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Luiz Alfredo Garcia-Roza FREUD e o inconsciente 24* edicdo &@ Y ZAHAR Rio de Janeiro Copyright © 1994, Luiz Alfredo Garcia-Roza Copyright desta edigio © 2009; ‘Jorge Zahar Editor Ltda. rua México 31 sobreloja 20031-144 Rio de Janeiro, RJ tel. (21) 2108-0808 / fax: (21) 2108-0800 ‘e-mail: jee@zahar.com.br site: wwwzahar.com.br Todos os direitos reservados. ‘A reprodugdio ndo autorizada desta publicago, no todo ‘ouem parte, consttui violaglo de direitos autorais. (Lei 9.610/98) Grafia atualizada respeitando 0 novo Acondo Ontogrifico da Lingua Portuguesa Eadigdies anteriores: 1984, 1985, 1987, 1988, 1989, 1991, 1992, 1993, 1994 (duas ed.), 1995, 1996 (duas ed.), 197, 1998, 1599, 2000, 2001, 2002, 2004, 2005, 2007, 2008 ‘Capa: adaptada da arte de Miriam Struchiner ustragio da capa: Hulton-Deutsch Collection/Corbis/LatinStock (CIP-Brasil, Catalogagao na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ Garcia-Roza, Luiz Alftedo, 1936- G211f _ Freude oinconsciemte/ Luiz Alfredo Garcia-Roza, 24.ed. -24.0d. ~Rio de Janciro: Jorge Zahar Ed., 2009. Inclui bibliografia ISBN 978-85-7110-003-9 1. Freud, Sigmund, 1856-1939. 2. Psicanzlise. 3 Inconsciente. I. Titulo. DD: 150.1952 09-4413 CDU: 159.9642 PULSAO E REPRESENTACAO Os dois capitulos anteriores foram dedicados a dois textos que ocupam um lugar privilegiado dentre os escritos de Freud: A interpretacdo de sonhos ¢ 0s Trés ensaios sobre a teoria da sexualidade. Qualquer que seja a importineia atribuida aos demais textos que compdem os escritos freudianos, © essa importinei: deve nem pode ser minimizada, permanece o Fato de que os dois textos citados constituem 0s pilares sobre os quais se assenta a teoria psicanalitica. Isso signifi desejo € a pulsdo, € que a leitura de ambos fornega uma teoria acabada em seus minimos detalhes. Dizer que o primeiro constitu o discurso do desejo enquanio o segundo constitui o discurso da pulsio nao implica afirmar que © desejo e a pulsio se revelam neles com toda a sta transparéneia teérica, mas que ambos se insinuam e se ocultam esses textos paraelos € complementares. Os capitulos que se seguem se propéem a fornecer uma anilise mais detalhada de conceitos que, embora tenham sido langados em A interpretagdo de sonhos © nos Trés ensaios, nio reccberam desses textos a clareza recesséria para seu pleno entendimento. Sa0 eles alguns dos conceitos fundamentais da teoria psicanalitica e que importam particularmente ao presente trabalho. Varios desses con. tos, como os de pulsio, reealeamento ¢ inconsciente, foram desenvol- vidos e mais explicitados nos chamados escritos da Metapsicologia. Antes de entrar na andlise do primeiro desses conceitos — 0 conceito de pulsio — gostaria de dizer alguma coisa sobre a metapsicologia freudiana, Os artigos da Metapsicologia representa a tentativa mais concentrada de Freud de esclarecimento das bases te6ricas sobre as assentada a psicanilise. Os cinco artigos que compdem © porém, que eles esgotem 0 que Freud tem a dizer sobre o Pulsio ¢ Representagéo 113 conjunto — As pulsdes ¢ seus destinos, O recalque, 0 inconsciente, Suplemento metapsicolégico a teoria dos sonhos ¢ Luta e melancolia — fuzem parte de uma coletinea de 12 artigos da qual os outros sete se perderam. Todos os artigos restantes foram escritos no ano de 1915 quando Freud teve sua clinica bastante reduzida em decorréneia da eclosao da Primeira Guerra Mundial. O termo “metapsicologia” possui, em Freud, deis sentidos: © primeiro, mais explicito, diz respeito A metapsicologia entendida como um conjunto de modelos conceituais que constituem a estrutura teérica da psicandlise; um segundo sentido € fornecido pelo proprio Freud em algumas cartas dirigidas a Fliess e numa passagem de A psicopa- tologia da vida cotidiana, onde o termo & empregado pela primeira vez (Freud, ESB, v. VI, p. 304). Esse outro sentido diz respeito as relagdes entre a metapsicologia ¢ a metafisica (a semelhanca dos termos nfo € casual). Na passagem de A psicopatologia da vida cotidiana, {que uma grande parte da visio mitol6gica do mundo, cujo acance se estende ‘até as mais modemas religides, nada mais é do que psicologia projetada ‘no mundo externo. O reconhecimento obscuro (a percepeio endopsiquica, por assim dizer) de fatores psiquicos € relagdes no inconscisnte se espelham — € dificil exprimir isto em outros termos, ¢ aqui a analogia com a paranoia ‘tem que nos ajudar — na constragao de uma realidade sobrenatural, a qual cesta destinada, em sentido contrétio, a ser retransformada pela cigneia em psicologia do inconsciente. Poder-se-ia ousar explicar desse modo 0s 1 ‘do paraiso e do pecado original, de Deus, do bem e do mal, da imorta etc., ¢ transformar metafisica em psicologia. Essa passagem, além de representar uma tentativa de elaboragao de uma explicagdo cientitica dos mitos, das crengas © das religides, representa também uma velha aspiracdo de Freud, que era chegar ao conhiecimento filos6fico. “Nos meus anos de juventude”, escreve ele a Fliess, “a nada aspirei tanto como ao conhecimento filoséfico, ¢ estou a realizar esse voto, pasando da medicina & psicologia” (Carta de 2-3-1896). E, porém, no artigo O inconsciente que o termo metapsicologia vai receber uma definigdo precisa: Proponho que, quando tivermos conseguide descrever um proceso Psiquico em seus aspects dinimico, topogrifico e econémico, passemos 4 Freud ¢ 0 Inconsciente anos referir a isso como uma apresentacso metapsicoldgica. (ESB. v. XIV. p. 208) Tomando-se por base essa definigdo, outros artigos de Freud, além dos cinco integrantes do projeto original, podem também ser consi- derados como metapsicolégicos: o Projeto de 1895, 0 capitulo VII de A interpretagao de sonhos, Formalagaes sobre os dois principios do funcionamento psiquico (1911), Uma nota sobre 0 inconsciente em psicandlise (1912), Sobre o narcisismo: uma introducdo (1914), Além do principio de prazer (1920), O Ego e 0 Id (1923) e Exboco de psicandlise (1938). A melapsicologia pretende, portanto, apresentar uma descrigao minuciosa de qualquer proceso psiquico quando enfocado sob os pontos de vista de sua localizacdo em instincias (ponto de vista t6pico). da distribuigao dos investimentos (ponto de vista econdmico) © do conflito das forcas pulsionais (ponto de vista dindmico). Em seu relato biogritico sobre Freud, E. Jones refere-se a esses artigos como tendo sido uma tentativa de sintese de todo 0 trabalho realizado por Freud; um fechamento final de sua obra. Freud com- pletava, nessa 6poca, 60 anos e o pensamento da morte the era cada vez mais frequente. Além do mais, ele acreditava supersticiosamente que morreria aos 62 anos, Nessa mesma época, decidiu encerrar as conferéncias que fazia anualmente na Universidade. Tudo levava a confirmar que Freud acreditava estar no fim da vida, Dai a grande sintese oferecida pela metapsicologia. O certo & que nao passava pela ibeca de Freud a ideia de viver ainda um quarto de século, assim como sequer vislumbrava as profundas transformagGes que a psica- ise ainda sofreria, por obra sua, nesse perfodo. 0 CONCEITO DE PULSAO. “A teoria das pulsdes é, por assim dizer, nossa mitologia”, escreve Freud (ESB, v. XXII, p. 119). Essa frase expressa adequadamente 0 que Freud coloca logo na primeira pagina do seu artigo As pulsdes e seus destinas, a saber: 0 fato de que, apesar de uma teoria cientifica emergir a partir de uma série de fatos empiticos (no caso de Freud, de suas observag6es clinicas), ela implica um conjunto de conceitos que nao sio retirados dessas observacdes, mas que Thes so impostos 8 partir de um lugar (eOrico. Estes nao sto, pois, nogoes deseritivas, mas construtos tesricos que nao designam realidades observaveis ou Pulsdo e Representagao 15 mesmo existentes. S40 puras construcdes tesricas ou, se preferirmos, fiogdes te6ricas que permitem e produzem uma inteligibilidade distinta daquela fornecida pela descrigo empirica. Esses conceitos nao des- crevem 0 real, eles produzem o real; ou, se quisermos, eles permitem uma descri¢do do real segundo um tipo de articulaco que ndo pode ser retirado desse préprio real enquanto “dado”. Sdo, portanto, aulénticas ficgdes cientificas. Esse & 0 caso da pulsdo (Trieb) em Freud: ela nunea se da por si mesma (nem a nivel consciente, nem a nivel inconsciente), ela sé € conhecida pelos seus representantes: a ideia ‘Vorstellung) ¢ 0 afeto (Affekt). Além