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N°11 | Janeiro Junho 2020 | Semestral |.20€ PRINCIPIOS E SISTEMA PENAL reira ~ Dos crimes cometidos por forcas de seguranca no exercico de funcdes Santos -O facto no direito penal secutitario: em fe atos preparatorios no terrorismo JUSTIGA PENAL E DIREITO MEDICO Rita do Rosario - Internamento compulsivo: entre psiquiatria e direito Nuno lgreja Matos - Breves notas sobre o crime e a (propagacaode) doenca em tempos de pandemia DIREITO PENAL E RELACAO PESSOA-MUNDO de Brito -Estereétipos prejudiciais de géeto na pra jurida:denegaio de aceso 20 rita eaos tibunats COMENTARIOS DE JURISPRUDENCIA Antonio Brito Neves -Comentério as decisées do caso Bragaparques Bl cippce ANATOMIA DO CRIME REVISTA DE CIENCIAS JURIDICO-CRIMINAIS DIRETORA MARIA FERNANDA PALMA No 11 JANEIRO-JUNHO/2020 cpecc oye | el Ne sm EDITORA Apoio: DIRETORA, Maria Femanda Palma SUBDIRETORES Augusto Silva Diast + Paulo de Sousa Mendes + Helena Moraio ASSESSOR CIENTIFICO Antinio Brito Neves COMISSAO CIENTIFICA, Diego-Manuel Luzén Pefa + Eduardo Demetrio Crespo + José Luis Diez Ripollés Kai Ambos = Miguel Diaz y Garcia Conlledo + Wolfgang Frisch CONSELHO EDITORIAL Alexandra Vilela (CIDPCC; Fac. de Direito ¢ Ciéncia Politica da Univ, Luséfona do Porto) + Anténio Brito Neves (CIDPCC; Fac. de Direito da Univ, de Lisboa) - Carlota Pizarro de Almeida (CIDPCC) + Catarina Abegiio Alves (CIDPCC: Fac. de Direito da Univ. de Lishoa) + Helena Moro (CIDPCC; Fac. de Direito da Univ. de Lisboa) + Inés Ferreira Leite (CIDPCC; Fac, de Direito da Univ. de Lisboa) + Isabel Pinto Ribeiro (CIDPCC; Fac. de Medicina da Univ, de Lisboa) + Jofio Curado Neves# (CIDPCC; Fac. de Direito da Univ, de Lisbea) + Jodo Gouveia de Caires (CIDPCC: Fac. de Direito da Univ. de Lishoa) + Jodo Matos Viana (CIDPCC; Fac. de Direito da Univ, de Lisboa) + Mafalda Moura Melim (CIDPCC/Feec. de Direito da Univ. de Lisboa) + Maria do Céu Rueff Negrfio (CIDPCC; Fac, de Medicina da Univ. de Lisboa) * Miguel Martins (CIDPCC) + Miguel Prata Roque (CIDPCC; Fac. de Diteito da Univ. de Lisboa) « Paulo Dé Mesquita (CIDPCC) + Ricardo Tavares da Silva (CIDPCC; Fac, de Letras da Uniy, de Lisboa) + Rita do Resirio (CIDPCC; Fac. de Direito da Univ. de Lisboa) + Rui Carlos Pereira (Inst, Superior de Cisncias Sociais e Politicas; Inst, Superior de Ciéacias Policiais e Seguranga Interna) + SOnia Moreira Reis (CIDPCC: Fae. de Direito da Univ. de Lishoa) « Teresa Quiniola de Brito (CIDPCC; Fac. de Dircito da Univ. de Lisboa, Fac. de Direito da Univ. Nova de Lisboa) « Tiago de Sousa Mendes (CIDPCC) + Vania Costa Ramos (CIDPCC; Carlos Pinto de Abreu ¢ Assosiados) + ‘Wagner Marteleto Filho (CIDPCC; Ministério Pablica de Minas Gerais) PROPRIETARIO Instituto de Direito Penal ¢ Ciéncias Criminais NIF S08 316 596 SEDE B REDACAO Faculdade de Direito de Lisboa ~ Alameda da Universidade ~ 1649-014 Lisboa EDITORA AAFDL Editora ~ AAFDL, Alameda da Universidade ~ 1649-0[4 Lisboa ~ Portugal Telef 210 998 711 ~Fax: 21 793 94 09 — livraria@aafal pt ESTATUTO EDITORIAL hup://www.idoce pl/amsifiles/Revistas/Estatuto_editorial_7.12.2014,pdf TIRAGEM 100 exemplares CAPA, IDEOMA Design, Lda, IMAGEM DACAPA Mistero e malinconia di una strada, fanciulla con cerehio (Giorgio de Chirico ~ Museo Carlo Bilotti) ASSINATURA ANUAL: € 35,00 NUMERO AVULSO: € 20.00 EXECUCAO GRAFICA, AAFDL Editora DEPOSITO LEGAL: 385419/14. N. DE REGISTO NA ERC: 126598 {INDICE EDITORIAL. PRINCIPIOS E SISTEMA PENAL, Dos crimes cometidos por agenies das forgas de seguranca no exercicio de fiungdes ... Rut Pereira I O facto no Direito Penal securitério: em especial, as incriminacdes de atos PFeparatbriOs NO LLPTOFISMO oes see Nuno Ricaarpo Pica pos Saxtos JUSTICA PENAL E DIREITO MEDICO 23 83 Tnternamento compulsivo: entre Psiquiatria e Direito .... Rita ALEXANDRE DO ROsinio Breves notas sobre o crime e a (propagagao de) doenga em tempos de pandemia seevenene 143 NUNO IoREIA MATOS DIREITO PENAL E RELAGAO PESSOA-MUNDO. Estereéstipos prejudiciais de género na pritica juridica: denegagao do acesso ao Direito e aos tribunais .. wsasriceaiei! = NOT ‘Teresa QuINTELA DE Brio COMENTARIOS DE JURISPRUDENCIA, “Emprestai-me os vossos ouvidos" ~ Comentirio ds decisdes do caso Bragaparques ANTONIO BRITO NEVES 221 22 | RUIPEREIRA PALMA, Maria Fernanda (2017), “A legitima defesa da autoridade policial’, in: Faria Costa, José de/Rodrigues, Anabela Miranda/Antunes, Maria JoZo/Moniz, Helena/Brandao, Nuno/Fidalgo, Sdnia (orgs.), Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade, Coimbra: Instituto Juridico FDUC, pp. 903-918, PALMA, Maria Fernanda (2019), Direito Penal, Parte Geral, A teoria geral da infracdo como teoria da deciséo penal, Lisboa: AAFDL editora, 42 ed., pp. 15-24. PEREIRA, Rui (1995), “Justificacdo do facto e erro em Diraito Penal”, in: Jormadas de Homenagem ao Professor Doutor Cavaleiro de Ferreira, Separata da Revista da F.D.U.L., Lisboa: ed. D.U.L., p. 25 € ss. SILVA, Germano