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Condigdes Necessarias ao Psicanalista Foi tal a relevéincia que Bion deu a pes- soa do psicanalista como um fator fundamen- tal no processo de uma andlise vincular, que a incluso de um capitulo que abordasse especi ficamente os atributos minimamente necessd- rios ao psicanalista impés-se ao natural Na verdade, este capitulo nfo sera mais do que uma visio sindptica dos atributos da pessoa do analista, visto que eles estiio pre- sentes, de forma esparsa, em praticamente to- dos os textos de Bion e, por isso, de uma for- ma ou outra, jd foram abordados em outros capitulos deste Livro. ‘Uma longa série de atributos sera descri- ta aqui, no entanto, isso nao significa que Bion considerasse que o analista devesse possufla toda e, muito menos, de uma forma plena; antes disso, Bion (1992a, p. 75) postulou que: “Cada analista deve ter em mente, de modo claro, quais so as condigdes minimas neces- sdirias (CMN), para si mesmo, nas quais ele e 0 seu paciente podem fazer o trabalho”, Essas CMN, no entanto, sao imprescindi- veis, porquanto, segundo Bion costumava afir- mar em seus seminarios clinicos (IDE, n. 14, 1987, p. 5): ‘A pratica da psicandlise é muito dificil. A teoria é simples. Se © analista tem boa meméria poderd ler todos estes livros € decord-los com facilidade. Daf poderao di- zet: que bom analista tal pessoa; sabe todas estas teorias. Mas isto no equivale a ser um bom analista. Um bom analista est sempre lidando com uma situagaio desconhecida, imprevistvel € perigosa. Da mesma forma, Bion (1992a, p. 46) tra- cava uma equivaléncia entre a inter-relaclio dos pais com os filhos e a do analista com o seu analisando, afirmando que [...] a Uniea coisa que parece ser bdsica no é tanto. aquilo que fazenios, mas aquilo que vivemos a, aquilo que sortos. E por isso que é to importante que os pais sejam capazes daquilo que eu chamo de amor ardente. Ai ento a erianga tem uma chance de apren- der algo a partir do modo que os pais se eom- portam. Nada, em sua educacioescolar, nem em qualquer outro lugar, pode thes ensinar isso. Em um outro trecho (p. 62), ele assevera que: Em andlise, a coisa importante nao € aquilo que o analista e 0 analisando [separada- mente] podem fazer, mas o que a dupla pade fazer; deve haver algo que a dupla possa fazer, onde a unidade biolégica & dois, endo um, 316 bavio e ZiIMERMAN Assim, prossegue Bion (p. 146): © paciente depende do fato de © analista estar sensivel aos fracos sinais que ele nao consegue emitir com um volume maior. $6 que estamos assumindo um grande risco ao nos transformarmos em receptares. Além disso, sabemos que Bion sempre enfatizou que o crescimento de uma mente (da crianga ou do paciente) depende de uma apren- dizagem que vem pela aquisicdo dos significa- dos fornecidos no inicio por uma outra mente (da mae, ou do analista) & pela introjeciio do médulo do funcionamento dessa mente. Um exemplo simples disso é a idéia de Bion de um “seio pensante”, ou seja, 0 fato de que no ini cio é.a mie que tem que pensar pela crianca. Como vemos, todas essas consideracBes & citagdes que foram garimpadas (e poderiam ser intimeras outras mais) convergem para a evidén- cia de que uma boa preparaciio tedrica, ou téeni- ca, do analista nao é suficiente para uma eficdcia analitica se nao vier acompanhada de uma “ati- tude psicanalitica interna” do psicanalista, a qual é composta de uma série de atributos e de um jeito auténtico de ser (Zimerman, 1991). Sempre que possivel, cada um dos atribu- tos a seguir citados sera conectado com a forma- cao etimoldgica da palavra que o designa, tendo em vista que a etimologia representa um processo de sucessivas transformapées através dos tempos, porém ela conserva, tal como uma “invariante”, o significado original do inconsciente coletivo da espécie humana. Mais do que um agradavel jogo diletante, a etimologia encerra muita sabedoria @ pode nos ensinar muito. Das linhas e entrelinhas da obra de Bion, creio que se pode depreender que as “cond cGes necessdrias minimas” que permitam uma “acio analitica eficaz”, de uma forma ou ou- tra, sdo tecidas com os atributos e capacidades a seguir apresentados, nao sem antes alertar o leitor que muitas das significagdes que seguem estio mescladas com meus vértices particula- res, inspirados na prépria experiéncia da pré- tica clinica e de supervisio. 