You are on page 1of 56
PSICANALISE E HOSPITAL ee Neem MN eRe mR Ce ued eke Me ese (OCC teats ete} xe esa Mite aie eects tute es Cooke MCs Cer] Aqui, o discurso psicanalitico inserido no hospital geral De oom es ekoeor ura c etsy oe leet Rte ur aec omer s lisado, tensionado em decorréncia da predominancia ou monopélio de outros discursos. Ele se insere em sua oR use Met cele M eT) Cee ACA ota ese tear aeteeiy Peete eC ee eui etisoe CNRS RR NUN omic ei hospital geral; o tempo de registrar e transmitir a viabi- lidade de um trabalho que para alguns poderia parecer aves Cel -AYag eel ey ISBN 85-7309. || UUCO LUOUCCT OCOCUCCUOCCUUCUUUCUCUUULE are | ] ll REVINTER - SSSSSSSEEEEEEELELUELELELELES PSICANALISE E HOSPITAL 92 Edigio Organizadora Marisa Decat de Moura Pricéloga Psicanalista| ‘Membro do Circulo Psicanalitico de Minas Gerais - CPMG CCoordenadora da Equipe da Clinica de Psicologia e Picandlise do Hospital Mater Dei Belo Horizonte - MG REVINTER Psicanélise e Hospital Copyright © 2000 by Livraria e Editora RevinteR Ltda. Todos os direitos reservados. E expressamente proibida a reprodugao deste livro, no seu todo ou em parte, Por quaisquer meios, sem 0 consentimento Por escrito da Editora. ISBN 85-7309-378-1 Livraria e Editora REVINTER Ltda, Rua do Matoso, 170 — Tijuca 20270-130 — Rio de Janeiro, RJ Tel: (21) 502-9988, Fax: (21) 502-6830 E-mail: livraria@revinter.com.br http: /Awww.revinter.com.br AUTORES MARISA DECAT DE MOURA Psicéloga Psicanalista Membro do Circulo Psicanalitico de Minas Gerais — CPMG Coordenadora da Equipe da Clinica de Psicologia e Psicandlise do Hospital Mater Dei — BH LEA NEVES MOHALLEM Psicsloga Psicanalista Membro da Clinica de Psicologia e Psicandlise do Hospital Mater Dei — BH ELAINE MARIA DO CARMO DIAS DE SOUZA Psicéloga Psicanalista Membro da Clinica de Psicologia e Psicanalise do Hospital Mater Dei — BH ‘CLAUDIA PEDROSA SOARES. Psicéloga Membro da Clinica de Psicologia e Psicanalise do Hospital Mater Dei — BH GILDA VAZ RODRIGUES Psicanalista Belo Horizonte — MG MARIA LUISA DUARTE VILELA. Psicéloga Psicanalista Membro do Circulo Psicanalitico de Minas Gerais — CPMG i aida ahahaha ii MARIA NISIA ARAUJO Psicéloga Membro do Férum de Psi —CMG Membro da Clinica de Psicologia e Psicandlise do Hospital Mater Dei — BH lise do Circulo Psicanalitico de Minas Gerais STELA CARDOSO DE CARVALHO. Psicdloga Membro do Forum de Psicandlise do Circulo —CPMG Memibro da Clinica de Psicologia e Psicanzlise do Hospital Mater Dei — BH mnalitico de Minas Gerais MARIA TEREZA GRANHA Psicéloga Membro da Clinica de Psicologia ¢ Psicandlise do Hospital Mater Dei — BH MARIA DE LOURDES GUIMARAES DE ALMEIDA BARROS Psicéloga Psicanalista| * Memibro do Citculo Psicanalitico de Minas Gerais — CPMG Membro da Clinica de Psicologia e Ps do Hospital Mater Dei — BH ‘Ao Dr. José Salvador Silva, por sustentar a incerteza do novo ‘apostando na possibilidade de tempos fecundos AGRADECIMENTOS Este livro € resultado de 17 anos de trabalho realizado no Hospital Mater Dei — BH. Muitos foram os colegas que partitharam conosco esse tempo, e sem eles nao conseguiriamos realizar o nosso projeto de publicagao e formali- zacao teérica da nossa pratica. Nossos agradecimentos a Diretoria do Hospital Mater Dei: Dr. José Salvador Silva (Diretor-Presidente), Dr. Hentique Moraes Salvador Silva (Diretor Clinico), Dra. Maria Norma Salvador Ligério (Diretora Financeira), Dra. Marcia Salvador Géo (Diretora Operacional) e Dr. José Helvécio de Souza (Diretor Administrativo) pela presenca sempre incentivadora. Especialmente, ao Diretor Clinico, Dr. Henrique Moraes Salvador Sil- va, que viabilizou a realizacao deste livro. ‘os chefes das Unidades de Tratamento Intensivo, Dr. José Orleans da Costa, Dr. Marcos Andrade de Almeida Magalhes Jinior, Dra. Rosilu Bar- bosa, Dr. Anselmo Dornas Moura, juntamente com todos os colegas de equipe, quando nos plantdes e reunides pudemos pensar juntos, entre outras questoes, sobre “Psicandlise e Ciencia”. ‘Ao Dr. Samuel Vianney da Cunha Pereira, ex-chefe do CTI, com quem pudemos aprender sobre a possibilidade de um trabalho i ‘Aos colegas médicos das varias clinicas que tornam possfvel fazer do sofrimento do paciente algo verdadeiramente digno. ‘Ao psicanalista Dr. José Nogueira de S4 Neto, pelo tempo de participa- «0 enriquecedora. ‘Ags psicanalistas Célio Garcia, Jefferson Machado Pinto, Leila Mariné, Nara Franga Chagas e Sérgio Laia, pela interlocugao quando debatemos questées cruciais sobre a pratica do psicanalista no hospital. De uma maneira especial, nosso reconhecimento as psicanalistas Gilda Vaz Rodrigues e Maria Luisa Duarte Vilela, pela escuta e por sustentar um espaco onde pudemos privilegiar 0 estudo sobre a nossa pratica nos semi- ndrios no Hospital Mater Dei ‘Aos nossos alunos, estagidrios, académicos eresidentes, pelos questio- namentos enriquecedores. As chefias administrativas e funciondrios do Hospital, por possibilitar © compartilhar 0 nosso dia-a-dia de trabalho. A Berenicy, nossa revisora, pelo trabalho cuidadoso e paciente. E finalmente aos pacientes, com quem reaprendemos sempre que a palavra, o verdadeiro bem do ser falante, pode tornar mais suportavel a condigdo humana. ™ — = = ad = = = - = _ _ = = = = = = = ~ = - 2 2 2 - » 2 = 2 2 PREFACIO DA SEGUNDA EDIGAO ‘ Se prefaciar a primeira edicio representou uma aposta da ordem de um ato