You are on page 1of 11
xO! wT ANIMO DE AMAR Snvia SALMAN (BuENos Aires) silviacal’nan @jiberel com.ar Eric Laurent — Silvia Salman, que vivem em Buenos Aires e que se analisou entre Buenos Aires e Paris, vais nos falar de seu dnimo de ama, entre vontade, desejo e coragem de amar, colocando de modo totalmente diferente a sutileza da montagem do que também chamamos de objeto oral em psicandlise. ‘A decisao de enviar a carta ao secretariado do passe foi para mim da mesma or- dem que a decisio de terminar a andlise. Entregar a carta teve 0 valor de um ato. Este ato recolheu aquele outro, que um ano ¢ meio antes me havia levado a separar-me do analista Iniciei esta ul 14 andlise 10 anos antes, por ocasiiio do que naquele momento nos reunia como Encontro Internacional do Campo Freudiano. Era em Buenos Aires e eu estava desolada pela morte do meu analista, que havia coincidido com o desencadeamento surpresivo de uma grave doenga em minha mae. Em meio a tal angdstia, a quem dirigir-me? E somente nesse momento que me dou conta até que ponto a transferéncia estava concentrada no analista, Com ele fazia supervisdo desde o inicio da minha prdtica, com ele havia estudado Lacan antes da fundacao da Escola, com cle finalmente me havia analisado. Em meio a esta conjuntura, decido pedir uma entrevista a um psicanalista estran- geiro. O estranbo nao seria um detalhe menor no momento de sair da repeticio do. mesmo. Um lapso no inicio dessas entrevistas: ao referir-me aos “restos fantasmiticos” digo “restos transferenciais’-, evicenciou 0 que restava da andlise que acabava de deixar. Opeto tacaniana n° 58 103 atubeo 2010 Esse lapso marcaria, de entrada, a orientagao dessa Gltima experiéncia, A transferéncia encontrava-se na mira significante ‘exclusiva’ concentrava equivocamente a exclusividade da transfe- réneia da qual me havia nutrido tanto tempo sem saber, Esta nova experiéncia, que seria a tltima, foi a ocasio para desentranhar aquilo que havia condicionado a escotha do analista anterior, como também para retornar as construgdes realizadas até ali O corpo inanimado Orientada pelo analista, esta Gltima andlise comega pelo lado do pai. Como con- rapartida, uma interpretacdo absolutamente silenciosa sobre a mae a0 longo de toda a experiéncia ~ nenhuma palav-a sobre a mae -, permite fazer cair finalmente o complexo materno que enodava o objeto oral, a anorexia e © problema com a demanda, ao redor da qual haviam girado até entao as andlises anteriores. Desde os primeiros meses de vida manifestou-se em mim um sintoma que muitos anos depois pude nomear como anorexia. O diagnéstico médico nessa época foi de raquitismo e mongolismo, Um severo rechaco ao alimento que pos em risco a vida € que a medicina nao podia curar levou a familia a mudar de cidade por sugestio médica. A cidade balnedria de Mar del Plata foi 0 novo destino aos 6 meses de idade. Ali passaria os primeiros anos da minha infancia, O nascimento de minha filha ativou todo um fragmento da minha vida infantil que permitiu explorar as coordenadas da construgao da neurose infantil Uma série abundante de sonhos nos quais de um modo ou de outro perco minha filha, puderam interpretar-se como sonhos de separagao do lugar da menina. Em todos eles se acentuava o desamparo: perco-a, esquego-a, deixo-a sozinha Por outro lado, a supervisto de alguns casos de meninas em andlise acentuava como contrapartida a loucura das mies. ‘A mie louca e a menina desamparada, e 0 enorme padecimento subjetivo que acarretou esse lago primério com 0 Outro materno, organizaram toda uma parte daquele trabalho analitico no compasso daquilo que o inconsciente cifrava incansavelmente. Esta dialética colocou em relevo 0 problema com a demanda. A demanda do Outro tornava-se insuportavel. “Ser demandada pelo Outro” era equivalente a “ser devorada pelo Outro® Pude assim entrever essa precoce decisio de fechar a boca perante a voracidade que encarnava entdo no Outro materno: “Come, comet”, era © grito que transbordava todas as cenas ao redor do alimento. Opgéo Lacaniana 58 104 ‘Outubro 2010 on PST Saw A consisténcia do Outro materno tornava dificil a entrada da tao esperada € ines- timavel mediacio paterna. Versdes cruéis acerca da minha chegada a0 mundo, que ex- clufam, todas elas, a implicagao do desejo de um pai, nao deixavam vislumbrar 0 lugar por onde a causa paterna poderia fazer sua