do mais, ela & meio fisica e mein psiquica, Daf seu carter “ mitolégico” . Antes de mais nada, convém afastar um confuso que, apesar de estar mais do que esclarecida para os conhecedores da literatura psicanalitica, pode se constituir num entrave sério para o leitor leigo & a que diz, respeito aos termos “pulsdo” e “instinto”. O termo empregado por Freud, no original alemao, & Trieb, que possui um significado distinto do termo Jnstinkt. Ambos os termos existem em lingua alema e o emprego. por parte de Freud, do primeiro, deixa bem claro que ele pretende muito mais acentuar a diferenga entre ambos do que identificd-los. A confusdo nao deve ser creditada a Freud, mas a James Strachey, que ao traduzir as Gesammelte Werke com vistas & elaboragdo da Standard Edition preteriu waduzir Trieb por instinct (em inglés). Ora, Instinct seria a traducio adequada para Instinkt e nao para Trieb, cujo significado corrente se aproxima muito mais de “impulso” do que de “instinto” . No prefacio geral a Standard Edition, Strachey faz a defesa de sua tradugdo e podemos concordar com ele que Freud deixa bem clara a definigao do termo Trieb, Ocorre, porém, que as obras de Freud sio atualmente mais difundidas pela Standard Edition do que pelas Gesammelte Werke © se 0 leitor do texto original sabe muito bem di tradugo inglesa ou das divulg: pode serfeitamente ficar inguir Trieb de Instinkt, o leitor da Ses que a utilizam como referéneia ipalhado com o termo instinct Em portugués, ficou consagrada a tradugao de Trieb por * pulsao” (assim como em francés: pulsion), no lugar de “instinto”.' A diferen 1A Edicdo Standard Brasileira (Ed. Imago) mantém o termo “i porém, que a opsio foi correta, jé que ela se propde como uma tradugio da Standard Edition inglesa feita por J. Strachey ¢ no das Gesammelte Werke ou dos Gesammelte Schrifien. 116 Freud ¢ 0 Inconsciente fundamental entre a pulsio (Trieb) e o instinto (Instinkt) & que este tiltimo, além de designar um comportamento hereditariamente fixado, possui um objeto especifico, enquanto a pulsdo no implica nem comportamento pré-formado, nem objeto especifico. E exatamente a variagdo quanto ao objetivo e ao objeto que se vai constituir num dos pontos centrais da teoria pulsional Em defesa dz Strachey, poderiamos argumentar que o emprego que a ciéncia faz em um termo é um emprego conceitual e nao nocional, isto é, que o termo recebe um significado que Ihe é conferido pela teoria e nao pelo uso cotidiano que se faz dele. E na medida em que Freud precisa conceitualmente 0 termo Trieb, e que Suachey reproduz. essa conceituacdo para o termo instinct, o problema estaria resolvido. Mas se isso salva a reputagao do tradutor inglés, nao elimina a confusdo que até hoje ¢ feita pelo leitor menos prevenido. O melhor, portanto, € comegarmos pela definigdo dada por Freud no inicio de A pulsdo e seus destinos Pulsao, diz, Freud, é “um conceito situado na fronteira entre 0 mental e 0 somético”; ou ainda, “é o representante psiquico dos estimulos que se originam dentro do organismo e alcangam a mente” (ESB, v. XIV, p. 142). Essas duas definigdes apresentadas por Freud hum mesmo pardgrafo trazem o inconveniente de confundir a pulsao enquanto representante dos estimulos internos, com os representantes psiquicos da pulsio. No artigo O inconsciente, Freud afirma que uma pulsiio nunca pode tornar-se objeto da consciéncia e que mesmo no inconsciente ela ¢ sempre representada por uma ideia (Vorstellung) ou por um afeto (Affekt). Portanto, uma coisa & a pulsio, outra coisa 60 representante psiquico da pulsdo (Psychischereprélsentanz), e outra coisa ainda é a pulsdo enquanto representante de algo fisico. Para evitar confusdes futuras, convém precisarmos a distingao que Freud estabelece entre a pulsio e seus representantes, principal- mente a distingéo entre Vorstellung ¢ Repréisentanz ou Reprdsentant. Jd vimos que uma pulsio nunca se dé como tal, nem a nivel consciente nem a nivel inconsciente; ela s6 se di pelos seus representantes: 0 representante ideativo (Vorstellungrepriisentant) & o afeto (Affekt). Ambos sao os representantes psiquicos da pulsio (Psychischereprat- sentanz). Ocorre, porém, que 0 termo Vorstellung & um termo consagrado no vocabulario filos6fico alemio para designar: 1) aquilo que esta presente no espirito (por oposigdo a “coisa”; 2) a pereepeao de um objeto; 3) a reprodugao da percepgio, isto é a recordacio; 4) 0 Pulsdo e Representaciio 7 contetido de um ato de pensamento, Em todos esses casos, a Vorstellung designa uma realidade psiquica por oposicao a algo que nao & psiquico. Em portugués, a tradugtio mais adequada para Vorstellung seria, nesse caso, “representagao”. No entanto, Freud distingue a Vorstellung (representagdo) do afeto, e designa a ambos como representantes psiquicos da pulsio, Assim, 0 afeto é uma representagio da pulsio sem ser uma Vorstellung. No sentido de tornar mais claro o significado dos varios termos empregados por Freud em torno da nogio de representacdo, proponho a seguinte distingdo: 1. Representacao (Vorstellung) — & um dos representantes psiquicos da pulsio, Enquanto tal, opde-se ao afeto (affekt). Nesse sentido, © termo nao é empregado por Freud tal como foi consagrado pela filosofia alema. Nao se trata apenas de um correlato a nivel psiquivo do objeto, mas de uma inscrigio desse objeto nos sistemus mnémicos, Veremos mais adiante como Freud vai distinguir a“ representagao da palavra” ea “representacao da coisa”, ambos entendidos como representacao (Vorstellung). Representante psiquico (Psychischereprasentanz) — 6 a “repre- sentagio” psiquica da pulsio, Abarca tanto © representante ideativo (Vorstellungreprasentanz) como o afeto (Affekt). Esse termo é empregado por Freud com um sentido as vyezes duplo algumas vezes ele o utiliza para designar a propria pulsao enquanto representante das excitagdes somiticas, ¢ outras vezes ele o emprega para designar 0 representante ideativo e 0 afeto enquanto representantes da pulsio. Representante pulsional (Triebrepritsentanz) — Freud emprega esse termo ora como sindaimo de representante ideativo, ora como sindnimo de representante psiquico. De qualquer forma, designa uma expresso psiquica da pulsio, 4. Representante ideativo (Vorstellungrepriisentanz) — & um dos registrns da pulsdo no psiquismo (0 outro ¢ o afeto): o representante ideativo é o que constitui, propriamente, o contetido do inconsciente (pois 0 afeto ndo pode ser inconsciente) e também aquilo que constitu 0 inconsciente, jé que & sobre ele que incide © proceso de recalcamento. Como veremos, uma pulsio nao pode ser recaleada: ‘0 que & recaleado é 0 seu representante ideativo. 5. Afeto (Affekt) — € 0 outro registro em que se faz a representa psiquica, Ele é a expresso qualitativa da quantidade de energia pulsional. O afeto e o representante ideativo sto independentes. 18 Freud ¢ 0 Inconsciente Os destinos do afeto sdo diferentes dos destinos do representante ideativo, Nao se pode, a rigor, falar em “afeto inconsciente” ; a nivel inconsciente o afeto tem de se ligar a uma ideia (repre sentante ideativo). Convém assinalar que essas indicagdes so apenas iniciais; nao pretendem esgotar 0 sentido que cada um desses termos possui. Devem ser tomadas como guias neste inicio de anélise dos conceitos meta- psicoldgicos. Voltando & definigdo que Freud nos oferece da pulsio logo nas primeiras paginas de A pulsdo seus destinos: “Uma pulsio nos aparecerd como sendo um conceito situado na fronteira entre o mental € © somitico, como o representante psiquico dos estimulos que se originam dentro do organismo e alcancam a mente (...)." Verificamos que ele aqui identifica a pulsio com seu representante psiquico, 0 mesmo ocorrendo em duas outras definiges anteriores. Assim, no final da andlise feita sobre o caso Schreber (Freud, ESB, v. XI p. 99) ele escreve: “Consideramos a pulsio como sendo o conceito ituado na fronteira entre © somitico © o mental e vemos nele o representante psiquico de foreas orginicas™ is", © num acréscimo feito em 1915 aos Trés ensaios sobre a sexualidade (Freud, ESB, v. VI, p. 171): “Por ‘pulsiio” deve-se entender provisoriamente 0 repre- sentante psiquico de uma fonte endossomitica (...)”