1. Identidade analitica. A etimologia do termo “identidade” se forma, provavelmente, a partir do prefixo “idem”, “igual”, “o mesmo”, e de “entidade” que significa 0 ente, “o ser”; 0 nos mostra que a identidade do psicana- lista implica sua capacidade de manter-se ba- sicamente o mesmo, apesar de toda ordem de pressdes provindas de fora e de dentro dele. A aquisig&o de um gradativo, porém sélido, sen- timento de identidade de psicanalista é de im- portncia fundamental. 2. Neutralidade ndo é indiferenga. A con- seqiiéncia mais importante desse atributo é 0 de vinculélo a modificagdo do conceito de neu- tralidade. Na época em que Freud (1912) pos- tulou essa importantissima regra técnica, acen- tuou que “o analista deveria ser opaco frente a seus pacientes e, como um espelho, nao lhes mostrar nada, exceto o que lhe é mostrado”, e isso deu margem a que o analista se sentisse obrigado a manter uma atitude analitica distan- te, para nao dizer fria e asséptica. A propdsito dessa metfora de Freud, pode-se depreender dos textos de Bion que ele considerava que 0 analista nfio deve propriamente ser um espelho do paciente, mas, sim, que deve servir como um espelho ao paciente, no qual este possa mirar- se de corpo inteiro e reconhecer as distoreées especulares. Assim, ao contréria do que possa estar sendo sugerido na metdfora de Freud, se- gundo o meu vértice, Bion sempre advogou que o psicanalista deve se envolver afetivamente com o seu paciente desde que ndo fique envolvido na relac&o, e que tal estado da mente, de acordo com a etimologia, & que vai permitir 0 “des-en- volvimento” do processo analitico. 3. Fungdo de espelho. J4 que empreguei atermo “espelho”, é necessdrio esclarecer que a contempordnea conceituacio psicanalitica da “fungao de espelho”, por parte do anal ta, é de expressiva importancia, tal como é possivel observar em textos de Bion e, princi- palmente, nos de Lacan, Kohut e Winnicott. Da mesma forma como, no processo evolutivo normal, a me funciona para o bebé como uma superficie refletora de “quem ele é, ou o que a mie deseja que ele seja, ou como ela o enxer- ga eo faz enxergar o pai dele, ete., a ponto de a crianca poder ficar alienada na imagem da figura materna”, também o analista exerce uma funcio, em que, assim como diante de um espelho, o seu paciente possa se refletir, confirmando ou desmentindo as imagens e crencas que tem de si proprio e dos outros. A importéncia desse requisito na pessoa do ana- lista & que a funcdo de espelho pode ser posi- tiva ou negativa, neste ultimo caso, podendo vir impregnada de distorgées injustas, logo, daninhas para o paciente. 4. Amor a verdade. Esse atributo cons- titui-se como uma condi¢do sine qua non para uma andlise de verdade, porquanto esta di- retamente ligado ao essencial - vinculo do conhecimento (K e -K). Ser verdadeiro, para Bion, vai muito além de um dever ético, é uma imposigéo técnica minima, a ser trans- mitida ao analisando e a ser dirigida em pro- fundidade, em uma busca, o mais préximo possivel, da “realidade ultima”. Essa defini- cio de “amor 4 verdade” implica o oposto da negagdo das verdades (-K), ¢ isso esta plena- mente de acordo com a palavra aletheia (“verdade") que, em grego, designa “o nao- oculto”, ou seja, o que nd deve ser negado (‘a” = sem + “letheia” = esquecer). Nesse contexto, Bion postula um atributo que de- nomina como a capacidade de o analista ter fé (nao no sentido religioso) na existéncia de uma realidade e verdade tltimas, “o des- conhecido, 0 infinito, o informe”. 