aparicao. Podia captar meu préprio rechago, mas a pergunta sobre o porqué do rechaco. materno insistia na andlise: “Por que ela me deixou cair?” Um esforgo a mais no esclarecimento da hist6ria permitiu reconstruir as coorde- nadas do meu nascimento. Os avés maternos viviam em Buenos Aires, mas passavam varios meses fora do pais. No momento do meu nascimento eles nao estavam presentes ‘A auséncia imperdoavel do seu pai instala em minha mie uma depressio que se tornara mais aguda, tempos depois, com a morte do seu pai Acura pelo pai Por outro lado, a mudanga de cidade implicou uma mudanga substancial na econo- mia de meu pai. Em Buenos Aires, trabalhava desde sev casamento no empério comer cial da familia materna, como “empregado” em um dos estabelecimentos. Em Mar del Plata instala seu préprio estabelecimento, que mantém ao voltar a Buenos Aires, buscando deste modo sua independéncia comercial. A cidade de Mar de! Plata, que contém em si mesma o valor filico do dinheiro & da independéncia comercial, restituiram ao pai sua poténcia simbdlica ¢ a capacidade de dar um nome ao corpo inanimado da menina. Finalmente 0 olhar do pai estreve uni ago: “Desenho animado’, € 0 significante a partir do qual a menina comega a ser nomeada pelo pai Uma cena nos c6rregos! de Mar del Plata, essa grande explanada emoldurada pelos dois lobos marinhos e uma série de pequenas esculturas, ficar fixada em uma fotografia na qual a menina esti sustentada e apoiada numa dessas figuras, posando para a foto. A cada vez que o olhar Co pai se encontrar com essa fotografia, brotara dele “Meu desenho animado’. Um S, que a partir de ento animari o sujeito e ao redor do qual se dard vida tanto a0 sintoma quanto ao fantasma. Com o surgimento do nome obtém-se uma notavel melhora da anorexia, atribuida 5 maravilhosas virtudes dos ares maritimos que coincidem, sem divida, com os efeitos impressionantes da poténcia da palavra do pai. ‘Opgiio Lecaniana 1° 58 105 Outubro 2010 “Desenho animado” Nesta tktima andlise, inicia-se ento um trabalho detalhado sobre a formula com a qual foi nomeada. Do “desenho animado” pude extrair a prevaléncia do objeto olhar recortado no horizonte do fai. Posso destacar, dentre outros, trés elementos concentrados nesta frmula, Hm primeiro lugar, © vivo no animado, que faz contraponto ao goz0 mortifero da anorexia vinculado a0 Outro materno. Em segundo lugar, um corpo que escapole, que nao pode ser agarrado ja que nao se trata de um corpo de carne e oss0, mas de um desenho. E em terceio lugar, urn modo de nomear no masculino, que deixard em suspenso 4 construgao de um corpo de mulher. Um olhar que agarra Interrogada pelo analista se encontrava no olhar do parceiro? o olhar do meu pai. se atualiza no dizer sob transferéncia uma modalidade de gozo que condiciona todos os lacos amorosos. “Sentir-me agarrada pelo olbar do Outro” fixa uma posigio subjetiva © um padecimento que toma a forma de sempre “querer estar em outro lugar’. “Uma interpretagio cortratransferencial: “Vocé me provoca isso”, e um “agarrar-me* ‘em ato por parte do analista que me fez sair fugindo, me fazem perceber que a pulsio sempre é ativa Entao, “Sentir-me agarrada pelo Outro” declina-se em direcdo a: “Fazer-me agarrar pelo Outro’ Por outro lado, a lembranca de um comentério que o analista fez a respeito do analista anterior, nomeando-0 como “fugidio’, fazendo referéncia ao fato de ndo saber nada da sua vida privada, colocou-me na pista do que me convinha naquela transferén- cia t20 poderosa. Se ele era fugidio, entio eu também pod Completava-se assim o circuito pulsional no qual estavam enodados sintoma € fantasma: “Fazer-me agatrar, para fugir’, sendo eu mesma fugidia ¢ arisca na forma de estabelecer lagos, especialmente com os homens. Assim comecava a elucidar esse lado da satisfacio na transferéncia que condicio- nou a eleicio do analista anterior, trago sintomatico que se deslocava desde o parceiro amoroso até © parceiro analista A primeira vez que me disigi a um psicanalista, sendo muito jovem, foi pelo mal- estar com meu parceiro amoroso que, desde 0 comeco dessa relagao, tomou a forma de ser. Opsiio Lacaniana 1 58 106 Ounudso 2010 FITTER TET eT “estar € no estat ao mesmo tempo”. Esse mal-estar delimitava um dentro e um fora em cuja borda habitaria grande paste da minha Esse trago era 6 que ele mais amava em mim, e também o que mais