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I- RELACOES INTERNACIONAIS DO BRASIL Amado Luiz Cervo 1 - INTRODUGAO A HISTORIA DAS RELACOES INTERNA- CIONAIS DO BRASIL 1.1 - Histéria e teoria Dois ramos de um conhecimento Desde o final da Segunda Guerra Mundial, cientistas politicos e historiadores, em némero crescente, dedicam-se ao estudo das relagdes internacionais. Os dois grupos investigam 0 mesmo objeto com as mesmas finalidades: estabelecer a compreensio, talvez a explicagio, e influir direta ou indiretamente sobre a tomada de decisdes e, dessa forma, sobre 0 curso dos acontecimentos. Também atuam com objetivos mais pragmiticos, principalmente os primeiros, quando formam especialistas para exercerem fungdes junto a insti- tuigdes e organizagdes que operam no exterior. Se tudo isso une historiadores e teéricos das relagGes internacionais, outros fatores os separam. Ao examinarmos a literatura que vem a ptiblico de ambos os lados e as condigées praticas em que se desenvolvem os estudos concluirfamos que ainda persistem nos diversos pafses fatores de distanciamento: citimes, métodos, conceitos € preconceitos, isola- mento departamental, didlogo de surdos. Por outro lado, para alguns, a necessidade de colaboragio entre os estudiosos das relagées inter- nacionais vem sendo percebida recentemente. Com efeito, os mais renomados estudiosos, teéricos e historia- dores, abandonaram os estereétipos que se nutriam em virtude daque- les vicios de relacionamento que alimentavam a ignordncia miitua ou 10 Amado Luiz Cervo a superficialidade do conhecimento reciproco. Reconhecem que exis- te um curso subterréneo, onde quase se confundem historiadores e tedricos, estes ampliando as bases empiricas e alargando a abrangéncia de suas hipdteses, aqueles extraindo da teoria novos conceitos para diversificar os caminhos da pesquisa. Algumas universidades estdo organizando programas de ensi- no e pesquisa que integram a histéria e a teoria das relagées interna- cionais em grau de surpreendente harmonia. A tradigio sufga da interdisciplinaridade vivida pelo Instituto Universitdério de Altos Estudos Internacionais de Genebra constitui uma experiéncia que pareceu conveniente estimular. Todavia, de modo geral, a organi- zagao das universidades em departamentos, sendo estes as células de base dos programas de ensino e pesquisa, separou historiadores ¢ teéricos, permanecendo os primeiros nos de Histéria ¢ indo os outros alojar-se nos de Ciéncia Politica ou de RelagGes Internacionais. Ambos passaram nao s6 a trabalhar em separado, mas a desenvolver métodos separados e a estudar com preocupagdes préprias um mesmo objeto. A separagdo explica o desenvolvimento de dois ramos de conhecimento sobre as relagdes internacionais, que tanto podem vir a se fundir, quanto a se apoiar ou a se excluir. Essa fragilidade foi percebida pelos criticos que fazem a histéria da teoria. Uma primeira reagio a ela foi a transformagio de muitos programas de relagées internacionais em cursos técnicos, com 0 objetivo de formar especia- listas para integrar 0 quadro de pessoal dos agentes internacionais. Outra reagdo verificou-se com a disposigao de aproximar as metodo- logias de historiadores ¢ teéricos, com o fim de aprimorar 0 quadro conceitual que permita fazer avangar a pesquisa teérica sem aprofun- dar o divércio com as bases empiricas e a pesquisa histérica, a scu turno, sem desperdigar as luzes de novas categorias explicativas. Esta segunda tendéncia sera mais bem compreendida ao se proceder ao balango dos estudos atuais no campo das relagdes internacionais '. A teoria das relagoes internacionais Toda construgao tedrica pressupde uma ambigio cientifica. Nas ciéncias sociais, trata-se de organizar 0 conhecimento, ordenar os passos de sua aquisigiio e desenvolver conceitos permanentes com O Desafio Internacional i 0 intuito de explicar determinados fendmenos. Mas a teoria envolve substratos doutrinais, tradigées e posturas diante do real, que dio origem a correntes, paradigmas e modelos diversos. A teoria das relagdes internacionais apresentou, historicamen- te, duas grandes tendéncias. Aquela de cunho acentuadamente positi- vista atribui importancia especial ao dado empfrico, necessdrio para verificar hipéteses, de preferéncia quantitativas, sem o que ndo se haveria de chegar 4 almejada explicagiio dos fatos. Nos anos 1960, esse realismo cientffico levou os behavioristas, por exemplo, a extrair seu método - nao sua teoria - das ciéncias exatas, na crenga de poder explicar fendmenos humanos, como se explicariam os fendmenos da natureza. Se fizeram avangar a teoria das relag6es internacionais, nio deixaram de cometer grosseiros erros de interpretagio. A outra tendéncia dos estudos de relagées internacionais apre- senta carter distinto. E mais cldssica. Vai a procura do sentido, nao necessariamente da explicagdo. Tem inspirago filos6fica mais que cientifica. E weberiana ou marxista, por exemplo. Dados empiricos nio fornecem de por si explicagdes para os fendmenos. Crengas, valores, normas ou padrées, simpatias e outros clementos da subjeti- vidade também foram incorporados a essa démarche compréhensive do estudioso. As diversas posturas ideoldgicas diante das relagGes inter cionais condicionam a evolugao do conhecimento a ser produzido. Assim, realistas e neo-realistas apontam para o Estado como ator privilegiado e para a forga como esquema natural do jogo; segundo sua visdo, a paz e a seguranga pressupdem o equilfbrio das poténcias; a violéncia faz parte das relagSes internacionais. a= Simpatizantes das teorias do imperialismo de inspiragao leni- nista viram nas relagdes internacionais a maldade do sistema capita- lista, a conjurar pela mudanga prévia da ordem interna dos Estados para o socialismo. Inspiraram, nos anos 1960, as teorias da dependéncia que fizeram aparigaéo no Terceiro Mundo de entio. O neo-imperialismo que as define seria a explicagdo para a exploragio dos paises do Sul pelos do Norte e para o atraso que os separa em termos de desenvolvimento histérico. Os liberais, por sua vez, desenvolveram a visdo sist¢mica ou do funcionalismo, observando a diversidade dos agentes 12 Amado Luiz Cervo internacionais, a interdependéncia de todos os fatores, a cooperag4o e a solidariedade - mesmo se a ordem possa resultar do egofsmo - ¢ insistiram sobre a mundializagao dos problemas. Além do influxo que advém das tendéncias tradicionais e das ideologias, a teoria das relages internacionais est4 sujeita a aborda- gens diversas, que dao énfase a fatores, atores ou valores e fazem uso de conceitos instrumentais diferentes. A evolugio dispersiva dos estudos aponta para certas conclusdes. A fragilidade das teorias persistird enquanto nio se avangar no caminho da simbiose. Pressupde-se que ciéncia ¢ compreensao, ideologias diversas ou adversas e abordagens possam contribuir para o aperfeigoamento de quadros conceituais, conquanto se dispam da intransigéncia e nio percam o escopo do estudo: definir a especificidade das relagdes internacionais, melhorar a compreensio dos fenédmenos e dos comportamentos, explicar se possivel os proces- sos histéricos’, A histéria das relagdes internacionais Apenas nos Estados Unidos, a hist6ria das relagdes internacio- nais esteve estreitamente ligada 4 evolugdo das teorias das relagdes internacionais desde 0 pés-guerra. Porque se inspirou em seus para- digmas, tornou-se introspectiva, visto que 4 ciéncia politica coube dar intelegibilidade e justificar a politica exterior dos Estados Unidos na segunda metade do século XX. Na Europa, pelo contrario, desde os anos 1930, acompanhando o ritmo de renovagao das ciéncias histéricas, a histéria das relagdes internacionais definiu seu perfil préprio, em termos de objeto, méto- do, volume de conhecimento e construgdo teGérica. A histéria diplomdatica que ainda se fazia em todo o mundo, A excegio de um grupo pioneiro reunido por Pierre Renouvin junto 4 Sorbonne (criagdo do Instituto de Historia das RelagGes Internacionais Contem- pordneas em 1935), tinha pretensdes de ser cientifica, porque consis- tia numa derivagio do positivismo e da escola metédica. Na realida- de, a histéria diplomatica tradicional apresentava falhas elementares: descrevia fatos isolados, investigava poucos problemas, sobretudo da O Desafio Internacional 13 esfera jurfdico-politica, desfilava os argumentos das respectivas chancelarias, regia-se por uma viséo de dentro das nagdes senao mesmo dos nacionalismos, carecia de explicagao. A transi¢éo para a modera histéria das relagdes internacio- nais foi lenta. Mas na Europa foi linear e segura, pela via do acumu- lado cientifico e nao da contradigao como ocorreu com a disciplina irma da teoria das relagdes internacionais. Entre os paises, os ritmos também foram diferentes. A Franga puxava 0 movimento de transi- ¢4o seguida por Sufga, Italia, Bélgica e Gri-Bretanha. Acumulava-se, nos anos 1950, um grande ntimero de teses e pesquisas. Insatisfeitos com a teoria que lhes era apresentada pelos cientistas, os historiado- res langaram-se na construgdo de uma teoria