Marques da (2008), Curso de Processo Penal, |, Lisboa/Sao Paulo Verbo, 5? ed., pp. 83-4, SOUSA E BRITO, José de (1978), “A lei penal na Constituicdo”, in: Miranda/Jorge (coord.), Estudos sobre a Constituicao, Volume Il, Lisboa: Petrony, pp. 197-254. Jurisprudéncia citada Acérdao do Tribunal Constitucional n° 479/94, de 7 de julho, relator Conselheiro Monteiro Diniz, in DR |, 195, de 24 de Agosto de 1994, O FACTO NO DIREITO PENAL SECURITARIO: EM ESPECIAL, AS INCRIMINAGOES DE ATOS PREPARATORIOS NO TERRORISMO* The fact in security Criminal Law: in particular, the criminalisation of preparatory acts concerning terrorism” Nuno Ricardo Pica dos Santos” Palavras-chave: Direito Penal preventivo; Direito Penal securitério; terr preparatorios. mo; atos Resumo: No presente trabalho é analisada a evolugdo securitdria e preventiva do Direito Penal, no ambito da repressao do terrorismo. Nesta sede, tem-se verificado um aumento das incriminacdes, consistindo estas na selecio de atos preparatérios transformados formaimente em crimes auténomos. Ap6s uma breve andlise, em geral, as caracteristicas das incriminacBes au- tonamas de atos preparatorios, sao estudados os tipos legais de recruta- mento, treino e viagens para fins de terrorismo, realcando-se os aspetos mais problematicos em termos de tipicidade objetiva e subjetiva. A sensibilidade de tais incriminagGes exige ainda uma reflexéo sobre 0 seu quadro justificador e legitimador, com assento na excecionalidade. Por fim, é defendida a ideia de que 0 facto juridico-penal insito naquelas incriminagdes é, na substéncia, um facto policial ou de seguranca, cuja le- gitimidade penal (fraca) residiré na inexisténcia e na intolerancia do orde- Recebido a 24/4/2020. Aprovado a 1/9/2020. presente artigo corresponde ao relatério apresentado na unidade curricular de Direito Penal I do doutoramento em Direito, na especialidade de Ciéncias Juridico-Criminais (FDUL), sob regéneia da Exma, Sra, Prof’ Doutora Maria Femanda Palma e assistén- cia da Exma, Sra, Prof Doutora Helena Moriio, depositado nos servigos da FDUL em outubro de 2019, Doutorando em Dircito, especialidade de Cigncias Juridico-Criminais, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL). Assistente convidado no Instituto Superior de Ciéneias Policiais ¢ Seguranga Interna (ISCPSI) e assistente de investigagio no Centro de Investigagiio do ISCPSI (ICPOL). 24. | NUNO RICARDO PICA DOS SANTOS Namento juridico a meios administrativos ~ e.g., detengio e escutas ad- ministrativas ~ correspordentes a certas medidas de proceso penal que, entdo, € jd neste ambito, passam a estar acessiveis, Keywords: Preventive Criminal Law; Security Criminal Law; terrorism; preparatory acts. Abstract: The present study analyses the safeguarding and preventive evolution of criminal law in the context of fight against terrorism. There has been an increase of crimes due to the fact that preparatory acts are now considered as autonomous crimes. Following a short analysis of the above, we studied the legal types of re- cruitment, training and travelling linked to terrorism, focusing on the most problematic aspects of objective and subjective crime dimensions. The gravity of such crimes requires a deeper reflection in the framework of legal assessment, especially considering the exceptionality. Finally, the defended idea is that the fact in those incriminatians is, in sub- stance, @ police or security fact, whose (weak) criminal legitimacy will reside in the non-existence and intolerance of the legal system to admin- istrative means~e.g., detention and administrative tapping - corresponding tocertain measures of criminal procedure that, then, become accessible Introducio A expansao do Direito Penal, no sentido aqui analisado, é um fendmeno que Surge no final do século XX, com causas de natureza diversa (Silva Sanchez 2011). A diversidade de causas, bem como a intrinseca inter-relacionagio entre elas, suportaram @ tem impulsionado, num mundo complexo, a expansdo ou alargamento do Direito Penal, como fenémeno e proceso dinamicos e permanentemente evolutivos. Essa expansao tem-se materializado, entre o mais, na definigiio de novos tipos legais de crime, assentes em diversas orientacdes: quer em novos direitos quer em direitos vistos de outros prismas; em fins de melharia do Estado de um ponto de vista politico-organizatério e econémico; e, numa antecipacdo da protecdo de certos bens juridicos, através da incriminago de comportamentos nao enquadraveis ou dificilmente enquadrdveis num Direito Penal classico (Palma 2014, 12). Neste caminho, oconceito de facto juridico-penal deverd ganhar uma centralidade na reflexio que se exige. Assim 0 é, no limite, “quando estilos de vida ou comportamentos sem apeténcia Para lesar bens juridicos so configurados como crimes”, interpelando, deste modo, a 0 FACTO NO DIREITO PENAL SECURITARIO: EM ESPECIAL, AS INCRIMINAGOES... | 25 propria “base da incriminagéo”, no sentido de uma “estrutura