detestava © encontro com esse parceiro, com quem dividiria grande parte da minha vida, esteve desde o inicio marcado por esta consonaneia sintomstica, Atualizava-se assim, na transferéncia, essa forma de lago fundamental que 0 sujeito mantém com o parceiro-sinioma Ao mesmo tempo pelo contrério, podia comegar a vislumbrar que na experiéncia atual 0 analista era alguém que nao me deixava ir. la, Oesclarecimento Este esclarecimento da gramatica pulsional evidenciou aquilo que se repetia uma outra vez nos diferentes aspectos da vida. Um lapso, a contingéncia de certos encontros & uma interpretagio: “O antigo com © novo ou 6 novo com o antigo” permitiram localizar a repetigio e fazer cair em um efeito domind a razio de todas as escolhas amorosas realizadas até © momento. Esse foi o momento de verificar que 0 abalo libidinal produzido como efeito do trabalho analitico, comecava a dar lugar a certas transformagSes nos lacos. A saida do grupo e cutra relacao com a Escola insinuava-se nesse horizonte, a0 mesmo tempo em que uma reacomodacio no lago com 0 parceiro instalava urna nova forma de estar. Em ambos 0s casos tratava-se de estar mais dentro do que fora, levando isso me- Ihor, tragando outra borda entre o padecimento e © funcionamento. Produz-se, entdo, um ponto de inflexto na andlise que € pontuado pelo analista da seguinte forma: “Esclarecimento absoluto do fantasma, disponibilidade da libido, gosto pelo trabalho e saida do impasse sexual. O que mais?" Este foi um momento de impacto subjetivo — Havia terminado a anilise & nao sabia? Era efetivamente um momento de esclarecimemto, que produzia, certamente, efei- tos nos lagos mais intimos. Mas ainda no se tratava do momento de separacao, aquele no qual se perce essa satisfaglio que havia animado toda uma vida, Como seguir? Por onde sair? Ent outra interpretagao: “Voce ainda no encontrou o significante desanimado” foi a interpretagao que orientou a andlise em diregao 4 saida e ao final. Opgio Lacaniana a? 58 107 Outubro 2010 O desinvestimento Comegava assim 0 inicio do final que concluiria varios anos depois. ‘Uma série de sonhos, aos quais chamarei de “sonhos de desinvestimento", indica- ram € provocaram a erosio do gozo que estava concentrado no objeto olhar, O primeiro deles comegava a interpretar 0 enigmitico significante desanimado, liberado pelo analista € que anunciava os tempos que vinham: “Um espaco grande, com trajetos € escadas (como 0 quadro de Escher) se transforma em um espaco vazio. ‘A imagem é difusa, esfumagada e borrada, Uma palavra escrita numa lingua estrangeira Com surpresa me percebo dizendo nas associagdes: “desdesenhado” Em outro sonho *o analista vem ao Encontro Americano em ‘Quito’, Equador". Nessa época realizava-se o Encontro em Buenos Aires, a0 qual o analista finalmente nao vem, Essa auséncia acentuou 9 “Quito” como vazio. Um terceiro sonho “estou com o analista numa entrevista, ele esté na escrivaninha € escreve NAO.” E, finalmente, o Gltimo sonho desta série: “as costas de um homem, € 0 analista € se destaca a cor bege? camel do palets” Subtrair o olhar ao Outro da transferéncia traz os signos do que na transferéncia com © analista anterior ainda n&o havia sido esvaziado. A-cor camel identificava particularmente aquele analista, lembro-me entlo de uma ocasiaio na qual eu vestia um pulaver desta cor ¢ havia recebido de sua parte um olhar especial. ‘Surge entao um dizer que, a forma de um lapso, interpreta e enuncia uma dltima verdade que permanecia escondida por detrés do amor de transferéncia. Digo: me deitei com ele” destacando que aquela experiéncia de andlise havia transcorrido face a face, colocando em evidéncia 0 gozo do olhar que se sustentava nela Cabe esclarecer que 0 que me havia levado 4 comegar essa anilise naquele mo- mento era a indecisio a respeito de ter outro filho. Uma frase do meu parceiro: “Se nao € com vocé & com outra’, foi 9 que me empurrou a retomar & analise A pergunta pelo desejo de ter um segundo filho se instalou de entrada, ¢ a gravi- dez se produziu ao sair da primeira entrevista. Assim, com a série: desinvestimento, desanimado, desdesenhado, a qual se acres- centava agora o desembaracar-me das embrulhadas da transferéncia, entrava no funil do final cuja proximidade reconhecia, mas ainda nao encontrava a forma de sait. Opgio Lacaniana n? $8 108 ‘Ourubso 2010 PETTITT Uma logica encarnada