das relagdes internacio- nais a base de historia. Em 1964, publicava-se a primeira obra classi- ca nessa area, a Introdugdo 4 historia das relagées internacionais, de Renouvin e Duroselle. Em 1981, este ultimo incorporava 4 teoria as reflexdes feitas sobre um volume gigantesco de pesquisas conclufdas em todo o mundo (Tout empire périra: une vision théorique des rela- tions internationales). Em 1985, a revista Relations internationales reuniu em dois ntimeros (41 42) reflexdes tedricas de historiadores oriundos de uma dezena de paises europeus. Em 1989, reuniu-se enfim um congresso mundial sobre as questdes tedricas e meto- dolégicas da histéria das relagdes internacionais, em Perugia, na Ttdlia. A maneira como historiadores fazem teoria das relagGes inter- nacionais € bem distinta do procedimento dos cientistas politicos. A diferenga est4 no ponto de partida: para estes, certos principios admi- tidos como postulados que presidem 4 dedugio do conhecimento; para aqueles, a massa de conhecimento acumulado pela pesquisa de base empirica admitida como fundamento de um processo de raciocinio que é, antes, indutivo. A teoria dos historiadores revelou- se aberta e flexivel 4 contribuigdo de outras ciéncias sociais e acabou por libertar a hist6ria dos nacionalismos que impregnavam a velha histéria diplomatica. A teoria dos historiadores tem outro ponto de distingdo relati- vamente de seus colegas cientistas: ndo corre atrés daquele segre- do, a chave da explicagdo das relagdes internacionais. Seu escopo nio elimina a busca da compreensdo e da explicac’o obviamente, mas, enquanto nao se chega 14, cogita-se em orientar de forma segura e 14 Amado Luiz Cervo adequada a investigagdo dos fendmenos internacionais. Essa teoria é antes de tudo uma estratégia de investigacg’o, como se perceberd pelo exame de alguns elementos importantes que a definem, expostos a seguir. As relagdes internacionais tm componentes histéricos que devem ser localizados na antropologia e na psicologia, nas imagens e conceitos que se produzem acerca do estrangeiro, na forma como os agrupamentos humanos se organizam em comunidades, Estados e associagGes supranacionais. As relagées internacionais sao orientadas, segundo Duroselle, por dois sistemas de determinagdo, nos quais se localiza parte da explicagio desejada: aquele que age na origem corresponde a deter- minadas forgas histéricas que sao fatores de propulsio de aconteci- mentos, o sistema de causalidade; aquele que age no fim corresponde aos designios, ambigdes, objetivos e metas que as sociedades, os Estados e suas liderangas consignam como incumbéncias da politica, © sistema de finalidade. No cdlculo estratégico reside a esséncia da polftica, porquanto nele devem ser adequados planos e projetos a condig6es de execugio, finalidades a causalidades, meios, fins e riscos envolvidos na tomada de decisiio. Requer-se todo cuidado no momento da decisao, pois a histéria costuma vingar-se dos erros de cAlculo estratégico. O historiador sabe que as forgas histéricas, orga- nizadas ou nado, existem, porém sé podem ser conhecidas por seus efeitos; que sua eficdcia deve ser estabelecida a cada vez em cada circunstancia; que no existe uma forga sempre preponderante; que o politico (sistema de finalidade) nao é a priori uma derivagiio do eco- némico (sistema de causalidade); que a politica exterior nio tem necessariamente por fim a maximizagdo de recursos como a econo- mia; que por vezes é determinada por valores e forgas naturais, pela demografia ou, ainda, pela busca do poder, do prestigio, da conquista ideolégica. Em suma, 0 movimento das relagdes internacionais - relagdes pacfficas, conflituosas ou de forga - € complexo. Nao tem explicagdo simples que caiba numa teoria. Duroselle considera que se pode quando muito, além da compreensio do empirico, estabelecer regularidades, regras ou ligdes de bom senso, Girault e Krippendorff insistem na evolugao do capitalismo, quando procuram estabelecer 0 fio condutor do sistema internacional contemporaneo’. O Desafio Internacional 15 O Sul (e 0 Brasil) na teoria e na histéria As politicas exteriores dos paises do Sul - pelo menos é 0 caso do Brasil - centralizam suas preocupagées em torno dos problemas do desenvolvimento, O mesmo no ocorre com os pafses avangados do Norte. E possivel perceber dois esquemas de relagées internacionais contemporaneas. Entre pafses avangados, as relagdes igualitdrias deixam transparecer um cardter lidico. Zelar pela paz ou preparar-se para a guerra, compor ou desfazer aliangas, construir a poténcia e 0 prestigio, difundir ideologias e valores situam-se do lado do diverti- mento. Entre pafses desiguais, para aqueles que sao atrasados, as relagdes internacionais deixam transparecer o cardter existencial. Delas dependem, em boa medida, os ritmos de desenvolvimento, as oportunidades de melhoria das condigées sociais, 0 cotidiano. Nessas condigGes, nao se pode esperar que a teoria e a hist6ria das relagdes internacionais que se fazem no norte gravitem em torno da politica internacional do sul. O realismo dominou, com efeito, 0 estudo das relagdes inter- nacionais, sobretudo no mundo anglo-saxénico. A teoria realista inclinou-se para a guerra fria e nada disse sobre 0 Terceiro Mundo e as relagdes norte-sul. Os conceitos do imperialismo ¢ do desenvolvi- mento que cuidavam dessas quest6es nado penctraram a teoria das relagées internacionais, apesar de os latino-americanos haverem-nos robustecido através do pensamento cepalino e das teorias da dependéncia. Os nortistas continuam admitindo que as teorias do desenvolvimento, desde Keynes, integram a ciéncia econdmica, nio a ciéncia politica. Como se a pobreza, a dominagao e a dependéncia, a cooperagao e a exploragio nao fizessem parte do mundo real das relagées internacionais. Para os realistas, 0 Estado é dominante, a cooperagio problematica, a ordem uma imposi¢io hegeménica ou concertada entre as grandes poténcias, a distribuicdo do poder é fundamental. Nao apreciam a multiplicidade dos agentes e a cmergéncia de novas poténcias que venham perturbar a ordem estabelecida. Os marxistas concordam com os realistas quando afirmam que a politica interna- cional caracteriza-se por relagGes de dominagao e dependéncia. Uns explicam-nas pelas estruturas s6cio-econémicas, outros pela esséncia 16 Amado Luiz Cervo do politico. Quanto aos adeptos da tendéncia liberal, importa dizer que nao dominaram a teoria no mundo do pés-guerra. Desde 0 colap- so do socialismo real esses liberais estio em evidéncia, mas nao se voltam para as relagées norte-sul com intuito de reavivar um didlogo que se pode considerar emudecido desde 0 infcio dos anos 1980. Os historiadores do norte deram maior destaque do que os teéricos aos problemas do desenvolvimento, Todavia, esses proble- mas permaneceram pouco relevantes em seus estudos. Assinalaram a nova divisio do mundo, a irrupgdo do Terceiro Mundo nos foros multilaterais desde os anos 1960, as causas do atraso, a cooperagdo internacional, o didlogo norte-sul, a luta pela implantagdo de uma Nova Ordem Econémica Internacional (Noei), 0 malogro global das iniciativas polfticas em prol do desenvolvimento. Mas os historiado- res do norte, para tranqiiilizar a consciéncia civica de seus conterraneos, dio énfase ao que chamam de ajuda internacional. Sem referir parcos recursos ao fluxo das finangas internacionais - uma questio de conceituagao da ajuda - esta énfase nao faz sentido. O balango de pagamentos dos pafses da América Latina, por exemplo, destréi a faldcia politica dessa ajuda e sua capacidade de produzir 0 desenvolvimento. Com efeito, 0 volume de recursos financeiros que saiu da regiao na segunda metade do século XX foi superior em centenas de bilhdes de délares ao volume global de capital que entrou sob qualquer modalidade. Para onde dirigiu-se, pois, a ajuda interna- cional nas tiltimas décadas? Percebe-se que historiadores e tedricos do norte refletem os interesses de seus pafses, espelham suas visdes da ordem e alimentam os objetivos estratégicos das respectivas polfticas exteriores. Procede-se, alias, de forma similar no sul. Conclui-se, contudo, que os pafses pobres permanecerao em sua situagdo de atraso enquanto aguardarem que insumos de desenvolvimento advenham da vontade polftica do norte. A hist6ria, a teoria e a politica agiram contra tais expectativas no passado. As perspectivas no limiar do século XXI sio ainda mais sombrias. O fim da guerra fria, a perestroika internacio- nal, a nova onda liberal desfizeram certos trunfos de que o sul dispu- nha para negociar. O sul passou a ser visto como produtor de temores internacionais. Esse medo ja est4 influindo sobre a politica do norte com relagao ao sul, medo provocado por avaliagdes de fendmenos emergentes, como 0 agravamento da pobreza, 0 armamentismo e os integralismos. Apés haver sido objeto da compaixdo, o sul esté O Desafio Internacional 17 despertando temor nas grandes poténcias. Para a politica internacio- nal, essa mudanga de percepgio é relevante *. 