You are on page 1of 23
(bogs @wCGse_ Ge shui es, Cues e2ou: =z205 t Otho da onga Por Grace Passé Jé fol a um congresso? Jé viu um tradutor ao lado de um palestrante que é uma grande personalidade? JA te pas- sou pela cabega, por um instante, que aquele tradutor podia estar te traindo? Que podia estar amaciando ex- cessivamente os sentidos, ou simplesmente resolvendo ‘a bagunga que sai da boca da grande personalidade? E, por alguns instantes, nao te passou pela cabega 0 enor- me abismo que existe entre a iltima palavra do pales- trante e a primeira do tradutor? Pois bem. Nas proximas paginas, vocé ler Congresso Internacional do Medo. Este texto surgiu inspirado no titulo de um poema de Drummond, esse jardineito daqui de Minas responsavel por fertilizar um mundo de gentes e palavras. Escrevi este texto paulatinamente, dentro da sala de ensaio, texto escrito por dez dedos, vinte pernas, vinte bragos, muitos ventres, ancas, pensamentos, gritos e sussutros. Escuta a filosofia da morte, imponente, cavalgando so- bre um quadripede esguio. A morte segue trotando, lin- da, poderosa, mantra da matéria. Os filésofos olham a morte, buscam palavras, nao as encontram. Encontram, sim, algumas frases parcas, € as soltam ao vento, para ‘construir alguma forma no mundo: linguagem. Congreso Internacional do Medo & uma ode a linguagem. E eu sempre suspiro quando os congressistas filosofam entre si, sussurrando, para nao acordar a crianga: Négoras disse que a vida é uma grande epifania com pausas gigantescas. Hidcoles disse que 0 medo é a véspera da coragem. Fartre escreveu que o segredo da vontade de viver esté dentro de um ovo. Bem como nés. Putdjawa me disse um dia que a felicidade mora no olho de uma onga. E que a gente, pra ser feliz, tem que olhar, ‘no olho dela, Congresso Internacional do Medo estreou no dia 4 de julho de 2008, no Teatro Klauss Vianna, em Belo Horizonte, Minas, Gerais Dramaturgia: GRACE PASSO ‘Mtores: ALEXANDRE DE SENA (Doutor José), GLAUCIA \VANDEVELD (Tradutora), GUSTAVO BONES (Tusgavo Tapbista),, IZABEL STEWART (Pays), MARCELO CASTRO (Trumak), MARIANA MAIOLINE (Reluma Divarg), MARISE DINIS (Dangar- 1a), SERGIO PENNA (Dangarino) Assessoria Dramatirgica: ADELIA NICOLETE Assisténcia de Diregdo: FERNANDA VIDIGAL, Diregao de Arte: RENATO BOLELLI Assistente de Cenografia:VIVIANE KIRITAN| Assistente de Figurinos: GILDA QUINTAO luminagao: NADJA NAIRA Arranjos Sonoros: ALEXANDRE DE SENA ‘Miisica da Tribo: DANIEL MENDONGA Video: ROBERTO ANDRES e LEANDRO ARAUJO Coreogratia: SERGIO PENNA Preparagao Vocal: CAMILA JORGE e MARIANA BRANT Técnico e Operador de Luz: EDIMAR PINTO Cenotécnico: JOAQUIM PEREIRA Costurera: MERCIA LOUZEIRO Produgdo: ALINE VILA REAL Realizagdo: GRUPO ESPANCA! 0 Das longinquas terras do oriente, depois de atravessar grande parte do oceano e enfrentar dias de chuva e sol escaldante, surge um mosquito da espécie “Bacidui Int- nundae’. Desde 0 inicio de sua audaciosa jornada, dias se passaram para que seu delicado corpo chegasse até ‘aqui, no Congresso Internacional do Medo, onde é pos- sivel ver os cinco convidados da conferéncia, dormindo sobre uma mesa do evento. 0 mosquito percorre o corpo de cada um deles, acordando-os, um por um: St. Doutor José Habitante de uma pequena ilha inicialmente situada em ‘meio a0 oceano Atléntico, mas que inexplicavelmente passow a se locomover livremente pelos oceanos. A itha, que nao possul localizagao fixa no mapa e perambula pelos dois hemisférios da Terra, é falante de uma lingua ainda indecifrada, uma espécie de portugués as aves- sas. Um exemplo desta gramatica rara: Na lingua de Doutor José: Mame sempre me contow historietas. Tradugdo em portugués: Minha mae me disse que as alavras eram de vidro. ‘Na lingua de Doutor José: Nem ouvi. Tradugéo em portugués: Eu nao acreditei. ‘a lingua de Doutor José: Mas disse contundente uma ‘que nao esqueco, que me acabou pegando. Tradugéo em portugués: Um dia, ela me explicou seria- ‘mente que hiavia uma substénoia no céu da boca que ‘com o tempo ia se transformando em video. ‘Na lingua de Doutor José: Se saboreasse errado engoli- ria 0 erro. Tradugdo em portugués: E que se eu nao me acostu- ‘masse a ter cuidado ao falar, minha boca ia comegar a sangrar. (Na lingua de Doutor José: E nesse pois bem, Tradugdo em portugues: E foi por esse motivo, « ‘Na lingua de Doutor José: nesse ingénuo pois bem, Tradugdo em portugués: esse motivo inocente, Na lingua de Doutor José: comecei a mastigar 0 amor. Tradugio em portugués: que passei a falar com mais docura. Sr. Tusgavo Tapbista Estudioso de peies representante de Nhanpenha, pais ‘conhecido pela famosa “galinhada’, festa em que ho- ‘mens atraem as galinhas com um pano, e quando essas se aproximam séo espetadas com pequenas varas cor- tantes. Um dia, Nhanpenta foi colonizada pela Espanha € hoje o pais é falante de uma lingua cujo som se asse- ‘melha ao espanhol. Um exemplo deste raro vocébulo: Em portugues: ‘Na lingua de Tusgavo: nao nol sim Wi vida diva morte morte animal aminal nascimento canimiento um mw eu vououd elefante eletanfe inseto insecpo tempo piempo Sra, Reluma Divarg Estudiosa do medo nos contos de fadas infantis, Sra. Reluma estd coberta por longos panos, e dela s6 & pos- sivel ver os olhos. Habitante da Republica da Minia, pais falante de uma lingua que soa como a harmonia de uma misica. Um exemplo desta lingua que soa tao bem para 0s ouvidos: Na lingua de Sra. Reluma: ~~~~(0)~~~~ Tradugéo em portugués: Toda mulher carrega o mundo dentro de si ‘Na lingua de Sra. Reluma: |\|//\/\||_/\\ Tradugao em portugués: 0 mundo carrega mal as mu- Ineres. Na lingua de Sra. Reluma: 000000°000000°° Tradugdo em portugués: Pergunte as cegonhas, para voce entender. Trumak e Payé Representantes dos Ayrita, povo que nos primeiros re- sgistros somavam 150 mil habitantes em terras brasileiras € hoje existem dois, apenas: Trumak e sua irma. Trumak e Pay so falantes do portugués. ‘Surge uma Tradutora em uma cadeira de rodas: ¢ ela quem traz a aliviante possibilidade de se compreender 0 que dizem os convidados do congresso, elo dessa reu- ‘ido multilingue, a que interpreta 0 discurso como se fosse seu, em primeira pessoa. Tusgavo fala em sua lingua e, em seguida, 6 traduzido pela Tradutora. Tradutora: (traduzindo Tusgavo) Bem, ev... eu acho ue deveriamos comegar este encontro. Se ninguém se importar, posso iniciar com minha exposicao... Quando eu recebi o convite para participar, fiquei li sonjeadissimo, é claro, com a possibilidade de inte- grar a mesa desse evento tao bem falado, to elogia- do, mas acho estranho que nao haja ninguém aqui da organizagao para nos receber, mediar, enfim, para iniciar este congresso! Na carta que me escreveram, eles insistiram que minha presenca seria de extrema importancia na temética do evento. Gostaria de ser mais respeitado, entéo! Doutor José: (com um pequeno globo terrestre nas ‘mios) ..ASsim como 0 senhor também libertou, digo 205 presentes que igualmente fago o fato dese Tradutora: (traduzindo Doutor José) Assim como dis- se 0 senhor, gostaria de dizer para a plateia presente {que fui convidado da mesma forma que ele para este encontro. Doutor José: (pega uma carta) Pousava no meu teto ® até chegar este papel com meu none; dentro dor- miam as seguintes palavras... Tradutora: (traduzindo Doutor José) Estava em casa, quando recebi esta carta enderegada a mim, com os seguintes dizeres... Doutor José: (lendo a carta) “Vocé me dé licenca.” Tradutora: (traduzindo Doutor José) Caro senhor. Doutor José: “Opal” Tradutora: (traduzindo Doutor José) Saudades! Doutor José: “Desejamos tirar a roupa querendo gri- tar sussurrado ao seu uvido, para que esteja aqui no Congresso Internacional do Medo.” ‘Tradutora: (traduzindo Doutor José) € com satistagao que vimos através desta convidé-lo para integrar a mesa do Congresso Internacional do Medo. Doutor José: “Ao senhor, dizemos que muito queria- ‘mos sentir 0 cheiro de seu atraente corpo.” Tradutora: (traduzindo Doutor José) Ao habitante desta ilha, reiteramos nosso profundo interesse em ter seu pensamento permeando nossas cabegas, a fim de que elas se embebedem das suas palavras. Doutor José: “Para poder tocé-lo oferezemos o testiculo ‘de uma mao de fiegoes.” Tradutora: (traduzindo Doutor José) Para sua partici- ago, 0 evento oferece, como agradecimento por ‘sua nobre presenga, a importancia simbélica de cin- 0 ficgdes. Doutor José: A, povoei a alma: Tradutora: (traduzindo Doutor José) Entao eu pensei: Doutor José: £, uma mao de fic¢des compra muita coisa. Tradutora: (traduzindo Doutor José) De fato, cinco fiogées é uma quantia consideravel. Doutor José: Mas prometi a minha familia que pinta- ria a casa neste outono. Tradutora: (com dificuldade para traduzir) Mas. bem (como quem conserta as palavras do Doutor), no