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ee) : eeu ee EEE. EP ACUMULAGAO E HIERARQUIA NA PRAGA MERCANTIL DO RIO DE JANEIRO 1790-1830 lOTECA CEI ‘ill I vit Homens de gros Dene arr eee tate iers Peeing reece Keele wa ola rene Ae sre COS Koos) rear Mieco (else col oneal Penn re ora Ue MN Rea Keeler terd por acentuar, em forma bastante unilateral, 08 aspectos e fatores vinculados a colonizacao Peeters ldel te Tratava-se, entao, de entender © Brasil Pelee tccsanrod uierslncoNuceonrell-tireNe( Ut Ip-b Teste Me Heese ea oceetalolgts ta Sod tod5 atege eiurnce=eiciraUa Corse terface Beyer al fos Mant (eek) r4ollg erty Rote fete ete [=a oterioNelt (ean Coder Wale Pan oe DSI Ne ele eee team ciniee Koi) unidade nacional mesmo em estado larvar —, Perea tocol ? Entre 1799 e 1815, frente a uma queda anual de 5,4% do volume de agicar (branco e mas- cavo) que chega ao Porto do Rio, temos um crescimento anual de 7,4% para o charque e de 16,2% para a farinha.* Esses ndmeros demonstram algumas coisas. A mais importante é que a economia colonial é um pouco mais complexa que uma plantation escravista, submetida aos sabores das conjunturas internacionais. E isso que constatamos através dos nimeros que atestam 0 peso € a importan- cia do mercado interno colonial e das produgées para ele voltadas. Mais do que isso, a complexidade da economia colonial € verificada pela ca- pacidade (além da elasticidade da agroexportagao em frente das conjun- turas internacionais) de aumentar as receitas € suas produgées de abas- tecimento, mesmo em épocas de queda dos precos internacionais ¢ de retracio da agroexportagao. Esse fenémeno nos indica, através de uma situagdo-limite, a possibilidade de realizagdo de acumulagdes endégenas no espaco colonial. Ou melhor, nos fala sobre a existncia, em uma economia colonial (leia-se exportadora), de acumulagdes endégenas a partir do mercado interno, sendo isso factfvel mesmo em conjunturas internacionais adversas. Essas evidéncias sao suficientes para se colocar em divida alguns dos tracos dos classicos modelos explicativos para a economia escravista-colonial. Na verdade, as observaces que acabamos de fazer ndo s4o tao inédi- tas. Desde pelo menos os tiltimos anos 70, algumas pesquisas tendem a contrariar os tradicionais quadros explicativos para a economia eo sistema colonial. Por exemplo, Rae Floury,* através de sua tese de doutorado, defendida em 1978, comprova que, na Bahia, de 1698 a 1715, as princi- pais fontes de crédito da atividade agricola eram as instituigdes religiosas ¢ irmandades (principalmente a Santa Casa de Misericérdia), ¢ os comer- 21 HOMENS DE GROSSA AVENTURA ciantes locais.35 Essa constatagio aponta para uma certa autonomia da economia colonial, em seu processo de reprodugao, frente a burguesia metropolitana, contrariando, assim, as teses que sublinham a estrita de- pendéncia da primeira em relagio 4 metrépole. Nesse mesmo sentido, temos as pesquisas de P. Verger36 sobre 0 comércio de escravos entre o Golfo de Benin e 0 Porto de Salvador. O autor prova que, desde finais do século XVI, 0 tréfico de cativos para a Bahia era controlado pela comu- nidade mercantil local,” fato que vem sublinhar a ascendéncia da Colénia ( nao da burguesia metropolitana) sobre a reiteragao fisica das relagdes sociais que davam vida ao escravismo colonial. Mais uma vez, portanto, identifica-se outro elemento que reafirma a relativa autonomia da econo- mia colonial, em seu processo de reproducao, frente 4 Metrépole. Obser- va-se, ainda, que as pesquisas de doutoramento de Manolo G. Florentino?® tendem a confirmar o mesmo controle colonial sobre o trafico de escravos para o Rio de Janeiro em finais do século XVIII. _ Ainda para a Bahia do século XVIII, Schwartz?9 demonstra que as reas de grandes lavouras acucareiras nao podem ser vistas como exem- Plos de economia de enclave. Na realidade, os engenhos e plantagdes de agicar seriam supridos por uma extensa rede mercantil de abasteci- mento (lavouras de alimentos e pecudrias).40 Dessa forma, a presenga deum mercado interno e de produgées coloniais a ele ligadas nao € um Privilégio do Rio de Janeiro da época da crise do sistema colonial (pas- sagem do século XVIII para o XIX). Parece, portanto, que tais produgoes © 0 mercado interno sao antigos tracos da economia colonial. Pesquisas realizadas em outras regides da América Latina do século xIX tendem aconfirmar a possibilidade de formacao e um mercado do- méstico no interior de economias exportadoras. Jonathan C. Brown,*! estudando Buenos Aires de 1810 a 1860, constata a expansao e o dina- ne das operagées ligadas ao mercado interno, estas resultantes do autofinanciamento de uma comunidade de mercadores locais. Tal cons- tatagao permite ao autor colocar em davida a aplicabilidade da teoria da dependéncia para a regiao e o perfodo por ele estudado.42 Por diltimo, temos os trabalhos que procuram rever as bases do sis- tema colonial da época moderna.‘ Esse € 0 caso de José Raimundo 22 INTRODUGAO Correia de Almeida em relacio ao sistema de comércio portugués no Atlantico, entre 1450 e 1750.4 Ao contrario dos autores que enfatizam as praticas monopolistas e a transferéncia de excedentes coloniais, na ca- racterizagao do sistema colonial mercantilista, Almeida demonstra que esses dois tracos, no caso portugués, devem ser apreendidos com certo cuidado. E isso tem as suas razées. A fragilidade da Metrépole lusitana ao permitir a concess4o de licencas comerciais a estrangeiros, 0 comércio internacional direto (sem a intermediacao metropolitana, portanto) e o contrabando colocariam sérios limites ao pleno exercicio do exclusivo colonial por Lisboa.*S A isso acrescentar-se-ia a presenga, em Portugal, de uma estrutura social defensora do comércio livre e resistente a efeti- vagao de prdticas monopolistas (por exemplo, por meio de companhias monopolistas) que viessem permitir a ascensao de um pequéno grupo social de grandes mercadores. O comércio ultramarino era uma ativida- de que garantia a reiteragdo das estruturas da antiga sociedade portu- guesa, e através dele, de forma direta ou indireta, a aristocracia e a Igreja se mantinham como forgas sociais dominantes no cenério portugués. Daf 0 nio-interesse dessa “sociedad de ordens” na articulagao de mo- nopélios capazes de viabilizar uma acumulagao de capital nas maos de uma burguesia mercantil, fendmeno que poderia colocar em perigo a estabilidade de tal sociedade. Entre os resultados de tal resisténcia a acumulacao primitiva de capital em Portugal, encontramos a preserva- ¢4o de uma pequena burguesia mercantil ligada ao comércio atlantico, fenémeno que o tornaria mais concorrente e menos “controlador” em relacdo a economia colonial.