You are on page 1of 20
NUNO DA SILVA GONGALVES OS JESUITAS E A MISSAO DE CABO VERDE (1604-1642) BROTERIA LISBOA 1996 CAPITULO IV O PADRE MANUEL ALVARES E A SERRA LEOA interesse pela Serra Leoa © as virias tentativas de colonizacao Ll. Queda de Pedro Atwares Pereira Em Janeiro de 1607, Pedro Alvares Pereira, donatatio da Serra Leoa desde 0 ano anterior, viu-se envolvido num escandalo que 0 levou a cair em desgraca, a ser acusado de corrupgao € a ser preso, juntamente com outros nobres. f provavel que o Senado de Lisboa nao tenha sido alheio a estes factos pois sabe-se que via com grande suspeigo a actuaco do fidalgo portugues no Conselho de Estado, em Madrid, onde parecia mais disposto a defender os interesses espanhdis do que os portugueses*. Durante processo a que foi submetido, Pedro Alvares Pereira viu muitos dos seus bens serem-lhe confiscados e outros a terem de ser gastos nas necessidacles da propria defesa, Nessas circunstancias, com- preende-se que, embora tenha vindo a recuperar a sua posicio e esta- tuto2, 0 donatério da Serra Leoa fosse descrito, por volta de 1611, como * toda sua fazenda foi logo confiscada ¢ embangacla, posto que The 9 nada de cast nem prenderao a mother, Manuel Severim de Fania, Annaes de Portugal, BPADE, edd, Clll/2-19, £ 173v; Pedralvres dizem que est na sva prizio muito apertado por muitas culpas que de Portugal Ihe mandarao de navor, dbidem, €175¢v, J. Vesssimo Snio, Histéria de Portugal, 1V, Lisboa, 1979, p. 68 2 4 7 de Margo de 1609, Frei Francisco Percita, inmao de Pedro Alvares Pereira, escrevia de Lisboa zo P. Manuel Ximenes, em Florenca: «A methora que os negocios de ‘meu irmao vam tendo devo a memoria e oragdes de V.P. Brevemente se dari sentenca 174 (0s Jesuits ¢.sesdo de Gabo Verde (1604-1642) gasto € cansado dos trabalhos causados pela pristo ¢ desejoso de uma vida calma e repousada’. Esta situacao de Pedro Alvares Pereira, precisamente na altura en que 0 povoamento se devia iniciar, veio por em questio os planos de colonizagao e de missionacao, tal como o donatario © os jesuitas os haviam previsto. No entanto, no faltaram, nessa mesma ocasido, outras propostas € novos pretendentes, 12. O projecto de Fernando 1, grao-duque da Toscana # conhecida a curiosidade que Fernando I, grio-duque da Toscan: manifestava por todas as informagdes geogréficas que pudesse obter. Para além do interesse meramente cientifico ou cultural, o soberano ambicionava fundar uma colénia de cujo governo pudesse encamregar algum dos filhos a quem n&o conseguisse garantir uma posi¢ao condigna no xadrez politico italiano. Com este objectivo, chegou a propor 2 Filipe II, em 1608, a compra de um territ6rio, no Brasil, na Costa do Espirito Santo, frequentada j4 pelos comerciantes toscanos em activi- dades de contrabando. Confrontado, porém, com a recusa do monarca espanhol em admitir concorrentes na América, Fernando I voltou entio 10 para Africa, pensando que ai scria mais fcil vencer as resistencias de Filipe III quanto & disposico para alienar alguma parcela dos seus dominios. If neste contexto que se situa o sew interesse pela Serra Leo ‘Aideia de comprar a Serra Leoa ao seu donatirio tera sido sugerida a Fernando I pelo P. Manuel Ximenes, jé em 16063. A essa sugestio.nJo como conver. [..] Aqui corte no Juizo das ordens a causa de meu immo © se tem ‘indo com lbelo contra nés sem conier mais que faniasias de que se anda rindo a prec. assim seréa sentenga com o favor de Deus por que nos alegramos., ASE, Medicen del Principat, 960, f 364. 5 'Relacion de las errs de la Siena Leona en Guinea, c, 1611, RAHM, Rapeles de “Jesuitas, 185/16, f 34 cr. BE. H. Ha, The abortive portuguese settlement of Serra Leone 1570-1625, in Vice-Almivante Tetxesra da Mota. in memoriam, I, Lisboa, 1987, p. 195 bora tendo recuperado a sua posi, mantiverum-se os contastes entre Pedro Alvares Pereira © os membros do Consetho de Portugal. Jé depois da sva morte, 0 set filho temia sinda vingangas, solictando so 181 que 0s seus assuntos nto fossem tratudos rnaquele Consetho; cf, peo de Nuno Alvaes Percira, BL, Hgerton, Ms. 1132 f. 96 G, Unit, Conn storii sulle imprese scientifiche maritime e colontalt df Ferdinando I Granduca di Tascanc (1587-1600), Firenze, 1901, p. 36. S“Cana do P. Manuel Ximenes 20 grio-duque ca Toscana, Cosme M27 de Setembro de 1609, ASF, Modiceo del Principato, 960, f. 362. aay Cavtrene TV; 0 Padre Manuel Ateanes © Sera Looe 175 teria sido alhefo Frei Francisco Pereira, irmo de Pedro Alvares Pereira, que estava entio em Roma como assistente do superior geral dos Eremitas de Santo Agostinho’, Em data que no podemos precisar, 0 préprio Frei Francisco Pereira efectuou uma viagem de Roma a Plorenca para apresentar pessoalmente a proposta ao gréo-duque?. A’ documentagio que possuimos permite-nos delinear alguns aspectos das negociacées, sobretudo a partir de 1608. Em Dezembro desse ano, 0 soberano florentino escreveu para Roma, a0 cardeal Francesco Maria del Monte, solicitando que se informasse junto do Geral da Companhia de Jesus sobre a existéncia de documentos provenientes da Serra Leoa escritos pelos jesuitas, de que teria grande interesse em obter cépias® Dessa mesma altura € mais relevante, € a missio de Frei Paulo Simao de Jesus Maria, carmelita descalgo, encarregado de sondar a corte de Madrid sobre a disposicio desta em acolher as aspirages africanas de Fernando I. O enviado foi bem recebido pelo rei e pelo seu valido, 0 duque de Lerma ¢, nas informagdes mandadas para Florenga, decla- rava-se satisfeito quanto ao resultado das diligencias. © duque, sobre- © D.B. Mactno, Bibliotheca lustiana, 1, Usboa, 1747, p. 199s. 7 sll negozia e pratica della compera della Siera Leona hebibe principio dal Padre mio zio mentre que il Padte Pr. Francesco Pereyra, fratello di Pietro Alvarez Pereyra, signore di quella Provincia, venne da Koma a Perugia per piglisre il Padre mio zio & insieme trattare com VAS. # non potendo il Padre lasciare quel Collegio del quale era Rettore, scrisse a VAS. € a me diede aleuna luce del negozio; come fece ancora i P, Pereyra, al quale V.AS. mi fece grazia di dare audienzia segretan, ASE, Mediceo det Principato, 960 £. 