5. Capacidade de ser continente. Esta ultima palavra vem do verbo latino contenere, que quer dizer “conter” e, como vimas antes, deve ser bem diferenciado de outros andlogos, como 0 de container; o qual alude mais direta- mente a uma condie#io de um mero recipiente passivo; “continente”, ao contrdrio, significa um processo ativo, pelo qual o psicanalista tem condigdes de acolher as angustias e necessida- des do paciente, de conté-las dentro de si o tempo suficiente para decodificd las e entendé- las e de reconhecer um significado e um nome, para, sé entio, devalvé-las ao paciente, devi- damente desintoxicadas, sob a forma de inter- pretacées. Caso contrdrio, quando falha a fun- cio de continéncia do analista — da mesma for- ma como acontece no vinculo mie-filho -, é possivel que se instale, ou que se incremente, BION-DATEORIAAPRATICA 317 um estado de angtstia do paciente que denomina como “terror sem nome”. Também cabe enfatizar que a nogéo de “continente” no deve ficar limitada A contencio que o analista faca das angustias do paciente, isto é, a capa- cidade de continéncia deve abarear certos mo- vimentos positivos do paciente, as vezes quase imperceptiveis, porém de extrema importéin- cia, como 0 despertar de uma curiosidade do analisando (provavelmente a servico de K), de uma liberdade para demonstrar agressividade, criatividade e, principalmente, movimentos que sugerem uma preocupagdo pelos outros, ¢ su- tis intentos reparatdrios que, quando nao re- conhecidos, ou mal-interpretados pelo analis- ta, geram sentimentos de decepefio e de fra- casso, além do risco de abortar uma disposi- do para o crescimento mental. 6. Subcontinentes. Pessoalmente, venho propondo a conceituacio e denominacéo de subcontinentes fundamentado no fato de que o conceito de “continente” é por demais abran- gente, portanto algo impreciso, jd que, na ver- dade, um analista pode ser um bom continen- te para sentimentos amorosos, agressivos e nar- cisistas, porém muito insuficiente para os depressivos, por exemplo. Intimeras outras combinacGes entre distintos sentimentos ¢ res- pectivas subcontinentes poderiam ser mencio- nadas. Penso que é imprescindivel que cada analista reconheca os seus miiltiplos subconti- nentes, de forma a reconhecer os seus préprios alcances, limites e limitagdes na sua funcdo de psicanalista. Esse tema é abordado no Capitu- Jo 21 deste livro. 7. Premonigéo. Bion considera a premo- nigdo (de “pré-emogao”) uma “capacidade de antecipacio”, por parte do psicanalista, de algo que est4 por acontecer; é, portanto, um senti- mento equivalente ao de “pressentimenta” (de “pré-sentimento”). A capacidade de antecipa- so, segundo ele, no deve ser confundida com autilizagao ativa da meméria; ela se situa como um misto de intuigdio e premonigio, ¢ o analis- ta a adquire por meio de um aprendizado com anteriores experiéncias analiticas. Bion desta- cou que esse atributo é util para evitar dores desnecessiirias do paciente. 318 Davi £ ZIMERMAN 8. Paciéncia. Esse atributo esta intima- mente ligado ao anterior, porém, como a sua raiz etimolégica mostra (o vocdbulo “pacién- cia” vem de pathos, que, em grego, significa “sofrimento”), ele exige que o analista suporte ador de uma espera, enquanto nfo surge uma luz no fosso do tunel depressive. Também Freud (1905, p. 19) exaltou a virtude da paciéncia, como se vé no caso Dora, em que ele cita um trecho de Fausto, de Goethe: “Nem s6 a arte e a ciéncia servem: no trabalho deve ser mostrado paciéncia”. Deve ficar bem claro que paciéncia nao significa uma atitude passi- va, de resignacdo ou coisa parecida; pelo con- trério, ela consiste em um processo ativo den- tro do analista. Como diz Bion (1992, p. 172): De inicio, 0 analista desconhece o que estd ocorrendo; caso sejamos honestos, temas que admitir que ndo temos a menor idéia do que est4 acorendo. Mas, se ficarmas, se ndo fugirmos, se continuarmos abser- vando o paciente, “vai emergir um pa- drao” Esta tiltima expresso, que Bion gostava de utilizar, é uma mencio a Freud, citando Charcot. Em um outro contexto, Bion adverte quanto & necessidade de o analista passar de um “estado de paciéncia” para um “estado de seguranca” antes de formular a sua interpreta- cdo. Eo préprio Bion (1968a, p. 5) quem es- clarece que utiliza o terme “paciéncia” porque, em inglés, significa, ao mesmo tempo, tolerar e sofrer; e o termo “seguranga” tem o duplo significado de estar livre de perigo e preocu- pagdo. Green (1986, p. 134) reforca a impor- tncia do atributo da paciéncia ativa do psica- nalista, como se depreende desta citacdo: Nao hé um sé analista que mantenha ailu- sio de que se interpretar uma determina da atitude, esta desaparece. Para mim, por exemplo, a atitude do paciente pode du- rar, digamos... 