1.2 - No Brasil, um pensamento sem teoria A no se considerar como teoria das relagdes internacionais as teorias da dependéncia e as derivagées da teoria do imperialismo que floresceram no Brasil e na América Latina, nos anos 1960, nenhuma desenvolveu-se naquele pais relativamente ao objeto de estudo. Convém, pois, falar de um pensamento sem teoria, quando se cogita nas bases conceituais ou explicativas para as relagdes internacionais do Brasil. O pensamento brasileiro acerca das relagGes internacionais tem fluido de vertentes heterogéneas: a intelectualidade, 0 meio politico e diplomitico, o militar, outras liderangas sociais. A intelectualidade Entre a implantagdo do regime militar em 1964 e 0 inicio da abertura politica nos meados dos anos 1970, nao houve alternativa ao pensamento marxista entre intelectuais e cientistas sociais brasileiros. As interpretagdes se dividiam entre a funcionalidade capitalista (Caio Prado Junior, Fernando Novais, Jodo M.C. de Mello, Boris Fausto, Francisco de Oliveira e outros), a superexploragdo capitalista (André Gunder Frank, Ruy Mauro Marini, Theoténio dos Santos, Florestan Fernandes) e novas verses das teorias da dependéncia (Fernando Henrique Cardoso, José Serra, Maria da C. Tavares, Paul Singer, Celso Furtado, Anténio Barros de Castro, Carlos Bresser Pereira). As obras de Cardoso e Faletto foram importantes, na medida em que introduziram com consisténcia o papel da negociagao politica na andlise econémica que se fazia tanto da organizagio interna quan- to das relagdes externas. A hegemonia marxista perdeu forga desde 1975 em favor do pluralismo. Alguns marxistas (Gabeira) ou dependentistas (Cardoso) fizeram autocritica, outros recusaram o dogmatismo (Mayilena Chauf), pensaram um socialismo democratico (Carlos Nelson 18 Amado Luiz Cervo Coutinho, Leandro Konder). Os socialdemocratas insistem ora na participagao popular (Francisco Weffort, Chaui, José Alvaro Moisés, Liicio Kowarick, Eder Sader), no Estado ¢ nas instituigées (Cardoso), no liberalismo politico (Faoro, Holanda, Nunes Leal, Lamounier, Jaguaribe, Lafer, Merchior, Rouanet, Candido M. de Almeida, Chacon). A terceira geragio da intelectualidade académica estava a caminho nos anos 1980 e provocou a depressio das ideologias e simpatias polfticas em favor de andlises cientfficas como fonte de interpretagdéo. Eram doutores que compunham os novos quadros universitarios, formados sobretudo no exterior com bolsas da Capes e do CNPq, agéncias brasileiras de fomento a pesquisa. A intelectualidade pensou mas nao produziu uma teoria adequada 4 compreensio global da politica exterior do Brasil, como fez para seu pais, por exemplo, o cientista politico argentino Carlos Escudé. Algumas explicagdes orginicas da polftica exterior foram esbogadas. Por serem monistas e até mesmo simplérias davam conta, quando o faziam, de um aspecto marginal da realidade, apesar de comportarem aquela ambigao totalizante. Entre essas formulagdes explicativas limitadas para a politica exterior do Brasil podemos mencionar: as relagGes de amizade e alinhamento com os Estados Unidos, a missao subimperal a servigo da dominagio capitalista sobre a América Latina, a hegemonia regional, a construgdo do status de poténcia. Em seu conjunto, a intelectualidade brasileira contribuiu para acoplar aos esforgos internos do desenvolvimento o curso da politica exterior, num sentido funcionalista. Todavia, as concepgdes do desenvolvimento jogavam sobre a mesa das decisdes alternativas diferentes de solugio. Nesse momento, 0 papel dos politicos que elaboravam seus programas de governo era fundamental. O pensamento politico e diplomatico Nao ha estudos adequados para conhecer as concepgées’ dos estadistas brasileiros acerca da politica exterior. Contudo a pratica politica permite deduzir que nutriam alguns um _ pensamento O Desafio Internacional 19 elaborado ¢ coerente. Gettilio Vargas, Juscelino Kubitschek e Ernesto Geisel tiveram por certo uma idéia de nagdo a construir por tras de seus planos de governo. A esta idéia quiseram conformar as duas faces da polftica, consignando 4 externa o aporte supletivo de insu- mos necessdrios 4 realizagao das metas e das fases internas do desenvolvimento. Uma linhagem de pensadores explicitos, a maioria dos quais enyolvida com a vida politica ou a chancelaria, tiveram influéncia sobre a nacionalizagdo das concep¢ées de politica exterior. Afonso Arinos de Melo Franco estimulou a chancelaria a procurar a ONU, ao observar que os Estados Unidos ditavam as regras do jogo no interior da OEA. Percebeu, em 1960, que a opinidio ptiblica valorizaria uma proposta de autonomia para a politica exte- rior e nao hesitou em pronunciar-se nesse sentido para favorecer seu candidato 4 Presidéncia, Segundo Arinos, a autonomia da polftica exterior preservaria o Brasil dos erros de conceituagio, evitaria a aplicagio de falsos princfpios importados, preservaria a dignidade nacional. A contribuigdo ao ocidentalismo nio passava pelo alinha- mento servil aos Estados Unidos, tampouco postulava o sacrificio da autoridade, das aspiragGes e das reivindicagGes nacionais na conduta externa. Em 1961, na ONU, foi o primeiro a chamar a atengao sobre outra divisio do mundo, entre ricos e pobres, por sobre a divisio leste-oeste, a Gnica admitida até entao. Arinos foi criticado pelo seu partido, a UDN, uma expressio do conservadorismo politico brasileiro, em razio de suas idéias auto- nomistas e de seu terceiro-mundismo. Apesar disso sua influéncia cresceria, inspirando Aratijo Castro e San Tiago Dantas, contem- poraneos seus, de similar envergadura intclectual e atuagéo diplomatica. Dantas nao hesitou, como ocorria com Arinos, em fazer uso ostensivo do rétulo “Politica externa independente", cunhado entio para expressar a nova concep¢do da politica. Sua contribuigio a mudanga de pensamento deu-se no dmbito da sistematizagio. Dantas define o magno principio da nova politica: “A consideragiio exclusiva do interesse do Brasil, visto como um pais que aspira ao desenvolvi- mento...". Preencher requisitos de desenvolvimento convertera-ge na fungio supletiva consignada & politica exterior, desde o primeiro governo Vargas, mas ninguém, antes de Dantas, havia claborado 20 Amado Luiz Cervo coerentemente tal doutrina. A contribuigdo 4 paz, 4 coexisténcia e ao desarmamento, a revalorizagdo dos principios de ndo-intervengdo e autodeterminagao, a ampliagaéo dos mercados e das pautas do comércio exterior, 0 apoio a descolonizag’o, a autoformulagaio de planos de desenvolvimento, tudo haveria de articular-se com o regi- me democritico interno e a politica exterior do pafs, de forma sobera- nae aut6noma. Aratijo Castro extraiu de sua experiéncia diplomatica uma critica as idéias e préticas em curso na politica internacional dos anos 1970 e incorporou novos elementos ao pensamento brasileiro. O realismo deturpara os princfpios originais de politica internacional que haviam inspirado a carta de Sao Francisco. Assim, a paz foi substitufda pela détente, o desarmamento pelo controle das armas, 0 desenvolvimento pelo estado tolerdvel de pobreza. Adequar a politica ao realismo estava significando, para Castro, jogar no lixo os velhos ideais, promover o uso da forga para aumentar o poder, usar 0 poder para manter a ordem, congelar o poder entre as grandes poténcias para usufruir de um esquema de beneffcios unilaterais nas relagdes internacionais. Nesse congelamento do poder mundial, localizava-se 0 maior obstdculo a politica exterior do Brasil. Submetido ao regime de contengio de poder, o pais nao tinha como alcangar meios de desenvolvimento - que Ihe eram sonegados -, via ameagada sua heranga cultural 2 sua identidade nacional. Castro fazia a apologia do nacionalismo como reag’o ao condominio do poder estabelecido pelos grandes. O nacionalismo brasileiro ndo haveria de comportar qualquer atitude de isolamento, preven¢o ou hostilidade, mas, pelo contrdrio, uma disposigado congénita para varrer obstaculos externos ¢ aprofundar a insergdo no sistema internacional. Um nacionalismo a base da nio-confrontagio politica e da cooperagio econémica. O profissionalismo do corpo diplomatico _ brasileiro incorporou-se como condig¢io objetiva ao processo de elaboragio ¢ implementagao da polftica. Os recentes livros de meméria dos ex-chanceleres Mério Gibson Barboza e Ramiro Saraiva Guerreiro reforgam essa hipétese. Aqucle nacionalismo, cujo conceito fora esbogado por Aratijo Castro, desenvolyeu-se como filosofia politica a presidir a conduta externa do pafs, entre 1967 e 1990. Tal pensamen- to politico expressava-se na linguagem diplomatica em todas as ocasides. Era a fonte de inspiracio da politica. Exigiu um padrdo de conduta, que foi publicamente denominado de pragmatismo. O Desafio Internacional 21 Nacionalismo de fins e pragmatismo de meios deram coeréncia, consisténcia, confiabilidade e previsibilidade 4 conduta do pafs. Pela articulagdo das politicas externa e interna, buscavam-se insumos e oportunidades de fora para promover um desenvolvimento auto- sustentado, promovido de dentro. O nacionalismo reivindicava uma participagio maior do Brasil nos mercados mundiais e uma parcela maior de influéncia nas decisdes multilaterais. Embora tenha revesti- do a politica exterior de legitimidade, posta que foi a servigo do desenvolvimento, esse nacionalismo nao foi tio longe. Produziu efei- tos positivos até o final dos anos 1970 ¢ perdeu forcga nos anos 1980. © nacionalismo promoveu a nacionalizagdo da economia internacional e nao teve félego para estimular a internacionalizagio da economia brasileira. Em outros termos, estimulou pela cooperagaio a expansiio da base econémica e pelo protecionismo prejudicou a produtividade; como jamais teve por escopo a criagdo de filiais de empresas brasileiras no exterior, privou a economia interna de reforco indispens4vel ao desenvolvimento da capacidade compet va. A internacionalizagdo da economia, ultima etapa da moderni- zagao, era esperada como a grande mudanga légica de politica exte- rior a cargo do governo neoliberal implantado em 1990. Contudo, a modernizagao que ele propés significou, em termos de relagGes inter- nacionais, apenas 0 desmantelamento das idéias e das construgdes materiais do nacionalismo histérico, sem colocar em seu lugar outras forgas de desenvolvimento. Em 1993, estava-se ainda 4 espera de uma concepgdo pés-nacionalista de politica internacional para o Brasil *. 