que avaliza uma produgao que naquele momento se anunciava como algo novo, hoje, prefaciar a segunda edicao deste livro ja nao é mais uma aposta, mas a confirmacao de que aquilo que se prenunciava como um saber que tomava forma, demonstrou nao $6 sta operatividade mas, 0 tocar algum ponto da estrutura, permitiu compartilhé-lo produzindo efeitos de causa. Causa, que € causa de desejo, por onde podemos pensar a sustentacio do discurso da psicandlise nesse nosso mundo de hoje, tao tensionado pelo monopélio de tantos saberes que agenciam o comporta- mento das pessoas. Ainsercao da psicandlise num hospital geral, fora do contexto que Ihe € habitual, antes de deturpar ou desvid-la de sua especificidade, ao contré- rio, destacou sua diferenca, exigindo dos psicanalistas um rigor ético ain- da maior para nao cairem no fascinio que as propostas e promessas de cura milagrosa e salvagdo exercem sobre as pessoas como recurso frente ‘a0 desamparo e ao sofrimento. Afinal, sujeito freudiano e sofrimento estao estruturalmente no mes- ‘mo lugar, no real da experiéncia psicanalitica. Sendo 0 hospital um lugar habitado pelo softimento, poder indagar: O que a psicandlise pode oferecer ali? ‘Omesmo que oferece em qualquer contexto onde ela se aplica: dese- jo. Unico remédio capaz de transformar o softimento em trabalho, as erdas em criagdo, a tristeza em sabedoria, a morte em vida. Gilda Vaz Rodrigues PREFACIO DA PRIMEIRA EDICAO Houve um tempo em que ser psicanalista confundia-se com a imagem silenciosa, impessoal, formal e estereotipada de alguém que se colocava hum mais além dos pobres-mortais que o rodeavam. Postura e impostura ‘marcavam os efeitos das andlises que terminavam na identificagao com os analistas didatas que ditavam a forma do ser psicanalista. Por nao se saber exatamente o que era ser um psicanalista, na verdade algo dificil de se definir— de que lugar ele opera, que natureza de desejo © mobiliza em seus atos —, os psicanalistas sustentavam-se na imagem ue incluia 0 proprio setting com seus divas, poltrona, retrato de Freud na parede, gestos estereotipados. Mas, nem tudo era imagem no trabalho daqueles pioneiros. A trans- isso da psicanalise como lhe é prépria se revela num s6 depois. Um dos efeitos dessa transmissao foi a derrisdo da propria imagem do psicanalista cedendo lugar 3 falta, que se insinua através da busca permanente de for- malizagao a questéo sempre aberta: 0 que é ser psicanalista? Aeexigéncia de formalizacao tedrica da pratica psicanalitica e de com- partilhé-la com seus pares, instituiu-se como imperativo ético. Ser psicanalista tornou-se um desejo, uma funcdo, uma posigo, um discurso. A pessoa do analista aqui se dicotomiza e torna possivel a relagao dia- leética entre dois campos que constituem a estrutura de um sujeito que se revela agora faltoso: 0 8. ‘Apessoa clo analista liberta-se dos efeitos estereotipados decorrentes da confusd0 outrora reinante entre o ser do analista e a imagem de analista. Nao dependendo mais do setting original, consult6rio, diva etc. para se autorizar analista,liberta-se também das formas que restringiam os efei- tos da psicandlise a um campo limitado da clinica particular. Freud ja prenunciava que a psicanélise seria um instrumento muito rico e sofisticado para se restringir apenas ao tratamento de neuréticos; que ela deveria se estender aos governantes e educadores ou a todos aqueles que lidam diretamente com as pessoas. Nao quero dizer aqui que a psicanslise promova efeitos de massa. Absolutamente. Os efeitos da psicandlise sdo sempre um a um. Este livro que tenho a honra de prefaciar, nos dé esse testemunho. Testemunho da determinacao de psicanalistas que sustentam este lugar como uma posi¢do no discurso. Testemunho de que a psicandlise & antes de tudo um discurso e como tal, indispensavel sua insergao nos demais discursos que compdem a cul- tura. Aqui, 0 discurso psicanalitico inserido no hospital geral mostra seus efeitos, que sdo especialmente funcionais. Colocar para funcionar aquilo que se toma fixado, paralisado, tensionado pela predominancia ou mono- polio de outros discursos, desta forma, aumentando ainda mais o sofri- ‘mento que a propria vida jé porta. Esse discurso se insere em sua forma discreta, evanescente, quase imperceptivel, pois o discurso da falta no ‘ocupa espaco, ele abre o espaco para a circulagao dos demais discursos. Ele ndo disputa lugar, porque sua espacialidade é de outra ordem, ela é vazia, ¢isso ninguém quer. O mundo humano se rege pelattirania do falo, a psicandlise vai na contramao do falo, sem entretanto deixar de inclut-lo, pois a instancia do falo constitui o lado consistente da estrutura do psi- quismo humano. A psicanilise dialetiza o falo. Deparamo-nos neste livro com uma série de relatos sobre o trabalho desses psicanalistas num hospital geral. Nada de grandes interpretacoes, nada de grandes atos. Aqui, mais do que em qualquer lugar, 0 narcisismo do analista é colocado a prova. Abrir mao do seu narcisismo se torna mais do que nunca uma posicao ética. Enquanto no processo analitico a verdade se apresenta com o rosto tampado e vai se desvelando aos poucos, aqui ela aparece escancarada. ‘Ao analista, nao cabe tamponi-la. A verdade é um mal incurdvel. O que ‘vemos no trabalho desses analistas é uma tentativa bem-sucedida de fazer uma borda no real. Primeiro com sua