momento nao estou disposto a fazer uma viagem ‘80 longa Doutor José: Pintei o papel com obrigado, obrigado, mas dizendo que 0 sentido disso estava miope... Tradutora: (traduzindo Doutor José) Escrevi uma res- posta agradecendo mas dizendo que nao participaria.. Doutor José: ..mas outro papel caiu em minhas maos 4 e meu coragéo sentiu vontades préprias de estar aqui, e assim disse tudo bem, nao contrariarel meu coragao. Tradutora: (traduzindo Doutor José) ...mas eis que recebo outra carta da organizagao, 2, a0 abri-ta, fi- auei to encantado com suas palavras sensiveis e belas, que fui convencido a aceitar o convite, Doutor José: € olha aqui meu eu. Tradutora: (traduzindo Doutor José} Trumak: (gritando) Eu queria pedir para a organiza- 0 do evento uma cadeira, porque eu trouxe minha ima comigo, irma de sangue. (para Paya, escondida) Paya, vem cumprimentar 0 povo, vem. Payé surge por detras da mesa, E uma mulher com dese- hos pelo corpo e um bracelete vistoso de penas. Paya: (para os congressistas) Oi. ‘Trumak: Eu espero que voces sejam respeitosos, por- que outro dia chamaram a gente pra fazer rito € ‘quando chegamos 14 era festa de formatura. Outro dia, chamaram Payé pra gravar Compact Disc. Trata ram minha irma muito bem, trataram Payé igual rai- ‘nha porque eles quetiam gravar um “CD de Dia do io”. Tinha muito misico famoso 14, néo tinha, 2 Payd: Tinha. Trumak: Trumak ru muito porque minha irma sempre foi na aldeia a mulher de canto mais feio! (irénico) Mas eles gostaram e falaram que Paya canta muito bem. Que nada. Os irmaos gargalham. Reluma fala. Tradutora: (traduzindo Reluma) Eu também fui con- vidada da mesma forma que os senhores, e apesar de minha situagao, aceitet o convite feito a mim, Se 08 senhores me permitem, eu gostaria de iniciar de uma vez por todas esse encontro mostrando mintia tese recém-apresentada na Fundagao Stempfer com titulo “O ensinamento do medo nos contos de fadas infantis". De modo geral, eu vou tentar explicar aqui para voces por que os contos de fadas so 0s primei- ros contatos que a crianga tem com o medo. E que, a0 ensinar as criangas a sentir medo, os pais buscam ensinar as criangas a se protegerem. Nao é 8 toa que a maioria dos contos tem algum ensinamento sobre aquilo que é 0 tema de maior medo da humanidade... todos sabem de qual tema eu estou falando, nao é mesmo? Payé encontra um controle remoto sobre a mesa. Tradutora: (traduzindo Reluma) ...0 maior medo da humanidade é a morte, e esse é inclusive outro tema que cito nos meus estudos. (grita, para onde quer que esteja a organizagao do evento) Eu gostaria de 8 comegar mostrando uma pesquisa, eu trouxe um es- quema de minha tese, gostaria que colocassem a pasta escrita “Pesquisa com criangas no Word", por favor! Payé: (lendo um bilhete escrito no controle remoto) “Aperte no X para a projecdo de eréficos e afins.” Tusgavo fala e 6 traduzido. ‘Tradutora; (traduzindo Tusgavo) Este encontro gosta muito de bilhetes. Quando cheguel aqui, eles deixa- ram um para mim com a aeromoca do avido! Reluma prossegue a palestra. 0 gréfico surge, projeta do. A Tradutora finge continuar a tradugao de Reluma, mas, na verdade, confessa para a plateia sem que os congressistas percebam. Tradutora: (sussurra) Esse definitivamente é o ditimo congresso em que trabalho. Esses congressos me ‘cansam e vou dizer mais claramente 0 que eu acho, eu acho que eles me chamam porque é mais barato chamar uma tradutora poliglota do que uma traduto- ra que fala uma lingua s6. E eu também me enervo quando da algum problema e eles olham para mim, como se eu nao tivesse sido convidada também. Quando eles chegaram aqui, vieram me perguntando uma série de coisas sobre 0 evento como se eu 0 ti- vesse organizado. Quando eles falaram agora que ‘no sabiam 0 motivo de estarem aqui, me deu vonta- de de tomar a palavra e dizer que eu também nao sei " Por que estou aqui. Que eu também me prometi des- cansar desse trabalho com as palavras. As palavras me cansam. E, sabe, nem tudo é possivel traduzir. Quando eu olho algum palestrante que, por algum momento, néo sabe bem o que diz, eu acho tao mais significativo do que sair por af dizendo palavras e pa- lavras tentando nomear algum conceito. Eu conhego esse tipo de evento. Eles ficardo horas e horas ten- tando conceituar a vida e quando chegarem em suas casas, em seu pais, nao vao conseguir sequer dizer “boa noite” para