363; carta publicada in G. Uzi, Gennt storic sulle imprese scient- (fiche marittime e colonials di Ferdinando 1 Granducta di Toscana (1587-1609), Firenze, 1901, p. 82. A carta de que faz parte a passagem transcrita nlo tem data, nem assinatura, rigs trata-se certamente de um sobrinbo do P. Manuel Ximenes; G. Uzielli abut the como destinatirio Cosme II mas parece-nos mais provavel que se trate de Femando I, ‘uma ver, que Frei Francisco Pereira ji se devia encontrar em Portugal quando Cosme IE subiu 20 trono. 8 se perché jo 90 che nella deta provincia (Serra Leal sono stat pit valte i Gesu, © verisimile che da qualeun di loro ne siano state fatte delle historette,e che forse sia ‘oggi in Roma alcuno di dest Padi che vi sia stato e ne sappia molto ben ragionare, prego V5, Thustrssima che ne parli col lor Generale per intender da Tut in che maniera e da chi si possino havere queste informazioni che io desidero, e rovandosene forse libri o scritture o in stampa o in penna, mi sara carissimo di haverne copia, 0 di potesle in qual: cche modo vedere, carta de Fernando I a0 cardeal Francesco Maria del Monte, Florenga, 29 de Dezembro de 1608, in G, Uz, Cenni storict sulle imprese scientifiche maritime fe colontalt dt Ferdinando I Granduca di Toscana (1587-1609), Firenze, 1901, p. 81 176 0s Jesuitas © a Missito de Gabo Verde (1604-1642) tudo, mostrara-se receptivo as propostas apresentadas pois sabia que a Goroa olhava, entio, com muito mais interesse para 0 Oriente do que para Africa? Nos principios de 1609, o P. Manuel Ximenes € Frei Francisco Pereira, ji entio regressado a Lisboa, continuavam a cotresponder-se, mas a morte de Fernando I, em 7 de Fevereiro desse ano, contribuiu decisivamente para comprometer o sonho afficano toscano. Cosme I, sucessor de Fernando |, foi informado pelo P. Ximenes de todas as iniciativas anteriores, mas © projecto j ndo viria a ter seguimento. 13. A Serra Leoa, colénia da Coroa? Por volta de 1611, foi claborada uma proposta, sugerindo que a Serra Leoa fosse concedida & rainha D. Margarida de Austria, mulher de Filipe Ill. Estando Pedro Alvares Pereira ainda a softer as consequéncias do proceso em que era arguido, pensava-se que seria facil obter a sua rentincia a doagao régia, mediante troca com algum outro beneficio em Portugal. Por seu lado, a rainha estava interessada em aumentar a sua 9 Hebb subito grata audientia da Hi minis, massime dal Duca de Lerma il quale smi fece molt favori et mostro essere bene affetto a Hi negoti. Per orcine sto par Vistessa mattna a Sua Maes « la longa, Non mostto alienatione, sebene parla poco. I Duca de Lerma disse « Monsignor Arcivescovo dii Pisa che haveva gustato de la mia vyonuta ot gli deite speranza di bon sucesso. Listessa ho havuto da Il ministel grav IL Duca dise che non haveva Sua Maest pit animo in Affica ma in Levante, carta de Frei Paulo Simo de Jesus Maria a Belisario Vinta, conselheiro aecreto do gréo-duque dda Toscana, Fernando 1, Madild, 24 de Dezembro de 1608, ASP, Mediceo ce! Principato, 951, f. 6094 Y© -Ricordal anchors a V, Signodia Illustissima come per volunta del Serenissimo Gean Duca Ferdinando di felice memoria, questo genaro passato scrisse al Padre Pra Francesco Pereyra, agostiniano fratello de Signore Pietro Alvarez Pereyra del Consiglio {di Sua Maesta Catolica et Signore della Setra Leoa, sopra il negocio da ane proposto ‘Sua Altezza Serenissima 'anno 1606 della compera di quella gran Provincia et Regno; et perchie quel Packe mi sispose, mando a V. Signoria Ilustssima la leuera insieme con Minformatione che io ho di quel parte e¢ Iho data allhora al Serenissimo Gran Duct Ferdinando di felice memoria; et questo aprile passato mi serisse il Cavaliere Andrea Ximenes, mio fratello di Lisbona, che il negotio del Pereyra caminava bene et com Speranza di buona riuscit; ma non sapendo fo la mente del Serenissimo Gran Duct non ho’ pine scritto al Padre ne tatato del negotior, cata do P. Manuel Ximenes # Cosme II, 27 de Setembro de 1609, ASK, Mediceo del Principato, 960, f. 362¢ castro TV: 0 Padre Manuel anes © Serr Looe 7 base de rendimentos pessoais de modo a poder alargar o campo das suas acgdes de beneficéncia © documento em que esta proposta é elaborada encontra-se na Real Academia de la Historia, em Madkid, entre a documentagao da Companhia de Jesus que ali se conserva. Nao esta datado nem assinado mas € facil verificar que foi redigid por volta de 1611, pois afirma-se que © proceso movido contra Pedro Alvares Pereira durava havia quatro anos, Paul Hiair nfo parece hesitar em atribuir a autoria desta proposta aos prdprios jesuitas™; contudo, essa atribuicao nao nos parece de caricter assim to evidente. © teor e a formulagio do documento fazem-nos pensar que poderd ter tide origem nalgum circulo da corte, onde se sabia perfeitamente da presenga dos jesuftas na Serr Leoa € se reconhecia, de igual modo, a sua importincia num empreendimento colonizador. Seja quem for o autor, € inegivel o papel selevante atsibuido aos missionarios jesuitas ja que a eles se pretende confiar responsabilidades na pr6pria administragao da colénia: «se Su Magesiad cometiere la superintendencia desta administracion a los réligiosos de la Compariia, se bara con mucho beneficio sin dar lugar a descuidos, burios y matias de ministros que suelen fraudar y dilatar los fructos de seme- Jantes emprezas- Também a jurisdicao espiritual devia ser concedida a um vigirio jesuita, nomeado pelo rei, na previsio de vir a ser criada, no futuro, uma nova diocese: Han de