prépria presenca e aos poucos com a inser¢ao da palavra, propiciando um deslocamento do corpo paraa cadeia significante, aliviando esse corpo da carga extra de tensdo que ele dispen- de para dar conta do mal que o invade. ‘Atransferéncia aqui se revela em sua vertente real. Desvestidos de sua roupagem imaginéria, do setting analitico, seus consultérios, da propria cadeia significante da associagao livre do anali- sante, constituinte do material consistente que o analista maneja, os psi- canalistas aqui, no hospital geral, se oferecem como pura presenca. Diria: ‘como pura presenca real. Ponto em que, em sua estrutura,o sujeito se des- vanece abrindo espaco para 0 objeto a, faltoso, evanescente, despido de suas formas. E por essa razo que o psicanalista, af, pode ocupar o mesmo lugar onde 0 paciente, como sujeito, se apaga, ¢ tocé-lo nesse ponto do ser onde nenhum recurso médico alcanga. Gilda Vaz Rodrigues SISILLTLOLOSISISISISS UTEP LT EEE ED OY) SUMARIO Introdugao . . Psicanalise € Urgéncia Subjetiva’. ‘Marisa Decat de Moura Nas Vias do Desejo....... . . - ‘Léa Neves Mohallem . laine Maria do Carmo Dias de Souza O Dinheiro ea Psicandlise ...... . Elaine Maria do Carmo Dias de Souza Uma Tentativa Malograda de Atendimento em um Centro de Tratamento Intensivo. . . Claudia Pedrosa Soares Nem 0 Sol, nem a Morte Podem Ser Othados de Frente. . Gilda Vaz Rodrigues Um Ato Desconcertante 0.2... ee ee eee Maria Luisa Duarte Vilela Uma “Outra” Morte no CT... ss. « ee Maria Nisia Araujo (Na Angiistia do Desmame— o Surgimento do Sujeito. . . . . Stela Cardoso de Carvalho Maria Tereza Granha Consideragdes sobre um Caso Clinico . 2.2... ss ‘Maria de Lourdes Guimaraes de Almeida Barros indice Remissivo Reflexes sobre a Pratica do Psicanalista no Hospital Geral) . . 7 31 4 49. 37 67 73 83 91 97 PSICANALISE E HOSPITAL INTRODUGAO Os artigos reunidos neste livro representam as marcas de um percurso em direcéo a um “encontro”: da psicanilise e medicina, de médicos e psi- canalistas. ‘Se pensarmos com Lacan que a psicanilise € conseqiiéncia do discur- so da ciéncia, podemos concluir que a ciéncia nao é avessa a psicanalise, ois hoje ja é consenso que todo saber nao passa de uma ilusao. As portas do século XXI, quando assistimos a mudancas e progressos Go répidos quanto numerosos, paradoxalmente, somos colocados de uma forma evidente mais préximos da questao crucial do ser humano: sua finitude. O sofrimento humano advindo dessa constatacao, inevitavelmente se presentifica em uma instituicao hospitalar. A angustia, a tristeza, a soli- dao, a coragem, inerentes ao ser humano ¢ evidenciados diante de situa- Wes de urgéncia e acasos da vida, mobilizam, no hospital, médicos e outros profissionais e legitimam a participacdo do psicanalista nas diver- sas unidades de tratamento, exigindo uma psicandlise constantemente renovada, reinventada por cada psicanalista. Tanto o saber médico quanto o saber psicanalitico tém limites cuja conseqiiéncia € um “espaco” onde, a partir de uma “escuta’, pode ter lugar a palavra de um sujeito mobilizado pelo sofrimento. Iniciamos em julho de 1978, no Hospital Mater Dei - BH, a construgao deum trabalho que é fruto de uma confianca miitua entre a diretoria, equi- pes de atendimento e psicanalista Os resultados dessa construcao que vem se revelando, podem sobre a pertinéncia da questao do sujeito na instituicao. COOSRHFFSVSSISIPESTIED 2 PSICANALISE E HOSPITAL ‘Anossa pratica iniciou-se com aulas no curso para “os casais grividos” ‘hoje e estende ao atendimento nas Unidades de Tratamento Intensivo— UTI, adulto e infantil, ao atendimento a pacientes e familiares das varias dlinicas, e também com o trabalho de transmissao da psicanzlise através de cursos permanentes para os residentes e académicos de n hospital, onde debatemos questées rel: sos de “Formagao Permanente”, abertos a comunidade, sobre temas perti- entes i questo do sujeito na pratica dos profissionais da érea de said Ohospital geral permite a0 psicanalista por a provaa ética da psicand- lise, sustentado pelo imperativo ético de nao retroceder diante de seu desejo. E€ nosso desejo que a psicandlise, tenha acesso o maior niimero pos- sivel de seres falantes para saberem, no contato com psicanalistas, se tém algo a pedir. Léa Neves Mohallem * Marisa Decat de Moura PSICANALISE E URGENCIA SUBJETIVA Marisa Decat de Moura “Toda eriagéo surge da urgéncia, toda urgéncia engendra uma superagao pela palavra.” Jacques Lacan Apossibilidade da praxis do psicanalista em lugares outros que o con- sult6rio tem-se mostrado inquietante e instigante porque. no campo do inexplorado a pratica interrogaateoria, o que, como conseqiiéncia, exige, no caso da psicandlise, manter a agudeza da descoberta freudiana, Pratica que, sabemos, s6 se mostraré enriquecedora se preservar e produzir a for- ma de discurso inventado por Freud. Em 1918 Freud escreve WEGE DER PSYCHOANALYTISCHEN THERAPIE —Linhas de Progresso na Terapia Psicanalitica— trabalho que apresenta no Quinto Congresso Psicanalitico Intemacional, realizado em Budapeste. Freud dé énfase aos métodos “ativos” da psicandlise e mostra que a ele interessava a extensao da psicanzlise, marcando a importancia de que os inalistas se preparassem para o futuro e para a tarefa de “adaptar” a nova técnica is novas condigdes. E deixa claro o caminho dessa “adapta- a0”. “Qualquer