alguém de quem sentem mégoa... ‘no sei por quanto tempo ainda ficaremos aqui Tradutora volta a traduzir, de fato, 0 que Reluma fala. Tradutora: (traduzindo Reluma) ...de sete andes, as- sim como sete sao os planetas regentes e sete sao 0s pecados capitais. Por fim, como 6 de costume di- zer, eles terminam “felizes para sempre”, que é 0 final essencial para todas as hist6rias infantis. Acho que 6 um bom momento para abrirmos para as perguntas do paiblico. Tusgavo fala, Tradutora traduz. Tradutora: (traduzindo Tusgavo) Eu tenho uma per- gunta... Em seus estudos, a senhora fala muito de “felizes para sempre’, mas o que 6 0 “sempre” para a senhora? A senhora me desculpe, mas o “sempre” nao existe para o homem. Para mim é uma contradi- Gao dizer que essas historias ensinam as criangas a entender a morte, se as prOprias hist6rias terminam B com “felizes para sempre”. Reluma responde. ‘Tradutora: (traduzindo Reluma) € que para ensinar 0 sentido da morte é preciso ensinar 0 sentido de “co ragem" para as criangas. 0 mosquito volta a ziguezaguear pelos cradores. Doutor José: Zuttgenstein disse que é preciso estar vivo para entender a morte. Tradutora: (traduzindo 0 doutor) Zuttgenstein disse que a dor da morte s6 existe para os vivos. 0 mosquito passeia pelo ar. Tusgavo pergunta. Tradutora: (traduzindo Tusgavo) E 0 que “coragem” tem a ver com “felizes para sempre"? Reluma responde. Tradutora: (traduzindo Reluma) Senhor, dizer “felizes para sempre” é uma forma de falar para as criangas que, apesar das agruras da vida, a vida pode dar certo. Doutor José: A senhora esta apaixonada. Tradutora: (Iraduzindo 0 doutor) A senhora tem ra- Zio. % 0 mosquito passeia por Doutor José. Tusgavo fala, Tradutora: (traduzindo Tusgavo) Pois eu pergunto aos senhores aqui presentes: Qual é 0 contrério da vida? (pausa) Vamos! (pausa) Se pensaram em responder que € @ morte, eu vou logo dizendo: a morte nao é 0 ‘contrério da vida e sim um fendmeno essencial dela. 0 ciclo que vai do nascimento & morte ¢ um prinetpio de organizagao dos sistemas vivos. Os organismos Vivos substituem-se constantemente. Nascer e mor- rer 6 uma questo de auto-organizagao. Se nds pa- rarmos € comegarmos a observar ao nosso redor, vamos perceber que quase tudo estd em processo de perecimento. Doutor José mata 0 mosquito. Tusgavo segue falando. Tradutora: (traduz Tusgavo) ...Para cada organismo ue morte, outro nasce. Entao, a morte nao é 0 “con- trério” da vida e sim um aspecto essencial dela. Se aprendéssemos isso desde cedo, seria mais facil para todos nds. (aponta para algo na mesa) Vejam esas formigas carregando 0 corpo deste mosquito, olhal ...I880 € um corpo que acaba de falecer diante de nds, Enquanto a senhora falava de conto de fa- das, um organismo vivo morteu, aqui, e assim tam- bém 6 conosco. A vida tem menos floreios, minha senhora, nao me venha falar de “final feliz’, por favor. Reluma argumenta. Tradutora: (traduzindo Reluma) 0 senhor nao enten- 1" dau 0 que eu disse, estamos falando de coisas pare- cidas. Doutor José: Perdao quanto ao fim do zum zum zum, ‘Tradutora: (traduzindo 0 doutor) Desculpem, mas 0 mosquito estava me incomodando demais. Tusgavo retoma. Tradutora: (traduzindo Tusgavo) Eu antendi perte mente @ senhora. Eu s6 acho que se esses contos terminassem com @ morte, ensinariam mais sobre @ vida... Reluma responde a Tusgavo. Tradutora: (traduz Reluma) Eu vou tentar ser mais clara: as historias ajudam as criangas @ encontrar sentido para suas vidas, a encontrar... Tusgavo a interrompe. ‘Tradutora: (traduzindo Tusgavo) E a senhora sabe 1 o que é a vida?! Reluma fala. ‘Tradutora: (traduzindo Reluma) Nao menos que 0 se- shor... Tusgavo fala. ® Tradutora: (traduzindo Tusgavo) Minha senhora, eu duvido que alguém aqui j4 tenha sujado as maos de sangue, jé tenha visto uma carne viva nascer. Duvido que alguém aqui jé tenha feito um parto de camelo, de elefante, ou de um cachorrinho sequer! Eu jé fiz € posso falar porque jé estive com um flhote de came- lo nos bragos. 