comportamental objetiva minima, com alguma referéncia causal a lesdo de bens juridicos” (Palma 2014, 20). Nao obstante este referencial causal se configurar como um atributo qualitativo, no sentido da sua averiguacdo em termos dicotémicos de verificagdo ou nao verificagdo, é também um género com espécies diversas, de intensidades distintas atente-se nos crimes de perigo face eos crimes de dano, nos crimes de perigo abstrato face aos crimes de perigo concreto, na forma consumada face a forma tentada, nos atos preparatérios (puniveis) face aos atos de execugio. Aquele referencial causal, nas suas diversas espécies e intensidades, esta traduzido, pois, na dogmatica do Direito Penal. Ora, a expansdo do Direito Penal eas suas novas incriminacGes tém fragilizado aquela base caracteristica da incriminacdo, quer no que respeita a conduta ¢m si mesma quer na sua referéncia causal a lesdo de bens juridicos. Obedecendo a expansao do Direito Penal a causas e Idgicas diversas, identi- fica-se no seu seio “uma evolucao de tipo securitario” (Palma 2018b, 71), constituindo esta vertente 0 objeto do presente estudo Neste contexto, 0 terrorismo e @ criminalidade altamente organizada sao campos férteis para o alargamento do Direito Penal, criando-se novos crimes de perigo abstrato, sendo-se menos exigente na censurabilidade dos comportamentos incriminados ou, até mesmo, tendo-se exclusivamente em consideragao critérios de perigosidade dos comportamentos e dos respetivos agentes (Silva 2010, 209-13). llustrativo e exemplar, neste Ambito, é 0 art. 4.° da Lei n.2 52/2003, de 22 de agosto, designada por Lei de Combate ao Terrorismo. Na realidade, as alteragdes ccorridas naquele artigo, com epigrafe “Terrorismo”, sao um roteiro das caracteristicas elencadas, bastando comparar a disposi¢o normativa na sua versao original com as verses resultantes da Lei n.° 17/2011, de 3 de maio, da Lein.2 60/2015, de 24 de junho, e, na sua redacao atual, da Lei n.2 16/2019, de 14 de fevereiro. 0 facto juridico-penal materializador e resultante deste percurso securitario apresenta-se com caracteristicas prdprias e distintas do cldssico facto juridico-penal, no minimo, convertendo em normal aquilo que era excecional ou de previsdéo menos frequente e, quando no, transformando formalmente a natureza do facto. Emalgumas destas incriminagdes, a conduta resume-se a uma mera acdonaturalistica aque se acrescenta uma certa vontade ou inten¢do, sendo desta Ultima que se extrai a roferéncia a lesdo de bens juridicos. Tal aparenta ser idéneo a colocar em causa 0 direito penal do facto, podendo promaver a sua erosio ou reconfiguracio. Assim, 0 presente trabalho tem como objetivos: (i) elencar as causas da expansao do Direito Penal e identificar a sua vertente securitaria, em concreto, no &mbito do terrorismo; (ii) estudar o facto juridico-penal insito nas incriminagdes 26 | NUNO RICARDO PICA DOS SANTOS auténomas de atos preparatérios, em concreto, a sua tipicidade; (ili) definir a morfologia desse facto e identificar as funcdes que desempenha e os problemas que coloca; e, (iv) analisar quadro justificador de tais incriminagdes, bem como a sua legitimacio. Formulamos 0 seguinte problema de investigacao: As incriminagdes auténomas de atos preparatérios no terrorismo encontram-se em tensdo com uma nogao de direito penal do facto, \egitimando-se pela necessidade de atuacdo estatal, com vista a prevencao de futuros atos terraristas, e por inexisténcia de poderes admi- nistrativos para esse fim? I. Aexpansio do Direito Penal no Ambito securitario 1. Perspetiva geral A expansdo do Direito Penal é urn fenémeno que se tem manifestado nos diversos ordenamentos juridicos, consistindo numa tendéncia geral de criagao de novos tipos legais de crime e da agravacdo das incriminagées existentes, num quadro de “restric&o” ou “reinterpretacéio” das garantias tradicionais do direito penal substantivo e adjetivo (Silva Sanchez 2011, 4-5 e 75). Trata-se de uma tendéncia nacional e europeia ou regional, mas também internacional. Apresenta semelhancas com o fenédmeno designado, nos sistemas de common law, em especial nos EUA (Silva Sanchez 2011, 192-93), por overcriminalization, mas tendo este uma ténica especial na multiplicacao de factos tidos discutivelmente como crime (Husak 2013, 41). Ora, esta é s6 uma perspetiva da designada expans&o do Direito Penal, pois oconceito é global, abarcando nao s6 uma componente substantiva— entre o mais, concretizada na proliferacdo de crimes — mas também adjetiva. Silva Sanchez (2011, 11-74) elenca diversas causas para essa expansao, devendo ser vistas em concorréncia e relagao entre si, nomeadamente: (i) 0 surgimento de novos bens juridicos, materializados em novos interesses ou em valoracées quali- tativamente diversas de interesses jé existentes, ou valoragdes quantitativamente diversas dos mesmos, que 0s podem colocar na érbita do Direito Penal; (ii) a existéncia de novos riscos, imbrincados na nogio