que seja a forma que essa psicoterapia para o povo possa juer que sejam os elementos dos quais se componha, os seus ingredientes mais efetivos e mais importantes continuarao a ser, cer tamente, aqueles tomados a psicandlise estrita e nao tendenciosa.” Em 1967 Lacan escreve PROPOSITION DU 9 OCTOBRE 1967 SUR LE PSYCHANALYSTE A L'ECOLE — Proposigao de 9 de Outubro de 1967 sobre ‘© Psicanalista na Escola. Lacan quer apreender e teorizar a passagem do 3 PSICANALISE E HOSPITAL lugar de psicanalisante ao de analista; 6 0 final de analise que Ihe interessa € esta em sua ligacio com o desejo de se tornar analista. Chama entio a atengdo para a importancia da psicanslise em extensdo e para a responsa- bilidade do psicanalista quanto a esta e quanto a sua propria analise dizen- do que: “Essa experiéncia [final de andlise] é essencial ao isolé-la da tera- péutica, que nao distorce a psicandlise apenas por relaxar o seu rigor”. Freud freqtientemente fala em sua obra sobre a difusio da psicandlise. Nao podemos esquecer que ele era um representante do lluminismo euro- peu e lhe interessava, de uma maneira evidente, como a cultura poderia se beneficiar da psicanalise. Pensar psicandlise e cultura nos faz pensar na ientificidade da psicanélise, questao espinhosa pois sabemos que esta no se coloca no tipo de ciéncia representada pela fisica ou por equagées. No hospital, a relagao entre psicandlise e ciéncia se torna relevante ¢ nos remete a pensar em Freud e sua relacao com os neurologistas diante das histéricas, Ao dar atengo 20 que as histéricas “imaginavam”, Freud ndo ficou em oposicao as ciéncias positivas, mas “recupera” o que estas elimi- nam: as superstigdes e crencas. Aciéncia foi pois fundamental para o surgimento da psicandlise. A par- tir da observacao dos seus pacientes, Freud demonstra que nao era a hidroterapia a responsavel pela melhora dos sintomas, mas sim a presenga das enfermeiras, demonstracao simplesmente possivel através do retirar ora a hidroterapia, ora a enfermeira. Com O. Mannoni podemos marcar entio a questao: nao se trata de interrogar a relacao entre psicanilise € cigncia, mas de perguntar por que Freud e Einstein so contemporaneos. A psicanalise encontrou um lugar na cultura cientifica por se ocupar do que a ciéncia exclui, e inaugura um novo tempo resgatando um campo de conhecimento e eliminando deste campo a supersticao. Podemos pensar entao que psicanélise e ciéncia se apéiam mutuamente e af podemos loca- lizar um (o) lugar da psicandlise na cultura, Freud, aumentando 0 campo do conhecimento ao revelar o inconsciente com seu saber que no sabe de si e que governa a vida do sujeito, inaugura um novo tempo: — Araziio pés-Freud passa. levar em consideracgio a divisao do sujeito; — Apsicanilise, ao se ocupar do real exclutdo da ciéncia, se compro- mete com uma nova ética, Mas a questo que nos € colocada é a de como o psicanalista pode sus- tenéar sua prética em um mundo que busca o bem-estar se o seu discurso ‘do oferece intencao curativa nem pretende consolar o sujeito de sua con- dicdo humana, e somente pode oferecer ao homem o estar bem PSICANALISE E URGENCIA SUBIETIVA Pensando em uma resposta e ao lermos a “Proposicao” de Lacan, podemos dizer que a ele interessava evitar que a psicandlise se fechasse em grupos e guetos e se organizasse através da repeticao de conceitos, significantes e aforismos. Insiste na psicandlise enquanto pratica e insiste ‘Tha anilise propria enquanto “garantia” do lugar do analista, ja que, se pen- ‘sarmos na psicandlise extraconsult6rio, a questao do lugar do analista se configura como fundamental, Lacan retira os termos extensdo e intensao da filosofia analitica quan- do esta se interessou pela linguagem num movimento de eliminagao do idealismo alemao e do cartesianismo, e da énfase a uma abordagem de ‘como se descreviam as coisas. A ele interessa estes termos tdo-somente ‘quanto a sua articulacao e como se ligam intrinsecamente um ao outro. Lacan, para que a psicanilise fosse até o objeto na cultura, organiza este movimento (extensdo) mostrando a indispensabilidade de sua articulagao ‘com a psicanélise em intensdo. Toda a originalidade e conseqiiéncia de sua formulacao 6 um lugar especifico que nao € ode um técnico ou especi- alista, mas o de uma presenca responsavel pela implicacio da psicandlise e nao de sua aplicacao. Hoje, 100 anos depois que Freud escreveu ENTWURF EINER PSYCHO- LOGIE — Projeto para uma Psicologia Cientifica —, a psicanslise esta se difun- dindo para outros campos culturais,e talvez isso traga perspectivas diferen- tessobre sua esséncia:Instituicdes hospitalares tém feito apelo aos psicana- listas-e psicélogos para que colaborem com 0 seu Savoir-faire, que enquanto pritica os psicanalistas o possuem. E a resposta dos psicanalistas a este cha- ‘mado se torna a possibilidade de que a cultura —e os psicanalistas — sai- bam o que a psicanslise pode oferecer neste espaco da vida humana. Pensamos ser este um momento de expansao do movimento psicana- litico. Adivulgagao do seu discurso esta tendo também como efeito a pos- sibilidade de que a formagao e a transmissao da psicandlise possam acon- tecer fora de suas instituigoes oficiais. E é interessante pensar que o cami- nnho que “naturalmente” nossas discussdes tomaram foi o do “lugar do analista”, lugar que se tornou suporte para as formulagbes