14 salvei diversos... Ndo, vacés ndo saber o que € vida, a vida é mais conereta do que os senhores pensam, a vida é de carne e osso. Doutor José: E da carne de giz Tradutora: (traduz o doutor) E de espirito também. Payé entoa uma cangao. Trumak: (explica) A Payé ta fazendo 0 entero do mosquito morto. As eriangas da tribo brincavam de enterrar mosquito. Nés dois somos os tiltimos que res- taram do nosso povo depois que eles colocaram aque- la hidrelétrca Ié perto de nés. Inundaram tudo e nosso ovo acabou morrendo porque perdeu a raiz. Payé fi- cou recolhida assim depois que moreu Manhula e sé restou n6s dois na aldeia. Reluma chora. Tusgavo pergunta. Tradutora: (traduzindo Tusgavo) A senhora esté bem? Reluma responde. ‘Tradutora: (traduz Reluma) Esta tudo bem... a Tusgavo, sobre Reluma. ‘Tradutora: (traduzindo Tusgavo) Os seus estudos de- vem the conferir muita sensibilidade... Doutor José: Nao quer retirar seu corpo e fazer fun- cionar os pulmoes? ‘Tradutora: (traduzindo Doutor José) Tem certeza de que no quer sair um pouco, respirar? Silencio. Reluma responde. Tradutora: (traduz Reluma) Nao... euestou bem, mui- to obrigada. Isso é normal, eu estou bem... Obrigada, muito obrigada. Doutor José: Melhor seria se mudéssemos 0 cami: ho. Tradutora: (traduz Doutor José) Talvez fosse melhor prosseguitmos com outra palestra, até que a senhora Reluma se restabeleca e possa dar prosseguimento ‘ao que dizia. Silencio, Tusgavo concorda, fala. Tradutora: (traduzindo Tusgavo) Bem... Creio entao ‘que posso mostrar os exemplares que trouxe, Ele pega um aqudrio, coloca sobre a mesa. a Tradutora: (segue traduzindo Tusgavo) Como os se- nhores sabem, eu estudo peixes e agora vou explicar cientificamente como funciona o cérebro desta espé- cie aqui, quando esta ameagada e sente medo. Desde pequeno, sempre me encantei por aquérios. (Tusgavo aponta 0 objeto) 0 aquério é um mundo. E para mim é como se nés, homens, fOssemos os peixes. (dispersa- -se) Eu fago questao de brincar de colocar tesouros, sereias mecénicas, rochas falsas, ostras, pequenas rvores de plastico aqui dentro. Fico olhando os pei- xes rondando esses brinquedos e acho que eles ima- ginam que tudo em seu mundo 6 de verdade. Eu fico pensando: onde seré que eles pensam que esto quando esbarram no vidro? Eles nem imaginam que fui eu que escolhi o tamanho de seu mundo. Eles nem imaginam que eu, que nds, estamos olhando para eles. (Tusgavo esté hipnotizado pelos peixes) Nem imaginam quao pequeno é seu mundo, eles nem ima- ginam... As vezes, depois de descansar meus olhos aqui, gosto de mirar meu olhar para cima (olha para cima) ¢ olhar 0 céu com a malicia de alguém que sabe secretamente que também deve ter alguém ‘olhando por nés. Porque “no fundo, somos como os peixes: imersos em um aqudtio, ou se tivermos mais sorte, imersos em um oceano’, Os peixes nadam no aquairio. E novamente, Reluma chora. Tusgavo pergunta. ‘Tradutora: (traduz Tusgavo) A senhora esté bem? Doutor José: Est ouvindo algum ruido em si? a (traduz 0 doutor) Esté sentindo alguma Reluma responde. (traduz Reluma) Estou sem ar, ah, estou Doutor José: (para fora dali) Oi! A saiide! Tusgavo pergunta. Tradutora: (traduz Tusgavo) © que esté sentindo? Reluma responde. ‘Tradutora: (traduz Reluma) Ah, que dor insana! Eu nao consigo respirar, oh! Payé: Fala 0 que ta sentindo! Tusgavo fala enquanto traz um copo d’égua. Tradutora: (traduz Tusgavo) Beba isso que melhora. Isso pode ser essa diferenga de fuso, tem corpo que no suporta a mudanga de pais tao brusca! silencio, Reluma se recompoe. Tradutor : (traduzindo Reluma) Eu estou melhor, eu 2 estou bem melhor. Acho que a dgua me fez bem, Obrigada, muito obrigada... Tusgavo insiste. ‘Tradutora: (traduz Tusgavo) Nao quer sair, respirar um pouco, tem certeza de que esta melhor? Reluma responde. Tradutora: (traduz Reluma) Nao, eu estou melhor. Muito obrigada Tudo se acaima no Congresso Internacional do Medo. ‘Trumak: (erguendo-se) Té ouvindo? Té ouvindo? Ta ‘ouvindo o carro Ié fora? Té ouvindo? (ordena a todos) Fecha 0 olho. Fecha 0 olho, Fecha 0 olho. Poe a mao no coragao. Poe a mao no coragao. Ta ouvindo? Té ‘ouvindo 0 coragao? Té parado? Quase parado num parado, Quase parado nao é parado. (orden) Abre 0 lho, Abre 0 olho. Nuvem ta vindo de onde? Nuvem té Vindo de onde? Vento td vindo de onde? De ld. Ou- Vento ta vindo de 16. Ouviu o vento? Ouve. Ouviu © barulho do mar? Ouviu? Nosso pai, pai meu e pai de Pay, pai nosso, ensinou muita coisa. Mae nossa também. Ensinou que nds num deve fazer una agao sem consciéncia. Quando Trumak vai botar a mao na gua de manha cedo, Trumak pensa: eu t0 botando a mao na égua. Como se tivesse mandando uma mensa- gem do corpo pro espitito. Se acendo 0 fogo, reconhe- 0a lenhal Entendeu? Se acendo o fogo, reconheco