ir religiosas de la Compara con los ornamentos necestarios ‘para el culto divino y uno delles por vicarto en fo espiritual proveido por el Rey como maestro de a Oreden de Nuestro Seior Jeste Cristo Ceugja es la furs dicion expinitual de Guinea) assi como le provee Su Magestad en la costa de a Mina, porque la urisdicion del obispo de Cabo Verde no llega a estas tler- 3 or ser esto tan gran cosa y en que se pueden fundar tantas esperanyas como queda dicho y la Reyna nuestra Seficin desear allaz cosa en que poder hazer fundamento para obras mayores y de que se pueda sacar caudal para sus fundaciones y otras sancios intentos, se ha considerado que ninguna podria ser mas a proposito que estas ticsras porque la costa sera poca y no sera necessario hazerla toda junta y las mismas tierras yran dando el retorno con mucha ganancia y supliendo a todor, Relacion de las tierras de la Sierra Leona en Guinea, ¢. 1611, RAHM, Papeles de Jesutias, 185/16, f. 3 1 PE, H. Ha, The abortive portuguese setlement of Sierra Leone 1570-1625, in Vice-Almirante Tetseiva da Mota. In memoriam, 1, Lisboa, 1987, p. 195. 1 Relacion de las tetas de la Siesra Leona en Guinea, RAHM, Papeles de Jesuttas, 185/16, f. 3 178 0s Jesuits a eso de Gabo Verde (1604-1642) ras nuewes, nk parece que convene que se le dexe exercisar en ellas asta que cesten tam pobladas que se pueda alli poner obispo proprio. ¥ apuntasse en religiosos cle la Compatia porgue estan ya platicas en la tierra y conocidos bien recebides de la gente della. © tom do documento enquadra-se perfeitamente na corrente da época que tendia a idealizar @ Serra Leoa, as suas riquezas e possibilida- des de desenvolvimento. Na sequéncia do que afirmara André Alvares de Almada, alguns anos antes, defendia-se que a regio era a mais rica de toda a Guinée a que possuia o clima mais sadio € temperado™, ‘Como base econémica susceptivel de gerar rendimentos considerd- veis, apontavam-se tés possibilidades a explorar: o trafico de escravos, ‘os engenhos de agicar € 0 comércio do ouro, Quanto ao pessoal a enviar, considerava-se que seriam suficientes um capit2o e governador € itenta ou cem soldados, entre os quais se contassem alguns pedreiros e carpinteiros que se encarregassem das edificactes necessérias ‘Uma vex que as estruturas mfnimas estivessem montadas, com os engenhos de acticar a funcionar € o trafico de escravos a decorrer, os autores da proposta estavam confiantes de que os colonos acorreriam ‘em grande niimero, Isso permitiria consolidar © povoamento e explorar © interior, além de facilitar a propria evangelizagio ‘Também este projecto nao teve seguimento, provavelmente por dois motivos: a morte da rainha D, Margarida de Austria, em Outubro de 1611; € a conclusio do processo de Pedro Alvares Pereira que lhe peritiu retomar as tentativas de coloniza 1 Dhidem, f. 3u; repare-se que no é exact a allimagio de que a jurisdigio do bispo de Cabo Verde no abrangesse a Sesra Leoa; na verdade, 0 cabo das Palinas, limite meridional da diocese, situa-se a sul da Serra Leoa. ° Las ticrtas de la capitania y guoviemno dle Pedralvarez son por relacion de todos los platicos dellas Ins mejores y mas reas de todo Guinea. El clima es muy sano y tem- place principalmente Ia Sierra, que es muy fescay tan sana y aplazible que no se puede ‘mas dezear., sbidem, £2. 1 Ibidem, ft. 2-36, 27 Siendo echos y assentados los dichos dos ingenios y cortiendo fos rescates acudiraa tantos pobladores que dentro de poos afios se hara alli un nuevo reyno y se podra ir continvando la poblacion y el descubrimiento de las minas y entrar por Is tetra adentto, ¥ lo que mas es de estimar, se hara alli una gran conversion de infinitas almas ‘Dios los quales aun que sean negros tienen buen Ingenio y son dociles y no se ha Viswo que jamas retrocedaa de la fee catholica despues que la reciben y llevando Su Magestad su intento a este Hn espiritual de Ia propagacion del Sancto Evangelio, Dios afudira a el los otros bienes temporales, y las augmentara con mayor prosperidad sbidem, f, Ar 14, Tentativas de Pedro Atares Pereira © primeiro sinal de que Pedro Alvares Pereira nao tinha desistido de colonizar a Serra Leoa, segundo as condigées estabelecidas na doacao régia, encontra-se na peticao que dirige a Pilipe Ill para a pro- visio do P. Fernio de Nabais como primeiro vigitio da Serra Leca, Confirmando o sacerdote apresentado, 0 documento régio de 1612 refere-se explicitamente cifusula da doagao de 1606 em que se previa © envio de trés sacerdotes, um deles vigério, a acompanhat os primeiros povoadores'®, No entanto, apesar desta proviso, nao existem nenhuns indicios de que o P. Nabais alguma vez tivesse estado na Serra Leoa onde, nessa data, 0 Ginico missiondrio continuava a ser 0 P, Manuel Alvares, Em 1613, 0 interesse do donatirio € de sua familia fez-se sentir mais concretamente. £ 0 P. Manuel Alvares quem nos dé noticias sobre a chegada & regiio de uma nau comandada pelo capitio Lufs Mendes € enviada por Frei Francisco Pereira. © missionario e D. Filipe de Ledo receberam os recém-chegados com smuita consolagio alegria € onga- nizaram mesmo um baptismo solene com a presenca dos portugueses ctistios da terra. Contudo, essa viagem nao teve outras consequéncias priticas conhecidas¥. Na perspectiva dos jesuitas, esta intervengao de Frei Francisco Pereira, que assumira entretanto 0 cargo de provincial dos agostinhos, em Portugal, nao cra positiva. Pensavam que Pedro Alvares Pereira se deixava influenciar demasiado pelo seu irmao teligioso e pretenderia, no seu territ6rio, passar a favorecer os agostinhos em detrimento dos jesuitas®. Segundo Paul Hair, esta seria mesmo a resposta intencional do donatério, quer 20 abandono a que os jesuitas o teriam votado durante a prisdo quer ao plano de colonizagao da Serra Leoa pela Coroa, Fosse ou no como parte de um projecto mais vasto, em que a rivalidade entre duas ordens religiosas ou os ressentimentos de Pedro Alvares Pereira surgiam no horizonte, o certo € que, em 1615, dois agos- ° Proviso do vigitio da Serta Leoa, Lisboa, 7 de Dezembro de 1612, in MMA, IV, p. 495s. 18 M, Awvanes, Bopia menor, SGL, Res. 3, -7, f. 120 % Carta do P. 8. Gomes ao P. Muzio Vitelleschi, Geral da Companhia de Jesus, Santiago, 27 de Junho de 1617, in MDAA, IV, p. 616. 