. Ora, fica bastante claro que nessas irés definigdes que Freud oferece da pulsao, esta & identificada com o representante psiquico. Porém, vimos também que no artigo O inconsciente (Freud, ESB, v. XIV, p. 203), ele afirma que “uma pulsio nunca pode tornar-se objeto da consciéneia — s6 a ideia (Vorstellung) que a representa (...)” & que, “mesmo no incon ciente, uma pulsio nao pode ser representada de outra forma a nao ser por uma ideia”. Nesse caso, fica evidente que temos de distinguir a pulso daquilo que a representa, Como ficou assinalado acima, a confusdio maior decorre da nao distingdo entre a pulsdo enguanto representante de fontes sométicas € 08 representantes psiquicos da pulsio. Se, por um lado, a pulsio representa psiquicamente as excitagdes emanadas do interior do corpo, por outro lado ela é representada pelos seus representantes psiquicos: a ideia (Vorstellung, simplesmente, ou Vorstellungrepreisentanz) & 0 ateto (Affekt). O proprio titulo do artigo inicial da Metapsicologia — A pulsao ¢ seus destinos (Trieb und Triebschicksale) — pode estar Sujeito a reparos, pois trata-se mais do destino dos representantes psiquicos da pulsto do que do destino da pulsao enquanto tal. Pulsdo e Representaciio 119) Comecemos por examinar o conceito de pulsto em fungio de sua fonte, sua pressdo, seu objetivo e seu objeto, pois & com respeito a esses referenciais que poderemos estabelecer algumas diferencas profundas entre a concepeao psicanalitica e a concepedo psicolégica da subjetividade. A fante (Quelle) da pulsio & corporal, no psiquica; € um “processe somitico que ocorre num 6rgao ou parte do corpo e cuja excitacdo é representada na vida mental pela pulsio” (Freud, ESB, v. XIV, p. 143). Esse & 0 aspect a que me referi hi pouco quando falei da pulsdio enquanto representando algo fisico, 0 que é diferente de falarmos dos representantes psiquicos da pulsio. Temos de distinguir dois empregos que Freud faz do termo “fonte”. O primeiro deles refere-se as fontes da pulsdo sexual e nesse caso o termo se reveste de alguma ambiguidade pelo mémero ¢ variedade das fontes apresentadas por ele. Assim € que nos Trés ensaios sobre a sexualidade Freud apresenta como fontes da sexua- lidade infantil, além da excitagdo das zonas erégenas, as excita mecénicas, a atividade muscular, 0s processos afetivos ¢ até mesmo a concentragao da atengdo numa tarefa intelectual (ESB, v. VII, p. 206-11). A ambiguidade de que se reveste esse primeiro emprego da nogao de fonte da pulsao (Triebquelle) esta em que Freud mistura sob a mesma cubrica fontes internas e fontes externas (“indiretas” ), 0 que coloca em questao a afirmacio de que a pulsio se origina sempre de uma fonte endégena, Um segundo emprego do termo “Fonte” € 0 que esta contido em As pulsoes e seus destinos, Aqui, Freud declara que as pulsdes sdo inteiramente determinadas por sua origem numa fonte somitica (ESB, v. XIV, p. 144), entendendo-se por “fonte somitica” ou “fonte organica” tanto o rgdo de onde provém a excitagdo como © proceso fisico-quimico que constitui essa excitagdo. De qualquer mancira, Freud afirma que o “estudo das fontes das pulsdes esta fora do ambito da psicologia” (op. cit., p. 143). Esta tltima frase poderia nos levara uma retirada do interesse pela questo da fonte da pulsio. No entanto, pelo que jd foi visto anteriormente com relacio ao conceito de apoio (Anlehnung), devemos insistir mais sobre o tema, Num acréscimo feito em 1915 aos Trés ensaios sobre a sexua- lidade (ESB, v. VII, p. 187), Freud escreve o seguinte: “Nosso estudo do ato de sugar o dedo ou sugar sensual j4 nos deu as trés caracte- risticas essenciais de uma manifestagao sexual infantil. Em sua origem ela se apoia em uma das funcdes sométicas vitais (...).” O emprego que Freuc faz aqui do termo “apoio” é bastante preciso. Nao se trata 120 Freud e 0 Inconsciente do apoio do recém-nascido na mae, mas do apoio da pulsdo sobre ‘uma das fungdes somiticas vitais”, isto 6, sobre o instinto. ‘A nogao de apoio nao deve ser considerada como sem impor- tancia, nem deve ser desvirtuada no sentido de ser aplicada apenas no que diz respeito & relagdo do recém-nascido com a mie. E ela a chave para a compreensio do conceito de pulsao. Jé vimos, e nao é demais repetir, que o que caracteriza 0 apoio & 0 fato de as pulsdes sexuais estarem ligadas, em sua origem, as pulsdes de autoconservagao © cujo exemplo mais expressivo € 0 da atividade do lactente: paralelamente a satisfacdo decorrente da ingestao do alimento, dé-se a excitacdo dos labios e da lingua pelo peito, 0 que provoca um outro Lipo de satisfagdo que, apesar de apoiar-se na satisfagao da necessidade instintiva, nao 6 redutivel a ela, Essa segunda satisfacdo 6 de natureza sexual, E, portanto, um desvio em relagdo & fungao, o que constitui a pulsdo. Nao sem razio que Jean Laplanche (1973) emprega 0 termo clinamen, retirado da fisica epicureia, para caracterizar esse desvio do instinto que é constituinte da pulsao, A questao sobre a fonte da pulsio encontra, pois, a sua resposta no apoio que esta tem sobre 0 instinto. A pulsdo 6 o instinto que se desnaturaliza, que se desvia de suas fontes e de seus objetos especiticos: ela é o efeito marginal desse apoio-desvio. A fonte da pulsdo é, pois, 0 instinto. O fato de se estabelecer essa articulagao entre a pulsio ¢ 0 instinto nao implica de forma alguma uma livenga para que se adote uma atitude reducionista em psicandlise. A pulsio de fato se apoia no instinto, mas nao se reduz a ele. O que o conceito de étayage assinala exatamente que o apoio é 0 momento de constituigao de uma diferenga, que o momento do apoio é ao mesmo tempo um momento de ruptura. Dessa forma, 0 apoio marca nao a continuidade entre 0 instinto a pulsio, mas a descontinuidade entre ambos. O reducionismo seria, aqui, uma atitude (e6rica grosseira que implicaria a propria negacdo do conceito de pulsao. A pressdo (Drang) € a segunda dimensao da pulsdo. “Por pressio de uma puso”, escreve Freud, “compreendemos seu fator motor, a quantidade de forga ou a medida da exigéncia de trabalho que cla apresenta” (ESB, v. XIV, p. 142). Essa exigéncia de trabalho, o carter ativo da pulsio, ocorre mesmo quando falamos em “ pulsdes passivas” . A rigor, nao existe pulsio passiva, mas somente pulsdes cujo objetivo & passivo como, por exemplo, no caso do exibicionismo ou do masoquismo. Toda pulsio é ativa © a pressdo € a propria atividade da pulsio, seu fator dindmico, Pulsdo ¢ Representacao 121 £ esse registro da pulsio que vai possibilitar uma elaborago conceitual mais precisa dos pontos de vista dindmico ¢ econémico em psicanilise. Desde os primeiros escritos de Freud, sobretudo a partir do Projeto de 1895, essa “exigéncia de wabalho” a marea distintiva do funcionamento do aparelho psiquico. A pressio & 0 elemento motor que impele © organismo para a acio especffica responsivel pela eliminagao da tensio. 0 terceiro elemento em relago ao qual Freud define a pulsdo & © objetivo (Ziel). O objetivo da pulsdo & sempre a satisfagdo, sendo que “satisfagdo” 6 definida como a reducdo da tensao provocada pela pressio (Drang). Em termos econdmicos, a satisfacdo 6 obtida pela descarga de energia acumulada, regulada pelo prineipio de constinci Este 6 porém, 0 objetivo geral ou objetivo dltimo da pulsio, em relagio ao qual podemos distinguir objetivos especificos ligados a pulsdes especiticas, assim como podemos distinguir também objetivos intermedidrios. Os objetivos especiticos nao sio, porém, to espect ficos como 0 termo sugere. Antes da descoberta da sexualidade infantil, Freud via o objetivo da pulsdo sexual como andlogo ao da busca de alimento no caso da fome. Nesse caso, 0 objetivo era 0 ato sexual genital adulto. A partir dos Trés ensaios © da descoberta da sextialidade infantil com suas pulsdes parciais, a situacdo se altera, A especificidade do objetivo passa a ser dependente tanto da fonte quanto do objeto, sendo que este tiltimo, como veremos, “é 0 que ha de mais varidvel na pulsdo” (op. cit., p. 143). Quanto aos objetivos intermedidrios, s4o aqueles que possibilitam 0 atingimento do objetivo him. Apesar da importincia de que se reveste a nocdo de objetivo da pulsio, ela nao é tratada de maneira univoca pelos tedrivos da psicandlise. Se aproximamos a nogo de objetivo & nogao de fonte da pulsao, fazendo do objetivo uma “acao especifica” por “apoio” a fonte instintual, a nogio de objetivo fica bastante empobrecida (cf. Laplanche/Pontalis, 1970, p. 407): se, por outro lado, aproximamos a nogio de objetivo da nogao de objeto da pulsio, corremos o risco de transformar a teoria psicanalitica numa teoria do objeto, contra- riando