a B lenhal Sendo o tempo distrai a gente. E a vida fica palida. € 0 espirito que reinventa o dia a dia. Se ho- mem té vivendo num tempo que nao pode pensar na gua enquanto lava rosto, entZo 0 tempo correu mais que a perna do homem. Desse jeito homem vai ficar cortendo atras do tempo como quem quer agarrar sua sombra. Homem esquece que o tempo é 0 cora~ Gao batendo, a gota da chuva encostando no chao. raio, 0 raio € o presente. O raio € 0 instante. Quando 0 raio cai na Terra, clareia o instante da nossa existén- cia. (ordena) Ouve 0 barulho do raio, Quve. E 0 vento? (ordena) Ouve 0 barulho do vento. Sente vento no cabelo? Sente? Vento no cabelo? (ensina) Vento balanga a pupila. Vento nina pensamento. (ordena) Ouve 0 vento, 6. Payé: (traduzindo o irmao) O que Trumak té falando é ‘que nossa riqueza verdadeira vem do espfrito. Nosso pai, pai meu e pai de Trumak, pai nosso, ensinou isso pra gente, Mae nossa também. Reluma pergunta para Paya. ‘Tradutora: (traduz Reluma) 0 que significam esses desenhos em seus bragos? Payé: (apontando para si) |ss0 aqui é 0 sol abrindo 0 dia. Esse aqui é 0 cu encostando no nosso cocar. Essa aqui é a lua, fazendo o sol dormir. Esse aqui de vermelho ¢ a hidrelétrica dertamando agua na aldeia, Trumal mundo mental é muito turbulento. 0 co- nhecimento 6 turbulento. Nés sabemos disso. Nossa tradicao ensinou pra gente desde cedo a limpar a cabega. Se 0 conhecimento néo descansa, ele can- sa, Nés nao podemos fazer de nosso conhecimento uma aldeia triste. Pronto. Falei. Acabou a palestra. Reluma respira, ofegante, chora. Tusgavo pergunta. Tradutora: (traduz Tusgavo) De novo? Isso deve ser problema emocional! Doutor José: Dé calma aos pulmées. Tradutora: (traduzindo Doutor José) Respire profun- damente. Paya: E sempre de tempo em tempo que di... Tusgavo fala. Tradutora: (traduz Tusgavo) A senhora se vacinou an tes de vir pra cd? Reluma grita. Tradutora: (traduz Reluma) Ah, esté vindo, esté vindo de novo! Paya: Sempre de tempo em tempo... Tusgavo pergunta a Reluma. % ‘Tradutora: (traduz Tusgavo) Vacinou? ‘Trumak: Deixa a moga. Doutor José: Afrouxa seu corpo no espago. Tradutora: (traduzindo Doutor José) Procure relaxar. Reluma fala. Tradutora: (traduz Reluma) Terd que ser agoral Paya: Fica calma. Tusgavo reclama. Tradutora: (traduz Tusgavo) Esse encontro 6 muito desorganizado. Se fosse em meu pais a emergéncia jd estaria aquil Doutor José: Localiza o estrangeiro! Tradutora: (traduz Doutor Joss) Nos diga onde dei! Reluma fala. Tradutora: (traduz Reluma) E ele! Doutor José: De qual ele ela diz? Reluma continua. Tradutora: (iraduz Reluma) E ele. Payé: Fica calma. Doutor José: De que corpo se refere, poxa vida! Tusgavo pergunta. Tradutora: (traduzindo Tusgavo) A senhora se alimen- tou hoje? Trumak: Deixa a moga. Tusgavo grita. Tradutora: (grita, traduzindo Tusgavo) Ela pode no estar se adaptando a esse lugar. E assim com os ani- mais e com os homens! Reluma deita-se na mesa do congresso: ela esté gravida. Doutor José: Vé sé! Tradutora: (traduzindo Doutor José) Olhal Doutor José: Os meus olhios esto piscando! Tradutora: (traduzindo Doutor José) Eu nao posso acreditar! Paya: (para Trumak) Era isso, Trumak, ela vai ter um bebat @ Reluma grita. Doutor José: Vocé tem o ventre vivo? Tusgavo fala. Tradutora: Meu Deus do céu, como pode? Reluma grita, Tusgavo pede calma aos gritos. ‘Tradutora: (aos gritos) Organizacao! Doutor José: Socorro, este encontro é com a vidal Este encontro é com a vida! Tradutora: Uma crianga vai nascer neste congresso! Siléncio. Reluma grita. Tusgavo fala. Tradutora: (grita) Nao tem ninguém da organizagao aqui? Doutor José: (para a plate) Essa casa esta ova, va- nenhum manipulador? (coloca com forca as ‘mos em Tusgavo e diz seriamente) Ouga, tudo que voce disse est aqui. Molha de vida seu conhecimen- to e faa sua palestra com as maos! ‘Tradutora: 0 senhor estuda parto de animais, faga 0 que deve ser feito! Tusgavo fica perplexo. Posiciona-se diante das pernas de ® Reluma, mergulha as maos por baixo dos panos da saia de Reluma. Diz algumas coisas a ela, que continua a gri- tar. Tusgavo sussurra para 0s outros. Tradutora: (traduz sussurro de Tusgavo) Ela est per- dendo sangue demais! Paya levanta a gravida, bruscamente. Tira os panos que cobrem o rosto de Reluma. Tusgavo narra os aconteci: mentos. Tradutora: (traduz Tusgavo) Esta nascendo! Reluma grita, Tradutora: (gritando) QUE