de sociedade do risco de Ulrich Beck, e associados quer ao desenvolvimento tecnolégico, por si, quer as novas possibilidades que este trouxe para a criminalidade organizada'; (iii) a “institucionalizag3o da in- Sobre este aspeto, vide também Klaus Giinther (2016, 16-17). FACTO NO DIREITO PENAL SECURITARIO: EM ESPECIAL, AS INCRIMINAGOES... | 27 seguranca”, que, a acrascer ao atributo do risco, é caracteristica das sociedades atuais, podendo dizer-se que estamos perante uma “sociedade de objetiva inseguranca” ede “de enorme complexidade”, na qual a necessaria interagao e relacionamento entre individuos faz aumentar a possibilidade de eventos lesivos; (iv) a “sensa¢do social de inseguranga”, ou melhor, a percecSio de inseguranca pelos cidadaos, criacora de um sentimento de inseguranca que alastra na comunidade; (v) uma transformagao social que cimentou uma “sociedade de sujeitos ou classes passivos”, que exigem prestagées pliblicas estatais e que sobrevalorizam a seguranca face a liberdade, no sentido de uma menor tolerSncia a riscos, com a consequente diminuigéo do risco permitido; (vi) a identificacéo dos cidadaos com as vitimas de delitos, criando-se uma ideia social influenciadora do legistador, intérprete e aplicador no sentido de uma maior protegdo da vitima, pela via do Direito Penal, & custa das garantjas do suspeito (substantivas e adjetivas)’; (vii) o “descrédito de outras instancias-de prote¢ao”, quer informais, como as normas sociais e morais, quer formais, como outros ramos do Direito (administrativo sancionatério e¢ civil), que leva a procura de soluges no Direito Penal que aqui néo podem ser obtidas sem um desvirtuamento das suas garantias classicas e do seu prdprio traco genético, o que ocorre quando passaa ser visto como “nico instrumento eficaz de pedagogia politico-social, como mecanismo de socializacao, de civiliza¢éo” e de enfrentamento de “grandes questées sociopoliticas"; e, por fim, (viii) a atua¢3o dos “gestores atipicos da moral”, onde se incluem associagées da mais variada ordem (ambientais, de consumidores, feministas, pacifistas), nomeadamente organizacdes ndo-governamentais, que prosseguem in- teresses definidos, nao se eximindo a reclamar a utilizagdo do Direito Penal na defesa e prossecucio desses fins, mas também partidos politicos, que com a sua maior ou menor expressividade nos parlamentos e nas solugdes governativas podem usar 0 Direito Penal na prossecugio das suas agendas e bandeiras politicas. Uma das caracteristicas desta expansio é a crescente tipificacéio de crimes de perigo®, por os crimes de lesdo surgirem como inadequados as novas realidades, sendo aqueles formulados, amitide, como perigo abstrato, por contraposi¢ao ao perigo concreto (Silva Sanchez 2011, 17 ¢ 45-46; Schtinemann 2005, 27; Giinther 2016, 16). Areferida expansio do Direito Penal obedece, pois, a determinantes diversas, entre.as quais, politicas, sociais, econémicas, financeiras, fiscais e ambientais (Palma 2018b, 69), constituindo-se, em parte — quer em algumas das suas causas quer na > Também sobre este aspeto, vide Klaus Giinther (2016, 18). 3 Mas a relevancia e alastramento dos crimes de perigo ocorreu logo apés a Segunda Grande Guerra, cf. Rui Pereira (1995, 22-23). 28 | NUNORICARDO PICA Dos SANTOS sua tendencial traducdo, a jusante e em certas dreas, em crimes de perigo abstrato —como o acompanhamento do Direito Penal 8 evoluco da sociedade, no seu de- Siderato de protecao de bens juridicos, isto é, como “uma necessaria modernizaco do direito penal” (Schiinemann 2005, 31)'. Referimos, “em parte”, pois a expansao do Direito Penal também é resultado de uma sua criticavel instrumentalizagSo pelo poder politico. Como salienta FerNanoa Pata, “o modelo de fundamentacao passa a referir-se, assim, aos fins do Estado € aos bens coletivos, a utilidade social e ao bem-estar geral”, sendo que “é a amplitude de intervengio do Estado na sociedade que delimita 0 Direito Penal, mas nao ha nenhuma razdo fora desta estruturacao do Estado e da definicéo do interesse politico que Fundamente a legitimidade da intervenco expansionista penal” (Palma 2018b, 70). Neste quadro, continua a A. “tudo é criminalizavel, toda e politica social é objeto possivel do Direito Penal. Nio hd espaco livre do Direito Penal e da pena estatal e no hd limites constitucionais Para 0 mbito das normas incriminadoras”; trata-se, ento, de um modelo que apresenta como atributo o seu carater “utilitarista”, sendo usado com, eservindo, “diferentes intencionalidades politicas pela sua instrumentalidade social” (Palma 2018b, 70). 