15 anos. A andlise é um tra- batho de Penélope - tados os dias vacé tece ateia ¢, logo que o paciente a deixa, ele a desfaz. Se nio estivermos preparados para ver a andlise assim, é melhor mudar de profissio .. 9. Capacidade negativa. Como ja vimos, esse termo Bion tomou emprestado do poeta Keats, que, em uma carta para o seu irméo, em 1817, ao se referir.a Shakespeare, assim se pro- nunciou: “... 6 uma capacidade que possibilita a um homem ser capaz de permanecer em in- certezas, mistérios, diividas, sem qualquer es- forco irritével que vise a alcancar como resul- tado, fato ou razdo”. Bion reforca a importén- cia desse atributo, mostrando 0 quanto odia- mos estar ignorantes e que temos um horror a0 vazio, ao nio saber o que estd se passando, na experiéncia da situagdo analitica. Como um derivado direto do atributo de uma “capacida- de negativa”, Bion postulou a recomendagio técnica de um estado mental por parte do ana- lista no transcurso da sessdo analitica: a con- dicéio de sem meméria, sem desejo e sem dnsia exagerada de compreensdo, tal como foi descri- to no capitulo correspondente deste livro. A finalidade maior de que a mente do analista ndo fique saturada com a memdria, os desejos e anecessidade de compreensdo imediata é que os drgdos dos sentidos nao fiquem tio predo- minantes e, assim, nao dificultem a emergén- ia da capacidade de intuigéio do analista. 10. Intuigao. E um atributo que nfo tem nada de transcendental, como muitas vezes se pensa, embora Bion utilize 0 conceit de “in- tuico” para caracterizar um estado da mente do analista em que ele néo esteja utilizando os érgéos dos sentidos para captar algo impor- tante da esfera afetiva. Bion repetia seguida- mente que a ansiedade nao tem forma, nem cor, nem cheiro, nem som, e por isso ele pro- pds o termo “intuit” para designar a atividade do psicanalista como uma forma de contra- ponto as atividades sensoriais do médico. A etimologia do verbo “intuir” procede dos étimos latinos in (dentro) e tuere (olhar), ou seja, Bion utiliza novamente um modelo de analogia vi- sual para definir uma capacidade de se olhar com um “terceiro olho” - néo-sensorial - para deniro, ou de dentro, Bion costumava utilizar a concepefio do fildsofo Kant, de que “intuicio sem conceito é cega; conceito sem intuigao é vazio”. Ele mesma esclarece essa idéia de Kant, afirmando que certos pacientes estfio, de mado intuiti- vo, descrevendo um fato quando dizem “Estou aterrorizado”, ou “Esta gagueira me perturba”, eo analista nao ouve ne nhuma gagueira, mas o paciente sim. Esta intuigéo permanece cega, porque ele no foi capaz de pared-la com um conceito, Cabe ao psicanalista possibilitar 0 encom tro da intuigo com ¢ conceito, sendo que “estd havendo um casamento entre seus pensamentos e sentimentas; a intuicao que € cega e © conceito, quando é vazio, podem se encontrar de tal mado que fa zem um pensamento moderno completo (1992a, p. 96) Ainda em relacdo a capacidade de intui- cfio, Bion também costumava utilizar uma ci- tacéio de Milton, autor do célebre Paratso per- dido: “observar coisas invisiveis para um mor- tal”, ou seja, dentro de sua atitude filoséfica de que o corpo e a mente devem se reduzir a uma unidade, Bion assegurava que “o analista deve ‘saber escutar niio $6 as palavras e os sons, mas também a mtisica”. Intuicéo e empatia se complementam, sendo que a primeira se pro- cessa mais no plano cognitivo, enquanto a empatia se refere mais especificamente ao pla- no afetivo. 