1.3 - A historiografia Trés fases As relag6es internacionais do Brasil foram intensas através da histéria. Em termos comparativos, trata-se de um dos paises mais articulados com o exterior, nos dltimos dois séculos. O testamento politico de José Bonifacio, ao dar a conhecer ao mundo, pelo Mani- festo 4s Nagdes Amigas de 6 de agosto de 1822, 0 tipo de relagdes 22 Amado Luiz Cervo que se pretendia estabelecer, definiu o mais clementar e duradouro principio de conduta: o liberalismo, entendido como uma abertura espontanea e indefesa 4 penetrago de insumos extcrnos, humanos, financeiros, cientificos, tecnicos e empresariais e como intercfmbio de produtos. E natural que o estudo das modalidades dessa insergdo e da politica pela qual o Estado pretendeu administrd-la através do tempo tenha importéncia. Com efeito, a historiografia das relagdes internacionais do Brasil tem origem remota, acumulou uma produgio volumosa de estudos desenvolvidos ao estilo linear e progressivo dos europeus. Virios impulsos foram responsdveis pela primeira fase da historiografia das relagdes internacionais, que se estende da origem aos anos 1950. Os primeiros estudos foram precoces: Ponte Ribeiro escrevia sobre as relagdes exteriores do Brasil nos anos 1840 de forma apologética. Varnhagen, na década seguinte, fazia-o por inspi- ragio metodolégica dos historiadores cientificos alemies. Pereira Pinto publicou sua obra em quatro volumes nos anos 1860. Joaquim Nabuco e Oliveira Lima transitaram de um século para outro, fazendo aquela histéria de rigor positivista. Nada se compara, entretanto, aos estudos de Pandia Calégeras, que escreveu nos anos 1920 A politica exterior do Império. Oriundo dessa linhagem de eruditos cientfficos, ao tempo em que as ciéncias histéricas passavam por uma revolugio conceitual ¢ metodolégica, Caldégeras surpreende pela inovacio. Embora seja ainda uma home- nagem ao fatual, sua andlise das relagdes internacionais introduz categorias complexas, como a influéncia de fatores sécio- econdémicos, da psicologia coletiva, das individualidades. Era um passo a frente na visdo estrutural e orginica da hist Depois de Calégeras, os estudos floresceram sob 0 impulso da Academia Diplomatica, o Instituto Rio Branco, criado em 1945. As caracterfsticas dessa histéria diplomdtica eram comuns em todos os paises que a faziam até a Segunda Guerra e mesmo depois: cientifica, porquanto tirava inspiragio do positivismo ou da escola metédica; superficial, na medida em que se atinha 4 descrigdo das aparéncias fatuais; limitada em seu escopo, j4 que lidava apenas com os fatos da agio politico-diplomitica; sem explicagio, porque estes fatos nao tém explicagdo em si; nacionalista ou apologética, na medida em que desfilava os argumentos da respectiva chancelaria. Todavia, a hist6ria O Desafio Internacional 23 diplomatica que se fard no Brasil apresenta cardter proprio marcado pela boa qualidade e pela complexidade de fatores acionados na busca da explicagio (Renato Mendonga, Teixeira Soares, Hélio Viana, Delgado de Carvalho, Hildebrando Accioly, Soares de Souza). A mudanga de enfoque e de método é provocada a partir dos anos 1960 pelo deslocamento da pesquisa para a Universidade, pela expansio do ensino superior e pela criagéo dos cursos de mestrado e doutorado, Muitos brasileiros seguiam para a Europa ou os Estados Unidos. Ao regressarem com seu titulo de doutor, traziam as novas correntes das ciéncias sociais e se dispunham a dar-lhes andamento proprio nos Departamentos de onde haviam partido. Ademais, também foi expressivo o némero de doutores estrangeiros que coope- ravam para a expansio da pés-graduagio no Brasil. A conexdo cientifica contribuiu para o aggiornamento da pesquisa. Apareceram, pois, historiadores universitérios de rclagdes internacionais, que trabalhavam nos Departamentos de Histéria, onde o ensino era, em geral, integrado as disciplinas cldssicas que compu- nham os programas de Histéria. Nada impedia, entretanto, que se fizesse uma dissertagdo ou que se oferecesse um curso monografico sobre determinado aspecto da histéria das relagGes internacionais. Apenas a Universidade de Brasflia implantou um curso regular de pos-graduagao nessa area. Os interesses da pesquisa Duas questées no século XIX concentraram a maior parte dos estudos tradicionais, mesmo porque se prestavam ao tipo de interpre- tagio diplomatica que se fazia: a politica exterior 4 época da inde- pendéncia e a hegemonia periférica exercida pelo Brasil sobre o subsistema platino entre 1851 e 1876 (Accioly, Calégeras, Lima, Soares, Sousa, Pomer). Modernas versGes desses aspectos procede- ram a revises do conhecimento (Rodrigues, Freitas, Bandeira, Dora- tioto). As relagdes preeminentes com a Grd-Bretanha no século XIX (Freitas, Bethell, Manchester, Graham, Mendonga), bem como o deslocamento deste eixo para os Estados Unidos (Wright, Bandeira, Burns, Luz) contam com estudos académicos modernos. A politica exterior do Bardo do Rio Branco (1902/12), considerado o patrono da 24 Amado Luiz Cervo diplomacia brasileira, foi objeto de intimeros estudos que pdéem em evidéncia a simpatia pelos Estados Unidos e a busca de prestigio internacional (Abranches, Burns, Nelson, Viana Filho, Napoledo). HA, entretanto, necessidade de rever a polftica exterior do Bardo e de dar-Ihe uma interpretagao moderna. O perfodo Vargas (1930/45) atraiu um ndmero maior de historiadores de ultima geragio, brasilei- ros € estrangeiros, motivados pela proximidade dos fatos mas, sobre- tudo, pela mudanga qualitativa da politica exterior, em termos de objetivos e praticas, introduzida apés o término da chamada Reptbli- ca Velha (Giffin, Hilton, Hill, Abreu, Wirth, McCann Jr., Moura, Gambini, Seitenfus). Certos temas foram objeto de bons estudos, seja ao estilo da velha histéria diplomatica, seja da moderna histéria das relagdes internacionais: as fronteiras (Viana, Accioly, Soares), a politica exte- rior da Repiblica Velha (Bueno), 0 papel das elites orginicas (Dreifuss), do Parlamento (Cervo), as relagdes econémicas com o exterior (Luz, Abreu, Malan, Mello), a dimensdo internacional da questio amazé6nica (Reis, Luz), as relagdes com a Africa (Rodrigues, Sombra Saraiva), com a Italia (Cervo). O periodo posterior 4 Segunda Guerra ocupa os pesquisadores que preparam suas dissertagdes, algumas publicadas. Raros sio os livros que focalizam as relagGes internacionais do pdés-guerra (Bandeira, Malan, Menezes, Costa, Hirst, Storrs, Selcher, Frota, Sombra Saraiva, Vizentini, Vigevani). A pesquisa histérica nesse periodo est4 condicionada ao acesso ao Arquivo Histérico do Itama- rety, limitado em princfpio pela regra dos trinta anos. Quando estuda- das por historiadores, as relagdes internacionais das Ultimas décadas carecem da fundamentagio que adviria da consulta a fontes de arqui- vo. Cientistas politicos, economistas e juristas que se dedicam a esse campo suprem em parte a caréncia de estudos propriamente histéri- cos (Lafer, Jaguaribe, Trindade, Altemani de Oliveira, Aleixo, Mourao). Por outro lado, quatro revistas académicas editadas no Brasil sobre relagdes internacionais abrigam a contribuigio de espe- cialistas que formam um grupo crescente e promissor de estudiosos do assunto. A historiografia das relagSes internacionais do Brasil ressente- se da falta de compéndios gerais. Existe apenas uma obra atualizada de sintese orginica e estruturada (Cervo e Bueno), 0 que se deve O Desafio Internacional 25 lamentar. Ao avaliar e consolidar o conhecimento disponfvel, as histérias de longo prazo levantam questdes que nelas téo-somente tém oportunidade de serem adequadamente contextualizadas: os perfodos e suas caracteristicas, as mudangas de politica que introdu- zem fases ou oscilagdes, a relagao entre a politica exterior e os ritmos histéricos de desenvolvimento, as rafzes socioculturais que definem tendéncias de médio ou longo prazos, as configuragdes histéricas das conceituagées politicas. As sfnteses oferecem a oportu- nidade de avaliar o significado das relagdes internacionais para a prépria formagio nacional e para a evolugao da sociedade®. 