2. ODireito Penal securitirio Da diversidade de causas expansionistas elencadas por Suva SAncHez, apenas duas radicam diretamente em questes de seguranca, sendo tratadasjuntamente com todas as outras. Estas no constituem, no pensamento do A., segundo se vis- lumbra, um fenémeno de género diverso ou espécie com relevo para uma sua SILVA SANCHEZ (201 1, 182-83) refere-se, a este propésito, a “um espaco de expansio razoavel do Direito penal” em dois émbitos, isto , nas suas “duas velocidades”; mas hhaquele que respeita a uma sua expansio através dos erimes de perigo abstrato, que traga consigo a flexibilizagao de regras de imputagiio e diminuigdo de garantias, a sua Fazoabilidade esiarin dependente da nio cominago com penas de prisio: a “segunda velocidade”. Acerca dos novos desafios que se colocam ao Direito Penal eas questdcs dogmiticas que levantam, naquilo que 0 Autor designa como “ramos omergentes”, vide Augusto Silva Dias (2008a) e, em especitico, sobre o campo legitimo de expansio do Dircito Penal (Dias 2008b, 253-83). Sobre a evolupac do Direito Penal ao nivel da sua esfera de protegaio: desde os direitos individuais até A inclustio de bens coletivos, ¢ a fungio daquele ramo do Diteito no contexto de um Estado de Bem-Estar, vide Klaus Giinther (2016, 9-15). © FACTONO DIREITO PENAL SECURITARIO: EM ESPECIAL, AS INCRIMINAGOES... | 29 maior particulariza¢ao, /.e., direta e originariamente fundada maquelas causas®. Mas essa diferenciago ¢ ja conferida pelo A. através de uma dupla via: (i) por um lado, acrescentando aquelas causas de expansdo do Direito Penal a propria globalizacdo econémica e a integraco supranacional, nomeacamente no ambito especifico da sua criminalidade tipica; e, (ii) por outro, apresentando-se na propria configuracao ou constata¢ao de uma designada terceira velocidade do Direito Penal, tributaria da problematica do terrorismo. Quanto 20 primeiro aspeto, a globalizacSo econdmica ¢ a integraciio supranacional trouxeram consigo uma criminalidade tipica, de cardter organizado, econdmico e global (Ferrajoli 2003, 7-9), para a qual se buscam, anivel supranacional, respostas “praticas, no sentido de uma abordagem mais eficaz da criminalidade”, através, por exemplo, de uma harmonizacao da legislacao penal dos diversos Estados (Silva Sanchez 2011, 83 ess.}. Aquela harmonizacao, entendida de um modo ampio, en- globando a “aproximacdo das legislagdes penais” ¢ 0 estabelecimento de “normas minimas”, verifica-se quer no ambito substantivo quer processual (Ambos 2017, 16)’. Tal harmoniza¢ao, defende Kai Amaos, exige o recurso ao direito comparado no estuda dos sistemas juridicos dos Estados da Unido Europeia (UE), de modo a vislumbrar-se aonde necessaria e adequada. Especificamente no mbito substantivo, a UE, através das suas instituigdes com fungao legislativa — Parlamento Europeu e Conselho (arts. 13.2, 14.2 ¢ 16.2 do Tratado da Unido Europeia — TUE) — pode, por meio de diretivas, “estabelecer regras minimas relativas a definico das infracdes penais e das sancdes em dominios de criminalidade particularmente grave com dimensao transfronteiriga que resulte da natureza ou das incidéncias dessas infracdes, ou ainda da especial necessidade de as combater, assente em bases comuns”, conforme art. 83.2, n.2 1, do Tratado sobre o Funcionamento da Unido Europeia (TFUE). Os dominios expressamente previstos sdo o terrorismo, o trafico de seres humanos e a exploracao sexual de mulheres e criangas, 0 trafico de droga e de armas, o branqueamento de capitais, a corrup¢o, a contrafagaio de meios de pagamento, a criminalidade informatica ‘ Chamando a atengio para a necessidade da disting3o entre diferentes Ambitos de expansio, particularizando, de modo critico, a expansio securitiria face & expansio modernizadors, nomeadamente econémica, por aquela se aproveitar desta vide Diez Ripollés (2005, 13-17). 7 Aceste respeito, sobre a aproximacaio das legislagdes penais”, vide arts, 67.°, n.° 3, 82°, n.° 1, €83.",n.2 do TFUE ¢, relativamente ao estabelecimento de “normas penais mninimas”, vide arts. 82°, n.°2€ 83.°,n° 1, do TFUE, cf. Ambos (2017, 16), com outras referéncias. 30 | NUNO RICARDO PICA DOS SANTOS ©, em geral, a criminalidade organizada, podendo ser reconhecidos outros dominios de criminalidade, atenta a evolugdo desta (art. 83.2 do TFUE). Como se vé, muitas destas areas esto relacionadas diretamente com questdes de seguranca, Quanto ao segundo aspeto — 0 desenvolvimento de uma terceira velocidade do Direito Penal - tera alguma correspondéncia com o direito penal do inimigo de JaKoss, enquadrando-se a primeira e segunda velocidades no Ambito do direito penal dos cidadaos: constituiria a concorréncia dos aspetos determinantes da primeira velocidade (aplicagdo de penas de prisdo) com aspetos da segunda velocidade (flexibilizacao de garantias penais e processuais-penais) — (Silva Sanchez 2011, 183-84; Jakobs e Cancio Melia 2003, 79 ess.). Seria, para Suva Séncuez (2011, 185-87), um Direito Penal que sé poderia encontrar legitimidade num “quadro de emergéncia’, para fazer face a “fendmenos excecionalmente graves”® Quer a concecao de Jakoas quer a concecao de Suva SAncie2 so agrupadas, por Dies Ripoutts (2005, 22-26), num designado “derecho penal dela seguridad ciudadana”. Estudos doutrindrios mais recentes anotam claramente a seguranca como reitora da legislacao