‘ A partir de tais evidéncias € que José Raimundo C. de Almeida afirma a impossibilidade de o sistema comer- cial portugués ser enquadrado nas caracteristicas fundamentais do siste- ma colonial moderno.*” Em resumo, partindo da conjuntura em que da agricultura cafeeira fluminense, comegamos a nos interrogar sobre alguns dos postulados presentes nos modelos explicativos da economia escravista, Referimo-nos, particularmente, a pouca importancia dada ao mercado interno e as produgées para ele voltadas, assim como a estrita dependéncia vista nas relagdes da economia colonial com a Metrépole. se teria dadoa formacgao 23 HOMENS DE GROSSA AVENTURA Pari passu com essas interrogacées, comegamos a nos indagar, mais diretamente, sobre a acumulagio prévia que teria permitido a rapida montagem da agroexportac4o escravista considerada. Com esse objeti- ‘vo, recorremos ao estudo das origens das fortunas das grandes familias dos barées do café, principalmente de Parafba do Sul, vila que j4 conhe- cfamos desde a nossa pesquisa de mestrado.*® Para nossa surpresa, en- contramos, na origem daquelas fortunas, negociantes das pragas do Rio de Janeiro e de Minas Gerais. E comerciantes ligados nao apenas a ex- Porta¢4o, mas também ao abastecimento interno. Esse € o exemplo das familias Ribeiro Avellar (Visconde da Parafba, Bardo de Sao Luis, Barao de Guaribu etc.), Werneck (Bardo de Paty do Alferes, Barao de Palmeiras, Baro de Ipiabas), Alves Barbosa (primeiro e segundo Bardes de Santa Justa), Barroso Pereira (primeiro Bardo de Entre Rios e Visconde do Rio Novo) e Rodrigues de Andrade (Bardo do Piabanha).‘9 Os titulares des- sas cinco familias, oriundas do comércio, detinham nos anos de 1860 e 1870, mais de 40,0% da superficie do Municfpio de Parafba do Sul e mais de 15,0% da sua populacdo escrava.5? Fora de Parafba do Sul, localizamos igualmente exemplos de grandes fortunas agrarias oriundas do comércio. Tal € 0 caso de Joao Rodrigues Pereira de Almeida (Barao de Ub4), da familia Pereira Faro (Bardes do Rio Bonito), Clemente Pinto (Barées de Nova Friburgo e Conde de $40 Clemente), Domingos Cus- t6dio Guimaraes (Visconde do Rio Preto) etc.51 Por sua vez, investigando sobre a origem do Médio Vale do Paraiba do Sul, localizamos insights de montagem da agricultura canavieira em Campos. Nessa regido, de 1777 21810, o néimero de engenhos aumen- tou em 700% (de 50 para 400);5? e 71,4% das doagdes de sesmarias corresponderam ao periodo 1780-1820.53 Por conseguinte, a semelhan- ga da lavoura cafeeira fluminense, a agricultura canavieira campista pre- senciaria também um rapido processo de montagem, destacando, entre os agentes desse proceso, empresérios como Bernardo Ferreira Rabello, Braz Carneiro Ledo, Amaro Velho da Silva, Manoel Velho da Silva e Joao Francisco da Silva e Souza, todos negociantes e listados, em finais do século XVIII, pelo Conde de Rezende, como os mais notaveis da praca do Rio de Janeiro. 24 INTRODUGAO Desse modo, nas tiltimas décadas do século XVIII e na primeira metade do século seguinte, na montagem de sistemas agrdrios escravis- tas-exportadores em dreas de fronteira, verifica-se a transformagao da acumulagao mercantil em produgio. Ou melhor, o capital mercantil pe- tiodicamente recria uma forma de produgdo historicamente dada. De certa maneira, por conseguinte, estarfamos diante de um processo que se assemelha aquele visto na constituigao da sociedade e economia co- loniais montadas, nos tempos modernos, a partir da expanso mercantil ultramarina européia. A diferenca entre um e outro processo estaria no fato de que o movimento aqui considerado se dé endogenamente ao mundo colonial. Aquela recriagao do sistema agrario escravista agora surge como um processo necess4rio para a reiteragao da sociedade e economia coloniais. Quando chegamos a esses resultados, j4 tinhamos realinhado nosso curso: 0 objeto de estudo continuava a ser o sistema agrario escravista- exportador, s6 que, agora, ele devia ser apreendido sob um outro an- gulo. A partir desse momento, passava a ser entendido como resultado do processo de reproducio de uma economia mais complexa do que a apresentada pelos modelos explicativos presentes na historiografia. Com isso, néo queremos dizer que a economia colonial nao fosse escra- vista e exportadora (esses s’o os seus tragos estruturais mais amplos) nem que nio estivesse subjugada as conjunturas do mercado internacio- nal. Entretanto, para além desses tragos, ela reunia outras caracteristicas estruturais. Possufa outras formas de produgio (ao lado da escravista)°* € um mercado interno, espago no qual se realizariam acumulagoes en- d6genas. A conjugacdo desses elementos Ihe permitia uma dindmica in- terna € peculiar que nao se reduzia as conjuncGes externas. Talvez um dos melhores exemplos para ilustrar a complexidade de tal sociedade seja dado pelas pesquisas, antes citadas, de Rae Floury e de Schwartz’ para a Bahia de principios do século XVIII. Esses autores Provam que, desde o século XVII, o financiamento da ati idade produ- tiva do Recéncavo era garantido por créditos locais. Tal informagao, como sublinhamos, nos indica que a economia colonial, em seu processo de reprodugio, tinha certa autonomia frente A Metrépole; fenémeno 25 HOMENS DE GROSSA AVENTURA que, em si, j4 nos ajuda a repensar a dependéncia econémica da Colénia em relacio 4 Metrépole. Se a isso agregamos que a principal fonte fi- nanciadora da 4rea colonial apreendida, na passagem do século XVII para o XVIII, consistia na Santa Casa de Misericérdia,5® a necessidade de se revisitar essa economia é ainda mais forte. A Misericérdia da Bahia derivava seus fundos de doacées feitas pela elite baiana (plantadores, criadores e comerciantes etc.) a caridade, sendo que ser “irma4o maior” de tal irmandade significava adquirir uma posi¢ao de prestigio no inte- tior de uma sociedade que guardava