2. TENDENCIAS DA POLITICA EXTERIOR DO BRASIL 2.1 - O acumulado histérico e os padrées de conduta Princfpios e valores inerentes a politica exterior Nos dois tltimos séculos, a histéria das relagées internacio- nais revela que a politica exterior apresenta maior ou menor grau de previsibilidade, conforme tenham ou nao os respectivos paises erigi- do para orient4-la um conjunto de princfpios. Apés a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos abandonaram os padrées de conduta do isolacionismo e passaram a orientar sua polftica exterior pela hege- monia a exercer sobre o mundo liberal. A Unido Soviética afastou rapidamente os padrées da luta transnacional em favor da revolugao social pelos da coexisténcia pacifica e, depois, da distensio. Os paises da Europa Ocidental julgaram por bem retirar-se da politica internacional, confiada aos dois grandes, aliar-se 4 poténcia hegem6nica da rea ¢ centrar-se sobre a reconstrugio econémica. O Japio substituiu o expansionismo militar imperialista pclo desenvol- vimento da poténcia econémica e pela cooperagéo internacional, sobretudo regional. Uma polftica exterior apresenta, pois, princfpios e valores que a norteiam. Quando isto nao ocorre, como na China dos anos 1960 e 1970, existem dificuldades suplementares de relaciona- mento 7. 26 Amado Luiz Cervo O grau de previsibilidade da politica exterior do Brasil é dos mais eleyados em termos comparativos. Através do tempo, constituiu-se um conjunto de valores e principios de conduta externa que perpassou as inflexdes e mudangas da politica. Estas dltimas corresponderam antes a reforgos de tradigGcs subjacentes. Identificar e descrever esse acumulado histérico significa abrir 0 caminho para o estudo das tendéncias da politica exterior. A politica exterior do Brasil tem por fundamento um cardter ndo-confrontacionista. Sobrevaloriza o princfpio da autodetermi- nagao e conseqiientemente a nao-intervengdo, Quer solugées pacffi- cas e negociadas para as controvérsias e condena o uso da forga para obter resultados externos. A tradigao pacifista vem se firmando desde 1876, quando o Brasil retirou suas tropas do Paraguai. Teve por conseqiiéncias 0 abandono do armamentismo, com que sc constréi a poténcia, e a dificuldade de equacionar sua politica de seguranga, que hesitou entre a autonomia, a alianga e a protegio da poténcia hegemGnica da drea, os Estados Unidos. O pacifismo brasileiro € uma opgio filoséfica que conta com o apoio de fatores socioculturais, tais como a satisfagio com o territ6rio e a abundancia de recursos naturais, a heterogencidade cultural, a tolerdncia social, a tranqiiilidade diante dos vizinhos. Nio conta, entretanto, com o apoio das tcorias de relagdes internacionais que prevaleceram nos centros de poder ¢ da histéria das relagdes internacionais contemporaneas. Os princfpios de nio-intervengio ¢ autodeterminagao, que as grandes poténcias apreciam para as outras, nao integraram scu realismo durante a guerra fria, Depois dela, a seguranga coletiva, decorrente de nova interpretagio do estatuto da ONU, condiciona o respcito a esses principios 4s decisées do Conse- Iho de Seguranga, onde as grandes poténcias continuam com a tiltima palavra. O enfraquecimento dos sistemas regionais de seguranga também contribuiu para o desprestigio dos princfpios de autodetermi- nacido e nio-intervengio. O segundo clemento do acumulado histérico da diplomacia brasileira é 0 juridicismo. O respcito aos tratados ¢ convengdes como se fossem manifestagdes sagradas da vontade nacional ou multilate- ral. Essa tradigdo € remota ¢ caracterizou-se, originalmente, como reagiio. A época da Independéncia, as nagdes avangadas concertaram com o Brasil duas dezenas de tratados pelos quais se fez sua insergio O Desafio Internacional 27 internacional mediante concessdes sem contrapartida. A demoli¢io desse sistema, nos anoz 1840, foi uma reagio herdica da nagio atrasada. Desde entdo, sabe-se que o tratado é um instrumento mais favordvel 4s grandes poténcias e que convém evitar firmé-lo entre desiguais. Uma terceira tradigio da politica exterior do Brasil est4 no realismo que, com o tempo, converteu-se em pragmatismo, A origem vem da época da consolidagio do Estado nacional, no infcio do Segundo Reinado. Era a concepgio da politica exterior de estadistas ousados ¢ realistas, lide-ados por Paulino José Soares de Sousa, 0 Visconde do Uruguai, e José Maria da Silva Paranhos, 0 Visconde do Rio Branco. Por essa tradigo do Segundo Reinado, a politica exterior do Brasil tende a afinar-se com aquela das grandes poténcias, como pelas duas anteriores 4 das poténcias pequenas ou atrasadas. O pragmatismo acabou por integrar a tradigio brasileira com 0 estilo de politica exterior do Bardo do Rio Branco (1902-12) ¢ com o estilo e a substancia da politica exterior de Vargas (1930-45). Este Ultimo o conceitua na mensagem ao Congresso de 1935, fechando o ciclo da diplomacia ornamental da Reptblica Velha: "Circunstancias tio especialfssimas exigem hoje da diplomacia uma atuagao metédica e€ pertinaz, desdobrada em iniciativas de cardter pritico, que devem relegar para segundo plano as obrigagées de simples representagio ¢ cortesia internacional". O pragmatismo induz a adequagio das percepgées dos reais interesses nacionais aos designios externos, de forma a fazer prevale- cer o resultado sobre 0 conceito, os ganhos concretos e materiais sobre os valores politicos ou ideolégicos, a oportunidade sobre o destino, a liberdade de agiio sobre 0 empenho do compromisso, 0 universalismo sobre as camisas-de-forga dos particularismos, a acci- tagio sobre a resisténcia aos fatos. Aliado aos dois elementos anterio- res, 0 pragmatismo da politica exterior do Brasil produziu dois resul- tados histricos: 0 abandono da idéia de construgio ¢ uso da poténcia para obter ganhos externos e a despolitizagiio, depois desidcologi- zagiio, enfim a moralizagio da conduta. Esses resultados, por sua vez, também tiveram conseqiiéncias importantes: a preocupagio em reforgar por outras vias o poder nacional, sem o que nada se obtém externamente, ¢ a oricntagio para uma espécie de diplomacia econémica. Em outros termos, baixa densidade politica e alta 28 Amado Luiz Cervo densidade econémica nas relagdes internacionais do Brasil. Alguns paises se recusam a denominar essa politica de nacionalismo. A historiografia brasileira nao hesitou em fazé-lo, tampouco a lingua- gem diplomiatica. Veja-se, por exemplo, o discurso de Aratjo Castro e Mario Gibson Barboza. O nacionalismo estabelece os fins da politi- ca e oO pragmatismo prové os meios: na adequagiio dos elementos consiste a responsabilidade, pensava-se 4 época de Geisel. O desenvolvimento como vetor Considerando a politica exterior pelo lado dos designios exter- nos, percebem-se quatro perfodos na histéria do Brasil. A época da independéncia, tinha-se por fim obter 0 reconhecimento da nacionali- dade mediante tratados; intercambiou-se aquele ganho politico, formalmente desnecessério, por concessdes econémicas, lancando-se profundas rafzes de atraso e dependéncia estrutural no quadro da evolugao do capitalismo. O projeto nacional dos anos 1840 consig- nou 4 politica exterior a consecugio de resultados em quatro diregdes: extinguir 0 tréfico de escravos e estimular a imigragiio livre, controlar o expansionismo argentino pela hegemonia a exercer sobre a regio, demarcar as fronteiras nacionais e, enfim, manter a autonomia da politica comercial, estimulando a modernizagio. A Repitblica Velha restringiu a leitura do interesse nacional ¢ introdu- ziu a diplomacia da agroexportagiio, que explica as relagdes especi: com os Estados Unidos, onde se localizava o grande mercado do café. A Revolugio de 1930 ampliou novamente as percepgdes do interesse nacional e elegeu o desenvolvimento como novo - e defini- tivo - vetor da politica externa. O cimento que uniu esses perfodos histéricos é a ideologia de dependéncia inerente 4s concepgdes do liberalismo brasileiro, A insergio internacional sempre foi procurada pela politica exterior, seja através de intercdmbio de produtos, seja através da obtengdo de insumos externos para 0 desenvolvimento. Mas o liberalismo brasi- leiro bifurcou-se em vertentes hist6ricas, que se debateram pelo controle da politica exterior e pelo modelo de desenvolvimento a ser implementado. Os liberais radicais inspiraram-se numa ideologia passiva de dependéncia que os dispunha a confiar ao estrangeiro as O Desafio Internacional 29 iniciativas, os meios ¢ as atividades propulsoras do desenvolvimento. Dominaram a politica exterior da época da independéncia e da Repiblica Velha. Os liberais nacionalistas, por sua vez, nutriam-se de uma ideologia ativa de dependéncia, porquanto se dispunham a promover as