teéricas sobre a diinica e sobre a formagao e transmissio da psicandlise. Através da sustentagdo de um discurso critico pensamos ser este um ‘momento de impacto politico e ético, quando o psicanalista pode nao s6 ampliar seu campo de trabalho como também localizar o seu lugar em ‘outro registro que nao o da neutralidade, ‘A pritica do psicanalista no espaco hospitalar leva & constatacio de que ele se depara com a coexisténcia de discursos diferentes, ¢ 0 seu desa- PFT FF9F949F4445555F4FF4F8FFFFFFHGOSST 6 PSICANALISE E HOSPITAL fio & sustentar a sua especificidade quando isso for possivel. Desafio inte- ressante € que nos tem “afetado” de maneira especial porque comprova- mosa necessidade de o psicanalista abrir mao do seu narcisismo e “se ofe- recer” diante da demanda inespecifica, onde ainda nao ha demanda dirigi- da ao analista. O principal efeito desta oferta 6 0 de se deparat com os limi- tes da psicandlise e conseqiientemente com a necessidade de precisar melhor os seus conceitos, exigindo também rigor na sua pritica. Atensio do entre-discursos e as situagdes de urgéncia no hospital exi {gen do psicanalista condigdes de uma abertura ante a surpresa e ao mes! ‘mo tempo reflexos Seguros para produzir com os recursos possiveis um convite ao trabalho, constituindo-se em sua causa, Estamos pois diante do psicanalista e de sua “propria urgéncia”, isto ¢, sua propria anilise e seu término quando, diante da vida enquanto limi- te, 0 colocard em outra posicao que Ihe possibilitara reflexos seguros, ¢ hao distorcer a psicandlise — somente relaxar o seu rigor. A psicandlise ‘em extensiio se vincula inapelavelmente a psicanalise em intensao ea esta enquanto fim da resposta ao mal-estar. Entre muitas, algumas perguntas se presentificam: — Por que um psicanalista no hospital geral? — Aquem interessa esta presenca? Pensamos que no hospital, com tantas respostas para o softimento humano, como as da cigncia e as da religio, poderia estar também a psica- nAlise para aqueles que possam estar & procura da oferta do psicanalista. Pensamos também que a sua presenga no hospital interessa a nés, psica- nalistas, presenga que tem como conseqiiéncia a aproximacao inevitavel ‘de médicos e psicanalistas, o que nos leva a interrogar a relaao entre psi- canélise e medicina. Com Lacan, ao determinarmos os dois campos da psicanilise em intensio e extensao, e ao mesmo tempo sua ligacao através da importan- ia do final de andlise e a posigao do sujeito diante do Outro, torna-se 0 final de analise um ponto-chave para marcarmos a interface psicandl se-medicina, 0 “relaxaro seu rigor” se desloca entao do controle externo do lugar do analista para avertente da resposta as demandas na instituigdo. Nao se trata de dizer nao as demandas, mas de responder com o desejo de analista e, ortanto, nao existindo reciprocidade entre o que se pede e o que se ofere- Ce. Esabemos que tocamos na questao fundamental da psicanalise que é 0 {Que se transmite quando se responde a uma demanda com uma oferta’ PSICANALISE E URGENCIA SUBJETIVA, 7 Clinica da Urgéncia Psicanalista “de Plantao” Na insergio do nosso trabalho no hospital, diante do convite feito pelas chefias das Unidades de Tratamento Intensivo (UTI), decidimos ficar “de plantao” fazendo parte da equipe de atendimento das unidades, Esta decisao surgiu, a principio, por nada sabermos dessa pritica atipica. Fomos para “ver” o que era possivel ser feito e acabamos “ouvindo”... — REVIVAN 6 um dos medicamentos dadosao paciente grave, emes- mo assim ele pode morrer. — Oprocesso de sair do respirador se chama DESMAME eo paciente pode estar respirando e ndo conseguir desmamar. — Desaparece Ulysses Guimaraes no mar e a enfermagem fala dos pacientes que DESAPARECEM de um plantao para 0 outro... ‘Ao ficarmos “de plantao”, o espanto causado pela presenga do psica- ista na UTI nos causou: — 0 que fazer aqui — Os pacientes esto graves, intubados, néio podem falar... Eo psicanalistana UTI, juntamente com os médicos e outros profissio- nais, se encontra “proximo” da morte e do que circula em torno dela; o que €*pior do que a morte": — dependéncia, inconsciéncia, estar morto em vida, suicidio, erro profissional © “estar de planta” na UTI veicula ao’psicanalista no hospital um/ ‘suposto saber sobre a morte e deste lugar ele é chamado a intervir. ‘Ohospital é um espaco privilegiado onde o psicanalista se depara com pessoas diante de acontecimentos inesperados em sts vidas, aconte- cimentos estes que, pelo fato de serem inesperados, podem destituir 0 su- jeito do seu ancoramento significante se partirmos do pressuposto que 0 sujeito é efeito de significante: “Eu sou.. Pelo fato.da destituigao aguda que pode ocorrer nessas situagbes, 08 acontecimentos se tornam traumaticos e diante da falta de bordejamento significante o sujeito se vé imerso na angtstia. As situagdes de perda, seja de pessoas queridas (morte), da condi¢ao de “sadio” (doenga), da condi- Gao de “inteiro” (cirurgi).. ‘se caracterizam na urgéncia por rupturas e EE HOSPITAL, descontinuidades que levam a pessoa a se perguntar: Quem sou eu agora? € ao mesmo tempo a se deparar com a quebra de cértezas eilisoes que a Sustentavam; Por qué? Na nossa pratica sabemos com que freqiiéncia a perplexidade nestas situagdes vem acompanhada da pergunta: Por que comigo? pergunta que revela a ilusio do “ao menos um” que