zelosamente a sua hierarquia so- cial. Desse modo, a Santa Casa era produto de uma sociedade pré-ca- Pitalista, preocupada com o status, e onde nem todas as aplicagdes do excedente econémico tinham uma direc4o produtiva. Pois bem, era esse tipo de estrutura social, com as suas “aplicagées improdutivas”, que Viabilizava a reprodugao do processo produtivo colonial, gerando, com isso, certa autonomia frente 4 economia metropolitana. A partir dessas preocupagées, a andlise da agricultura escravista-ex- portadora transformou-se em uma desculpa para se estudar a economia ea sociedade que se encontravam ao seu redor e, portanto, no interior de tal agricultura. Nessa medida, no presente trabalho, tomando-se por referéncia o sistema agrario escravista-exportador, procuramos apreen- der as formas de acumulagao presentes na “economia colonial” do Su- deste, no século XIX. Procuramos aqui resumir as hip6teses de que partimos para a andlise dos problemas apresentados. Ocscravismo colonial, em sua reprodugao, gera formas de produga0 ‘40-capitalistas, ligadas a seu abastecimento, entre as quais: a produgao camponesa, o trabalho livre ndo-assalariado da estncia gaticha e a pro- dugio escravista de alimentos. Esse Processo, de imediato, confere ao Su- deste colonial o cardter de formagio econdmico-social, cabendo ao escra- vismo colonial o papel hegeménico. Além disso, tal processo introduz (ou tedimensiona) trés categorias na economia colonial: acumulagdo end6gena: movimento que diz respeito a reiteragao, no tempo, das producées ligadas ao abastecimento interno, Esse movimen- 26 INTRODUGAO to, por ser realizado em todas as suas etapas no espaco colonial, impli- caria a retengdo do seu trabalho excedente no interior da economia colonial; mercado interno: locus em que se dariam as acumulagées endégenas e parte da reprodugio da agroexportacao. Em razo das relagdes sociais de produgao que lhe dao vida (escravismo, campesinato etc.), esse mer- cado possui uma natureza nao-capitalista. Essa natureza — consubstan- ciando-se numa fragil divisao social do trabalho, circulagéo de merca- dorias e de moedas — daria ao mercado considerado um carter restrito e imperfeito;®! capital mercantil colonial residente: elemento mediador dos proces- sos de reprodugao antes referidos. Essas operag6es, por sé realizarem em meio a um mercado interno, possibilitariam a gestagio de um grupo mercantil residente na economia apreendida. Desse novo quadro, que destoa dos modelos explicativos tradicio- nais da historiografia, inferem-se algumas conseqiiéncias sobre a légica de funcionamento da economia colonial. De inicio, temos a relativa autonomia do processo de reprodugao da economia considerada frente as flutuacées do mercado internacional. O fato de a agroexportacio se reproduzir em meioa um mercado interno dominado por formas de produgao nao-capitalistas assegura urna redu- Ao dos seus custos monetérios, o que lhe possibilita uma maior elasti- cidade frente As conjunturas internacionais, isto é, as condigoes internas da reprodugao da economia colonial permitem & agroexportacao uma maior resisténcia diante das quedas dos precos externos. A isto acrescentam-se os processos de acumulagéo endégena ¢ a retengio de parcela do sobretrabalho gerado pela agroexportagéo no interior do espago colonial. Essa possibilidade de retengao de parte do excedente — da agroexportagio e das produgées ligadas ao mercado interno — fica mais patente se lembrarmos 0 proprio carater do mercado interno. A natureza nao-capitalista desse mercado gera a hegemonia do capital mercantil, ou seja, traduz-se na constituicao de uma acumulagao mercantil que se alimenta, via circulacao, de fragdes do excedente gera- 27 HOMENS DE GROSSA AVENTURA do pelos diversos setores da producio colonial. E se consideramos que esse capital mercantil é residente, para além do excedente apropriado pelo produtor, teremos aquele retido pela elite mercantil colonial.6? A conjungao dos fendmenos que acabamos de destacar dé 4 econo- mia colonial a possibilidade de ter flutuagdes econémicas préprias, ou melhor, permite-lhe um ritmo préprio de reprodug4o, nao totalmente determinado por injungdes externas. Descaracterizada a estrita dependéncia da sociedade e da economia coloniais frente a fatores externos, resta-nos perguntar qual o mével da “reprodugao colonial”. A nosso ver, tal mével deve ser procurado nas Pr6prias estruturas internas da sociedade apreendida, particularmente do escravismo colonial, sendo ele 0 eixo da formago econdmico-social da colénia. Em outras palavras, partimos, aqui, das observagées feitas Por Ciro Flamarion Cardoso® a respeito da obsessiva preocupagao com a “extragio de excedente” e das criticas formuladas por Anténio de Barros de Castro sobre o “sentido da colonizagio”: A empresa colonial fez aparecer sociedades com estruturas internas que Possuem uma Iégica que nao se reduz a sua vinculacdo externa com 0 co- mércio atlantico e com suas respectivas metrépoles politicas; desta forma, defini-las como anexo ou parte integrante de um conjunto mais vasto € um ‘momento central de andlise, mas nao o bastante. E necess4rio também abor- dar as pr6prias estruturas internas ¢ descobrir suas especificidades e seu funcionamento.§ A produgio em massa de mercadorias cria rafzes no Novo Mundo, objeti- vando-se sob a forma de um complexo aparato produtivo. O objetivo maior desta realidade — 0 seu sentido, se quiser — lhe € agora inerente: atender as suas miltiplas necessidades, garantir a sua reprodugdo. Em tais condig6- €8, © comércio € estruturalmente recolocado ¢ os interesses mercantis — bem como os da Coroa — terdo necessariamente que ter em conta as de- terminagGes que se estabelecem no nfvel da produgdo. Em outras palavras, a forma pela qual os interesses externos atuam sobre a Colénia passa a depender primeiramente da sua solidez e da sua estrutura interna. O projeto 28 INTRODUGAO colonial e ou mercantilista subsiste, sem diivida; o seu raio de incidéncia — especialmente em conjunturas adversas — fica, no entanto, severamente limitado pelo surgimento, na Colénia, de uma estrutura sécio-econémica, com seus elementos de rigidez, suas regularidades, seus interesses ¢, por Ultimo, mas também importante, pelos conflitos que lhe sao préprios.