SEJA BEM-VINDO! QUE SEJA UM MENINO DE CORAGEM! QUE NAO TENHA MEDO DO PRIMEIRO AR QUE VAI RESPIRAR NESTE MOMENTO! Nasce uma crianga no Congresso Internacional do Medo. Tusgavo fica com a crianga nas maos. Doutor José: Ele esta vivo? Tradutora: (traduzindo Doutor José) Nasceu? Payd: Nasceu, sim. Tusgavo fala, Tradutor (traduz Tusgavo) Sim, nasceu! £ uma menina. Doutor José: E ndo poderemos colocar os olhos? Tradutora: E ngo poderemos vé-la? Tusgavo fala enquanto afasta as pessoas. ‘Tradutora: (traduz Tusgavo) Deixe-a em paz, ela vai precisar descansar. Siléncio. Trumak: (para a plateia) Agora é a hora em que a lua coloca a noite no colo. 0 vento balanga mais estra~ rnho, pra ensinar pras penas que o destino delas esta no at. Os raios que caem é 0 brinde do céu com 0 chao. E todo canto, todo som, até o som pequeno da brisa esbarrando na folha, é pra brindar mais um tempo que foi inaugurado. Tradutora: Seja bem-vinda ao mundo, crianga. Voce nasceu. Agora Ihe restard sofrer, amar, ter medo € ¢O- ragem. (0s peixes fazem onda no aquério, como se também tradu- zissem ali, a seu modo, aquela felicidade. Todos estao emo- clonados no Congresso Internacional do Medo. Reluma fala ‘enquanto nina a crianga, encoberta por panos. Tradutora: (traduz Reluma) Quem diria que minha fi- tha nasceria fora de meu pais. Tradutora: Nasceu aqul. Payé: Como Payé e Trumak ‘Trumak: (para Reluma) Ela vai querer saber daqui, vai ficar curiosa, Reluma fala com 0 bebé no colo. Tradutora: (traduz Reluma) Meu pais é tao longe da- qui, nossas linguas sao tao diferentes. Tusgavo fala. Tradutora: (traduz Tusgavo) Dois conterréneos a vi- ram nascer, E s6 nao perdermos 0 contato, oral Reluma fala para seu bebé. Tradutora: (traduz Reluma) Minha pequena, bem- -vinda ao seu pais.. Doutor José: (para Reluma) Conheci bons tombos- -d'gua dessa terra para levarmos nossa pequena para passear... ‘Tradutora: (traduzindo Doutor José) Conheci lindas cataratas para passearmos com ela aqui Reluma fala. Tradutor (traduz Reluma) Daqui eu s6 conhego al- gumas misicas que fazem sucesso no rédio. ‘Trumak: As misicas daqui fazem muito sucesso ld fora. Doutor José: E também 0 comércio romantico.. ‘Tradutora: (traduz 0 doutor) E também as novelas.. Doutor José: (olhando em volta) E mesmo uma patria que sotte. Tradutor vilhosol (traduz 0 doutor) E mesmo um pais mara- Doutor José: Que confusdo de gentes, que tanto de terra pra uns ¢ outros, nada! Tradutora: (traduz 0 doutor) Quantas ragas diferen- tes, que terra estupenda! Doutor José: Tanta pobreza. Tradutora: (traduz 0 doutor) Quanta simplicidade rica! Doutor José: Nao sei como se organiza. Tradutor (traduz 0 doutor) Quanta harmonia! Doutor José: (erguendo 0 copo) Um estalar de vidros 0 milagre da vida! Tradutora: Um brinde ao novo tempo! Doutor José: (para Tradutora, trazendo-a para perto) Diminua 0 espago, vem estalar conosco! (erguendo 0 copo) Um estalar de vidros ao milagre da vidal Tradutora: (traduz o doutor) Um brinde ao novo tempo! Tusgavo fala. Tradutora: (traduz Tusgavo) Isso 6 que ¢ globalizagao! Trumak: (para Reluma) Ela nasceu no outono. Isso quer dizer que suas quedas vao dar bons frutos. Doutor José: Nessa época as folhas caem e servem de adubo a outras que vao nascer. E 0 tempo. Tradutora: 0 outono diz muito da vida, porque o ali- mento da terra é 0 que ela mesma perde. Paya: (para Doutor José) 0 outono pra nés 6 época de respirar com peixe na dgua, pra renovar o corpo. Tusgavo pergunta. Tradutora: (traduz Tusgavo) Ela esté respirando? Reluma responde. Tradutor: (traduz Reluma) Sim... Todos se rednem ao redor da pequena vida. Paya: (para Reluma) Até que ela nao chorou muito até agora... Tusgavo afirma. Tradutora: (traduz Tusgavo) E, nossa menina é uma garota forte... Reluma apresenta os congressistas a crianga. Tradutora: (traduz Reluma) .. em homenagem a tudo que pode renascer, eu vou chamé-la de Payé. Payé: Meu nome? Doutor José: Achei essa decisdo uma homenagem. Tusgavo fala enquanto pega ¢ aquério. Tradutora: (traduz Tusgavo) Durante muito tempo es tudei a vida desses peixes. E nunca pensei que nada teria mais valor pra mim do que eles. Mas 0 que eu vivi aqui hoje, diante do nascimento desta pequena, foi o recomeco Tusgavo presenteia seus peites & crianga. Reluma fala para a garota. Tradutora: (traduz Reluma) Olha s6, minha querida, vocé ganhou um presente... “ Trumake: (tirando 0 cocar da