nao sofreria como 0 resto dos mortais. Estas situagdes com as quais se depara o psica- nalista em um hospital o confrontam com uma préxis atipica, a da urgén- cia, quando o sujeitovai estar assujeitado 3s stuacSes inesperadas edeste lugar pode fazer um chamado ao analista A urgéncia para a psicandlise vem do Outro e a pergunta: Por que ‘comigo? € uma pergunta dirigida ao Outro, localizando af a clinica psica- nalitica na urgéncia. Frangois Leguil marca com propriedade a diferenca radical entre a cli- nica da urgéncia, que chama de “clinica do chamado e da necessidade de um hhomem que softe por sua ferida”, ea “clinica da demanda e do softimento de ui homem ferido-por sua linguagem em sua necessidade”, Trabalhar com estes pacientes é afirmar e sustentar a dimensao de sujeito deste assujeitado. Dimenso que nao pode “ser abandonada” pelo psicanalista pois este paciente éum “paciente que angustia” e portanto facil de ser abandonado. ‘Opsicanalista vai estar diante da clinica da urgéncia sustentado pelos con- cceitos da clinica da demanda a ser formulada em palavras, pois se trata de ‘uma aposta no sujeito: a de transformar.a urgéncia onde o sujeito néo tem. alavras, a partir de Uma construcio do analista, reintroduzindo-o na Cadeia significante. Urgéncia Subjetiva Clinica da Prontidao — Qual é0 chamado na urgéncia e como o psicanalista pode respon- der a este chamado? Esta questo na urgéncia nos permite marcar a diferenga entre a res- posta da ciéncia (pronto-socorro) e a da psicanalise (que chamaremos prontidao) ao chamado. ‘Amedicina vai escutar 0 chamado respondendo também prontamen- te aeste, porém sendo a dimensao do tempo do sujeito eliminada. Trata 0 corpo do doente dirigindo seus cuidados para os signos e sintomas do Paciente. Diferentemente, a psicanilise, a0 escutar 0 chamado na urgén- ciasubjetiva,vaiarticular a pressa exigida pela situacao ao tempo do sujet toque precisard advir. Temos que admitir 0 contetido de urgéncia da qu PSICANALISE E URGENCIA SUBJETIVA, 9 xa, mas o trabalho € para que possa surgir uma demanda, O paciente prec- sard entrar na estrutura para que o analista possa entao se perguntar sobre 0 desejo e 0 equilibrio do gozo naquela estrutura. A situagao de desamparo na qual o sujeito na urgéncia se vé imerso, nos remete a pensar 0 conceito freudiano agierem, a partir do qual Lacan veio a formalizar 0 conceito de ato analitico, pois o ato apresenta uma dimensdo de linguagem tanto na fala impossivel e atuada quanto no ato do analista. O ato se ope a dimensao do inconsciente e isto nos coloca uma {uestao paradoxal, pois se a pratica do psicanalista é a do inconsciente, como situar a dimensio do ato e suas conseqiiéncias na urgéncia? A.urgéncia 6 ruptura como também o é o ato. Do lado do paciente temos a atuacdo e do lado do analista temos que! ina urgéncia, taticamente precisaré se colocar na posigao de sujeito, e des- te lugar agir. Acdo do psicanalista que necessariamente serd de outra ordem das agdes movidas por outros discursos, pois dos efeitos de seu agir ‘espera-se possibilitar o surgimento do sujeito. . Na urgéncia.o sujeito é langado no estado inicial de desamparo, ésta- do que pode se repetir em qualquer momento da vida, revelando a preca- riedade da condigao humana, O mundo do humano é estruturado em pala- vras e no mundo simbético da finguagem, enquanto seres falantes, os homens sao igtais. Sua singularidade se coloca no campo do objeto. Sin- gularidade “sublime” que confere ao TRIEB uma satisfacao diferente do seu alvo “natural”. O homem em seu “primeiro desamparo” estrutural e estruturante— fonte de motivos morais —alucina um objeto que, matriz imaginéria, vai permitir a instauragao simbélica a partir da qual nao esta mais no desam- aro; tem uma imago para se relacionar com o Outro. A estrutura humana € pois uma estrutura de ficcao. Na instituigao hospitalar, espaco onde o desamparo humano pode se | Presentificar com as mais diversas roupagens, suscitam-se reagdes diver- “sas. E observamos que um dos significantes que se apresenta e circula, se | referindo ao paciente grave submetido a tratamentos e situacdes-limites, ‘Eo significante DIGNIDADE. Enquanto significante da cultura, circula Veiculado por significagbes morais amor-préprio, respeito, luci- ez... 0 psicanalista, enquanto inserido na cultura, ndo pode simplesmen- te desprezar ou se apropriar desses significantes, mas vai escuté-los a par- tir do saber da psicanalise. A“DINGNIDADE” humana esté do lado do objeto de cada um. PSICANALISE E HOSPITAL, Freud, a0 falar do objeto para a psicanilise, diz que este nao tem cor- respondente no saber positivo, e esta especificidade é a marca que nos permite localizar af a escuta do analista. Estando a dignidade do sujeito no campo do objeto, a acdo do analista visa tocar este objeto. O psicanalista precisa ser o vidente do desejo do Outro, diz Lacan. Com que “dignidade” uma mulher, acompanhando a evolucio do {ratamento do seu maridoe que diante do diagnéstico de morte cerebral respondia aos médicos dizendo: “Ah..sim..eleestd melhorando." diz ‘no 5*dia de internagio ao psicanalista: — “Hoje consegul rezar 0 PAL ‘NOSSO; rezeiseja fita a VOSSA vontade. DAS DING, o inapreensivel do Outro, o que se perdeno objeto, éa cau sado saber de que.o objeto é presenca que sustenta a auséncia, constituin- do-se entao a ética do desejo. E