® Segundo Marx, o que distingue as diferentes formacées econémicas €a forma pela qual se extrai o sobretrabalho.‘7 No escravismo colonial, o trabalhador imediato aparece despossufdo de si préprio; € um homem que pertence a outro homem (no caso, o proprietario dos meios de produgio). E isso que permite a producao e a apropriagao do sobretra- balho. Estarfamos, assim, diante de um processo produtivo, cujo fun- cionamento depende de que o trabalhador direto se reconhega como propriedade de outro homem. E isso é o mais importante. Para que a escravidao se transforme em producao escravista, € necessdrio mais do que a violéncia. Nas palavras de Godelier: Mest évident que le recours @ la violence armée peut expliquer apparition de Vesclavage (...). Mais la force ne suffit pas a organiser la production. Pour dépasser le simple pillage, occasionnel ou non, des ressources: d’autrui, il faut que s’y ajoute une organisation sociale de la production.©® Assim sendo, a escravidao, enquanto regime da produgio, pressu- pée e engendra uma sociedade historicamente dada, ou seja, com a sua propria légica interna, uma sociedade onde as relagses de dominio € sujeigao (nas suas vertentes politicas e juridicas), apesar de serem deri- vadas da producéo, incidem diretamente sobre a economia, permitindo o seu funcionamento.®? © que acabamos de afirmar permite-nos avangar um pouco mais na apreensio das relacées sociais de producao que estamos estudando. No escravismo colonial, estamos frente a um sistema onde a produgéo e a aptopriagao do trabalho excedente ndo resultam inteiramente de con- 29 HOMENS DE GROSSA AVENTURA digdes econdmicas, no sentido estrito. Ao contrario do capitalismo, onde a produgio é regulada por mecanismos autodeterminados,”° aqui, a ex- torsao do sobretrabalho é mais 0 resultado de relagdes de poder (sendo o produtor direto cativo de outro homem) do que de relagdes econémicas. Em outras palavras, no capitalismo, as desigualdades presentes no processo de produc4o tém por ponto de partida o fato de, fora da pro- dugdo, o trabalhador direto e 0 dono dos meios de produgao serem iguais, terem, a principio, os mesmos direitos jurfdicos e politicos. Afi- nal, a possibilidade da relacao capitalista, da produgao de mais-valia, prende-se ao fato de o trabalhador direto estar livre nao apenas de seus meios de produgio, mas também livre juridicamente. E essa ultima con- dicéo que permite ao trabalhador direto, no capitalismo, dispor de sua forca de trabalho, de vendé-la no mercado. No escravismo colonial, dé-se exatamente o inverso. Isto é, a producao e a apropriagdo do so- bretrabalho, e, portanto, as desigualdades presentes na produg4o, tém por base desigualdades existentes entre o trabalhador e o proprietério dos meios de producao fora do processo produtivo. O escravo é um homem de outro homem, deve reconhecer-se e ser reconhecido como tal para que haja produgéo. Assim sendo, s4o as diferencas sociais, po- liticase juridicas entre produtor e proprietdrio que permitem a produg4o © a apropriacao do sobretrabalho.”! Por conseguinte, no escravismo co- lonial estamos frente a uma economia onde as desigualdades, fora da Producéo, que aqui chamamos de relagoes de poder, exercem a funcao de relag6es de produgao.72 Com 0 que acabamos de dizer, conseguimos definir melhor a socie- dade estudada. A forma de producao e a de apropriacao do sobretraba- Iho aqui consideradas pressupdem a existéncia de uma sociedade hie- rarquizada, onde as diferencas entre os grupos sociais passam também por distingGes juridicas e politicas; ou, mais precisamente, tal estratifi- cago tem por base relag6es de propriedade do homem sobre o homem. A percepcao dessa sociedade zelosa por sua estratificagdo se manifesta pelas préprias distingdes sociopoliticas existentes entre os homens livres, ou seja, nem todos, na pratica, tinham os mesmos direitos. Poucos eram os que tinham acesso ao prestigio social decorrente dos foros de fidalguia 30 INTRODUGAO (ordens militares), dos altos escalées das irmandades religiosas, das po- sigdes de mando nas milicias locais; na verdade, poucos eram os que podiam, de fato, exercer cargos politicos (a exemplo das Camaras de Vereadores).73 No Império, essas hierarquias se cristalizariam numa fré- gil sociedade civil (onde as diferencas entre os homens livres sao sancio- nadas pela constituico censitaria de 1824), dividida em trés mundos sociais distintos: 0 mundo do trabalho, constituido por aqueles que nao possufam nenhum direito civil, nem o de dispor de sua prépria pessoa, ou seja, os escravos; o mundo da desordem, formado pelos homens livres pobres, que eram cidadaos de segunda classe; o mundo da ordem, que retine os cidadaos de primeira classe, cuja incumbéncia era ordenar 0 conjunto da sociedade.”* Resta investigar, agora, as conseqiiéncias desses tracos sobre a légica de funcionamento do escravismo colonial. No capitalismo, essa légica, como sabemos, se confunde com a pro- dugio da mais-valia. Caso analisemos a base desse sistema, iremos en- contrar relag6es sociais em que 0 trabalhador surge como pessoa livree desprovido dos seus meios de producio, defrontando-se com aquele que detém a propriedade desses meios. Dadas essas circunstancias, o desdo- bramento de tais relagées € inevitavel. O trabalhador direto é coagido a vender a tinica mercadoria que possui, ou seja, a sua prOpria forca de trabalho. Feito isso, temos o desencadeamento do processo de produgio, movimento em que se realiza a apropriagao de um trabalho néo-remu- nerado mercantilizado, ou seja, a produgao da mais-valia. Como resul- tado de tal processo, temos que o trabalhador consegue reproduzir a sua forca de trabalho mas ndo se apropria da totalidade dele. Por conseguin- te, sai da produgéo como entrou, livre e desprovido de suas condig6es materiais de produgao, detendo apenas a sua mao-de-obra. Em contra- partida, o proprietério daquelas condigées materiais sai com os seus direitos de propriedade reafirmados e com um trabalho nao-remune- rado.’5 Assim sendo, o processo de producao, ou seja, a produgéo da mais-valia, € a propria efetivacao das relagdes sociais que dao vida ao capitalismo, Daf que, no capitalismo, a produgéo do trabalho nao-re- munerado mercantilizado é, simultaneamente, a produgio e a reprodu- 31 HOMENS DE GROSSA AVENTURA Gio de relacées sociais especificamente capitalistas.’