21 PH, Han, The abortive portuguese setiloment of Sierra Leone 1570-1625, |n Vice-Almirante Tetxetva da Mota. In memoriam, 1, Lisboa, 1987, p. 198. 180 os jJesuitas a bhs0 de Gabo Verde (1604-1642) tinhos se encontravam na Serra Leoa. Vinham provavelmente integrados na expediczio que o donatario organizara € cujo comando entregara a Francisco Pinto Pereira, seu primo, ja com o titulo de governador®, Um dos agostinhos era Frei Joo Pereira, sobrinho do proprio dona- tério, que, segundo testemunhos jesuitas posteriores, levava uma pro- visio real para obrigar 0 P, Manuel Alvares a embarcar para 0 Reino. No entanto, essa provisio, a existir realmente, nunca foi utilizada®, Pelo contririo, jesuita e agostinho parece terem-se cntendido perfeitamente, trabalhando em colaboragio e apoiando-se mutuamente nas doengas que os acometeram, Foi Frei Jodo Pereira, depois de poucos meses de permanéncia, quem acabou por regressar 4 Europa, tendo ficado previa~ mente acordado que © P. Manuel Alvares devia permanecer: ‘Tomada a sancta resolugio, pareceo juntamente com ella ott pera melhor diser antes della que convinha continuarse minha residencia nesta petegrinagio o que acceptei pers gloria de Deos per nto faltar a estes peque- rinos quem the repartsve 0 pao da fee © que a volta desta falta poderia soceeder outra maior como o he risco da salvac2o de tantas almas e perigo de tornaem a idolatrs, sentidas de hum tam grande desemparo e falta ce ‘charidadle. Posto que eu pera tudo me vali da virtude da epicheia erendlo que assy pareceria bem a meus superiores Quanto 20 govemador Francisco Pinto Pereira, o P. Manuel Alvares apenas refere a sua presenga até meados de 1616. Apesar do bom acolhimento que lhe dispensou D. Filipe de Ledo, limitou-se a ser pro- 1 Jornada do P, M. com Francisco Pinto Perera ca egreja de S. Joo Evangelista 3 do Salvador e successo desta peregrinaglo, c, 1616, AN/TT, Cartério dos Jesuits; mago 36, doc. 1, £ Ir 8 Sey mais que levava provisio del Rey para embarcar a0 P. Manuel Alvarez, € ‘como se vio desemparado callow a provisio, e se ajudou muy bem do padre, carta do P.$, Gomes 20 P. Muzio Vitelleschi, Geral da Companhia de Jesus, Santiago, 27 de Junho de 1617, in MMA, IV, p. 616; 0 P. Sebastido Gomes refere-se wambém & presengs de Frei Joso Pereira, aa Serra Leoa, numa carta a0 P. Diogo Veloso de 13 de Margo de 1616, AN/TT, Gart6rio dos fesuitas, mago 68, doc. 387, f 2 Sabemos que das de Santo Agostinho forio dous 4 Serra Leoa em nossos diss, com orem (segundo se disse) pera lancarem daly os da Companhia, o que dado nao tivesse o effeito pretendido (por causas que Deus sabe) comtudo foi demostragio da vontade dos que ld os mandsnicr, iaformacio do P. AntSnio Dias sobre 2 desisténcia de Cabo Verde, Lisboa, 1648, in MMA, V, p. 542, 1 Jornada do P, M. com Francisco Pinto Pevers da egreja de 8, Joio Evangelista do Salvador e sucesso desta peregiinaglo, c. 1616, AN/TT, Cartério des jesutas, mago 56, doc. 1, 16 Contre V0 Padre Manuel Alearese 2 Sora Laoa 181 tagonista da tltima tentativa, também essa gorada, de Pedro Alvares Pereira, Nessa altura, a presenca de estrangeiros, especialmente ingleses, tomava-se cada vez mais frequente € © donatitio nao teve forcas nem meios para ulteriores iniciativas. Ao sentir aproximar-se o fim da vida, expés ao rei a situagéo de extrema pobreza em que mortia, depois de quarenta e dois anos 20 servigo da Coroa, ¢ pedia, pelo menos, a resti- tuigao da tenga que Ihe haviam retirado injustamente 2. Quanto 4 Serra Leoa, afirmava que tinha servido apenas para arruindto pois gastara mais de trinta mil ducados, sem qualquer proveito, nas tr6s vezes que tinha tentado a «conquistar, Apenas Ihe restava a decisio de restituir a Coroa a doacio recebida *. 15. Razdes para o fracasso dos projectos de colonizacao Para além das vicissitudes judiciais em que se viu envolvido, terao existido outras razGes que levaram ao fracasso do projecto de Pedro Alvares Pereira? Para Maria Emilia Madeira Santos, tinham sido impostas ao donatério condigdes inexequiveis: © povoamento da regio em quinze anos, a construgao de fortalezas ¢ a defesa da costa. Q estabsele- 2 -Pedralvarez Pereira del Consejo dEstido de Su Magestad dize que ha sido Dios servo de legal al ultima de In vida, y porque sobre quarenta y dos aos de servicio rmuere en extremio pobre y sin las mercedes que por ellos se puedieran espera, supplica a V. Magestad sea serido de poner los hojos de su grandesa en esto, ¥ porque por sa muerte vacan las fugadas de Torees Vedras y su encomienda y cinco esclaves ¥ lunos molinos en Soure que estan aroyradas, snpplica a V. Magestad le haga mermced esto por tes vidas mis y que le mande responder al pleto de la tenga que Se le ha quitado injustamente; y no trata de otras honras ni mercedes porque pata morir esto basta y, si vivier, stbra servir y merecer esias y otras, mediante la gracia de Dios, patio de Pedro Alvares Perets, BL, Bgerion, Ms. 1133, f 260 ‘uno Alvates Pereira, filha do donatéio, lament-se também, depots da morte do pai, da situaglo de miséria em que se encontrou: La necessidad en que mi Padre me ddexé es tal que vivo de prestado en casa de un amigo, porque no ime dexarcn, los acreedores una cama ni un rocin en que poder acucir a solictar mis negocios, peticao ‘de Nuno Alvares Pereira, BL, Rgerion, Ms. 1133, f 225 sla fmerced de a Sierra Leona no le sicv6 mas que de destwie: porque en