é esta pois a férmula que Lacan nos di da sublimacao: ela eleva um objeto a dignidade da Coisa. Na urgéncia 0 sujei- to perde sua dignidade porque se torna,ele proprio 0 objeto, este nao ficando mais no lugar da diferenca. {Um paciente nubado (respirador) prectsava ter suas mos amarradas porque se estivessem livres ele se debata earrancave o tubo. Diante da ‘oferta de escuta do analista através da eserita em uma papeleta diz: MINHA dentadura, nunca fue sem ela.” ~ ho falar, o sujeito pode se inserir no tempo da sua historia e esperar 0 tempo do Outro. DIE NOT DES LEBENS, a necessidade dos viventes, algo que quer, 0 pro- ‘cesso de pensamento se localiza no inconsciente e se torna acessivel pela Palavra. O estado de Not, diz Lacan, é 0 estado de urgéncia da vida, estado que busca encontrar DAS DING enquanto Outro primordial, absoluto do ‘sujeito, encontro-reencontro no maximo como saudade. O estado de NOT exige uma aco especifica. A agao especifica — SPEZIFISHE AKTION — busca produzir o estado ial de encontrar DAS DING. A acao-especifica do analista na urgéncia nao pode serum ato qualquer e para isto ele conta com uma “escuta habili- tada” capaz de causar, ago que Lacan, em uma metafora, localiza no glori- ‘080 intervalo entre o DEDO DE DEUS e a MAO DE ADAO, na pintura de Michelangelo a criacao do homem, aco que toca, mas no encosta. Lugar onde o analista marca uma posicdo, e ao intervir através de aces direti- vas, muitas vezes necessarias em situades de urgéncia, o fard de modo que sua ago produza como efeito um sujeito. Enquanto os outros discur- PSICANALISE E URGENCIA SUBJETIVA u sos desconnecem acivisio do suelo, aagdo do alist val spotarparaa 10 da qual o sujeito emerge dos sig Aco do analista habilitado & medida que toca o ponto da estrutura ‘capaz de permitir que o sujeito recupere sua dignidade; capaz. de ouvir a cadeia significante onde naquele momento o sujeito se articula; capaz de ouvir onde o sujeito se articulanno nomedvel e no inomindvel, dois tempos que se constituem na entrada do inconsciente na escuta. ‘Um paciente, apés wirios dias em estado de coma, intubado (ro respirador),escreve suas primelras palavras ao recuperar a conscincia — "MEU CARRO esti em: casa ou no estacionamento do hospital?” Podemos, com Lacan, dizer que o que hé em DAS DING € 0 verdadeiro segredo, estado de NOT na urgéncia hospitalar se constitui com as mais diver- ‘sas roupagens. Com freqtiéncia, pessoas sdo mobilizadas eo psicanalista & ‘chamado. A nao-padronizagao do chamado — como na demanda —, que implicaria na sua eliminacao, leva o psicanalista a escuté-lo, independente da roupagem apresentada, coma seguranca de que o silencio, o grito ou 0 _choro escondem.o sujeito- O grupo de psicanalistas do Centro de Atendimento das Urgéncias — CONSULTATION PSYCHIATRIQUE D' ORIENTATION ET ACCUEIL (CPOA), ue funciona no hospital Saint-Anne, em Paris, grupo de reflexao sobre a urgéncia coordenado por Eric Laurent, fala deste chamado como “deman- da radical”, “peti¢ao intransitiva’, “demanda inauténtica”. Chamado que, pensamos, é para ser sustentado — aco especifica — e com isto remeter A busca do sujeito que o faz, quando entao o pedido ¢ instado a se inscre- ver na cadeia significante. A clinica da urgéncia éa clinica das pessoas que, no momento do desespero, nao falam e se falam, nao articulam a fala a0 dizer. Podemos localizar estas questdes em uma situacdo de urgéncia no hospital: Respondendo a um chamado urgente a enfermeira esclarece eo ‘icanalista que uma senhora de sessenta anos acabara de falecer & a ‘familia ndoestava aceitando ofato, eque “opior era uma filha que tinka ‘dado muito trabalho durante a inernagdo da mae". No quarto 0 ‘sicanalista se depara com a seguinte cena: A fitha segurava a mde ‘abragando-se a ela, sentada na cama. Quando a solava e a mie cata, ‘grtava, levantando-a novamente: "Nao faz isso comigo!” No quarto arias pessoas paralisadas assistiam & cena 2 PSICANALISE E HOSPITAL, Naurgéncia o significante nao se articula no dizer, marcando uma rup- tura aguda na cadéia, ruptura que tem como conseqiiéncia a destituicio ‘selvagem do sujeito, passando este A posicdo de objeto. AS referencias ssimbélicas nao o sustentam. Por se tratar de uma situacdo aguda, nao & posstvel dosificar a angiistia |deixando o sujeito imerso no sem-sentido. 0 trabalho analitico é 0 de possibi “Ttaro caminho da destituigao a r6-instituigdo da pessoa na posiao de sujeito. A pergunta — “Quem & vocé?”, dlrigida aos familiares, lvowos a se idenificarem: “iri”, “primo”, “filho”...B aquele que apresentow um ‘Significant a mais, “sou lho, o mais velho”, foi o que se drigiu a rma ea abragou. Esta, depois de se debater, fi se acaimando e seus gritos se transformaram em choro. ide entdo vltar para a mie, agora “caida”. @ junto com os familiares chorare falar de "sua pera J Freud em Luto e Melancolia diz.que na melancolia a pessoa pode saber quem perdeu, mas nao sabe o que perdeu neste alguém. O que se perde é bb que se é para alguém. ‘Trata-se de uma perda subjetiva. + Podemos pensar no FORT-DA, neste caso em um jogo mortifero, no além do principio do prazer. Repeticao de uma separacao cuja funcao de dominio na cena & apenas um engano. O aspecto fundamental nao é a “recuperacao” da mae, mas a repeti¢ao de uma perda. — Perda da relagao direta com a coisa, que diz respeito 20 acesso