dessa maneira o ponto de vista econdmico que implica uma prevaléncia do objetivo sobre 0 objeto. A solugao desse dilema pode estar na distinedo feita por Freud entre pulsdo sexual e pulsto de autoconservagdo. Enquanto 0 objetivo de uma pulsio de autoconser- vacie seria uma “acdo espeeifica”, isto é, aquela que eliminaria a tensio ligada a um estado de necessidade, 0 objetivo de uma pulsio 122 Freud ¢ 0 Inconsciente sexual seria menos especifico por ser sustentado e orientado por fantasias. Finalmente, © objeto (Objekt) da pulsio. Freud define 0 objeto de uma pulsZo como “a coisa em relacdo A qual ou através da qual a pulsic & capaz de atingir seu objetivo”, e completa, “é 0 que hd de mais va-idvel numa pulsio” (ESB, v. XIV, p. 143). Logo na primeira pagina dos Trés ensaios sobre a sexualidade, ao distinguir “objeto sexual” de “objetivo sexual”, ele afirma que o objeto sexual é a pessoa de quem procede a atragao sexual; no entanto, algumas paginas adiante, reconsidera a afirmacao inicial e conclui que havia estabele- cido um laco muito estreito entre a pulsdo ¢ o objeto ¢ propde afrouxar ‘os lagos que os unem, “Parece provavel”, escreve ele, “que a pulsiio sextial seja, em primeiro lugar, independente de seu objeto” (ESB. v. VIL. p. 149). O objeto passa a ser concebido, portanto, como um meio para que um fim seja atingido, enquanto o fim (objetivo) & de certa forma invaridvel (a satisfacdo), 0 objeto “é o que ha de mais varidvel Além do mais, inicialmente Freud colocava 0 objeto como sendo uma. pessoa, isto é, algo que, no sentido cléssico do termo objeto, apre- sentava uma “objetividade” (por oposicAo ao que era subjetivo), uma coisa individualizada e completa. Posteriormente, a nogio de objeto Vai-se aplicar tanto a outras pessoas como a propria pessoa, © nao apenas a pessoas inteiras, mas também a partes do corpo de uma pessoa. Finalmente, esse objeto pode ainda ser real ou fantasmatico. Essas indicacdes so expressivas da complexidade da nocao de ‘objeto em psicandlise. O sentido inicial do termo, isto é& aquele que € assinalado nos Trés ensaios sobre a sexualidade, permanece valido apesar das objecdes que foram contra ele levantadas — sobretudo por aqueles que enfatizam a nogdo de “relagdo objetal”. Nesse primeiro sentido, 0 objeto da pulsdo é um meio para o atingimento do objetivo que € a satisfacao, Ele pode ser uma pessoa, uma parte de uma pessoa, pode se* real ou pode ser fantasmitico, Perde assim toda e qualquer especifividade, e € sob esse prisma que Freud pode afirmar que ele & © que hi de mais varidvel na pulsio. Nessa primeira acepeao, a nogdo de objeto nao se opde aquilo que & subjetivo; no se trata de uma “objetividade transcendente” que se contrapée a subjetividade, mas de algo que tanto pode ser uma pessoa determinada (“ objetiva” ) como pode se? o equivalente simbélico de uma parte do real Um segundo sentido sob 0 qual aparece a nogio de objeto & aquele cue poderia ser assinalado pelo termo “objetal” — tomando-se © cuidado de nao confundir “objetal” com “objetivo”. O objeto no Pulsito e Representagéio 1 seu sentido objetal ndo seria mais um objeto parcial mas preferencial- mente uma pessoa que Seria amada (ou odiada). Esse segundo sentido da nogdo de objeto coloca em questo no apenas a relagdo do objeto com 0 objetivo, como coloca sobretudo 0 modo de relacao da pulsao com seu objeto ¢ mais especificamente do individuo com o seu mundo. Dessa maneira, a pulsio oral implica no somente um objeto, mas sobretudo um modo de relacdo objetal: a incorporagdo. Os Trés ensaios sobre a sexualidade deram éntase a distingio entre as fases pré-genitais da libido, que se caracterizavam por um modo de relacto objetal (autoerdtica, nareisica, objeto parcial ete.), ¢ a fase genital, onde ocorre uma escolha de objeto. Nesta fase, o objeto ndo é mais um objeto parcial, mas uma pessoa (ou algo que funcione como um objeto total). Nesse sentido, falar-se-ia ndo mais em objeto da pulsao, mas em objeto de amor. Um terceiro sentido do termo “objeto” & 0 que o aproxima do sentido tradicional empregado pela teoria do conhecimento: é 0 objeto entendido nao como “objetal”, mas como “objetivo”, como o corre- lato do sujeito e que apresenta caracteristicas fixas e permanentes (cf. Laplanche/Pontalis, 1970, p. 407). Aqui, “objeto” opde-se ao que & bjetivo © seu emprego nos textos freudianos nao é um emprego tedrico conceitual. E exatamente o abandono da nogdo de objeto, tomada neste tiltimo sentido, 0 que caracteriza a perspectiva psicana- litica na medida em que ela se afirma nao como uma problematica da consciéncia no interior da qual se produziu a oposigao sujeito-ob- eto, mas como uma ruptura em relagao a essa problematic. “Objeto” par Freud nao & aquilo que se oferece em face da consciéneia, mas Jgo que s6 tem sentido enquanto relacionado 2 pulsdo e ao incons- ciemte. PULSOES DO EGO E PULSOES SEXUAIS. Apés a andlise da distingZo feita entre Fonte, pressio, objetivo e objeto da pulsdo, deverfamos retomar a proposta do artigo de Freud, que é a de analisar “os destinos das pulsdes”. Antes, porém, convém assinalar que uma das coisas que Freud deixa bem claro é que ele nado se esta referindo apenas as pulsdes sexuais, mas que sua anilise incide sobre outro grupo de pulsdes que ele denomina pulsdes do ego ou pulsdes de Gutoconservagao. Essa distin. 9 deixa de ser embaragosa, pois tudo levava a crer que apenas as pulsdes sexuais poderiam autentica~ 124 Freud e 0 Inconsciente mente ser denominadas “ pulsdes”, mantendo as pulsdes de autocon- servagio um cariter_muito mais instintivo do que propriamente pulsional. O proprio Freud declara que a distincdo entre esses dois grupos de pulsdes “nao tem status de postulado necessario” . que “ela nao passa de uma hipstese de trabalho, a ser conservada apenas enquanto se mostrar ttil” (Freud, ESB, v. XIV, p. 144). A distingdo entre pulsdes sextiais e pulsdes do ego foi feita pela primeira vez num artigo que, no dizer de Freud, foi uma simples “piece d’ occasion sem nenhum valor”: A concep¢do psicanalitica da perturbagdo psicogénica da visdo, publicado em 1910. Nesse texto, ele afirma que do ponto de vista da explicacdo psicanalitica dos Fendmenos psiqaicos uma parte extremamente importante € desempenhada pela inegavel oposigo entre as pulsdes que favorecem a sextialidade, a consecugao da satisfaeao sexual, € as demais pulsdes que tém por objetivo a autopreservaca0 do individuo: as pulses do ego. (Freud, ESB, v. XI, p. 199) A diferenca bisica entre os dois tipos de pulsdes € que elas se encontram sob o predominio de diferentes principios de funcionamen- to: como as pulsdes do ego sé podem satisfazer-se com um objeto real, o principio que rege seu funcionamento € o prinefpio de realidade, enquanto as pulsdes sexuais, podendo “satisfazer-se” com objetos fantasmaticos, encontram-se sob o predominio do prineipio de prazer. A questo que surge a partir dessa distinglo & se Freud pode legitimamente empregar o termo “pulsio” (Trieb) para designar ambos os tipos de processos. Uma concepeao A qual devemos conceder relevo & a do apoio (Anlehnung) da pulsio sexual no instinto. Vimos de que maneira 0 apoio, a0 mesmo tempo que assinala uma vinculacdo entre a pulsdo € 0 instinto, marca também o momento de um desvio da primeira em relacdo ao segundo, de modo que possamos falar que a pulsdo é a desnaturalizagio do instinto. Assim sendo, pode parecer bastante incongruente a oposigdo entre pulsdes sexuais e pulsdes do ego, sobretudo quando & o prdprio Freud quem aponta a fome como o modelo de pulsio do ego. Outra questao referente ao mesmo problema a da assimilacdo das pulsdes de autoconservagdo com o ego como lugar psiquico dessa funcdo. Significa isso que o ego possui uma energia propria, distinta da libido? Sabemos que Freud sempre foi refratério a uma teoria pulsional de tipo monista, mas sabemos também. da dificuldade de se caracterizar, de modo preciso, outro tipo de pulsio 3 Pulsao e Representagao 1 que nao seja a sexual. E possivel que esse dualismo que atravessa toda a producao tedrica de Freud esteja ligado ao papel absolutamente fundamental que © conflito psiquico desempenha no interior da psicaniilise, Nao 6 apenas em relaedo as pulsdes que Freud fala de “conflito” : ele pode se dar entre dois tipos de pulsdes (pulsdes do ego vs. pulses sexuais), como pode ocorrer entre duas insténcias psiquicas (sistema Ics vs. sistema Pes/Cs), ou