tres vvezes que emprendié la conquista gas mas de teinta mil dueados sin provecbo, y por cesta razon entreg6 el privlegio que della centa al Padre confessor, como merced que no tv effeto,petigio de Pedro Alvares Peseisa, BL, Egerton, Ms, 1138, f. 2275 € provivel que esta restiuigio se teaba dado por volta de 1621, aura em que terminava 0 prazo estabetecido na doagio para o povoamento, 182 fests a Miso de Cabo Vere (1604-1642) cimento de condicées tio gravosas correspondia, na visio desta investi- gadora, a uma decisio politica bem precisa: garantir a continuagao da colonizacdo das ilhas de Cabo Verde, mantendo outras areas vizinhas despovoadas, por mais atractivas que parecessem, Numa visio global, era mais importante preservar 0 arquipélago como ponto estratégico essencial para as navegacées intercontinentais do que deixar-se seduzir pelo «mito da Serra Leva”. No fundo, as autoridades ja tinham agido segundo esse mesmo cri- tério, por volta de 1580, quando André Alvares de Almada propusera o povoamento da Serra Leoa. J4 nessa altura, Ihe foi pedido que suspen- desse 0 seu plano, com receio de que pudesse levar ao abandono de Cabo Verde por grande parte dos seus babitantes”. Para além desta rao estratégica, temos de considerar as dificulda des gerais que Portugal enfrentava, no inicio do sécule XVI, em vastas Areas do seu império. Confrontado com a necessidade de preservar os territ6rios ultramarinos dos ataques de ingleses ¢ holandeses, o animo do Pais para novas empresas teria certamente diminuido. Nesse sentido, ‘95 planos relatives a Serra Leoa surgitam demasiado tarde. “Todas estas circunstineias contribuem, de certa forma, para valo- rizar ainda mais a presenga da Companhia de Jesus, na Serra Leoa, nos inicios do século XVI, apesar de ter sido tio reduzida numericamente. Se pusermos de lado os -lancaclos+, © apostolado missionério do P. Bal- tasar Barreira e do P, Manuel Alvares, entre 1605 ¢ 1617, acaba por ser 4 presenca portuguesa mais estruturada e continua naquela regio. 2, Acgao missiondria do P. Manuel Alvares 21. Actividade apostdlica As informagées sobre a actividade do P, Manuel Alvares, no perfodo que decorre entre 1609 ¢ Julho de 1611, sto-nos fornecidas quase exclu- sivamente pelas cartas anuas do P. Barreira, escritas em Santiago. Nesses relatos, vemo-lo a distribuir o seu tempo pelos territ6rios de D. Filipe de 2 Maria Emilia Madeira Saves, As estratdgicas ilbas do Cabo Verde ou a fresca Sema Leoae uma escolha para a politica de expansao portuguesa no Atlantico, Lisboa, 1988, p. 7 A. Alvares de Aumaos, Tratado breve, in MMA, I, p. 376s. » Gfr PE, H. Ham, The abortive portuguese settlement of Sierra Leone 1570-1625, in Vice-Almirante Teiseira da Mota. ls memoriam, 1, Lisboa, 1987, p. 206. ee 183 Ledo, de D. Pedro ‘Tora e de D. Jodo Setuao, contando, durante alguns meses, com a colaboragao do P. Sebastiao Gomes de quem nos ficou a descriclo mais citcunstanciada da alimentagao e habitagao do missions tio, De facto, referindo-se a uma carta que recebera do companheiro, acha-a tanto mais de estimar quanto sabia hem as condigdes dificeis em que era escrita: por causa das muitas enfermidades que padece, causadas de puro tmbalho fem que ancla em contimin foda, e cas muitas incommudidades que sore, assy por falta do necessario, por seu ordinario comer nio ser mals que arroz cozido com agoa, € quando muito com hum pouco ce azeite de palma tal que a qualquer dessa Provincia faria asco, como faz 20s que de novo vimos 1 estas partes, como tambem por falta de casa em que more, por nao ter otra, seria ha terrea e palhaca, cujas paredes sao de paos, ¢ quando muito ‘apadas com hiia pouca de terra amassada a modo de barro, as ques incom: modidades elle sofie com tanta pasciencia que nao podem detxar de the causar muitas doengas, € no menos admiraglo a quem bem as notar7, ‘A metodologia empregada pelo P. Alvares era a mesma do P. Bar- reira: preocupava-se, em primeiro lugar, com a catequizagio ¢ baptismo de personagens influentes, principalmente os familiares de D. Filipe e de D, Pedro. O primeito desses baptismos a ser-nos referido, nas cartas anuas do P. Barreira, € 0 de Yata, filho morgado do rei D. Pedro, que sempre se tinha mostrado adverso ao cristianismo € procurara mesmo impedir seu pai de se fazer cristio. As razdes referidas para a mudanga de atitude de Yata sto signifi- cativas: razGes familiares, por um lado, como a insisténcia do proprio pai, que Ihe declarara nao estar disposto a deixar o reino a um filho que no fosse cristio, ¢ a noticia do baptismo de seu sogro, D. Joao; por outro lado, existiam pressées também por parte dos postugueses que 0 avisaram de que, no futuro, abandonariam o seu reino se nio se bapti- zasse. Comprovada a mudanga de atitude, mais ‘ou menos foreada, 0 P. Alvares acedeu a administrar o baptismo e Yatl tomou o some crist4o de Miguel2 Voltando ao reino de D. Filipe, oP. Manuel Alvares baptizou, dessa vez, dois irmaos do rei, D. Bartolomeu ¢ D, Sebastiéo, bem como um 2° Cana do P.S. Gomes 20 P. Joao Alvares, provinc Jn NOMA, WV, p. 512. 