cabega) Isso aqui 6 como a gente vé 2 aldeia. (aponta para uma pena) Esse aqui 6 Trumak (aponta pra outra) E essa aqui é Paya. Trumak presentela seu cocar & crianga. Paya: (tirando seu bracelete) Eu ganhei isso de Mannula, Quando ela me deu, ela disse que isso era uma forea pra continuar caminhando. Paya a presenteia com seu bracelete. Doutor José: (pega 0 globo) Toma, crianga, esse é 0 mundo. Para a pessoa que é sua. A crianga recebe 0 mundo de presente. Tradutora sussur- ra na lingua de Reluma para ela, tirando de si um colar e depositando ao lado dos outros presentes. Tusgavo fala com uma méquina fotografica nas maos. Tradutora: (traduz Tusgavo) Bem, eu nunca faco questo de tirar foto nos congressos que eu vou, mas eu acho que nesse eu quero trar.. Todos posam. Doutor José: (tirando a foto) Vamos fabricar o instan- te, Fagam a pose para o futuro! A foto 6 tirada, Reluma fala. Tradutora: (traduzindo Reluma) Caros amigos, eu 6 preciso agradecer a voces por tudo. silencio. Tusgavo pergunta. ‘Tradutora: (traduz Tusgave) Ela nao esta dormindo demais? Reluma responde. ‘Tradutora: (traduz Reluma} Nao, nao esté... Tusgavo fala, aliviado. Tradutora: (traduz Tusgavo) Gragas! Payé: (baixinho, para nao acordar a crianga) Voo8 ta dando 0 peito? Reluma faz gesto que sim. ‘Trumak: Mamar é bom. Tusgavo afirma. Tradutora: (traduz Tusgavo} 0 leite acalma as criangas. Siléncio. Tusgavo continua. Tradutora: (traduz Tusgavo) Pela primeira vez, eu es- tou sentindo orgulho de meu conhecimento, de ter estudado tanto. Reluma conversa com sua filha, como quem canta uma cangao de ninar. Conta a histéria de Chapeuzinho Ver- ‘melho para a crianga. Paya: Vida nova traz a alegria pra quem ta por perto, Tusgavo fala baixo para nao acordar a criangal Tradutora: (traduz Tusgavo) Tem certeza de que ela esté respirando? Reluma faz gesto que sim. Doutor José: Que estampa coloridal Tradutora: (taduz 0 doutor) Que menina linda! Doutor José: Um grande pensador falou que isso é ‘um milagre. Tradutora: (traduz 0 doutor) 0 maior filésofo de to- dos os tempos disse que s6 mesmo a vida une as pessoas e cura suas doengas. Tusgavo fala. Tradutora: (traduz Tusgavo) Agora eu entendo porque esta organizagdo nos chamou. € porque sé a vida ura nosso medo. Doutor José: Nagoras falou que a vida nos prega sur- presas. a Tradutora: (traduz 0 doutor) Nagoras disse que a vida é uma grande epifania com pausas gigantescas. Tradutora sente algo estranho dentro de si. Reluma fala. Tradutora: (traduz Reluma com dificuldade) Hidcoles lisse que 0 medo é a véspera da coragem. Tusgavo fala. Tradutora: (traduz Tusgavo com dificuldade) Fartre escreveu que 0 segredo da vontade de viver est dentro de um ovo. Bem como nés. Trumak: Putdjawa me disse, um dia, que a felicidade mora no olho de uma onga, E que a gente, pra ser feliz, tem que olhar no olho dela. Tusgavo fala, Tradutora nao traduz, Tusgavo insiste. Tradutora: (traduz Tusgavo com dificuldade) Senhora! Doutor José: Ela nao aparenta felicidade! Tradutora: (traduz 0 doutor) Ela nao parece bem. Doutor José: (para ela) 0 que a senhora est ouvindo ai dentro? Tradutora: (traduz 0 doutor) 0 que a senhora esté sentindo? Reluma pergunta a Doutor José. ‘Tradutora: (traduz Reluma) Cheque o pulso dela, ela esté respirando? Tusgavo implora, Tradutora: (traduz Tusgavo) Fale conosco! Tradutora: (para os congressistas) Escutem, eu nun- ca tive medo do conhecimento. De dissecar o mundo até encontrar seu détomo, Nunca temi entender a me- Anica do movimento, a raiz da palavra, nunca temi entender 0 verbo “ser” na sua substdncia, Mas a morte, néo. Eu nunca estudei a morte. A morte mes- ‘mo eu nao sei. (para Doutor José) Doutor José, des culpe se nao traduzi bem as suas palavras. Doutor José: (nao compreende 0 que ela diz) Como? ‘Tradutora: Mas também as palavras, as vezes, so tao menores do que 0 que queremos dizer, Ah! Eu estou dentro de mim, de costas para a minha face! Que temor! Tradutora morre no Congresso Internacional do Medo. Os congressistas colocam seu corpo na mesa. Obser- vam assustados. Doutor José: (olha para o aquério) Talvez, pelo vidro, eles 6 que consigam ver quanto é miniisculo nosso aquério, quanto ¢ triste nossa filosofia, quanto é medro- ‘sa nossa carde, Ite disso, disso que nao se traduz. 8 Nao ha ninguém para traduzir essas dltimas palavras no Congresso Internacional do Medo. O silencio.

You might also like