penal, identificando o inicio desse fendmeno e relacionando-o com a sociedade de risco’. Neste sentido, Ferwanoa Pauma (2018b, 71) autonomiza, colocando assim em relevo, uma “evolucao do tipo securitario” na expansao do Direito Penal, com ralzes na sociedade de risco, de Uric Beck, € no direito penal do inimigo, de Jakoes. Para 2 A., 0 Direito Penal configura-se aqui como “um sistema de prevencao de danos sociais e de controle de riscos em nome do valor da seguranga e dos direitos dos cidados a mesma seguranga”, num contexto em que no confronto entre “o peso do risco perigo para bens juridicos” e os direitos individuais, aqueles tendem a ter primazia. Acrescenta a A. que “a seguranca como valor objetivo e, por vezes, simbélico passa a ser condi¢ao fundamental da intervencao penal”, materiali- zando-se esta através da formulacdo de crimes de perigo abstrato — “paradigma das normas incriminadoras” — também neste setor expansionist. De modo também incisivo, Kaus Gunter (2016, 9 € 17), numa realidade que designa como “Direito Penal securitario” ou “Direito Penal da Seguranca”, adverte * Neste Ambito, mas dando agora o relevo a constatagio de Jakons, o direito penal do inimigo apresentar-se-in com caracteristicas de foro material e processual: per um lado, @ antecipacao da tutela penal, mas sem diminuigfo da pena; por outro, a diminuigio de garantias processuais no quadro de legislagio de “combate” (Jakobs ¢ Cancio Melié 2003, 33-55). Vide, por exemplo, Fernanda Palma (2018b, 71), Klaus Giinther (2016, 17) e Bohm (2016, 173 ess.). © FACTO NO DIREITO PENAL SECURITARIO: EM ESPECIAL, AS INCRIMINAGOES... | 31 que esta “torna-se o mais importante bem protegide também pelo Direito Penal” —"Seguranga é idéntica a Direito Penal estatal (e a Direito de prevengao policial de perigos)”. A seguranga, no sentido de “seguranga publica” ou “ordem publica de policia”, 40 campo fértil na “deriva inflacionista do direito penal’, responsavel pela sua “crise de sobreprodug30” e concorrendo ao “direito penal maximo” de Ferrasou (2003, 13-15). / Procura-se, pois, uma solugdo para a inseguranga no seio do Direito Penal, ao invés da sua procura através do Direito de policia (Silva Sanchez 2011, 32). A seguranca surge no Direito Penal coma bem a proteger, por si s6, mas nao € esta a funcdo do Direito Penal, que tradicionalmente protegia a seguranga de modo indireto, através da proteco dos diversos bens juridicos (individuais e supraindividuais) endo de modo autonomo (Paredes Castafion 2016, 41). Seguranca, Direito Penal e Direito de policia passam a estar umbilicalmente ligados, em sentidos de relagao nem sempre coerentes, alterando-se um para os fins do outro” e para um alargamento dos meios ao dispor do Estado, do Governo e dos drgdos de persecugao penal policiais, Como identificou Acamsen (2018, 29-30), trata-se de “uma generalizagao sem precedentes do paradigma da seguranga como técnica normal de governo’, tendéncia que se verifica nos Estados democréticos ocidentais. : Nesta evolucdo securitaria, e agora a aprofunda-la mais recentemente, é possivel destacar, pela sua especificidade, 0 fendmeno do terrorismo internacional", em especial, apds (0 11 de setembro de} 2001 (Al-Qaeda), e, muito em concreto, apds 2011 (ascensdo do Daesh)'*. O terrorismo vem a constituir-se e destacar-se, no quadro de uma sistematizag’o abrangente dos riscos globais, como uma sua tipologia propria, que se diferencia da generalidade de outros tipos de riscos (e. econdmico-financeiros e ambientais) por naquele “o acaso ser substituido pela in- tengo” (Beck 2016, 39-41). Neste contexto, 2001 e 2011 figuram como marcos temporais e com conse- quéncias diversas no Direito: ap6s 2001, a resposta foi essencialmente processual, para além do nivel puramente de Direito Internacional (Martins 2003, 589-96), ve~ rificando-se um incremento ao nivel dos poderes de investigacdo com uma diminuigao ‘© Salientando a instrumentalizacao do Direito Penal para fins de Direito Policial ¢ a in- diferenciacao desses ramos, outrora bem distintos, como causas da expansao do Direito Penal, vide Lesch cit. in Silva Sanchez (2011, 122, n. 282). "Cf, Fernanda Palma (2018b, 71), Klaus Giinther (2016, 19) ¢ Bohm (2016, 193-95) 1 Relativamente és datas referidas vide Tomé (2016, 10-11), 32. | NUNORICARDO PICA DOS SANTOS de garantias processuais, ao mesmo passo que foram aumentados os poderes ao nivel de policia administrativa, os critérios de seguranca ou preventivos, em legislacio administrativa ou de foro policial’?; estabilizado esse ambito alargado de poderes, apds 2011 a resposta tem sido essencialmente no plano material —ao nivel da mul- tiplicagao da incriminacdo de atos, com um enfoque na antecipagao da tutela penal, © que permite, por si, acionar os seus meios processuais em momento muito anterior ao que seria normal. £ precisamente face a esta ultima realidade da ameaca terrorista, associada diretamente ao Daesh, que pretendemos definir a evolucao do Direito Penal e dos tipos legais de crime criados. Trata-se de uma realidade especifica e que terd provocado impactos muito concretos nas legislacdes penais, nomeadamente na definic&o de tipos legais de crime em tensao com os principios do Direito Penal liberal e, de modo direto, com direitos, liberdades e garantias (e.g., liberdade de locomogiio e expresso), restringindo-os num momento em que a lesdo de bens juridicos se apresenta muito distante. Vejamos como em Portugal se processou esta evolucio expansionista até che- garmos ao quadro legal atual. 