11. Empatia. Conquanto Bion nao tenha empregado esse termo diretamente, creio ser evidente a importéincia que ele deu a esse atri- buto, tal como nos demonstra a etimologia dessa palavra. “Empatia” é composta das raizes gregas em (dentro de) e pathos (sofrimento), portanto alude a capacidade de o psicanalista se colocar no lugar do paciente, ou seja, entrar dentro dele para, junto, poder sentir o seu so- frimento. Isso é mi diferente de “simpatia”, que se forma a partir do prefixa sym, que de- signa “ao lado de” e ndo “dentro de”. A empatia resulta da capacidade do analista de util as fortes cargas das identificacdes projetivas como uma forma de comunicagao primitiva do paciente. O extremo oposto seria o de um es- tado mental do analista de @-patia, ou seja, nao estar sintonizado com a sofrimento do pacien- te, casos em que a andlise nao vai além de um processo protocolar, monétono e estéril. BION ~DATEORIA AFRATICA 319 12. Comunicag¢éo. Esse atributo é um dos que mais interesse mereceram por parte de Bion, e a composigéo da palavra, por si s6, ex- plica por que ele Ihe conferiu tamanha impor- tancia: comunicar quer dizer tornar comum, ou seja, com-um, no sentido de uma unidade de intercimbio entre o emissor de uma men- sagem afetiva e o seu receptor. Isso esta de acor- do com a concepefio que Bion utilizava em al- guns seminarios clinicos: “séo necessarios dois para fazer um”, Niio é demais reiterar que as idéias de Bion acerca da normalidade e pato- logia da comunicacdo na situagdo analitica ad- quirem uma especial importdncia na forma das interpretacées do analista. O aspecto referen- te a coma o analista escuta o seu paciente, ¢ vice-versa, mereceu uma énfase especial por parte de Bion. 13. Diseriminagdo. Também esse atribu- to é um dos que mais aparecem nas linhas e entrelinhas dos textos de Bion. Essa palavra deriva do radical grego Krimen, que significa “fazer separacées” (o que d4 origem aos ter- mos: critica, critério, crise, etc.). Assim, o atri- buto de discriminacdo se refere & capacidade do juizo critica do psicanalista, ou seja, 0 de separar o que é dele prdprio e o que é do seu paciente; o que é patoldgico e o que ¢ sadio em ambos; o que é vidvel daquilo que nao pas- sade uma mera ilusdo, e assim por diante. Se esse atributo do ego do psicanalista nao esti- ver suficientemente desenvolvido, haverd um sério risco de que o vinculo com o seu paciente se estruture em bases de psicopatologia, mais precisamente na formagio de escotomas (pon- tos cegos) contratransferenciais, e na conse- qitente contraciio de conluios inconscientes com o analisando. 14, Ciséo néo-patoldgica. Diretamente derivado da aludida capacidade de discrimi- nagio, é o atributo que Bion denominou “ci- sfio ndo-patolégica” do psicanalista. Tal atri- buto consiste na capacidade de uma dis- sociacéo util do ego do analista, de forma a possibilitar que ele mantenha uma separacdo discriminada de suas préprias emogdes e idéi- as contraditérias e faca uma selecfio adequada para o contetido de suas interpretacGes. Por 320 baviD E. ZIMERMAN exemplo, em certo dia de trabalho, o analista esta particularmente muito preacupado com alguma séria situagdo de sua vida privada. Caso, assim mesmo, ele resalva trabalhar, deve no minimo possuir a capacidade de fazer uma dissociacdo titil entre a sua pessoa, que tem direito de sentir preocupacées, e a sua condi- so de psicanalista, que, para si mesmo, deve assumir, abstrainde seus problemas pessoai: de sorte a manter, sem sacrificio, uma escuta suficientemente atenta e dedicada inteiramente a0 paciente. 