitutivos da cultura conservadores, mas também em comuni-
ocidental e evidenciariam o modo como a dades psicanalíticas. Analogamente, Jorge
moral sexual civilizada originaria a doença (2007) asseverou que, na França, muitos psi-
nervosa moderna. Desde a criação da psica- canalistas criticaram a intenção de adoção
nálise, as sociedades ocidentais se modifica- de uma criança por casais homossexuais.
ram expressivamente. E autores como Jorge Já Ferraz (2008) ressaltou que as oposições
(2007) ressaltaram a contribuição direta da mais enérgicas à oficialização da homopa-
teorização freudiana à revolução da sexuali- rentalidade vieram não somente da Igreja,
dade ocorrida no século XX. mas também da psicanálise lacaniana.
Embora tenha sido originalmente sub- Freud evidenciou a inconsistência de nor-
versiva ao articular críticas a normatizações, mas socialmente instituídas, tais como aque-
sobretudo da sexualidade, a teoria psicanalí- las correspondentes à concepção de que as
tica consistirá num instrumento de normati- homossexualidades seriam anormalidades.
zação caso os conceitos nela articulados não Contudo, obviamente, o autor respondia ao
sejam constantemente revisados e modifica- denominado “espírito de tempo”, não sendo
e “ativo”, e “feminino” e “passivo”, estabele- meadamente como “não dupla”, embora te-
ceu a normalidade de uma correspondência nha sido aparentemente caracterizada desse
entre certos sexos, isto é, o sexo masculino/ modo (Antonio, 2011).
feminino, e certas sexualidades, ou seja, a se- Em Algumas consequências psíquicas da
xualidade masculina/feminina. diferença anatômica entre os sexos ([1925]
Contudo, concebeu indiretamente certas 1992), Freud reiterou suas suposições. Ele
atitudes sexuais como normalmente consti- concluiu que, anteriormente ao estabeleci-
tuintes de certas sexualidades. A atitude se- mento do complexo de Édipo num indiví-
xual masculina constituiria normalmente a duo, independentemente de seu sexo, esse
sexualidade masculina e a atitude sexual fe- indivíduo investiria libidinalmente em sua
minina, a sexualidade feminina. Nesse senti- mãe.
do, na obra de Freud, veio a ser essencializa- Porém, Freud ([1925] 1992) asseverou
da a normatividade denominada por Butler que os investimentos libidinais edipianos
(1990) de “matriz heterossexual”, ainda que masculinos seriam diferentes dos femini-
não tenha sido utilizado nesse ensaio o ter- nos. Entendeu que: (i) um dos investimentos
mo “normal” em referência a determinadas objetais edipianos do menino, mais restrita-
correspondências entre sexo, atitude sexual mente, o investimento em sua mãe, resulta-
e modalidade de investimento sexual objetal. ria da reiteração de seu investimento objetal
original; mas (ii) o investimento edipiano da
2.2 Algumas consequências menina, investimento libidinal em seu pai,
psíquicas da diferença anatômica não resultaria de uma reiteração de outro,
entre os sexos (1925) mas consistiria num evento inédito em seu
Neste ensaio, Freud ([1925] 1992) articu- desenvolvimento.
lou seu conceito de fantasias originárias, Na construção psíquica da feminilidade
que também tinha sido analisado em 1919 em uma menina, seu investimento em sua
– Espancam uma criança (Antonio, 2011). mãe seria redirecionado ao seu pai (Anto-
Freud ([1919] 1992), em Espancam uma nio, 2011). Entretanto, no estabelecimento
criança, considerou que, na infância de um de uma masculinidade em um menino, a sua
indivíduo, a fantasia de espancamento, inde- atitude feminina em sua relação com seu pai
pendentemente de seu suposto sexo, estaria seria comumente substituída, então, sendo
correlacionada com uma atitude feminina e mantida – e reiterada – a sua “atitude mascu-
resultaria de um investimento libidinal in- lina” em sua relação com sua mãe.
cestuoso em seu pai. Ademais, Freud concebeu o complexo de
Em Algumas consequências psíquicas da castração como uma entidade: (i) que repre-
diferença anatômica entre os sexos (Freud, sentaria para um indivíduo o estatuto de sua
[1925] 1992), foi estabelecida uma relação castração – esse estatuto sendo “virtual” no
entre a atitude feminina de um indivíduo, menino e “real”, na menina; e (ii) universal
correlacionada com a mencionada fantasia, – e, nesse sentido, extradiscursivo –, embora
e o seu complexo de Édipo. Antes, em A dis- variada, em certos aspectos, em acordo com
solução do complexo de Édipo, Freud ([1924] o sexo individual. Também, o autor entendeu
1992) havia suposto, no complexo de Édipo o complexo de castração como iniciado mais
masculino, a existência de uma “orientação anteriormente no desenvolvimento da meni-
dupla”, isto é, a coexistência de uma atitude na do que no desenvolvimento do menino.
masculina/atividade e de uma atitude femi- Freud ([1925] 1992) considerou o estabeleci-
nina/passividade. Já no complexo de Édi- mento do complexo de castração na menina
po feminino, ele estabeleceu a existência de como condição necessária ao estabelecimen-
outra “orientação”, que não considerou no- to do complexo de Édipo nela; e o estabele-
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