3 Carta anus do P. B. Barcita a0 P, Jetnimo Dia, provincial, Saniago, 1 de Jancivo de 1610, in MMA, IV, pp. stiago, Outubro de 1613, 184 Os fests ¢ & Miso de Cabo Verde (1604-1642) fidalgo mane a quem chamou André, De tegtesso novamente ao reino de D, Pedro, foi a vez de Bessé, sucessor de Fatema, rei dos boulées, receber o baptismo, passando a chamar-se Manuel, ‘Um outro campo em que se fazia sentir a acco do P. Alvares era 0 da reconciliagio de desavindos, principalmente quando surgiam con- Uiastes entre os portugueses. Nessas ocasides, 0 missionério usava toda a sua autoridade moral para evitar que os conflitos atingissem propor (Ses incontrolaveis%. Ainda em relagdo aos portugueses, vemo-lo, por duas vezes, dar apoio € assisténcia a navios de passagem. Num caso, tratava-se de uma caravela aprisionada por piratas franceses e que D. Filipe de Leo con- seguira que lhe fosse entregue. Noutra situagio, eram duas galés que se dirigiam para a Mina, com muitos doentes a bordo, e que 0 P. Alvares prontamente socorren3® A solenizaco da liturgia era outta preocupagao do missionério, Assinale-se o cuidado que pés ao celebrar a Semana Santa e a Pascoa, num desses anos, no Porto do Salvador, no reino de D. Filipe: A igreja desta povoacio hé a principal que temas naquelles Reinos, ¢ porque ainda se nilo tinh2o feito nella os officies da somana santa, vendo 0 Padre 2 oportunidade que avia, foy despondo as cousas peta iss, © com 0 aviso que mandou a diversas partes daquelle Reyno acudio muita gente, assy 20 benzer dos ramos, que pera elles foy ceremonia nova, como a0 officio, € ‘missa' da quinta Feira, 0 qual comungario muitos. Fezse tambem & noite a procissio com disciplinantes, que causicéo grande admiragio nos gents, € devagao 20s novos christios, parava em passos que tialto feito pera isso com imagens que movito a devagio. (..] ‘Assy como foy grande o sentimento e cevacto que em todos casatio ( officios da sagmada paixio, assy foy pera elles nova extraoidinéria a alegria que receberl0 com os offcies do sabado santo e ressurreigto do Salvador, Neste dia concorrerio todos muito de madrugada & procissto que se fez com todos os instruments, miisions, cantares ¢ festas que naquellas pares foy possivel fazeremse%, & bidem, pp. 389-392, % Ibidem, p. 393s, % Cana anua do P. Barreira do ano de 1610 até Julho de 1611, Santiago, 17 de Julho de 1611, in MMA, TV, p. 440-442 3 Ibidem, pp. 443, 453s. % Ibiddem, p. 484s, Catena V0 dre Manuel Aares¢ 2 Sera Leoa 185 Nessa mesma Péscoa, mais um baptismo importante se efectuou: desta vez, uma filha do rei Parma, de treze ou catorze anos, que 0 prdprio pai enviara a0 missionétio «pera que a fizesse filha de Deos»™. ‘Na carta nua referente a 1611 ¢ 1612, integrada na sua obra E1i6pia Menor, é ji 0 proprio P. Manuel Alvares quem nos dé informagdes sobre 6s seus trabalhos nesses dois anos. Destaca-se a viagem efectuada 20 reino dos logos, acedendo 2 insisténcia do rei Farma. Serviu de inter medirio um portugues chamado Jo3o Lougio a quem o P. Alvares pediu que explicasse bem ao rei as condigées em que acedia ao seu convite: a Levou Jodo Lougia (que exte era 0 nome do devoto solicitadox) oninba Ee resolug2o ao barbaro; fez-Ihe hia pratica tanto a ponto sobre a materia, que E ficou maravilhado, Dezengine a Farma dizendo 20 Rey: se desejais 0 Padre ‘em vossas teas por concorerem 2 ellas aavios de portugueses, erties que = ‘9 Padre nao tem cé correspondents, nem he seu trato outro miais que trax z2er as mercadorias do céo € divinos méveis da graga, como primeiro que elle (fer o Padte Balthazar Barreira que v6s nao vistes Esclarecidas as motivagdes, Farma mandou que se desse inicio & construgto de uma igreja, no Porto de Mitombo, que o P. Alvares consi- derava a wobra melhor € mais curiosa: daquela regido®. Na festa da dedi- cao, compareceu Massa Fogoma, um dos reis subordinados a Parma, ecom toda a sua gente. O rei dos logos niio se encontrava presente por estar noutra regio mas, finda a celebraclo, foilhe enviado um embai- xador encarregado de Ihe relatar tudo 0 que presenciara‘®. Farma, 20 ser informado, respondeu, enviando também ele um emissério ao P. Alvares ccuja missao 0 P. Sebastiz0 Gomes descreve do mocio seguinte: Despede logo Farma outro embaxatlor 20 Padre com mutta extriordi- arias mostras do gasto que tinha da sua chegada 20 seu Reyno € do con- tentamento que recebeo com sua Vinda, ¢ manda que se Ihe entregue toda a terra e o declatem por Rey della, 0 que o Padre respondeo que nao tinh foutra cousa com que Ihe agradecer esta boa vontade senllo com declarar a elle © a todos os seus © que mais the imporiava, que hé 2 salvacao e sobre Jsto praticotalgtias couses a0 embaxador, as quses elle notou muito bem pera as Ir referr todas 2 seu Rey 2 Ibidem, p. 445, 3 /M, Avianes, Eldpla Menor, SGL, Res. 3, E-, fl. 116-117, 3 Teidem, f.117n, cfr. também carta do P. S, Gomes a0 P. Joao Alvates, provincial, Sentiago, Outubro de 1613, in MMA, IV, p. 514 4©/M, Auvanes, Brigpia Menor, SGL, Res. 3, E-7, £. 118 41 Carta do PS, Gomes 20 P, Joo Alvares, provincial, Santiago, Outubro de 1613, in MMA, IN, p. 517 pe 186 Cs fsutas e a Miss de Gabo Verde 1604-1642) Como se aproximava a Semana Santa, 0 P, Alvares decidiu ficar na nova igreja, dedicada a S. Jodo Evangelista, para at presidir as celebra~ ‘sdes litingicas. Como nos refere ainda 0 P. Scbastiio Gomes, o Domingo de Pascoa foi especialmente solenizado: B pera que nao parecesse 20s gentios € de menos capacidade, que indo 0 do chistianismo era penitencia ¢ lagrimas, se solemnisov # alvorada dda Ressurreigio de Christo estando a madrugada alegre ¢ todos com geral ‘contentment € alegria; ordenouse a poreissam, onde nto faltarao varias salvas de Togo, musica, nem a8 mais cousas necessarias pera tal acto, ‘com que acabaro os geotios de ficar maravilhados da variedade © sanctas cceremnonias da Tarja. Na carta nua que citémos, o P, Manuel Alvares conta-nos ainda um encontto com um missiondtio mugulmano que o veio visitar e a quem recebeu cordialmente, apesar de se the referir como slegado abominavel da seita mahometana-®, Sensibilizado com a hospitalidade do jesuita, ‘© mugulmano quis oferecerlhe um arriel de ouro que o P. Alvares recusou, comentando: Sontime, dizendohe que © ouro que eu vinha buscar a estas terras peregrinas era sua alma para Christo ¢ a de tants infleis, Quando elle ma Offerecera para isto que de boa vontade a aceitira; quanto 0 ouro, que eu © tinha deixado e todo o mundo por amor de Deos; que aczitar eu 0 seu era quebrar a palavra 20 Creador. O sacerdore falso fica maravilhado ¢ Instarido ‘multas veces sem querer recolher 0 seu ouro, Ihe pedi o fizesse no se escan- dalisanco de mim que era sev amigo e como a tal nao me devia pedir senao 0 lito, © muculmano acabou por compteender estas razdes ¢ 0 P, Alvares ficou mesmo com alguma esperanca de que pudesse vir a converter-se 0 cristianismo, manifestando-o num pacto significativo: -izemos hum concerto de sermos grandes amigos quando se quisesse fazer meu irmao professando a mesma ley+ Dos tiltimos anos de apostolado do P. Manuel Alvares ficaram-nos menos informagdes, © P. Sebastiao Gomes, superior da missio desde 1612, ainda tentou que se reunisse aos restantes companheiros, em © Ibidem, p. 519. 