® A partir disso, en- tende-se por que Marx identifica na produgao da mais-valia o segredo do capitalismo, j4 que ela significa a prépria reprodugio da sociedade considerada. Nesse sistema, portanto, a expressio “o lucro pelo lucro” tem alguma razo de ser, indica a prépria viabilizacao do sistema apreen- dido.77 No escravismo colonial, o mesmo néo ocorre. Esse sistema — nao obstante se assente numa producio mercantil de sobretrabalho — nado tem como eixo a producao da mais-valia. A produgio e a apropriagao do trabalho nao-remunerado, ao contrério do capitalismo, nao sao as tinicas condigdes para a reiteragao do sistema considerado, de suas re- lagGes sociais. Isso fica mais claro quando nos apercebemos de que 0 funcionamento do escravismo no pressupée a compra e venda da forca de trabalho, mas sim a usurpacdo; ou melhor, ele tem por pré-requisito © ato de apropriar-se da forca de trabalho alheia. Mas, como vimos, isso ndo € o bastante. Para que o escravismo se transforme em produgao escravista, imp6e-se uma organizacao social, onde escravo e senhor se Yejam enquanto tais, ou seja, € necessdrio um mundo hierarquizado. Somente a partir da consecucao desses dois atos, temos a possibilidade pie © apropriacao do sobretrabalho. Na verdade, sao esses dois \cretizam as relacdes sociais do escravismo. F neles, portan- *0, que temos as suas relacdes de producdo, ae —— de dizer infere-se que, no escravismo colonial, a ioe prod an igo Sobretrabalho nao é, simultaneamente, a produ- dente pas a relagoes sociais. Nao basta que o trabalho exce- ps do. Nave Que esteja garantida a recorréncia do destinado também a pe le, esse trabalho ndo-remunerado deve ser . s tipos de investimentos, que representem a recorréncia do mundo hierarquizado a que nos referimos.7® Nesse sen- tido, temos as aplicagdes de grandes fazendeiros e comerciantes de grOS- So trato na aquisic¢éo de extensos plantéis de escravos domésticos, no uso de foros de fidalguia e nas doag6es pias as instituig6es religiosas. $40 fendmenos da mesma categoria a Permissio dada pelos grandes fazen- deiros a lavradores pobres para se instalarem em suas terras, sem a con- 32 INTRODUGAO trapartida de uma renda fundiéria, ou ainda os investimentos dos co- merciantes de grosso trato na constituicéo de fortunas rentistas (aquisi- Gao de prédios urbanos), fato que lhes permitia se afastarem do mundo do trabalho. Por tltimo, temos o progressivo abandono dos grandes senhores de terras e de escravos do mundo dos negécios, ou seja, a sua nao-preocupagdo —a partir de um certo patamar de riqueza e poder — em ampliar indefinidamente os seus bens econdmicos. Esses fenémenos retratam uma sociedade onde a produgio e o uso mercantil do sobre- trabalho ndo sao fins em si mesmos; mais do que isso, esse sobretrabalho deve tomar outras diregdes, para que tal sistema possa se reproduzir. Asingularidade da sociedade considerada, por sua vez, nao se esgota no fato de a produgao mercantil do trabalho excedente nao garantir, simultaneamente, a produgio e a reprodugao do sistema. E isto por uma boa razdo: a reiteragio fisica desse sistema, de suas relagdes sociais, de- pendia da compra e venda de escravos, fenémeno que 0 transformava em uma economia mercantil, e 0 seu sobretrabalho, em um trabalho nao-remunerado, mercantilizado, que deveria retornar 4 produgao. Por conseguinte, ao contrério de outras sociedades pré-capitalistas (a exem- plo do feudalismo, com os seus camponeses dependentes), aqui as elites econémico-sociais devem investir na produgéo mercantil. Entre as con- seqiiéncias desse traco estrutural, temos a impregnacao da hierarquia social de elementos mercantis e a possibilidade de ascensio social, dada pela acumulacéo de riqueza mercantilizada, ou seja, através dela poder- se-ia adquirir uma posigéo de prestigio, os senhores de terras € de ho- mens poderiam quebrar e os comerciantes, adquirir status. Aparentemente, o que acabamos de dizer entra em choque com 0 que escrevemos um pouco antes. De um lado, o funcionamento da so- ciedade estudada pressupée a existéncia de uma hierarquia que nao se esgota no econémico e onde fragées do sobretrabalho devem assumir outras diregées, longe da produgéo. Isto nos teria permitido afirmar que estamos frente a um sistema cuja logica nao se confunde coma produgio de um trabalho néo-remunerado mercantilizado. De outro lado, vimos que a reprodugio fisica do escravismo colonial depende do carater mer- cantil de sua producdo e que, portanto, o trabalho excedente deve se 33 HOMENS DE GROSSA AVENTURA comportar como mercadoria, devendo, como tal, ser reinvestido na pro- dugio. Se, entretanto, nos detemos um pouco mais na natureza do processo de reproducao material de tal sociedade, essas contradig6es desapare- cem, No sistema apreendido, a sua recorréncia fisica depende da multi- plicagio de fazendas escravistas voltadas para o mercado. Olhando sob um outro aspecto, nota-se que esse mesmo movimento gera também os I senhores de homens, de terras € a hierarquia social a eles corresponden- te. Em outras palavras, a compra de cativos e de terras permitia ao “em- Presdrio” a aquisicao de direitos que outros homens livres nao possufam, comoa possibilidade de exercer o poder. Nao € inteiramente sem sentido ‘0 que Antonil escreve: Osersenhor de engenho é titulo a que muitos aspiram, porque traz consigo oer servido, obedecido e respeitado de muitos. E (...) bem se pode estimar ‘no Brasil o ser senhor de engenho, quanto proporcionalmente se estimam 05 titulos entre os fidalgos do Reino.7? Z| Mais de um século depois, Saint-Hilaire assim qualificava os senho- tes de homens e de terras: Aposse de um engenho confere aos lavradores (...) uma espécie de nobreza. 