forgas da nagao, robustecer sua base econdmica e alcangar a autonomia. Inspiraram o projeto nacional dos anos 1840 e voltaram ao cendrio politico um século depois, 4 época de Vargas. Essas contradigdes da politica exterior ndo foram tio sensiveis no passado quanto apés a Segunda Guerra Mundial. Desde 1945, a politica exterior do Brasil atrelou-se a concepgées do desenvolvimento as quais passou a servir de forma conceitualmente coerente. O desenvolvimento liberal associado configurou-se nas propostas de politicas puiblicas internas e na outra face da politica, a externa, envolvendo conceitos e ideologias afina- dos com 0 ocidentalismo, a amizade e as relagdes especiais com os Estados Unidos - a matriz do modelo -, a busca de protegdo pela valorizagio da seguranga coletiva regional, a facilidade para pene- tragdo de capitais ¢ empresas do exterior, 0 relaxamento cambial ¢ da legislagao que disp6e sobre a remessa de lucros. Examinem-se nesse sentido os governos de Dutra, Castelo Branco e Collor. O modelo do nacional-desenvolvimentismo, apoiado em cres- cente pragmatismo, teve outras énfases: o controle dos setores estratégicos da economia pelo Estado, enquanto a empresa privada nacional nao se dispusesse a atuar sobre eles; 0 protecionismo alfan- degério para expandir o parque industrial; 0 universalismo geografi- co, ideolégico e politico; a nacionalizago da seguranga. Examinem- se nesse sentido os dois governos de Vargas, a chamada Politica Externa Independente e os sucessivos governos entre Costa e Silva e Samey. As duas tendéncias da politica exterior espelhavam as contra- digdes da sociedade. Um pais com enormes bolsdes de miséria, cerca de 30% de analfabetos, tolerante diante das desigualdades, com elites empresariais que preferiram as atividades especulativas as de risco, nao tinha porque nao confiar ao estrangeiro 0 desenvolvimento inter- no. Um pais rico em territ6rio, recursos humanos e naturais, com uma economia equilibrada nos diversos setores, com grande mercado proprio, nao podia ndo sonhar com um destino de grandeza. As duas tendéncias aglutinaram as versées histéricas do liberalismo até 1930. 30 Amado Luiz Cervo Encamparam o desenvolvimento como vetor-mor da politica exterior desde entéo e, embora tenham desencadeado e ampliado um gigan- tesco esforgo de cooperagdo internacional, aprofundaram as contra- digdes. As tendéncias dio, pois, unidade & politica exterior. Explicam ao mesmo tempo as oscilagées e a continuidade, visto que um gover- no néo pode demolir abruptamente as construgées do modelo ante- rior. Em outros termos, a simbiose perpassa as mudangas em certo grau. Existe mesmo a possibilidade da sintese: examine-se nesse sentido o governo de Kubitschek. Dos anos 1930 aos dias atuais, os nacionalistas estiveram por mais tempo no poder. O colapso de seu modelo nos anos 1980 e a onda neoliberal que impregnou o mundo apés outro colapso, 0 do socialismo, levaram 0 governo implantado em margo de 1990 a demoligéo das construgdes conceituais e materiais do nacional- desenvolvimentismo, sem acionar em seu lugar novas forgas hist6ri- cas de desenvolvimento. Nao se pode ainda concluir se se trata de um retorno ao passado ou de um passo 4 frente. Que beneficios teriam advindo do fato de se haver convertido o desenvolvimento no vetor-mor da politica exterior do Brasil nos Uiltimos sessenta anos? Em seu conjunto, a experiéncia produziu resultados notaveis e evidenciou néo menos notdvel habilidade politi- ca associada & arte diplomatica. Essa conclusio adquire significado especial, se forem consideradas as condig6es adversas de movimento no sistema internacional que prevaleceram desde o pés-guerra. Brasil e América Latina foram desclassificados em termos de politica internacional quando o mundo se dividiu em 1947. Os problemas do desenvolvimento em si nao figuraram entre os temas que inspiraram e entre as forgas que acionaram os mecanismos da ordem internacional, com excegio da reconstrugio da Europa, empreendida, alids, em um contexto geopolitico. A idéia de uma responsabilidade universal diante do desenvolvimento foi encaminhada pelo Terceiro Mundo nos anos 1960 e¢ chegou-se mesmo a um didlogo entre ricos e pobres com o fim de atender & reivindicagao sintese dos pafses em desenvolvimento, que era a implantagdo de uma Nova Ordem Econémica Internacional (Noei). A idéia ndo vingou. O Norte admitiu outros temas de responsabilidade universal, tais como a reserva dos espacos ideolégicos e a manu- tengo do mapa geopolitico 4 época da guerra fria, da coexisténcia O Desafio Internacional 31 pacifica ¢ enfim da distensio; depois, o meio ambiente, as drogas, 0 controle demogrdfico dos recursos naturais e das correntes migrat6rias, a estabilidade das economias centrais, 0 liberalismo, a nao-difusao nuclear, a reserva de dominio das tecnologias de ponta. O desenvolvimento, nessas condigées, foi entendido como uma questao interna aos paises atrasados e, quando muito, decorrente de uma saudavel situagdo estratégica, econémica e financeira dos pafses ja desenvolvidos, para a qual os demais eram chamados a colaborar. O desenvolvimento nunca foi uma prioridade da ordem internacional 8 2.2 - Nacionalismo e liberalismo: duas tendéncias entre Vargas e Castelo Branco O pragmatismo em Vargas (1930-45) O esquema de polftica exterior dos anos 1920, voltado para as relagdes privilegiadas com os Estados Unidos ¢ 0 apoio financeiro inglés no sentido de manter os pregos do café, niio se revela adequado na década seguinte. Vargas chegou ao poder com a responsabilidade de proceder a nova adequagiio entre as necessidades sociais e as politicas ptiblicas: emprego para as massas urbanas, indistrias para operdrios e burguesia nacional, modernos meios de seguranga para as Forgas Armadas, mercados externos para os produtos agricolas, ferro € ago para mover o sistema em seu conjunto. A depressio capitalista criara obstdculos externos, mas, com 0 avangar da década, mercé da habilidade poljtica, foi possfvel tirar vantagens concretas das possibi- lidades abertas pelo confronto entre as democracias ¢ os fascismos que definiam os blocos. Vargas passou a mover-se com cuidado, estabelecendo conexdes vigorosas com ambos os lados e viu seu poder de barganha internacional engrandecido. Ja se tinha consciéncia, em 1934, das mudangas em curso nas relagdes internacionais: as conturbagdes econdémicas se sobrepunham as polfticas, a crise orientava o sistema internacional para 0 egoismo. ea guerra aduaneira, o liberalismo era neutralizado por mecanismos de protegio dos mercados, 0 comércio compensado apresentava-se 32 Amado Luiz Cervo como uma alternativa. Tal diagnéstico correto recomendava o prag- matismo e€ 0 nacionalismo, "novos rumos e processos de agao", afir- mava Vargas em sua mensagem ao Congresso. Percebia-se que a relago entre centro e periferia nao seria simples jogo de imposigdes € accitagdo, se existisse por parte do Estado um projeto de nacio a construir um desfgnio politico. Esse elemento essencial nao faltava a Vargas. Vargas reuniu os elementos internos e externos de cAlculo e definiu sua estratégia. A politica exterior haveria de sacar do sistema internacional insumos de desenvolvimento, consoante metas estabe- lecidas para suprir demandas internas. Convinha articular-se com as poténcias totalitérias que apreciavam a influéncia politica e a presenga econdémica no Brasil tanto quanto aproximar-se das demo- cracias, sobretudo dos Estados Unidos, porque necessitavam da alianga brasileira; convinha manter a boa imagem e a descompressio com os vizinhos para agir com liberdade ante os grandes; 0 processo decisério seria posto em permanente estado de alerta; convinha adiar © quanto possivel a decisdo politica de envolvimento no conflito mundial e fazer valer o poder de barganha que representaria um eventual engajamento. A politica comercial dos tratados liberais baseados no principio universal da nagao mais favorecida foi modificada em 1935 por outra, de acordos bilaterais realistas. Assim, praticava-se 0 libera- lismo com os Estados Unidos, de quem se exigiam créditos para financiar as exportagdes e a industrializagio. Intercambiavam-se matérias-primas por md4quinas e equipamentos alemies e italianos, pela via do comércio compensado. Barganhavam-se capitais ¢ tecno- logias para 0 projeto sidertirgico. As Forgas Armadas estabeleceram vinculagdes multidirigidas com os Estados Unidos, a Franga, a Alemanha e a Itélia. A extrema vulnerabilidade do Brasil era dessa forma atenuada por excelentes vinculos politicos, além de alternati- vas de opgdo estratégica que se criavam ante os perigos de guerra. O Pan-americanismo foi uma opgao tética. Vargas buscou o entendi- mento com a Argentina, dispés-se 4 missio conciliadora diante dos conflitos regionais, como a questao fronteiriga de Leticia entre Peru e Colémbia e a guerra do Chaco entre o Paraguai e a Bolivia, apresentou-se como campedo do Pan-americanismo, quando Roose- velt anunciou sua politica de boa vizinhanga. O Desafio Internacional 33 Desde 1939, marchando na cadéncia dos fatos, Vargas