3. Evolugiio legislativa do terrorismo em Portugal A previsao e punicao dos atos e organizagdes terroristas consta da Lei n.? 52/2003, de 22 de agosto, nomeada Lei de Combate ao Terrorismo e alvo de diversas alteragbes", O art. 11.2 da Lei n.2 52/2003 velo revogar expressamente os arts. 300.2 e 301.2 do CP/95, que previam e sancionavam os crimes de “OrganizacOes terroristas” Por exemplo, controlos aeroportusirios, fronteirigos e de identificagio mais exigentes, medidas de vigiléncia sobre cidadaos, quebra de sigilo bancério, ef. Jorge Miranda (2003, 659). ALLein.? 52/2003, de 22 de agosto, retificada pela Declaragio de retificagiio n? 16/2003, de 29 de outubro, foi alterada pelas Leis n.°s 59/2007, de 4 de setembro, 25/2008, de 5 de junho, 17/2011, de 3 de maio, 60/2015, de 24 de junho, ¢ 16/2019, de 14 de fevereiro. Avrelagdo imediata do terrorismo com a Seguranca surge sintomaticamente na obra onganizada por Pinto de Albuquerque ¢ José Branco (2010, 5 ¢ 193-232), na qual os organizadores, sistematizando a obra atendendo a “ordem constitucional dos bens juridicos protegidos pelas incriminagGes”, colocaram o comentirio a Lei n.° 52/2003, de 22 de agosto, no capitulo Il —Direito a seguranga, do titulo III —Direitos, liberdades e garantias pessoais. © FACTO No DIREITO PENAL SECURITARIO; EM ESPECIAL, AS INCRIMINAGOES... | 33 ede “Terrorismo”, respetivamente*®. Aquelas normas permaneceram inalteraveis desde a sua versdo originaria, na reforma de 1995 ao Cédigo Penal (CP/95), até serem revogadas em 2003, tendo resistido a diversas alteragSes e a algumas reformas do CP. Se recuarmos ao periodo entre 1982 e 1995, aqueles crimes surgiam previstos nos arts. 288.2 e 289.9 (CP/82), sendo que naquele periodo nao sofreram quaisquer alteraces. E se compararmos os arts. 300.2 e 301.2 do CP/95 com os arts. 298.° e 289.2 do CP/R2 verificamos que as normas nao sofreram alteracoes relevantes, quer em termos de previsSo quer de punicao” Podemos pois dizer que no periodo em que os crimes de “Organizagées ter- roristas” e de “Terrorismo” estiveram previstos no atual Cédigo Penal—entre 1982 2003 —as condutas puniveis mantiveram-se constantes. © cendrio durante esses 20 anos nao tem correspondéncia alguma com as duas décadas seguintes. Vejamos. A Lein.2 52/2003, de 22 de agosto —em cumprimento da Decisdo-Quacron.® 2002/475/JAl, do Conselho, de 13 de junho, relativa a luta contra o terrorismo — previu, logo na sua versao originaria, para além dos crimes de “Organiza¢ao terrorista” (art. 2.2) e de “Terrorismo” (art. 4.2}, os tipos legais de “Outras organizacbes terroristas” (art. 3.°) e de “Terrorismo internacional” (art, 5.2)"*. Face 20 CP/95, mantendo na esséncia o alcance dos crimes de “Organizacao terrorista” e de “Terrorismo’, verifica-se um assinalavel aumento da punibilidade, por uma tripla via: (i) previsdo de novos tipos legais de crime; (ii) agrevamento da punibilidade de certos crimes (furto qualificado, roubo, extorsao ou falsifica¢ao de documento administrativo) quando cometidos com vista a pratica de terrorismo (art. 4.9, n.2 2), constituindo-se, também, como um indicador da tendéncia para antecipar a intervencdo da tutela penal relacionada com este ambito; e, (ili) previsdo expressa da responsabilidade criminal das pessoas coletivas e equiparadas (art. 6.2). Apos a primeira alteracdo a Lei n.2 52/2003, operada pela Lei n.2 59/2007, de Adesetembro®®, sem relevo para 0 Ambito de punibilidade daquela, a Lein.2 25/2008, \% Sabre a opgao da previsio em legislagdo extravagante, vide Figueiredo Dias e Pedro Caeiro (2009, 200). "7 A grande diferenga que se vislumbra foi a supressto do que se dizia no art. 289.°, n° 2, do CP/82: “A cumplicidade e a tentativa sao, respetivamente, equiparadas a autoria € 4 consumacao”, a Vide Rui Pereira (2003, 495-97; 2004, 94-99). © A Lein® 52/2007, quereformou o Cédigo Penal, apenas alterou o at. 6.° da Lein.° 52/2003, tendo remctido o regime de responsabilidade penal das pessoas coletivas e equiparadas para 0s termos gerais, que entiio passaram a estar previstos no art.° 11.° do CP. 34. | NUNO RICARDO PICA Dos SANTOS de 5 de junho”, viria a aditar o art. 5.2-A, tipificando 0 crime de “Financiamento do terrorismo”**. Cam relevo, alterou ainda o art. 4.