6 se fala com consideracio de um senhor de engenho, e vir a sé-lo é a ambigao de todos. Um senhor de engenho tem geralmente um aspecto que Prova que se nutre bem e trabalha pouco, Quando est4 com inferiores e mesmo com pessoas da mesma categoria, empertiga-se, mantém a cabega erguida ¢ fala com essa voz forte e tom imperioso que indica 0 homem acostumado a mandar em grande mimero de escravos.89 Por conseguinte, se encaramos o investimento na produgao sob esse ltimo aspecto, ele adquire um novo sentido, Reproduz uma hierarquia Social erguida em uma frégil sociedade civil, onde nem todos os homens 34 INTRODUGAO tém os mesmo direitos. Assim sendo, o investimento na produg4o mer- cantil, e com ela a propria producao do sobretrabalho, nao era motivado apenas pela possibilidade do lucro, mas tinha também outras raz6es. Tornar-se grande proprietario de terras e de homens representava tam- bém adquirir uma posigo de mando em uma sociedade estratificada. Talvez isso ajude a explicar por que alguns dos comerciantes de grosso trato transformaram a sua acumulacio mercantil em grandes fazendas escravistas. Nesse ponto, nota-se que a reiteracao da produgao no escra- vismo colonial (a sua forma de produzir sobretrabalho) confunde-se com a recorréncia de sua hierarquia social fundada no status. Um outro trago ligado As estruturas do escravismo diz respeito ao espaco ocupado pelo mercado interno. A economia colonial, como j4 vimos, se reproduz parcialmente em meio a um mercado interno nao- capitalista, 0 que permite que fracdes do sobretrabalho sejam retidas, no interior do espaco colonial, por um capital mercantil residente. Em outras palavras, a natureza ndo-capitalista do mercado analisado possi- bilita que parte do trabalho ndo-remunerado colonial assuma a forma de uma acumulagio mercantil. Pois bem, esse fendmeno tem, pelo me- nos, duas conseqiiéncias: @ primeira liga-se & hierarquia econdmico-social. Isto €, a propria forma de reprodugao da economia colonial redefine a hierarquia eco- némico-social, estabelecendo uma separagio entre os proprietérios dos meios de produgdo/mao-de-obra cativa ea elite econdmica. Os primei- ros seriam a aristocracia escravista-territorial (grupo social hegeméni- co), e a segunda consistiria nos comerciantes de grosso trato®! (nego- ciantes em geral envolvidos simultaneamente no trafico internacional de escravos, no abastecimento interno e nas financas coloniais); @ segunda, na verdade, é um problema: se parte do trabalho exce- dente colonial assume a forma de uma acumulagao mercantil, a repeticao desse fendmeno, mais cedo ou mais tarde, em tese, inviabilizaria a pré- pria continuidade fisica da economia, j4 que acumulagio mercantil sig- nifica desvio do sobretrabalho da produgao. Fato, portanto, desastroso 35 HOMENS DE GROSSA AVENTURA para uma economia cuja persisténcia depende de retorno do trabalho excedente, retido pela elite econdmica, A produgao. Esse problema é resolvido se nos lembrarmos de dois fenémenos: 1°) Estamos diante de uma légica econémica diferente daquela exis- tente no capitalismo. Aqui, o sobretrabalho deve garantir a recorréncia de uma hierarquia pautada no poder; quando o trabalho néo-remune- rado volta 4 produg&o, na forma de mais escravos € terras, esse retorno est4 permitindoa recorréncia fisica dessa hierarquia. Além disso, 0 baixo custo dos fatores de producdo (homense terras) permitiria aquele desvio de excedente sem que isso levasse a uma ruina imediata da economia (ver Capitulo IV). 22) Se € certo queo capital mercantil é uma categoria antediluviana, ¢ estd presente em toda e qualquer economia onde existe produgdo € Girculagéo de mercadorias, é certo também que os comerciantes, en- hanto grupo social, nao possuem exatamente essa existéncia “a-hist6- Tica”. Isto é, os comerciantes compéem sempre um grupo social histo- Ficamente definido, ou melhor, redefinido pela estrutura econémica e social em ue vivem. Desse modo, no escravismo colonial, esses nego- Gaantes esto inseridos em uma sociedade onde as relag6es de poder assumem 0 papel de relacdes de Produgio e na qual a mobilidade social significa tornar-se senhor de homens. A partir disso, torna-se mais facil ce 8 possibilidade do retorno do hucro mercantil (extrafdo da cir- '¢40) & producdo, na forma de sistemas agrdrios escravistas, ou seja, significa a ascensio social terras; nao obstante, com elite econémica, } 0 transformar-se em senhor de homens e de isso, ele perca dinheiro e deixe de integrar a 36 INTRODUGAO Nesse momento, chegamos a um dos pontos-chave de nosso trabalho, que é a continua recriagao, em parte pelo capital mercantil, de sistemas agrarios escravistas em 4reas de fronteira. Pelo que escrevemos hd pouco, verifica-se que essa recriacao deriva das estruturas internas da sociedade e economia coloniais. Mais do que isso, ela permite a reprodugao, no tempo, da sociedade colonial, ou seja, de uma sociedade onde, simulta neamente, prevalecem a hegemonia de relagées de poder e da acumula- ¢40 mercantil sobre a economia. Esse tipo de afirmagao pressupée, por sua Vez, que 0 sistema agrério agora montado, em seus tragos internos, seja capaz de responder aquelas necessidades gerais de reprodugao da sociedade e economia coloniais. E é isso que observamos quando nos detemos nas caracterfsticas basicas da agricultura cafeeira do Médio Vale do Parafba do Sul:82 © presenca de uma hierarquia econémico-social, profundamente diferenciada, baseada na propriedade de escravos e de terras; predominio de uma agricultura mercantil especializada, assenta- da numa frdgil divisio social do trabalho regional, fendmeno indicativo de que tal sistema consiste em um mercado para as formas de producao voltadas para o abastecimento (essa demanda é ainda maior quando nos lembramos de que, aqui, concentragio de riqueza, que € a de fazenda escravista, nao cria obstaculos & ampliagio de mercado); © precaria liquidez da agricultura e do comércio local, fendmenos que nos informam sobre a hegemonia de um capital mercantil de fora da regio, ou seja, parte do sobretrabalho local era apropriada por ne- gociantes da praca do Rio de Janeiro, permitindo, assim, a continuidade de um capital mercantil af situado. Desse modo, essa agricultura, por responder as necessidades de repro- dugéo da economia colonial, j4 nasce com um pecado original. Os tragos basicos lhe sao impostos, ou melhor, determinados antes mesmo de sua montagem. Por outro lado, entretanto, se isso é verdade, a propria continuidade do sistema agrdrio considerado redefine esses tragos gerais, passando a 37 HOMENS DE GROSSA AVENTURA subordin4-los segundo a sua prépria légica interna. E isso é visto, par- ticularmente, na relag&o que passa a existir entre acumulacao mercantil local e reprodugao da hierarquia econémico-social. Em outras palavras, a agricultura apreendida se reproduz em meio a um mercado interno ndo-capitalista, o que significa uma continua apropriagio, pelo capital mercantil, de parte do trabalhado excedente agricola. Essa histéria se modifica um pouco quando segmentos da elite agraria comecam a se utilizar de atividades mercantis (usurdrias e comerciais) para manter as suas posigdes na hierarquia econémica. A partir desse momento, fragdes da acumulagao mercantil passam a se converter em fortunas rurais, per- mitindo a recorréncia de um dado tipo de hierarquia agraria. £ a partir dos parametros apresentados que estruturamos os capi- tulos que compéem o nosso trabalho. No Capitulo I tentamos resumir os principais tragos dos modelos ex- Plicativos da economia colonial, propostos por Caio Prado Janior, Celso Furtado, Femando Novais, Ciro Flamarion Cardoso e Jacob Gorender.