ainda entre o desejo e a defesa. E 0 conflito, particularmente 0 conflito edipiano, que institui a ordem humana, assim como € 0 conflito que produz.a clivagem do psiquismo. Trata-se, portanto, de uma das nocdes mais fundamentais da psicandlise e que esté presente, nas suas mais variadas formas, em qualquer texto psicanalitico. Com a emergéncia do conceito de pulsdo, Freud passa a dispor de um suporte dindmico para sua concepeao do conflito psiquico. Mas, como o sistema les “¢ incapaz de fazer qualquer coisa que nao seja desejar” (Freud, ESB. vs. IV-V, p. 639), como nele nao ha lugar para 0 “nao”, 0 conflito pulsional deve fazer-se entre pulses pertencentes a diferentes sistemas, dai a oposigo entre pulsdes sexuais e pulsoes do ego. E evidente, contudo, que essa argumentacao no se sustenta teoricamente. Se ela fornece uma jus iva para o dualismo ati’ pulsional, com base na nocio de conflito, ela nao explica esse dualismo. Sobretudo, nao explica a diferenca de natureza entre os dois, tipos de pulsdes. Uma possivel solu uma afirmagao feita no mesmo artigo em que Freud introduz a nogao de pulsdes do ego (ESB, v. XI, p. 199). Segundo 0 texto, essas pulsdes investem 0 ego concebido como um grupo de representacdes, isto é, que clas visam o ego © nio que elas emanam do ego. De qualquer forma, a referéncia é bastante ambigua para dar margem a intempi tages divergentes. O que resultaria da hipétese de vermos as pulses de autoconservacdo nao emanando do ego, mas servindo ao ego seria um dualismo puramente funcional e no um dualismo referente a pulsOes de naturezas distintas, A climinacdo, ou melhor, a substituigdo desse dualismo pulsional tem inicio com o artigo Sobre 0 narcisismo: uma introducao, de 1914, no qual Freud faz a distingao entre “libido do ego” (ou “libido nareisic<” ) e “libido objetal”, constituindo a oposicao por referéneia no & natureza da energia, mas por referéncia 20 objeto de investimento. Assim, “libido do ego” designa nao uma libido que emana do ego, ‘mas uma libido investida no ego, enquanto “libido objetal” designa > para o problema pode ser dada a partir de 126 Freud ¢ 0 Inconsciente © investimento da libido s dessa nova disting’d bre objetos extemnos. Em consequéncia >, autoconservagdo nada mais seria do que um amor a si mesmo, o que tornaria caduca a oposicao entre pulsGes sexuais e pulsdes do ego: toda pulsdo é, em ditima instancia, sexual. Essa teoria dualista das pulsdes foi sendo progressivamente enfraquecida até que, quando tudo indicava que Freud iria afirmar um monismo pulsional anlogo ao de Jung, ele introduziu um novo dualismo: 0 das pulsdes de vida e das pulsdes de morte. Essa substituigdo ocorre em 1920, em Além do principio de prazer. onde as pulsdes sexuais e as pulsdes de autoconservacio sio unificadas sob a denominacao de “pulsdes de vida” © contrapostas & “pulstio de morte”, isto é, 4 tendéncia inerente a todo ser vivo de retornar a0 estado anorganico com a eliminacao completa das tensdes. 0 novo dualismo pulsional tem sua base mais voltada para a biologia do que para a psicologia, Apesar de a antiga distincao entre pulsdes sexuais ¢ pulsdes do ego terem sido sugeridas a Freud pela andilise das neuroses de transferéncia, ele mesmo declara ter as maiores dtividas de se poder chegar a uma diferenciagdo © classificagio das pulses a partir da elaboracdo do material psicoldgico (Freud, ESB, v. XIV, p. 145), Deixarei a anilise do novo dualismo pulsional para ser feita um pouco mais & frente, Devemos retomar 0 nosso texto de 1915, pois, se ja falamos alguma coisa sobre a pulsdo, ainda ndo vimos nada sobre os seus destinos. OS DESTINOS DA PULSAO Apesar de 0 artigo Ay pulsdes e seus destinos comegar falando das pulses em geral, ao tratar das varias vicissitudes pelas quais elas passam durante o desenvolvimento do individuo, é das pulsdes sexuais que Freud esta falando. J4 vimos que uma pulsio tem apenas um objetivo: a satisfaedo. Vimos também que esta nfo se da de forma direta e imediata, mas que, por exigéneia da censura, ela implica sempre uma modificago da pulsio. Essa é a razio pela qual os destinos da pulsao so também apresentados por Freud como moda- lidades de defesa (op. cit, p. 147). A rigor, uma pulsio nao pode ser nem destruida nem inibida; uma vez tendo surgido, ela tende de forma coercitiva para a satisfagao. Aquilo sobre o qual vai incidir a defesa é sobre os representantes psiquicos da pulsio, os quais vaio conhecer destinos diversos, Vimos Pulsdo ¢ Representagao 127 que a pulsto tem dois representantes psiquicos: 0 representante ideativo (Vorstellungreprasentanz) & 0 afeto (Affekt), cada um deles obedecendo a mecanismos diferentes de transformagio. Os destinos do representante ideativo Sto: 1. Reverso ao seu oposto 2. Retorno em direcdo ao prépi 3. Recalcamento 4. Sublimagao Como 0 afeto nao esta ligado necessariamente ao representante ideativo, seus destinos sdo diferentes. Numa carta a Fliess, datada de 21 de maio de 1894, Freud escreve o seguinte sobre as transformagdes do afeto: “Conhego ués mecanismos: 1) transformacao do aleto (histeria de converso); 2) deslocamento do afeto (obsessdes); 3) troca de afeto (neurose de angtistia e melancolia)” (ESB, v. I. p. 259). O que podemos verificar a partir dessas definigdes 6 que o artigo As pulsdes e seus destinos trata no dos destinos da pulsio, mas dos destinos do representante ideativo da pulsdo. Nao se trata nem dos destinos dos representantes psiquicos — o que ineluiria 0 afeto — pois, se bem que o afeto sofre transformagdes decorrentes do recal- camento, ele no pode ser, enquanto afeto, recaleado, Nao se pode falar em “afeto inconsciente”; 0 que pode pertencer ao inconsciente 0 representante ideativo ao qual um afeto estava ligado, mas 0 afeto propriamente dito pertence necessariamente ao sistema pré-consciente. Assim sendo, a reversJo ao seu oposto, o retomno em direcdo ao préprio eu, 0 recalcamento e a sublimagao so destinos do representante ideativo da pulsao. E evidente que essas vicissitudes da representagao. atingem o afeto, mas este, ao ser atingido, sofrera destinos diferentes. Para nao (ransformar esta exposicao numa andlise pedante da termi- nologia psicanalitica, continuarei a empregar o termo “pulsdo” no lugar do termo “representante ideativo da pulsdo”, que seria o mais correto, mas, pari evitar confusdes futuras quanto aos destinos do representante ideativo ¢ os destinos do afeto, convém termos em mente a distingdo feita acima, A primeira vicissitude pela qual passa uma pulsio, apontada por Freud, & a reversdo ao seu oposto. Essa reversio pode manifestar-se de duas maneiras: como uma reversio do objetivo da pulsio, isto 6, uma mudanga da atividade para a passividade; e como uma revei 128 Freud ¢ 0 Inconsciente do conietido, a qual, segundo Freud, encontra-se no exemplo isolado da transformagdo do amor em édio (ESB, v. XIV, p. 148). A segunda vicissitude, 0 retorno da pulstio em diregdo ao proprio eu do individuo, caracteriza-se essencialmente por uma mudanga do objeto, permanecendo inalterado 0 objetivo. E na andlise dos dois pares de opostos, sadismo-masoquismo e voyeurismo-exibicionismo, que va- mos encontrar os exemplos privilegiados de reversio do objetivo e do objeto da pulsio. Segundo Freud, é @ seguinte a transformagio operada no par de opostos sadismo-masoquismo: 4) © sadismo consiste no exereicio da violéncia ou poder sobre outra pessoa como objeto; b) esse objeto & substituido pelo préprio eu do individuo (mudanga de cbjeto: do outro eu para © préprio eu; mudanga de objetivo: de ativo para passivo): ©) uma outra pessoa é procurada como objeto para exercer 0 papel de agente da violéncia (masoquismo). As fases b ¢ ¢ nao se confundem. E possivel haver um retorno em diregdo ao eu do individuo sem que haja uma inversao da atividade para a passividade. O exemplo fornecido por Freud para esse caso 0 da neurose obsessiva, na qual o desejo de torturar se transforma em autotortura © autopunigéo, sem que isso implique masoquismo. Nao ha, nesse caso, passi da atividade, O maso- quismo é, por consequéncia, um sadismo que retorna em direcdo ao proprio eu, mas que implica, além disso, uma outra pessoa que funcione como sujeito da acdo. par de opostos voyeurismo-exibicionismo obedece 4 mesma sequéncia descrita por Freud para o sadismo-masoquismo, Ter‘amos, assim, uma primeira fase, que seria 0 olhar como uma atividade voltada para um objeto distinto