15. Etica. O atributo de “ser ético” im- pée-se no tanto pelo seu significado conven- cional, mas muito mais pelo que a sua etimo- Jogia nos ensina. Btica vern de ethos, que, além de designar *moral”, também quer dizer “ter- ritdrio natural” (dai, o termo “etologia”, im- portante ramo da ciéneia que estuda 0 com- portamento dos animais). Isso significa que o psicanalista nfo tem o direito de invadir 0 es- paco auténtico do seu paciente, de modo a lhe impor os seus prdprios valores e expectativas. Pelo contririo, Bion sempre postulou que o ana- lista deve propiciar um alargamento do espa- ¢o interior e exterior do seu analisando ~ a moda de um “universo em expansao” - pela aquisicio de um, seu, direito de ser livre, sem que isso, por sua vez, implique a invasio da liberdade de outros. Para tanto, o paciente, no curso da andlise, deve passar de sua condicio de sujeitar-se aos outros, ou de ser um sujeita- do, para a de ser um sujeito livre e auténomo # til lembrar que a palavra “autonomia” se forma a partir de auto (propria) e de nomos (lei, nome), ou seja, que ele adquira um “nome proprio”, enfim, um sentimento de identidade. 16. Respeito. Bion reiterava a necessi- dade de que o analisando fosse aceito tal como de fato é, ou pade vir a ser, endo como 0 psieanalista gostaria que ele fosse, desde que também fique bem claro que respeitar as li- mitacées do paciente nfo é 0 mesmo que se conformar com elas. A etimologia nos mostra que o atributo de respeito tem um significado muito mais amplo e profunde do que o usual- mente empregado. Respeito vem de re (“de novo”) e spectore (“olhar”), ou seja, é a ca- pacidade de o psicanalista (e, a partir dai, ser desenvolvida no paciente) voltar a olhar para o ser humano que esta a sua frente, com ou- tros olhos, com outras perspectivas, sem a miopia repetitiva dos rétulos e papéis que, desde criancinha, foram incutides no pacien- te. Tudo isso se baseia no importante fato de que a imagem que a mie (analista) tem dos potenciais do seu filha (paciente) se torna par- te importante da imagem que este terd de si proprio. 17. Coragem. Em meio a tudo 0 que fai dito, Bion sempre deixou claro que o atributo da coragem ¢ indispensdvel para que o psica- nalista, qual um navegador, possa enfrentar as imprevistos de uma longa viagem, de cur- so incerto e com possiveis riscos, na qual o paciente est investinda seu tempo, seu di- nheiro, sua coragem e, quem sabe, suas ti mas esperancas. Por outro lado, a sintese de tudo que foi extraido de Bion acerca dos atri- butos do psicanalista que determinam a sua “atitude analitica interna” esta contida na etimologia da palavra coragem, do latim cor, isto é, do coracdo. 18. Mapeamento do psiquismo. Inspira- do em Bion, eu venho propondo a denomina- clio de "mapeamento do psiquismo” como con- dicdio indispensdvel de o analista conhecer as diversas e distintas regides (tal qual o que se passa no globo terrestre) do seu psiquismo (par- te bebé, criancinha, crianga, piibere, adolescen- te, adulta..., a parte psiedtica a nfio-psicética de sua personalidade, a parte simbiética, a per- versa, a parandide, etc.}, de sorte a construir 0 que denomino “bussola empatica” e, assim, na- vegar com mais tranqiiilidade, sem estar perdi- do dentro de si mesmo e, logo, dentro da geo- grafia psiquica dos seus pacientes. 19. Ser “poligiota”. Com essa expresso, pretend realcar 0 fato de que os pacientes tm distintas maneiras de fazer suas narrativas, com cédigos préprios, além de que nem sempre as comunicacées sio verbais ¢ nem sempre, tampouce, elas visam a comunicar; pelo con- trdrio, muitas vezes, a linguagem utilizada pode tera finalidade, quase sempre incansciente, jus- tamente de ndo comunicar, mas confundir e ata- car os vinculos de percepedio das verdades pe- nosas. Assim, o analista deve possuir uma apti- dao de “poliglotismo”, ou seja, uma capacidade de entender e de falar muitas linguas, de modo a entender as diferentes versbes e registros das linguagens dos pacientes, das diferengas seman- ticas dos discursos dos colegas de distintas cor- rentes psicanaliticas e, principalmente, a pro- priedade de falar o idioma que cada um de seus pacientes (prineipalmente quando se tratar de psicdticos) possa compreender. Caso contririo, ‘co analista pode estar interpretando corretamen- te, porém no idioma portugués, por exemplo, ‘enquanto o seu paciente esta falando e enten- dendo unicamente a lingua chinesa. 