*3 Deve-se sublinhar que nao € nossa intengdo ou pretensio realizar uma exegese critica desses trabalhos. E isto por uma boa razdo. Tal empreen- dimento implicaria uma andlise minuciosa dos quadros tedricos que os influenciaram e das condig6es historiograficas em que foram escritos, ta- tefas que fugiram aos objetivos deste texto. Por outro lado, gostariamos, desde jd, de registrar o mérito de tais modelos, que, elaborados numa €poca em que a pesquisa de pés-graduagio e a profissionalizagao do his- toriador no Brasil davam os seus primeiros passos, mantém ainda 0 seu 180r, permitindo uma compreensio das linhas gerais do escravismo. __ Narealidade, utilizamos esses modelos como recurso para o enten- dimento dos pardmetros estruturais em que se daria a formacao da agri- cultura cafeeira no Médio Vale do Parafba fluminense. Nesse sentido, apés a caracterizacao de tais quadros explicativos, procuramos confron- té-los com a capitania do Rio de Janeiro, nos diltimos anos do século XVIII e primeiras décadas do século XIX. Embora esse perfodo seja classificado como de crise do Antigo Sistema Colonial, os autores que defendem essa tese s40 unnimes em concordar que tal crise € 0 processo de independéncia nao representariam uma ruptura radical com o passa- 38 INTRODUGAO do colonial, ou seja, nao implicariam uma mudanga de estruturas. Esse fato nos deu a tranqiiilidade necesséria para realizar aquele confronto. Entre as conclusdes a que chegamos no Capitulo I, temos a constata- a0 de que a plantation escravista fluminense estava longe de se constituir numa unidade auto-suficiente. Na verdade, ela se reproduzia em meio a uma vasta rede mercantil, que tinha por eixo a praca do Rio de Janeiro e se espalhava pelo Sudeste-Sul brasileiro. Por sua vez, essa rede mercantil era alimentada por diversas produgées coloniais de abastecimento nao necessariamente baseadas no trabalho escravo. No Capitulo II, trabalha- mos com essas produgées coloniais (as formas de trabalho que lhe dao vida), procurando perceber as suas relag6es com a plantation e, mais, com os resultados dessas relacées, ou seja, a constituico de um mercado inter- no colonial e a geragao de uma formagdo econémico-social. No Capitulo III, consideramos que o entendimento da economia colonial, enquanto formagio econdmico-social, redimensiona certas ca~ tegorias no seu funcionamento. Referimo-nos a nogao de mercado in- terno, acumulagées endégenas ¢ capital mercantil residente. Esse capi- tulo trata de tais categorias. Através delas, procuramos representar a légica da economia colonial, particularmente as suas possibilidades de ter uma relativa autonomia — seu processo de reprodugéo — frente & dependéncia externa. Estabelecidos os novos componentes da economia colonial do Su- deste, no Capitulo IV tentamos aprender alguns aspectos de seu movi- mento de reproducdo no tempo. Para tanto, escolhemos como refe- rencial a praca do Rio de Janeiro entre 1790 e 1840. A escolha dessa cidade deve-se ao fato de ela ocupar uma posi¢ao nevrélgica no mercado interno (ela € 0 contato entre a agroexportagao e as produgdes de abas- tecimento) e de ser o principal porto de exportagio e importacéo no periodo considerado. Esses fenémenos Ihe conferem o papel de princi- pal centro mercantil e financeiro do Sudeste, ou seja, de ponto de en- contro dos movimentos de reprodugio da economia colonial. 39 HOMENS DE GROSSA AVENTURA METODOS E TECNICAS DE PESQUISA Ao longo da presente pesquisa, trabalhamos com fontes de naturezas di- versas. Contudo, procuramos testar as nossas principais hipdteses atra- vés de fontes de cardter massivo e reiterativo. Nesse sentido, na apreen- sao do comércio colonial utilizamos fontes fiscais, e para o estudo da Cidade do Rio de Janeiro, recorremos a documentos cartoriais (in- ventérios post-mortem e escrituras piblicas — Arquivo Nacional). Adiante, detalhamos tematicamente o tratamento de cada uma dessa fontes. Mercado interno e economia colonial — Nos trés primeiros capitu- los, as nossas atencées se dirigiram, principalmente, 4 compreensao das bases de reprodugio da economia colonial, entendendo que essa seria mais do que uma plantation escravista, dependente do mercado inter- nacional. Nessa medida, procuramos demonstrar, particularmente, trés pontos: a) a expressividade das Producées voltadas para o mercado interno frente as exportacées — essa informaggo nos indicaria o peso das acu- m l Ses end6genas coloniais (reiteragao das produgées ligadas ao abas- tecimento interno) diante da agroexportacio; . piddarspiecnersen ene as flutuagées coloniais e as conjunturas ; onal — fendmeno que apontaria para a relativa autonomia da economia colonial, possuindo ela seu préprio ritmo de reproducao, frente as conjunturas das economias dominantes no mer- cado internacional; ¢) a existéncia de uma hierarquia €conémica como pano de fundo das operag6es feitas no mercado colonial (particularmente no mercado interno) —essa hierarquia demonstraria a Presenca de um restrito grupo de negociantes que, apropriando-se de parte do excedente, gerado nas acumulagées endégenas € na reiteracao da agroexportacio, controlaria © processo de reproducao da economia colonial (ou, pelo menos parte 40 INTRODUGAO dele), fato que o transformaria no grupo econémico dominante dessa economia. O primeiro ponto pode ser comprovado através de um trabalho serial dos valores (precos e receitas) gerados pelo abastecimento interno e