do proprio eu; em seguida, 0 abandono desse objeto e o retorno do olhar para o proprio corpo: finalmente, a introdugdo de uma outra pessoa diante da qual o individuo se exibe. Um aspecto importante da dindmica dessas transformagdes é que nunca acorre um esgotamento total de um dos opostos. Dessa maneira, na reversio da atividade para a passividade, persiste uma quota de atividade ao lado da passividade, 0 mesmo ocorrendo com 0 retorno em direcdo ao prdprio eu. “Um sadico € sempre ao mesmo tempo um masoquista”. tinha escrito Freud dez anos antes nos Trés ensaios Pulsdo ¢ Representagao 129 sobre a sexuatidade; da mesma forma que poderfamos dizer que um voyeur & sempre ao mesmo tempo um exibicionista. De fato, tanto 0 sdico, através de uma identificagdo com o outro, frui masoquistica- mente da dor infligida ao outro, como o masoquista frui do prazer que 9 outro sente ao exercer a violéncia. De forma andloga, 0 exibicionista goza com o olhar do outro. Freud supde uma alterndncia do predoménio de cada um dos termos dos pares de opostos durante a vida do individuo. Essa coexisténcia ¢ alternancia de opostos é denominada por ele “ambiva- Iencia”. Tanto 0 par de opostos voyeurismo-exibicionismo, como o par sadismo-masoquismo, encontram sua explicagdo na organizacio narcisista do ego. Adiemos, porém, por alguns pardgrafos a discussio desse ponto, para que possamos abordar o segundo modo de reversio de uma pulsdo em seu oposto: a reversio do contedido, Vimos que a transormacio de uma pulsaio em seu oposto desdobra-se em dois processos distintos: uma mudanca da atividade para a passividade e uma mudanga de seu conteddo, Ambas as mudangas dizem respeito a0 objetivo da pulsdo, Na primeira, temos a transformagio do objetivo ativo (olhar, torturar) para 0 objetivo passivo (ser olhado, ser tortu- rado), ao passo que na mudanga de contetido temos a transformagao do amor em édio (ambos ativos). Enquanto a reversdo de uma pulsio a seu posto diz respeito aos objetivos da pulsio, o retomo em diregao ao proprio eu do individuo diz respeito ao objeto, permanecendo 0 objetivo inalterado. Vimos, no caso dos pares de opastos voyeuris- mo-exibicionismo e sadismo-masoquismo, como se operam a trans- formagdo no oposto eo retorno em direcdo ao propri i agore 0 caso isolado da transformagdo no oposto pela mudanga de conteido: a transformagao do amor em ddio. Segundo Freud, 0 amor nao admite apenas um, may tres opostos (op. cite. p. 154): 1. Amar — Odiar 2. Amar — Ser amado 3. Amar/Odiar — Indiferenga Essas trés formas de oposicdo nos remeteriam a és polaridades que regeriam nao apenas as formas de oposigdo ao amar, mas toda a nose Vida mental (op. cit., p. 155). Sao elas as antitese 1. Sujeito (ego) — Objeto (mundo externo) 2. Prazer — Despraver 3. Ativo — Passivo 130 Freud e 0 Inconsciente Essas trés polaridades articulam-se entre si e sdo responsaveis pelas vicissitudes das pulsdes. Podemos restumir dizendo que o trago essencial das vicissitudes softidas pelas pulsdes esti na sujeigdo dos impulsos pulsionais as influéncias das trés grandes polaridades que dominam a vida mental. Dessas trés polaridades podemos deserever a da atividade- gica, a do ego-mundo externo como a real, e finalmente a do prazer-les- prazer como a polaridade econdmica. (op. cit. p. 162) idade como a biolé- No comego da vida mental individual, essas antiteses ainda nao estio perfeitamente distintas. No perfodo dominado pelo narcisismo, (© que 6 objeto de investimento das pulsdes nao é 0 mundo extemo, mas 0 proprio ego do individuo, caracterizando uma forma de satisfa que € autoerstica. O mundo externo ¢ indiferente aos propésitos de satisfagiio na medida em que o ego ama apenas a si prdprio e encontra em si proprio a fonte de prazer. Essa fase do desenvolvimento individual ¢ representativa de uma das formas de oposicdo assinaladas para o amor: a do amar — ser indiferente, na qual © sujeito do ego coincide com o prazer e o mundo externo com o indiferente. No entanto, essa forma de satisfagdo autoerdtica é possivel apenas em se tratando das pul 5 sextais. As pulsdes de autoconservaedo, por nao se satisfazerem na modalidade fantasmatica, exigem um objeto exter- no. E, portanto, por exigéncia do principio de prazer que 0 ego & obrigado a introjetar os objetos do mundo externo que se constituem, em fonte de prazer e a projetar sobre 0 mundo externo aquilo que dentro de si mesmo 6 causa de desprazer. Por um lado, uma parte do mundo externo é incorporada ao ego, enquanto, por outro lado, uma parte do ego, fonte de desprazer, & projetada no mundo, que passa a ser vivido como hostil — ¢ nao mais indiferente como era antes. E aqui temos outra oposigdo para o amor: a do amar — odiar, Poderfa- mos supor, pelo exposto acima, que operou-se uma passagem do “ego-prazer” para 0 “ego-realidade”, mas 0 que Freud afirma 6 exatamente 0 contrério. Creio que se faz necessério um pequeno paréntese na exposicdo para que essa questo seja esclarecida. Foi no artigo Formulacdes sobre os dois principios do funcio- namento mental, escrito em 1911, que Freud introduziu a disti entre um “ego de prazer” e um “ego de realidade”. Claro esti que © ego do prazer seria regido pelo principio do prazer © 0 ego da realidade seria regido pelo principio de realidade. Sendo assim, 0 “ego do prazer” seria primério em relagdo ao “ego da realidade", 0 Pulsdo ¢ Representagdo 131 qual surgiria aperas a partir das exigéncias do real. O que Freud coloca no artigo A pulsdo e seus destinos & que existe um “ego de realidade” original, anterior ao “ego do prazer”, sendo este tiltimo um ego intermediirio para 0 “ego de realidade” final. A afirmagao desse ego de realidade original fica clara no seguinte trecho logo ao inicio do artigo de 1915: Imaginemo-nos na situagio de um organismo vivo quase inteiramente inerme, até entio sem orientagio no mundo, que esteja recebendo estimulos fem sua substiacia nervosa. Esse organismo muito em breve em condigdes de fazer uma primeira distingao © uma primeira orientagao. Por ‘um lado, estari cOnscio de estimulos que podem ser evitados pela agio muscular (fuga); estes, ele os atribui a um mundo externo, Por outro, também estar cOnscio de estimulos contra os quis tal ago nao tem qualquer valia © cujo cariter de constante pressio persiste apesar dela; esses estimulos os sinais de un mundo intemo, a prova de necessidades instintuais. A substincia pereeptual do organismo vivo teri encontrado, na efiescia de sua atividade muscutar, uma base para distinguir entre um “de fora” € um “de dentro”. (op. cit., p. 139) Portanto, antes do “ego do prazer”, existe um “ego da realidade” original que, em vez de prosseguir até a constituigao de um “ego de realidade” final adulto, & substituido, por exigéncia do prinefpio de prazer, por um “ego do prazer”. Algumas paginas atrds, foi colocada a proposta de explicar os pares de opostos voycurismo-exibicionismo ¢ sadismo-masoquismo por referéneia ao narcisismo. Em As pulsdes ¢ seus destinos, Freud postula a existéncia de um sadismo origindrio que, ao retornar sobre © proprio cu do individuo, transforma-se em masoquismo (op. ci pp. 148 e 153). Haveria, portanto, um sadismo preliminar narcisista que seria a origem do masoquismo, sendo inaceitivel a existéncia de um masoquismo primdrio nao derivado de sadismo. No entanto, nove anos depois, no artigo O problema econdmico do masoquismo, Freud alirma © oposto. A questio ¢, pois: © que é primério, 0 sadismo ou © masoquismo? E mais ainda: de que maneira a referéncia ao narcisismo pode oferecer uma resposta definitiva para a questao? Peco licenga para adiar ainda mais uma vez a discussao sobre o tema, uma vez que 0 artigo O problema econdmico do masoquismo foi escrito apés a reformulagio feita por Freud da teoria das pulses em Além do principio de prazer, onde ele introduz um novo dualismo pulsional: © das pulses de vida e da pulsdo de morte. 