18 1M, Auvanes, Bipia Menor, SGL, Res, 3, E-7, &. 124v. 4 ibidem, f, Y24v 8 Biden, ff, 240-1256. Wo WW: © Padre Manuel Aleares ea Serra Leon Santiago, mas essas diligéncias foram inviabilizadas pela morte do Padre Alvares, na Serra Leoa, em 1617%, Sabemos que continuou sempre as deambulagdes missionétias pelos varios reinos, a preparacao dos baptis- mos ¢ que manteve mesmo contactos e disputas com viajantes ingleses. Na parte final da sua vida, como veremos de seguida, um certo senti- mento de abandono tera contributdo para agudizar as dificuldades Ievado a sublinhar a inconsisténcia de algumas das converses de que os jesuitas tinham sido protagonistas. 2.2, Mentalidade missiondria e visdo do «outros Na obra ja tantas vezes citada e infelizmente ainda inédita Bridpia Menor, o P. Manuel Alvares oferece-nos interessantes observacées sobre as caracteristicas € costumes dos povos com quem contactava, bem como os condicionamentos que colocavam & evangelizacao. Embora alguns desses aspectos sejam referidos como positivos, muitos outros so apresentados como verdadeiras barreiras para a vida crista Entre os aspectos positives observados, o P. Alvares nao deixa de salientar a inteligéncia dos habitantes da Serra Leoa, capazes de apren- der com facilidade tudo aquilo a que se aplicavam®. Louva também a inexisténcia de furtos pois roubar era considerado um vicio tio abomi- nivel que, mas ruas e fora das cazas, esto as fazendas sem haver quem Ihes téque; as igrejas abertas, sem faltar dellas nadav®. Cutioso € ainda o modo como o P. Alvares se refere a uma espécie de confisstio publica que os naturais da Serra Leoa tinham por. habito fazer, em duas ocasides: as mulheres antes do parto € todos ao sentirem aproximar-se 0 momento da morte. © missiondrio apresenta mesmo este uso como uma preparacio para o sacramento cristo da peniténcia De sua peniténcia hi tambem ci que dizer. Duss sortes hé de con- {isso vocal deste gentio. Ha he das mulheres vistabas ao pirto, outra he de toda a sorte de gente na hora e axigo da morte, Athé este nosso sacra- mento contrafeio quis e4 0 diabo trazer para ser melhor rocebido. As pobres “4 As deligencias que fiz pera nos vir 0 padre Manoel Alvarez assas forto grandez mas agora que se podia esperar por elle foi Deos Nosso Senhor servido levalo pera Si que parece quiz 0 mesmo morresse em stia emprezar, carta do P. $, Gomes zo P. Diogo Veloso, procurador geral, Santiago, 25 de Junho de 1617, AN/TT, Cantério dos Jesutias, ago 69, doc. 91, f. 1. 7 M, Avvanes, Beiipia Moror, SGI, Res. 3, B, £55 48 Tbidem, £5. Os lesutase a isto de Gabo Verde (1604-1642) raulheres fazem a tal confissio nesta forma tio larga © verdadeira que acimira; temv-lhes 0 dizbo persuadido que consiste ¢ depende o bom success do parto em descobri seus vicios © maldacles; e assim 0 fazem, dizendo de Si, dlante de muitos © que fizerio desde o iilimo parto athé aquelle, nomeando nao $6 a sl n0s actos gujos mas 20s complices; finalmente todas as culpas que athé alli commetiério; ¢ se 0 pirto, acabada a confissio, Ssuccede bem, 2 confissio 0 artebuem; e se mal, dizem os circunstantes que tencobrio, ¢ se succedendo bem, depois adoece a crianga, attribuem-no a informe confissio. E tio medrozas tras 0 diabo as tais mulheres e cegas que nfo callario nada por quanto ha; por causa de tantas circunstancias que succedlendo 20 contrario do bem qualquer cousa, tudo the langdo as césta. E se nio fizerem por pejo a confiss20 vocal, tomo has pedlubas € vio ‘com cllas contando as vezes que commetterio culpas. ’A da hora e artigo da morte he outra. Che eafermo hum gentio, vai peiorando, alo se the sabe culpa exteriormente, o iste tem felto miles Secrétos © quaisquer outios que nao se The sabem; vendo-se apertado com fs agonias da morte, fiz sua confissio voluntitia a que elles chamzo, bbantiné, dizendo 0 que fea: assim eré elle que acaba consolado e bem ®. Quanto a aspectos negativos, a lista do P, Manuel Alvares € vasta, A supersticio, a sensualidade, a ignorincia e a falta de interesse pelas coisas espirituais dos naturais da Serra Leoa levaram até 0 missiondrio a estabelecer uma comparagio entre estes € os japoneses, que considerava estarem numa situagio muito mais propicia para perceberem ¢ aceita- rem © cristianismo, pela curiosidade que manifestavam por tudo o que fosse espiritual ®. Uma dificuldade sentida era o excessive apego As tradigoes dos antepassados. Os adultos muito dificilmente estavam dispostos a pé-las de lado e 0 P. Alvares achava que, nessas circunstincias, poucos pro- gressos na fé havia a esperar, mais valendo preocupar-se com 0 ensino acompanhamento das criancas*. Uma outra observacio que o P. Manuel Alvares nao deixa de fazer refere-se & persisténcia da antropofagia entre os manes, que recorda de modo particularmente realista Gabao muito as pastes do corpo humano mais saborésas e dizem elles serem-no a palmas das maos, plantas dos pés ¢ outras; ¢ quando trata disto he com tanto gosto que bem mostrio nelle quam singular deve ser & © Ibidem, f. 70-711 5 Bbidem, £63 5 Tbidem, f 63e. Canto I © Pade Manuel Aloares ea Ser Leow 189 | iguaria, Nem se pejio de nomear as pessoas que mais accomodadas Ihes i pparecem