pela agroexportago, ambos em relagao a Cidade do Rio de Janeiro. Uma das fontes que permite tal cruzamento é 0 Cédice de Embarcagées (Ar- quivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro), que retrata 0 comércio de cabotagem ao redor do porto carioca, apresentando 0 nome do comer- ciante-consignatério, o volume, o valor e a procedéncia das mercadorias entradas nesse porto. Entretanto, a falta de recursos e de tempo nao nos permitiu um levantamento sistemdtico dessa documenta¢4o, que se es- tende de 1797 a 1822. S6 nos foi possivel arrolar quatro produtos, entre 1799 ¢ 1822. Os escolhidos foram 0 agticar branco e mascavo, género voltado para a ex- portagdo; 0 trigo, mercadoria ligada ao abastecimento interno, dirigido particularmente para o consumo das camadas médias e superiores da so- ciedade colonial; o charque e a farinha de mandioca, alimentos que con- sistiam em itens bésicos da dieta das camadas populares e dos escravos. Procurando complementar essa fonte, levantamos as “Noticias ma- ritimas” da Gazeta do Rio de Janeiro (Biblioteca Nacional). Esse docu- mento, apesar de nao conter 0 volume e o valor dos produtos importa- dos pelo Rio de Janeiro, apresenta um maior niimero de entradas de navios do que o Cédice de Embarcacées, além de registrar 0 comércio internacional desse porto (inclusive o trafico de escravos). Procuramos sanar a falta de volume e valor mediante a tonelagem aproximada de cada tipo de embarcacao e da distancia entre os portos das éreas produ toras e 0 Rio de Janeiro. Por meio do cruzamento desses itens com 0 ntimero de comerciantes e de consignagées, foi-nos possivel perceber 0 peso das dreas produtoras de alimentos frente as agroexportadoras. Os anos levantados foram os de 1812, 1813, 1814, 1817 e 1822. Por tiltimo, o peso das acumulagées endégenas no interior da eco- nomia colonial fora também apreendido através da distribuica0 regional a HOMENS DE GROSSA AVENTURA dos escravos africanos desembarcados no Porto do Rio de Janeiro. Entre 1825 e 1830, entraram 212.180 cativos, dos quais 63.586 constam dos Registros de Safdas de Tropeiros do Rio de Janeiro (Arquivo Nacional), ou seja, 30,0% daquele total. Por registrar o destino dessas saidas de africanos, tal fonte nos d4 uma idéia do comércio interno de cativos, ou melhor, nos fornece indicios sobre a capacidade produtiva de cada area teceptora de escravos. Com isso, foi-nos possivel comparar as 4reas pro- dutoras de alimentos com as agroexportadoras. Para o segundo ponto (relativa autonomia das flutuagées coloniais frente as oscilagGes do mercado internacional), utilizamos 0 Cédice de Embarcagées (1797 a 1822), fonte que permite a construc4o de séries de pregos e volumes de produtos voltados para oabastecimento colonial a exportacao. Da mesma forma, consultamos as séries publicadas em trabalhos historiograficos. Assim sendo, para os pregos das exportag6es de aciicar recorremos 0s seguintes trabalhos: Arruda, José Jobson. O Brasil no comércio co- lonial, io Paulo, Atica, 1980; Brasil, Fundacao Instituto Brasileiro de meee ‘ ene Estatisticas hist6ricas do Brasil. Rio de Janeiro, land. of ‘den ER oe NW, Inquiry into the history of prices in Hol- utilizamos, hea ril. Quanto ao volume das exportagdes de acticar, cones ae. J seatieraces 9b. cit.; Brasil, Fundacao Instituto Bra- ficados no as fee op. cit. Quanto aos movimentos veri- to, tanto para os produtos agroexportadores como i . : sp : Para os ligados ao abastecimento interno, utilizamos as séries de entradas de embarcagSes no Porto do Rio de Janeiro (1797-1822), pre- sente em Brown, ; Larissa Virginia. Internal commerce in a colonial eco- ory: Rio de Janeiro and its hinterland, 1790-1822, tese de doutorado. Virginia, University of Virginia, 1986 (mimeo). Para esse tema, ainda Fecorremos a Johnson Jt, Harold B., “A preliminary into money, prices and wages in Rio de Janeiro, 1763-1823”. In: Alden, Dauril (org.) Co- lonial roots of modern Brazil, Berkeley, University of California Press, 1973, pp. 231-283. Por tiltimo, em relagéo ao trafico internacional de escravos, utilizamos as séries apresentadas, Para 0 periodo 1795 a 1830, por Florentino, Manolo Garcia. Notas sobre os negocios negreiros no 42 INTRODUGAO Porto do Rio de Janeiro (1790-1830). Relatério de Pesquisa, Niteréi, doutorado de Histéria, Universidade Federal Fluminense, 1988. Dispondo dessas séries, realizamos os seguintes cruzamentos: © pregos internacionais do agicar versus 0 seu volume de exporta- gées do Brasil. Com isso, pretendemos estabelecer o grau de sincronia das exportacées brasileiras frente 4s conjunturas do mercado interna- cional, nos perfodos de 1797 a 1807 (fase A de Kondratieff europeu) € de 1820 a 1830 (fase B de Kondratieff); © precos internacionais do agicar versus entrada de escravos no porto carioca (tréfico de escravos entre 1795 e 1830). Apreender o grau de sincronia entre as conjunturas do mercado internacional e a capaci- dade reprodutiva da economia escravista do Sudeste, sendo essa tiltima medida pela intensidade de reposi¢o de sua mao-de-obra; © precos/receitas internacionais do agicar versus precos/receitas do trigo, charque e farinha no Porto do Rio de Janeiro (1799.4 1811). Medir © comportamento das produgées coloniais de abastecimento frente as conjunturas internacionais; © volume do acticar versus volume de alimentos (charque, farinha e trigo) versus trafico de escravos no Porto do Rio de Janeiro, entre 1799 e 1822. Identificar o grau de sincronia entre as séries de trés setores que compéem a economia colonial. Os trés primeiros gréficos foram de curvas semilogaritmicas, j4 que a intengao era comparar o ritmo de crescimento dos elementos analisados. © iiltimo ponto diz respeito ao estudo da estrutura do mercado colonial, particularmente da sua hierarquia, das suas praticas especula- tivas e monopolistas. Esses temas foram trabalhados em trés setores do comércio colonial: 0 comércio maritimo, através do Cédice de Embar- cagées (1799 a 1822) e das “Noticias maritimas” da Gazeta do Rio de Janeiro (1812, 1813, 1814, 1817 e 1822); 0 comércio Rio—Minas Ge- rais, pelo Registro do Presidio do Rio Preto (Registros de Entradas e Safdas de Tropeiros do Rio de Janeiro, 1824 a 1826, Cédice 419, Ar- 43

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