explo- rou 0 filoamericanismo do chanceler Oswaldo Aranha para obter créditos comerciais e investimentos industriais. Quando o Brasil tornou-se necessdrio a estratégia de guerra dos Estados Unidos, a partir de 1940-41, os efeitos positivos da estratégia politica de Vargas estavam assegurados. A cooperagdo de guerra era natural e ainda poderia trazer vantagens adicionais, como 0 treinamento ¢ 0 equipa- mento das Forgas Armadas. A industria cresceu a uma taxa aproxi- mada de 10% ao ano na década de 1930. Os excedentes comerciais corresponderam a US$ 484 milhdes entre 1930-34, US$ 394 entre 1935-39, elevando-se a US$ 944,6 entre 1940-44. O balanco global de pagamentos registrou um super4vit de US$ 572,4 milhdes entre 1930-44, O movimento de capitais, porém, acusou um déficit de US$ 77,2 milhdes e os servigos levaram 1.227,7 para o exterior. Vargas apreciava investimentos diretos e ndo gostava da expatriagiio de capi- tais nem de pagar dividas por empréstimos. Teve, como se observou, de remediar a essa hemorragia de divisas com o incremento das exportagdes. Péde, enfim, implantar a usina de Volta Redonda e realizar seu sonho siderdrgico, que era uma velha aspiraciio nacional’, A extrospeccio em Dutra (1946-50) Com o final da Segunda Guerra, as condigdes externas tornaram-se adversas para o Brasil. O pais deixara de ser importante para os Estados Unidos em sua nova estratégia bipolar; o liberalismo imposto ao mundo livre pela inteligéncia norte-americana era uma concepgao de ordem internacional de beneffcios unilaterais em favor dos pafses economicamente avangados; as fronteiras ideolégicas que reordenaram as forgas do sistema internacional nada tinham a ver com os interesses brasileiros. As oportunidades se restringiam do lado do Brasil, exigindo redobrada perfcia em termos de politica internacional. No governo Dutra, os dirigentes nao dispunham desse talento. Sem a sabedoria do lider, Neves da Fontoura e Raul Fernandes dirigiam a diplomacia, permanecendo na forma, nio na substancia da politica exterior de Vargas. Partiu-se de um erro de cdlculo, a 34 Amado Luiz Cervo suposigdo de que a cooperagao de guerra e 0 alinhamento aos Estados Unidos representavam um enorme capital, de retorno certo. Seguiu- se por uma estratégia mal conduzida: assimilar os parimetros da nova ordem como determinantes exclusivos da conduta externa; libe- ralizar a organiza¢ao interna e as relagdes externas para atrair os Estados Unidos; estabelecer como fim 0 que antes era um meio, 0 alinhamento; ver nas reivindicagGes sindicais e nacionalistas a propa- ganda comunista. O Brasil deu apoio as teses norte-americanas que regulamen- taram pela ONU e pelos novos 6rgaos multilaterais (Bird, Gatt, FMI) © sistema do pés-guerra. Firmou a alianga regional anticomunista (Tiar) e criou facilidades para a penetragéo econdmica dos norte- americanos em detrimento da autonomia interna. Uma polftica exte- rior de concessGes sem barganha e sem contrapartida. Desde a adesiio espontanea de toda a América Latina, consolidou-se a hegemonia norte-americana, que se estendeu 4 Europa pela ajuda & reconstrugéio e a alianga atlintica (Otan), 4 Turquia e a Grécia pela presenga mili- tar e ao Oriente pelo controle sobre o Japio. A estratégia de contengio do comunismo e de dom{nio sobre as dreas liberais estava completa. O Brasil de Dutra deixou-se, pois, conduzir pelas forgas externas, sem reproduzir os resultados que a margem de liberdade preservada na fase anterior alcangou. Entre 1945-49, o balango de pagamentos acusou um déficit de US$ 122,3 milhGes porque ao paga- mento de servigos somou-se uma evasio liquida de capitais da ordem de US$ 181 milhées. O liberalismo brasileiro comegava a financiar 0 crescimento das economias centrais. Quando os Estados Unidos se dispuseram a um acordo de cooperagio, 4 criagio da Comissaio Mista, levaram em conta a possibilidade de usar novamente o Brasil na guerra, que ha seis meses havia comegado na Coréia ". Dificuldades para o nacionalismo (1951-55) Em 1951, Washington convocara a IV reuniaio do Conselho de Ministros das Republicas Americanas para cxaminar 0 envolvimento na guerra da Coréia. O chanceler brasileiro, embora manifestasse a solidariedade de seu pafs ao Pan-americanismo e as democracias, fez O Desafio Internacional 35 saber que Vargas nio o engajaria no conflito seno em troca de investimentos destinados a "robustecer a nossa estrutura econémica" em transportes, portos, energia, cletricidade, _alimentagiio, combustiveis. Findava, pois, o alinhamento servil, regressava-se ao nacionalismo da politica exterior, negociavam-se novamente interes- ses bilaterais, O Relatério de 1951 expressava 0 novo conceito da politica exterior, que Vargas entendia como sendo uma caracterfstica do tempo: "Elevagao da idéia de defesa econémica em fator central da politica exterior dos povos". Alids, o proprio Dutra ja reagira a ilusdio de que o liberalismo cambial atrai investimentos. Em 1947, implanta- ra um sistema de controle de importagdes e, em 1949, o regime de cimbio com licenga prévia. As medidas foram mantidas por Vargas e tiveram importancia para a industrializagio via substituigdo de importag6es. Dutra obtivera, além do mais, a missio Abbink e firma- ra 0 acordo que implantou a Comissao Mista Brasil-Estados Unidos. De regresso ao governo, Vargas encontrou 0 caminho preparado e as expectativas eram de que seu nacionalismo extrafsse do sistema internacional novos insumos de desenvolvimento, elevando a priori- dade do Brasil junto 4 poténcia hegeménica e restabelecendo a cooperagao norte-americana. Com efeito, o Brasil manteve sua capacidade de atragio de investimentos diretos privados norte-americanos: 53% de toda a América Latina e 17% do realizado no mundo inteiro entre 1949-54, As dificuldades afetavam os investimentos ptiblicos (Bird, Exim- bank), previstos para implementar os projetos da Comissio Mista. A pratica do reinvestimento de capitais estrangeiros criava dificuldades 4 entrada de novos capitais e elevava o indice de espoliagio da rique- za nacional pela via da remessa de lucros. Vargas proibiu tal pratica. Em contrapartida, por nova lei cambial de 1953, introduziu outras facilidades para a remessa de lucros, eliminando o argumento segun- do o qual as limitagées 4 remessa estariam deteriorando as relagdes econdémicas com o exterior. O certo é que as dificuldades eram gera- das na matriz. Tanto Truman quanto Eisenhower, este ultimo de forma mais clara, ndo se dispunham a apoiar investimentos ptiblicos e sim 0 combate ao comunismo na América Latina e no mundo. Em 1953 a Comissio Mista serd desativada sem haver realizado seus projetos. 36 Amado Luiz Cervo O governo norte-americano conseguiu isolar a cooperagao militar, que lhe convinha estrategicamente (Acordo de 1953), da econémica, contrariando a vontade dos nacionalistas brasileiros. O Banco Mundial somente estudaria financiamentos 4 condi¢gaéo de monitorar a economia segundo a visdo norte-americana. Esta seria outra prova para a habilidade de Vargas, pela qual nao passaria. Vargas teve pouco espago de manobra ante o malogro das relagdes com os Estados Unidos. Buscou os paises subdesenvolvidos, mas nao se decidiu pela aproximagao intima com Perén, que propu- nha a terceira posigao, entre a independéncia e a fidelidade aos Esta- dos Unidos. Internamente, desorientou a opinido, os partidos e os diplomatas, especialmente no caso da nacionalizagio do petréleo. Dois discursos antag6nicos - nacionalismo e ocidentalismo - avanga- ram para chocarem-se com estridéncia. Vargas nado conseguia mais administrar a intriga pelo alto, como nos anos 1930. O suicfdio foi um alivio. Um balango de seu segundo governo indica que até 1952 tudo ia bem. As dificuldades tiveram infcio com o colapso das contas externas e os atrasados de comércio, em razdo do déficit de 286 milhdes de délares de 1952, e com a deterioragio das relagdes com os Estados Unidos. Mas Vargas manteve liberal a legislagio cambial, esforgou-se por atrair capitais de risco e evitar empréstimos que vies- sem agravar 0 endividamento. Sua estratégia, bem-sucedida nos dois primeiros anos, ndo logrou os resultados finais. Assim mesmo, implementcu o aparelhamento da infra-estrutura e a superagao de pontos de estrangulamento, como os transportes e a energia. Seu nacionalismo nutria-se de uma percepgio original dos interesses nacionais: sem ruptura com 0 exterior, porém sem concessGes gratui- tas, mesmo aos Estados Unidos; aceitagdo da integrag’o ao Ocidente, com prioridade para os ganhos econémicos das relagdes internacio- nais; desvinculagdo entre nacionalismo e seguranga "'. Kubitschek: as chances do bom plano (1956-60) As metas fisicas do plano de desenvolvimento de Juscelino Kubitschek tinham em parte por finalidade aumentar a capacidade de O Desafio Internacional 37 atracdo de capitais estrangeiros. Desde os anos 1930, previa-se, com efeito, a colaboragao desses capitais nas concepgdes tanto do desenvolvimento liberal associado quanto do nacional-desenvol- vimentismo. O nacionalismo da politica exterior tende, pois, a