132 Freud ¢ 0 Inconsciente PULSOES DE VIDA E PULSAO DE MORTE J4 vimos © quanto a histéria da psicandlise é atravessada pelo modo de pensar dualista de Freud. Os pares antitéticos: consciente-incons- ciente, principio de prazer-principio de realidade, ativo-passivo, pul- sGes sexuiais-pulsdes de autoconservagdo etc, sto exemplos dese dualismo, No quadro da primeira teoria das pulsdes, Freud opunha as pulsdes sextais as pulsdes de autoconservacdo (ou pulsdes do ego); esse dualismo & substituido, a partir de 1920, pelo novo dualismo: pulsdes de vida-pulsdo de morte. Eem Além do principio de prazer, publicado em 1920, que Freud apresenta sua nova concepeao das pulsdes. Este é 0 texto em que ele mais aproxima a metapsicologia da metafisica (pelo menos daquilo que ele entendia por metafisica) e onde ele se mostra mais livre e ousada, “O que se segue”, escreve ele, “é especulagdo, amitide especulacdo forgada, que 0 leitor tomard em consideragdo ou pord de lado, dz acordo com sua predilegdo individual” (Freud, ESB, v. XVIII, p. 39). 0 objeto dessa especulacao é a vida e a morte, e as referéncias feitas por Freud vaio desde os mais antigos Upanixades até as mais recentes teorias biolégicas, passando por Plato, Goethe e Schopen- hauer. E possivel que fiquemos desconcertados com a proximidade entre a concepgio exposta por Freud ¢ a de Empédocles, apesar dos vinte e cinco séculos que os separam. Esse 0 texto em que Freud esti mais perto de realizar seu sonho de fazer filosofia. Além do principio de prazer... ha o principio de realidade, aprendemos nés. O prineipio de realidade era, até entdo, concebido como um principio de regulagao psiquica que impunha 4 procura de satisfacto desvios, paradas, substituigdes e sobretudo rentincias. Ao to do principio de prazer, o principio de realidade caminho mais oferecia 0 caminho mais longo — mas de alguma forma também gratificante — da rentincia. Nao podemos falar numa oposi¢ae pura ¢ simples entre ambos os principios; mais do que uma oposicao, 0 principio de realidade ¢ um desvio do principio de prazer. Se articularmos os dois prineipios com os dois modos de funcionamento do aparelho psiquico — os processos primério e secundario — poderemos compreender melhor a questio. Fé sabemos que, do ponto de vista econdmico, 0 precesso primério caracteriza um modo de funcionamento do aparelho psfquico, segundo o qual a energia psiquica se escoa livremente para a descarga da maneira mats rapida e direta possivel, enquanto o proceso secundario Pulsio e Representagao 1 a caracteriza um modo de funcionamento segundo 0 qual a energia ndo 6 livre, mas “ligada”, sendo o seu escoamento impedido ou retardado por exigéncia da autopreservagio do ego. O process secundirio resulta, portanto, de uma modificag%o do proceso primério. Ao mesmo tempo que se opde ao proceso primério, 0 processo secundaria se constitui a partir de um desvio daquele e, em titima instancia, esta a seu servigo. A relagao entre o principio de prazer e o principio de realidade segue o mesmo esquema. Na medida em que principio de prazer coincide com 0 processo primirio e que este tende a satisfagao alucinatoria (pelo caminho regressivo), ¢ principio de realidade que vai funcionar como evitador da frustracdo, impedindo a alucinacao ow permitindo-a dentro de certos limites. O que o principio de realidade vai possibilitar é basicamente. a discriminagao entre a alucinacdo e a percepgao ou, para usar a expressio de Pierre Janet, a manutengao da “fonction du réel”. Este é 0 ponto de vista do Projeto de 1895 e € 0 ponto de vista sustentado no artigo de 191 1: Formulacdes sobre os dois principios do funcionamento mental (Freud, ESB, v. XIX, pp. 204-5). A realidade 6 aqui concebida como o conjunto do meio fisico ¢ social, ¢ o principio de realidade é o seu guardido contra as alucinagdes do processo primfrio. Mas 0 predominio do principio de realidade sobre o principio de prazer € ilusGrio. Escreve Freud: Na tealidade, a substituigao do principio de prazer pelo prinespio de realidade nao implica a deposicao daquele, mas apenas sua proteco. Um prazer ‘momentineo, incerto quanto a seus resultados, é abandonado, mas apenas a fim de ganher, mais tarde, ao longo do novo caminho, um prazer seguro. (Freud, ESB, v. XII, p. 283) O prinefpio de prazer continua, pois, a reinar soberanamente. Voltando ao texto de 1920 e tomando como ponto de partida 0 seu préprio titulo, somos compelidos & pergunta: ha algo além do principio de prazer? Logo ao inicio, Freud assina que seria incorreto aceitarmos uma cominancia pura ¢ simples do principio de prazer sobre os processes psiquicos e que, se tal dominancia existisse. a maioria dos processos deveria ser acompanhada pelo prazer ou conduzir a ele, 0 que € contradito pela experigncia cotidiana. © maximo que se pode dizer, portanto, € que existe na mente tendéncia no sentido do principio de prazer, embora essa tend contrariada por certas outras forgas ou circunstincias, de maneira que 0 134 Freud e 0 Inconsciente resultado final talvez nem sempre se mostre em harmoni no sentido do prazer. (Freud, ESB, v. XVIIL, p. 20) com a tendéncia Quais sto, entdo, ssas outras forgas ou circunstincias? 14 vimos que 10 se rata da realidade concebida como o conjunto do meio fisico © social; 9 opositor irredutivel do principio de prazer nao é o principio de realidade. Podemos formular a pergunta de forma diferente: qual 6a realidade que se opde ao principio de prazer? Os sete capitulos de Além do principio de prazer vao revelando pouco a pouco essa realidade através da anilise de uma série de fatos que conduzem 0 leitor até a hipstese da pulsdo de morte. O primeiro desses fatos apontados por Freud é 0 dos sonhos que ocorrem nas chamadas neuroses trauméticas, os quais tém por caracteristica con- duzir o paciente de volta a situagao em que ocorreu o seu acidente, Se um dos postulados fundamentais da Traumdeutung & 0 de que os sonhos so realizagdes de desejos, como explicar a existéncia de sonhos que repetidamente fazem o paciente reviver uma situagdo traumatica? Em vez de responder a questio, Freud nos fala sobre a brincadeira das criangas e nos conta uma histéria, A historia que ele conta é a de uma crianga de um ano © meio que tinha © habito de apanhar quaisquer objetos que estivessem a0 seu alcance e de jog-los atras dos méveis para em seguida apanhé-los. Essa atividade era sempre acompanhada de um “o-0-0-6" e de um “da” que foram identificados como representando os advérbio: alemaes fort e da (que significam aproximadamente “ir embora” ¢ ali"). Freud concluiu que a crianga brincava de “ir embora” com 0 objetos, 0 que foi confirmado no dia em que ela brincava com um carretel de madeira amarrado com um pedaco de barbante. Em vez de simplesmente puxar o carretel pelo barbante como se fosse um carro, 0 menino segurava a ponta do barbante e arremessava 0 carretel por sobre a borda de sua cama de modo a fazé-lo desaparecer, no que exclamava “fort” ¢ em seguida puxava o carretel e, quando este aparecia, exclamava alegremente “dat”, ¢ isso se repetia ineansavel- mente. A brine: 10 que representava simbolica~ mente a saida © a volta da mae. No dizer de Freud, ela se relaciona 8 rentincia pulsional da crianga ao deixar a mae © ir embora sem protestar, e, ao representar as saidas e voltas da mae pela brincadeira, ela realizava um duplo distanciamento: primeiro, da mde para o carretel e, em seguida, do carretel para a linguagem. Com isso, ela submetia as forgas pulsionais as leis do processo secundario ¢ ao Pulsdo ¢ Representago 135 mesmo tempo afastava-se, pela linguagem, da vivéncia real. Nao podendo controlar as safdas e chegadas da mie, as quais ela se submetia passivamente, conseguia exercer um dominio simbélico so- bre o acontecimento através do distanciamento operado pela lingua- gem. Nao ¢ aqui, porém, que vamos encontrar um “além do prinefpio de prazer”, A repeticdo por parte da crianga de uma experiéncia desagradavel faz-se, em tiltima andlise, em obediéneia ao principio de prazer, pois & exatamente para superar e dominar 0 desprazer que cla transporta para o plano simbélico a saida e a volta da mae. E ainda através de um terceiro fato que Freud vai conduzir 0 leitor para além do principio de prazer: o da compulsao a repeti¢ao. A nivel clinico, essa compulsdo se manifesta pela repeticao por parte do paciente de uma experiéncia traumatica em vez de simplesmente recordé-la como algo pertencente ao passado. A experiéncia é entio vivida como estando ligada a algo presente € no ao material incons- ciente que Ihe deu origem. Essa experiéneia é vivida na relacao de transferéncia que 0 paciente mantém com o analista, ¢ & ela que vai caracterizar 0 que Freud chama de “neurose de transferéncia” como sendo uma nova inscrigao da neurose clinica © que é a condigao para que se estareleca o tratamento psicanalitico. © terapeuta, ao mesmo tempo que necesita da neurose de transferéneia para que © processo terapéutico se constitua, deve manté-la dentro de certos limites que, uma vez rompidos, seriam intolerdveis para o paciente. Sabemos que © prinejpio de prazer nao funciona isoladamente e, de forma absoluta, 0 que € prazer para o sistema Inc. pode ser vivido como desprazer pelo sistema Pes/Cs. Sabemos também que o prineipio de realidade, mesmo quando implica rentincia ao prazer, esti em tiltima instancia servindo ao prinefpio de prazer. O que nao havia sido tematizado até entio era a possibilidade da ocorréncia de um processo que de forma alguma pudesse ser fonte de prazer e que apesar disso se impusesse repetidamente. Esse é 0 caso da compulsdo a repetigao. E a conclusio A qual chega Freud no capitulo III de Além do principio de prazer: Chegamos agora a um fato novo e digno de nota, a saber, que a compulsio 2 repeticdio também rememora do passado experiéneias que possibilidade alguma de prazer © que nunca, mesmo hi longo tempo, trouxeiam.satisfagdo, mesmo para impulsos pulsionais que desde entzio foram recaleados. (op. cit, p. 34) incluem 136 Freud ¢ 0 Inconsciente Resta explicar “algo que parece mais primitivo, mais elementar e mais pulsional do que o principio de prazer (...)" (op. cit., p. 37). Esse algo é a pulsdo de morte. Mas Freud ainda nao a nomeia. A ideia € forte demais para ser apresentada de repente. As manifestages da compulsdo a repetigao que se apresentam tanto a nivel normal como a nivel do tratamento psicanalitico possuem um cardter nitidamente pulsional (Triebhaft) e, em face do prinefpio de prazer, parecem se impor como uma forca “demoniaca” (op. cit., p. 2). A pergunta que Freud se faz é: como essa caracteristica pulsional pode estar relacionada, como um predicado, a compulsao de repetigao? E aqui que Freud levanta a hipétese, que ele mesmo considera especulativa, segundo a qual a pulsio é uma tentativa inerente a vida organica de restaurar um estado anterior de coisas; ela 6 a expre da inércia inerente & vida organica (op. cit.. p. $4). O que torna essa hipotese paradoxal é 0 fato de que até entao Freud havia apresentado a pulsdo como uma forga que impelia o organismo vivo no sentido da mudanga e do desenvolvimento, € o que agora esté sendo assinalado € exatamente © seu cardter conservador. Se a pulsio é conservadora, se tende a restaurar um estado anterior de coisas, devemos concluir que © desenvolvimento deve ser atribudo a fatores externos que desviariam a pulsio de seu objetivo — o de manter indefinidamente ‘© mesmo estado de coisas. Admitindo-se a natureza conservadora da pulsao, seria contradi- t6rio afirmar que ela tende a um objetivo novo, isto é, que ela visa & mudanga. O légico é admitirmos que o que ela tende a repetir ¢ 0 mesmo, 0 mais arcaico, o estado inicial do qual o ser vivo se afastou por decorréncia de fatores externos. Esse estado inicial, ponto de partida de toda a vida, & segundo Freud, 0 inorgdnico. “Seremos compelidos a dizer que 0 objetivo de toda a vida é a morte” (op. cit., p. 56), 0 retorno ao inanimado. O estado de equilibrio estivel que caracterizava a substincia nanimada teria sido rompido por aco de forgas externas a ela e a vida nada mais seria do que uma tentativa de retorno ao equilibrio original. H4, portanto, em todo ser vivo uma tendéncia para a morte, que irremediavelmente cumprida. O que fica claro é que essa tendéncia ¢ interna ao ser Vivo, isto é, que ela resulta de um esforco do proprio ser vivo de retornar ao estado original inorganico e nio de fatores externos. O que a realidade externa provocou foi o aparecimento da vida, mas, uma vez. isso tendo ocorrido, 0 movimento em direco a morte 6 empreendido pelo proprio ser vivo © ndo mais Pulsdo ¢ Representagdo 137 por exigéncia de fatores que Ihe so exteriores. Uma morte obtida por acdo de agentes externos seria contriria a essa tendéncia, j4 que “o organismo deseja morrer apenas ao seu proprio modo” (op. cit., p. 56). E essa tendéncia inerente a todo ser vivo de retornar ao estado inorganic que Freud chama de pulsdo de morte, enquanto o esforco para que esse objetivo se cumpra de maneira natural, ele denomina pulsao de vida, O objetivo da pulsao de vida nao € evitar que a morte ocorra, mas evitar que a morte ocorra de uma forma ndo natural. Ela € a reguladora do caminho para a morte. Teno as pulses sexuais como as pulsdes de autoconservagio so consideradas pulses de vida, j4 que ambas so conservadoras: as primeiras mantendo o padrio de repeticao, isto é, garantindo a mesmidade do organismo: as segundas, preservando 0 organismo da influéncia desviante dos fatores externos e garantindo a normalidade do caminho para a morte. Eis af 0 novo dualismo freudiano: en vez da antiga oposigdo pulsdes sexuais vs. pulses de autoconservagao, temos agora a oposicdo pulsdes de vida (que incluem as pulsdes sexuais e as de autoconservacio) vs. pulsdes de morte. O que esta dito acima poderia nos levar a duvidar da autenticidade desse novo dualismo, j4 que a pulsfo de vida nada mais faria éo que normalizar 0 caminho para a morte, 0 que significa dizer que ela no est em oposigdo a pulsdo de morte, mas que esté a seu servigo. No entanto, a autenticidade do novo dualismo (que Freud faz ques:io de defender em face da ameaga do monismo junguiano) esta salva a partir do momento em que entendemos que as pulsGes sexuais so as verdadeiras pulsdes de vida (op. cit., p. 58) e que elas implicam uma jungio de dois individuos da qual vai resultar um novo ser vivo. Assim, enquanto pulsdo de autoconservagdo, a pulsio de vida é a manutencdo do caminho para a morte, mas enquanto pulsio sexual ela garante, por meio do sémen germinativo, a imortalidade do ser vivo. E 0 Eros se contrapondo ao Thnatos e garantindo 0 duzlismo {do caro a Freud. Podemos voltar agora & questo que havia sido adiada no final do item anterior sobre 0 sadismo e 0 masoquismo. Em As pulsdes ¢ seus destinos, Freud havia afirmado que, no par de opostos sadismo- masoquismo, apenas o sadismo era original, sendo 9 masoquismo entendido como um sadismo voltado para © proprio eu do individuo. Sob a influéncia do novo dualismo pulsional, Freud vai falar ainda em Alén do principio de prazer (op. cit., p. 75) na possibilidede de um “masoquismo original”. Essa possibilidade seré desenvolvida 138 Freud e 0 Inconsciente quatro anos mais quismo. Quando Freud fala em pulsdo de morte, ele prefere falar no plural, acentuando, dessa forma, a diversidade de expressdes dessa pulsdo. Uma dessas expressdes € a destrutividade que caracteriza 0 par sadismo-masoquismo. Sob 0 dominio da pulsdo de vida, parte da destrutividade é langada para fora do organismo através da musculatura, enquanto a outra parte permanece no interior do organismo e. como um residuo, vai constituir 0 masoquismo original. A base explicativa para esse masoquismo original ou primério é fornecida pelos conceitos de fusdo e desfusao da pulsdo (Triebmischung e Triebentmischung). As pulsdes de vida e as pulsdes de morte podem se misturar em proporgdes varidveis, de tal modo que a fusio designaria um grau elevado de mistura entre ambas, enquanto a desfusio indicaria um funcionamento quase que separado das duas espécies de pulsdes. Assim & que, no masoquismo original ou erdgeno, 0 que se verifica € a fusdo da pulsdo destrutiva com a pulsdo sexual, fusdo essa que admite graus: dessa forma, “um excesso de agressividade sexual transformaré um amante num criminoso sexual, enquanto uma nitida diminuicao no fator agressivo torné-lo-d timido ou impotente” (Freud. ESB, v. XXIII. p. 174). A desfustio jamais atinge o ponto extremo de as duas espécies de pulsoes funcionarem autonomamente. A ideia de uma autonomia completa das pulsdes & uma ideia limite andloga a do funcionamento auténomo do prinefpio de prazer e do principio de realidade. Nao caberia aqui desenvolver todas as possibilidades implicitas na nova teoria pulsional. Grande parte desse desenvolvimento é realizado em O Ego ¢ 0 Id, sobretudo na parte que se refere & teoria do Superego. Também tornaria esse capitulo muito extenso a discussao a propdsito de uma prevaléncia concedida ao prinefpio de inéreia em detrimento do prinefpio de constancia a partir do novo dualismo pulsao de vida-pulsio de morte. Creio que é mais importante no momento tentarmos compreender a relacao existente entre a pulsio e 0 desejo. tarde no artigo O problema econdmico do maso-

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