para estes gulsados, de sorte que assim he ene elles usada a came | ‘como entre nés a de vacea, carneito, ete. Entre as dificuldades para a conversio, o P. Alvares aponta repeti- damente o mau exemplo dos cristios, Era com profundo pesar que via 105 seus esforcos serem postos em causa quando os prOprios portugue- ses enveredavam pelo estilo de vida que ele procurava erradicar entre 08 afticanos, Por isso exclamava: CCheio estis, triste Guiné, de toda a mizeria pois te fata 0 estandante & ‘0 guite do bom exemplo, [1 Com to rim coadjutor que se pode esperar i de conversbes? Sendo assim que © gue mais as faz erescer he o bom fexemplo, Com semente t20 nim e tanto joyo, que ttgo se poder conservar sem brago do Alissimo? [ le Consciente da complexidade da situagio que enffentava € no | sabendo com que apoios os nedfitos poderiam contar no futuro ime~ ' diato, o P, Alvares procurava agit coerentemente, sendo mais exigente | na admissio ao baptismo. Mesmo com perigo de causar escandalo, pre- feria adiar a administragao do sacramento do que baptizar com poucas probabilidades de perseveranca na fé, critério que ja o P. Barreira seguira também. Significativa é, ainda, a conviegZo que manifesta em relagio 3 necessidace de os missiondrios aprenderem as linguas locais, apesar de sentir perfeitamente a dificuldade em encontrar vocdbulos para explicar 0 certos mistérios da fé crista, como a Santissima Trindade, Mesmo assim, face & imprecisio com que os intérpretes disponiveis traduziam, pensava que a primeira tarefa do missionario era procurar siglo da lingua para perfeitamente se conseguir o fim dos ministérios evangélicos-*. Dos escritos do P, Manuel Alvares ficasnos a sensagao de que, & medida que 0 tempo passava, as dificuldades se foram acumulando ¢, com elas, o sentimento de desilusao. Nao € de estranhar que, a0 fim de tantos anos sozinho, com apoio tio escasso quer do donatério da Serra Leoa quer também dos seus itmios jesuitas, pensasse ser deveras pre~ céria a situagdo daquela cristandade, ja nessa altura e, ainda mais, no % Ibidem, f 80s 5 Ibidem, £1136. St biden, §. 126. 55 Ibsdem,{. Sv [ee 7 - oo 190, Os jesutas «a Misido de Cabo Verde (1604-1642) futuro, Esses sentimentos poderio ter avolumado a desconfianga com que fala de tantas conversbes, duvidando crescentemente da sua sinceri- dade. Também este € um tema recorrente na Btidpia Menor, onde a pala~ vra dingimentos aparece com frequéncia. As palavras do P. Alvares a esse propésito sto de grande dureza: no fundo, o missiondrio pensava que a maior parte das conversées tinha sido motivada pelo interesse © pelas promessas da presenga organizada dos portugueses. Quando comecou a tomar-se evidente que essas promessas nfo se iiam concretizar, tam- bém a populagao foi tirando a mascara cristé que colocara, com excep- flo de alguns que o P. Alvares considerava slitios entre espinhos-, E nesta perspectiva que se podem entender as seguintes afirmagé ‘Todos trazom ¢ trouxerdo sempre hita christandade escondida com as cereménias do paganismo; porque s6 4 vista do Padre se mostra0 christios; sendo na do Senhar peiéres que gentios. (.] Que se podia esperar de paglos que se lavirlo nas dguas no da PS mas do interesse sento este despejo e desatino em revolver no secreto & ppiblico de novo a sepultura da idolatra? Nao os chamou a graga, o interesse sim; ndo apoz as aguas mais cheisoses da Fé; mas apsa a fragranicia falsa do temporal. Nio quer 0 gentio da Ptidpia senio hum Deos do temporal, hum ‘Dees do ventre, hum Deos de vinho, nem a outra couza; ¢ cuidar que pass Aifferente disto he engano. Todos serio christios se houver dar; mas teri0 86-0 de taes 0 nome. [J Nao quer nenhum gentio destes de ordinésio mais a Fé como elles a recebem do que para ter entrada comnosco; cat volta disso saberem nossas ccousas e viverem do nosso star, Pedras inconstantes sto todos; se algum de verdadeira vontade se converte ao Senhor, foi miserieSedia sua grande aioe o toque fnterior comm a luz de sua ley sarassima Com a mone do P. Manuel Allvares a decadéncia foi-se acentuando. © capuchinho espanhol Frei Serafim de Leo ainda encontrou, na Serra Leoa, em 1650, muitas igrejas arruinadas € um velho rei que tinha sido baptizado pelo P. Barreira, em 1606, mas pouco mais%, Neste sentido, eu 6 Ibidom, f. Uv. % Ibidem, ff. L11v-112s, cfr. também ff. 56v e 63. 5 -en summa dice, que divulgada su Hegada a Cierra Leona, le pidigron tes 0 ‘quatro reies el Sancto Bautismo para si, sus hijos y hermanos; y que se an reedifieado muchas Iglesias que estaban siuinadas; que hallo tambien un Kei grande, y muy viejO {que bautizs el Pe. Varrera de la Compafia de Jess, tan ignorante en doctrina christian, que aun no se sabia persinar, ai aun hazer la seal de la Cruz, por falta le quien te ense- ase; pero, dice, tiene grandissimo affecto de saber todas las casas de los christianos, carta do P. AntGnio de Jimena ao P, Guardido de Sankicat, Recife do Cabo Verde, 12 de Junho ele 1650, in MMA, ¥, p. 580s carte TV: 0 Padre AfanelAloares 0. Sera Leon 191 devemos reconhecer que a acgio missiondria dos padres Baltasar Barreira e Manuel Alvares acabou por frutificar muito menos do que cles sonhavam; contude, nic podemos esquecer um outro contributo seu que ainda hoje permanece: os escritos que nos legaram, considerados unanimemente preciosos para a histéria daquela regiio®, ae we eo '® Sierra Leone of today owes a lasting debt of gratiude to her Jesuit missionaries of the seventeenth century for their ropors and letters which constitute scientific doc sents for the study, not only of the religious history of our countsy, but also for that of its political history, its geography and its ethnography., E, Haweens, The fests in Sierra Leone 1605-1617, A whirlwind of Grace, in The Sierra Leone Bulletin of Religion, 6 2969, p. 8.

You might also like