se caracterizar historicamente pela prioridade atribufda ao desenvolvi- mento econémico e pela subordinagao a esse fim de concessdes feitas em nome das ideologias e da seguranga. Supunha a autonomia das decisGes externas e reforgava, dessa forma, o pragmatismo da condu- ta. Reagindo ao nacionalismo de Vargas, o Banco Mundial retirou-se do Brasil em 1955 e sé retornou em 1964. Kubitschek nao sé deu continuidade Aquela autonomia das decisées, como ampliou-lhe o Angulo, ao romper com 0 FMI em 1959, porque nao suportou o moni- toramento econdmico que colidia com seu plano de desenvolvimento. Nada indica que a retirada do Banco Mundial e do FMI tenham sido prejudiciais ao desenvolvimento, antes pelo contrdrio. Os empréstimos e financiamentos especulativos e a conseqiiente evasio de divisas foram reduzidos em favor de investimentos diretos nos setores bdsico e industrial, feitos por capitais nacionais e externos. Nao vale dizer que o descontrole das finangas ptiblicas combatido por aqueles 6rgaos seja irrelevante, Kubitschek manteve a legislagio cambial de Vargas, que era uma das mais favordveis do mundo ao capital estrangeiro, Por isso mesmo, o Brasil conservou elevada sua capacidade de atragiio, sendo, em 1956, 0 terceiro pats do mundo quanto ao volume de investimentos diretos norte- americanos no exterior. Dois condicionamentos foram importantes para a polftica exterior de Kubitschek: a criagdo do Mercado Comum Europeu, que provocou o temor do governo e acabou por salvar seu plano de desen- volvimento, e a Operagdo Pan-Americana (OPA), que gerou enormes expectativas sem trazer ao final beneficio econdmico algum. As chancelarias latino-americanas andavam, desde 1957, exci- tadas com as perspectivas de criagio do Mercado Comum. Temiam que o sistema de preferéncia interna, pelo rebaixamento das tarifas entre os membros, ¢ externa, pelo favorecimento As ex-colénias da Africa e da Asia, viesse afetar as exportagdes de produtos agricolas, cujos pregos haviam-se deprimido nos anos 1950. Escolheram entaio a Itdlia para defender seus interesses junto 4 Comunidade. Giovanni Gronchi aceitou essa intermediagio e veio ao continente em 1958. 38 Amado Luiz Cervo Para os planos de Kubitschek, a criagdo do Mercado Comum foi providencial. A competigao internacional iria deslocar-se do mercado para a produgio, numa primeira modificagio imposta pelos europeus a ordem liberal concebida pelos norte-americanos para gerir as relagées internacionais do pés-guerra. Os norte-americanos orien- taram entao investimentos diretos para o setor produtivo dos euro- peus ¢ estes passaram a investir no exterior, inclusive no Brasil. Enciumados ou previdentes, os norte-americanos retomariam seus investimentos no Brasil. O Plano de Metas estava salvo, sem Banco Mundial e sem FMI. O movimento de capitais, entre 1956 e 1959, registrou o extraordindrio saldo positivo de US$ 772 milhées, compensando as dificuldades da balanga de comércio e a suspensaio de empréstimos e financiamentos oficiais externos. A Operagio Pan-americana foi langada por Kubitschek, Augusto Frederico Schmidt e outros 8 margem do Itamaraty, cujo titular, José Carlos de Macedo Soares, um filoamericano hist6rico, s6 tomou conhecimento quando estava montada. O presidente argentino Frondizi era informado de tudo e Kubitschek somente a tornou pibli- ca apés ter a certeza de seu apoio. Os objetivos de Kubitschek eram politicos e econémicos: incrementar 0 prestigio internacional do Brasil no continente e no mundo para reforgar a causa do ocidentalismo e extrair beneficios de desenvolvimento, extensiveis 4 América Latina. Uma proposta inteli- gente e pragmiatica: 0 apoio ao liberalismo nao seria uma concessio gratuita e sem contrapartida, Os Estados Unidos nio apreciaram a iniciativa porque nao era deles. Retrucaram, 4 época de Kennedy, com sua propria versio, a Alianga para o Progresso, que também foi esterilizada em termos de apoio ao desenvolvimento. Desgastava-se, desta forma, a credibilidade dos Estados Unidos no Terceiro Mundo. Prosseguir-se-ia, mais tarde, pelos caminhos das ilus6es, com 0 Novo Didlogo de Kissinger, os grupos de trabalho de Reagan e o Plano Bush para as Américas. A Operagio Pan-americana nao foi de todo inittil, mesmo porque animou a diplomacia continental, ao ponto de haver-se implantado o Comité dos 21. Fez avangar a diplomacia brasileira pela forma desenvolta ¢ moderna, liberal ¢ nacional, que assumiu ¢ que encantava. Enxertou no pensamento e na linguagem diplomatica os conceitos cepalinos de centro-periferia, desenvolvimento desigual, O Desafio Internacional 39 deterioragao dos termos de troca, industrializagdo, mercado interno, cooperagio econémica. E mais: fez a simbiose de tudo isso - que era o desenvolvimento - com a seguranga e a democracia. Estimulou a diplomacia econémica, exigindo outra preparagdo do corpo diplomitico brasileiro. A contribuigio estratégica politica exterior do Brasil que adveio com a OPA correspondeu a introdugiio definiti- va do multilateralismo, associado, em sua primeira expressio, & emergéncia da prioridade latino-americana e 4 vinculagio entre o americanismo brasileiro e 0 neutralismo em voga na América Latina e no Terceiro Mundo. Embora sejam perceptiveis certas ambigilida- des da iniciativa, pode-se concluir que Kubitschek fez melhor o que Vargas pensava ". A polarizagio das tendéncias nos anos 1960 A Politica Externa Independente nao tem a relevancia histér ca que a literatura especializada Ihe atribui. O mesmo deve-se pensar acerca da "Corregio de Rumos" da politica exterior levada a cfeito por Castelo Branco. O que ocorreu nos anos 1960 observa-se, por um lado, no avango conceitual da politica exterior, cujas tendéncias haviam-se bifurcado em desenvolvimento associado e nacional- desenvolvimentismo ¢, por outro, no envolvimento mais amplo da sociedade. Em razao do estado de espfrito vigente, os antagonismos foram exacerbados pela associagiio entre as concepgées internas do desenvolvimento e a bipolaridade que dividia o mundo. O grau de dificuldade a que chegara o didlogo entre as duas correntes foi sinalizado por Augusto Frederico Schmidt, o mentor da Operagio Pan-americana, que rompeu com San Tiago Dantas, o da Politica Externa Independente, porque este reatara relagdes diplomaticas com a Unido Soviética. O liberalismo radical ¢ 0 nacio- nalismo liberal nado implicavam por certo uma op¢io excludente, seja pelo capitalismo seja pelo socialismo. Mas eram discursos que podiam ser desenvolvidos numa ou noutra via por segmentos interes- sados da sociedade ¢ assim aconteceu. Os anos 1960, marcados por oscilagdes bruscas da politica exterior do pafs, espelham a crise das tendéncias, crise de que resultou, a partir de 1967, 0 reforgo do nacionalismo. 40 Amado Luiz Cervo Na Semana Santa de 1962, San Tiago Dantas acolheu, em reti- ro, pequeno grupo de pessoas com o fim de conceituar a Politica Extema Independente. Como ocorreu com a OPA, este grupo traba- lhou & margem do Itamaraty, cujas liderangas assistiam a mais uma inflexdo da politica externa. O grupo era constituido por Carlos Alfredo Bernardes, Raul de Vincenzi, Renato Archer e Gibson Barboza, sob a lideranga de Dantas. A reunido nao era nenhum fruto do imagindrio. Os independentes foram impelidos por correntes de opinido e forgas sociais que langavam raizes no nacionalismo autonomista de Vargas, no desenvolvimentismo multilateralista de Kubitschek e no neutralismo reivindicatério latino-americano ¢ terceiro- mundista. Quais eram as percepgGes do interesse nacional e as propostas dos independentes? O eixo de seu pensamento estava na subordi- nagao da politica exterior aos reais interesses do desenvolvimento nacional. Era olhar para o Brasil e fustigar a visio simplista da bipo- laridade que recomendava priorizar as relagdes especiais com os Estados Unidos. Era entender o desenvolvimento com menos capital e ajuda externa, mesmo porque de outra forma nio seria completo. Era marchar com os povos atrasados, cujos objetivos externos sio distintos dos das grandes poténcias. Era conceber e reivindicar uma nova ordem internacional que promovesse a igualdade social entre as nagGes. Nao era, em teoria, confrontar-se com ninguém, nem mesmo com os Estados Unidos. Os dois paises acabariam, entretanto, por estranhar-se, porque as posturas do Brasil passariam a se chocar com as da poténcia hegemGnica do Ocidente, passo a passo: na abertura a leste, na compreensio da coexisténcia e do desarmamento, no reforgo ao principio de autodeterminagio ¢ nio-intervengio, na solidariedade com o Terceiro Mundo, na resisténcia ds grandes poténcias. O Brasil acabou por confrontar os Estados Unidos na questdo cubana ¢ aproximar-se dos socialistas, da Africa e da Asia. O periodo da conceituagéo ¢ implementagio da Politica Externa Independente cobre os governos de Janio Quadros e Joiio Goulart, entre 1961 ¢ 1964. Nesse mesmo periodo, preparava-se a reversio ao americanis- mo e ao liberalismo radical que triunfaram com apoio militar em 1964,

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