20. Réverie (fungdo alfa). O voedbulo réverie se origina do francés revé (sonho), ou seja, alude 4 funcéo da mie (ou do analista) de permanecer em uma atitude, livre e espon- ténea, de receber, acalher, decodifiear, signi- ficar, nomear as angtistias do filho (paciente) somente depois disso devolvé-las, devida- mente desintoxicadas e significadas. Uma ade- quada condicio de réveric do analista implica uma suficientemente boa capacidade de fun- sao alfa, que permite dar coeréncia e ordem ‘ao que estd disperso e em estado de caos no psiquismo do paciente, e possibilita, se neces- sério, pér A disposiciio do analisando, duran- te algum tempo, qual um “seio pensante”, 0 seu préprio modelo de aparelho para pensar os pensamentos — expresso essa fartamente empregada por Bion. Isso propicia ao analis- ta transformar os “elementos beta” do paci- ente em “elementos alfa”, num processo de uma verdadeira alfa-betizagdo. 21. Humildade suficiente. O analista deve descer do pedestal em que, durante lon- go tempo na histéria da psicandlise, ficou encastelado, numa condiciio de majestade, con- victamente crendo que tudo sabia e sentindo o paciente unicamente como um dependente seu. Na atualidade, um atributo indispensdvel ao analista é reconhecer que tem inevitaveis limi- tacées, que a distancia entre ele e seus pacien- BION ~DATEORIAAPRATICA 321 tes é bem menor do que imaginava e, sobretu- do, que também tem uma dependéncia do seu paciente, Essa dependéncia estd expressa numa inquestiondvel necessidade, que tado bom ana- lista tem, de ser reconhecido pelo paciente como competente, titil e querido, além do fato de o paciente ser uma, ainda que parcial, fon- te de seus proventos. 22. Capacidade sintética. Trata-se de uma funcio do ego de especial importéncia para um psicanalista, especialmente para a sua fungdo interpretativa, tendo em vista que per- mite, simultaneamente, simbolizar, discriminar as significagdes contraditérias e até opostas de um mesmo discurso, ou fato, de modo a vir a integrd-las. Cabe lembrar que o vocdbulo “sin- tese” nfo é o mesmo que “resumo”; pelo con- trario, sintetizar significa fazer uma junciio de varios aspectos essenciais, mesmo que distin- tos, criando uma nova significacdo. 23. Atitude psicanalitica interna. Acon- jungao constante de todos os atributos que fo- ram discriminados e enumerados, quando in- ternalizades no analista de forma suficiente- mente harménica e natural, somada.a uma rea- lizagéo com a sua experiéncia de pratica clin ca, conjuntamente com o devido auto-respeito e preservacio do jeito ¢ estilo essencial de cada um ser, vai construir uma auténtica atitude psi- canalitica interna. Essa condig&o que, penso, além dos advindos da formacdo psicanalitica, também tem fortes ingredientes da pessoa real do analista — sua ideologia, caracteristicas de personalidade, formas de encarar o paciente, ete. -, é um grande fator que pode determinar o andamento de todo e qualquer tratamento de fundamentagéio analitica. Nao custa repisar que as condigdes neces- sdrias para um adequado exercicio da terapia de fundamentacio psicanalitiea foram descri- tas em separado (o que pode dar uma falsa impressdo de que se trate de uma tarefa extre- mamente complexa e dificil de ser atingida, ou de um perfeccionismo de minha parte) unica- mente com propésito diddtico. Na verdade, todas elas véo sendo construidas de forma na- tural, ao longo da formagdo, e funcionam con- 322 DAVID E ZIMERMAN juntamente, tal como uma orquestra compos- ta por miiltiplos instrumentos musicais, com fungées distintas uns dos outros, que, com muitos ensaios, encontram uma unidade coe- sa e harménica. Outra metdfora que me ocorre é a de que, quando aprendemos a dirigir um carro, fica- mos concentrados, separadamente, na troca de marchas, no papel do acelerador, da embrea- gem, dos freios, etc., porém, & medida que va- mos adquirindo seguranca e confianca, uma especial atenc&o consciente niio é mais neces- sdria, tudo acontece automaticamente.

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