Uma doenca grave do meu pai me confrontaria com o aspecto mais real da légica que vinha percorrendo na anilise. Ap6s uma visita no centro de terapia intensiva, a intensidade da angustia, somente comparavel & do inicio desta tiltima andlise, na qual transcorria 0 luto pela mie € pelo analista anterior, levou-me a me perguntar pelo né dessa angiistia Repassando a cena nc hospital, detenho-me no “olhar perdido” do pai © “olhar perdido” ressoa no corpo € me atravessa de tal modo que acentua uma sonoridade diferente da da ‘perda do olhar’ que vinha construindo no trabalho analitico. Um alivio inesperado indica 0 ponto mesmo em que a extraglo do objeto se pro- duz, conchiindo em um “Nao mais fazer existir 0 olhar do Outro que me agarra” Um sonho se acrescenta a série anterior: "Viajo no metré com um ticket semanal (geralmemte ficava uma semana na andlise), um homem o recebe, é 0 analista esfuma- sado € borrado, e me diz que € 0 tltimo. A imagem é a de um tanel em perspectiva, escuro ao final.” Ao final, um desinvestimento absoluto do olhvar como objeto € um sonho no qual © pai no responde, revelam que 2 no resposta, as costas, o NAO e o timo bilhete de metrd anunciam a despedida Finalmente, a interpretagao do analista: “Deixo-a ir” é a interpretagao com a qual conclut este trecho da anilise e é também a interpretago que me dard a chave da safda. Passaram-se varios meses, a0 longo dos quais 0 “deixo-a ir” ressoava de diferentes maneiras, em diferentes situagdes e com diferentes articulagdes. Um comentirio escutado em umas Jornadas em relagio a transferéncia, em um testemunho de AE, revelou a estrutura dessa interpretacao. CO analista, encarnando com seu dizer e sua presenca 0 furo, permite que o circuito pulsional seja percorrido. Assim, afasta-se o véu € ele mesmo, permitindo a analisante interpretar seu gozo. "Se ele me deixa ir, e eu continuo aqui, entdo nao existe ninguém que me tenha agarrada, nem o analista’ Por outro lado, uma sensagio incémoda de me perceber falando da minha prépria experiéncia em diferentes apresentagdes, € um sonho em que, como em um luto a duas vozes, repetia-se “Passe — Fim de anilise", “Fim de andlise — Passe”, levam-me a tomar a decisio de terminar a anilise. Com a conviegio de ter alcangado o final, decido viajar, por ocasiaio das Jornadas da ECF cujo tema era “Como terminam as anélises”. Ver se finalmente conseguia. pedo Lacaniana a $8 109 Outubro 2010 O significante desanimado © comeco deste tiltimo trecho da andlise se iniciara, ainda que com certa vacila- 40, no diva. Um sonho solta um diimo significante: “encarnada’, a0 redor do qual giram as primeiras sessbes deste momento conclusivo, Logo o siléncio se instala, 0 incmodo e o velho mal-estar no corpo, de querer fugir. Transcorrem varias sess6es até que o analista interpreta: “Vocé me nostra que ja no tem nada pars dizer, agora pode falar". Essa interpretacio permite sentar-me e comecar a falar do ato que implicava para mim terminar a andlise. Aproveitar 05 dias que ficavam com © convite a construir © passe, empurraram ainda um pouco mais a experiéncia Aquela interpretacao: “Vocé ainda nao encontrou o significante desanimado”, que havia desencadeado o tempo de desinvestimento, mantivera em mim nesses anos a idéia de que teria que encontrar um significante de tais caracteristicas, ou seja, um significante desanimado. Assim, de tempos em tempos, interrogando-me sobre 0 ponto em que me encon- trava na anélise ou tentando formalizar a experiéncia, pude perceber que ainda nao o havia encontrado, Contudo, na borda da saida, na sala de espera, na qual havia passcdo um longo tempo construindo o que ia dizer ao analista, ali, no instante antes de concluir, apresen- tou-se diante de mim a evidéncia da carta roubada: ‘o significante esta desanimado!!” Nao se tratava de encontrar “um significante, mas de encontrar-me com a evidén- cia de que o significante estava, no fim, desanimado, © impacto de tal encontro permite alojar entao o significante “Encarnada” no furo que se tragou, uma vez que se esvaziaram e desanimaram todas as identificagdes com 0s significantes do Outro. # a escritura que surge no lugar do vazio quando a cadei € a repetigdo encontra um limite “Encarnada" € 0 avesso do "desenho animado’. Eo significante novo que se acres- centa sem fazer parte da série, ainda que esteja feito do que resta

You might also like