a lin- guagem. Quando fala, o sujeito renuncia & coisa e sua satisfacdo passa 3 inguagem, constituindo-se entao em objeto, a propria agao. No FORT-DA, 1no jogo do carretel citado por Freud, podemos pensar em dois momentos metaféricos, sendo o primeiro a substituicao da mae pelo carretel e 0 segundo quando o carretel é substituido pelas palavras FORT-DA. Sobavertente do tempo logico, o analista a urgéncia vai privilegiar tempo de compreender, diferente de na analise quando privilegia o tempo de concluir, concluir antes que 0 momento oportuno se perca pois a ver- dade nao espera. Naurgéncia, o sujeito diante da verdade escancarada, do ver-concluir insuportavel, instaura 0 tempo que nao é de palavras e requer uma titica specifica, E para esta o analista conta com o ato e sua l6gica. 0 psicanalis- ta vai téhitar transformar o caminho da passagem ao ato usando os recur- sos possiveis, para dar lugar ao tempo de compreender. Considetando aurgéncia como 0 curto-circuito entre o instante de ver €.0 momento de concluir, o analista-vat trabalhar para que nao se delxe PSICANALISE E URGENCIA SUBIETIVA B passat o tempo.de compreender, quando sua presenga se-daré no limite ~[ghitre o que se pode saber e 0 sem-sentido.. Urgéncia Subjetiva e Transferéncia Sabemos que o sujeito s6 fala para alguém que escuta, ena psicanslise em tomo do Sujeito Suposto Saber, onde a transferéncia tem lugar, que €possivel articular a pergunta a demanda como resposta. O saber vai estar “ do lado da verdade, ja que nao se trata do Sujeito Dono da Verdade. Se 0 analista no se autoriza do lugar de mestre nem se adianta movido por sua prépria divisdo, pode apresentar na urgéncia um convite a trabalhar. Penso ser important preisaros lence atrasfxgociaguando sete ta de uma instituigdo hospitalar e de situagdes de urgéncia, refletindo sobre como produzir efeitos de ordem analitica em condigdes nao-analiticas. Observamos na pratica a rapidez com que se instalaa transferéncia em situagdes de urgéncia, e quando esta se instala o sintoma se situa no espa o da cura. ‘Transferéncia na andlise € amor que se dirige ao saber, trata-se de se perguntar sobre um saber que na urgéncia est li como resposta antecipa- da, 0 sujeito vai precisar dar conta da resposta sobre a morte, a castracao, antes de ter se perguntado. “Se apresenta entio uma demanda que se estanca, se oferece ¢ aponta a divisao do interlocutor” cujo trabalho sero de sair da impoténcia para aimpossibilidade, o que abre caminho ao possi- vel de ser feito. E marco af a posigio do analista na urgéncia, quando, a falta da trans- feréncia, coloca-se como sujeito, como diz Eric Laurent, funcionando como puro dialético, calculando as coordenadas significantes do sujeito, intervindo na clinica do ato, buscando o surgimento significante. Certa- mente o analista nao tem no hospital a posicdo que pode ocupar na cura quando a transferéncia jé esté af; portanto, no hospital ele vai estar tam- bem como sujeito, mas, apoiado na sua propria experiéncia, pode criar condigdes de trabalho que possibilitarao ao sujeito encontrar uma saida, Diana Wolodarski, para localizar a posicao do analista com relagao transferéncia, marca 0 movimento do inicio ao término na urgénci inicio o sujeito se oferece em posicio de plenitude e siléncio.e tem por horizonte a passagem-ao ato, e sai da urgéncia quando produz algum sig- nificante que o liga como sujeito, Neste momento, s6 quando algo da per™ da se perde o sujeito comegaa falar, ea partir dai ndo se trata mais de uma urgéncia. BESEEEEEEEDIEEEEIEISS 14 PSICANALISE E HOS! TAL Pensamos, a partir desses anos de prética na instituigao hospitalar, que o psicanalista nao pode esperar que médicos e pacientes saibam iden- tificar 0 que podem dele esperar. E preciso responder ao chamado para «que saibam que o que o psicanalista pode oferecer & um espaco para que 0 sujeito fale e possa ser escutado de um lugar outro onde ele nao &s6 aque- Te paciente, doente ou o ntimero de um leito. 7 Eserescutado no mais além, que sabemos ter como efeito a possibili- Abate de 0 sujeito participar do processo do seu tratamento e ajudar com a of parte que Ihe toca. *—Afinal de contas, trata-se da sua vida, do seu corpo, da sua historia, Lacan em Televisdo responde & pergunta kantiana formulada por J. A. Miller, O que devo esperar da psicandlise, dizendo: “A psicandlise permite clarificar 0 inconsciente do qual o senhor é sujeito”. Estamos sempre nos surpreendendo com 0 poder da “peste”, este poder do um-a-um, nesta profisso impossivel. Surpresa que nos remete a uma posicio de principio — tomna-se imprescindivel a interlocugao com nossos pares. Apresenca desse saber inapreensivel, que nao se formula em palavras ‘mas apresenta 0 segredo de cada subjetividade, sendo inerente a expe- rigncia analitica, “se presentifica” com a escuta do analista. Nao esté af o seu lugar? Podemos pensar entdo no encontro entre medicina e psicanilise, encontro marcado pela construgao de um espago onde o psicanalista pos sasustentar o lugar ético de preservara falta-a-ser do sujeito... tambémno hospital. Neste encontro ha oportunidade de progresso também para ambas as praticas porque com Lacan sabemos que toda criacdo surge da Jurgéncia e esta engendra uma superacdo pela palavra. Para uma praxis possivel da psicandlise pensamos nao na sua aplicagaio

You might also like