°, aumentado o leque de crimes que sofrem agravacao de pena quando cometidos em vista do terrorismo”, Com esta segunda alteracdo, ficaram previstos os crimes (epigrafes) que ainda hoje do forma ao quadro criminal aplicdvel 4 fenomenologia do terrorismo — Organizagées terroristas, outras organizagées terroristas, terrorismo, terrorismo internacional e financiamento do terrorismo—tendo os posteriores alargamentos da matéria punivel ocorrido no ambito destes crimes (artigos). Tratou-se de um quadro fixado em consonéncia com a Decistio-Quadro n.° 2002/475/JAl, do Conselho, de 13 de junho, e com a Diretiva n.2 2005/60/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de outubro. Em 2011, aLein.? 17/2011, de 3 de maio, dando cumprimento a Decisio-Quadro n.£ 2008/919/JAl, do Conselho®, viria a introduzir a terceira alteracao a Lei n.2 52/2003, criminalizando 0 incitamento publico a pratica de infracdes terroristas, orecrutamento eo treino para o terrorismo, Estas tipificacdes ocorreram no ambito do crime de terrorismo (art. 4.2, n.25 3, 45, na redac&o de 2011) e, por remisso para aquela norma, ce terrorismo internacional (art. 5.2, n.° 2). A quarta alteragao a Lei n.° 52/2003 ocorreu em 2015, através da Lei n.2 60/2015, de 24 de junho, sendo de realcar a criminaliza¢do da apologia piiblica de terrorismo e das deslocac6es para a pratica de terrorismo, no ambito do crime de “Terrorismo” (art. 4.°) e, por remiss para aquele, de terrorismo internacional art. 5.2). Estas incriminagdes foram introduzidas antes da sua criminalizacao ser uma exigéncia do Direito da Unido Europeia. Jano anode 2019, ocorreu a quinta alteragao 4 Lei n.° 52/2003, operada pela Lei n.2 16/2019, de 14 de fevereiro, que transpés a Diretiva (UE) 2017/541, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de marco, relativa a luta contra o ter- *” — Transpés para a ordem juridica interna as Diretivas n°s 2005/60/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de outubro, e 2006/70/CE. da Comissao, de 1 de agosto, relativas a prevengio da utilizagao do sistema financeire e das atividades e profissdes especialmente designadas para efeitos de branqueamento de capitais ¢ de financia- Mento do terrorismo. Ao mesmo tempo que alterou o art. 2.°,n.” 2, tendo suprimido a parte “ou através de qualquer forma de financiamento das suas atividades”, Aos crimes de furto qualificado, roubo, extorsao ou falsificagao de documento admi- nistrativo, acrescentou os crimes de crime de burla informatica e nas comunicagdes e de falsidade informétiva. Que alterou a Decisaio-Quadro n.° 2002/475/JAI, do Conselho, de 13 de junho. 0 FACTO NO DIRECTO PENAL SECURITARIO: EM ESPECIAL, AS INCRIMINAGOES... | rorismo”*. Nesta ultima alteragao, sem que tenha havido aditamento de novos nu- meros, entre outros aspetos, alargou-se a matéria punivel 4 receco de treino e .2) bem como as deslocagSes com vista autotreino para o terrorismo (n.2 7 doart. aesses treinos (n.2 10 do art. 4.2), dando cumprimento & citada Diretiva. £ um cenério de multiplicagao de crimes e incriminagdes: apés um periodo de estabilidade (quantitativa e qualitativa), no ano de 2003 0 conjunto dos crimes tipificados na Lei de Combate ao Terrorisrno mais que duplicou face ao Cédigo Penal; em 2011, no que concerne especificamente aos crimes de terrorismo e de terrorismo internacional ocorreu um aumento maior que a duplicagSo quanto as condutas incriminadas; e, em 2015, de novo mais que duplicaram as condutas proibidas e tidas por terrorismo ou terrorismo internacional; em 2019, voltou a aumentar-se o 4mbito da materia punivel. Este cenario nao é, como seria de esperar, diferente do existente na generalidade dos paises da UE. Miuitas destas normas configuram as tais regras penais minimas previstas em Diretivas do Parlamento Europeu e do Conselho”®, Mas, deve dizer-se, algumas dessas “regras minimas” ja estavam previstas € consagradas nos ordena- mentos dos Estados, nomeadamente em Portugal, antes da sua previsao nas Diretivas (e.g., viagens ou deslocagées para o terrorismo). E uma manifestacdo da expansdo do Direito Penal, na area securitaria, con- cretizando-se na multiplicag3o de tipos legais de crime, num fendmeno que para além de expanséio, poderia ser apelidado, porventura de modo mais preciso, utilizando a ja referida expressdo “overcriminalization” (Husak 2013, 41 € ss.)°*. E sob a designagio de “Terrorismo” (art. 4.2) e, por remissdo para aquela norma, de “Terrorismo internacional” (art. 5.2), que tem ocorrido esse fendmena, pois os crimes de “Organizacées terroristas’, de “Outras organizacées terroristas” e de “Financiamento do terrorismo”, desde a sua consagra¢do, tém-se mantido relativamente constantes. Antes de procedermos ao estudo desse leque de novas incriminac6es, importa estabelecer as bases de reflexao e andlise. + Que substituiu a Decisao-Quadro n.* 2002/475/JAL ¢ alterou a Decisdo n.° 2005/671/JAL do Conselho. + Para além do nivel europeu, devem também ser referidos os instrumentos produzidos pela Organizacao das Nagoes Unidas (ONU) sobre a repressao do terrorismo (e. Resolugao 1373 (2001) do Conselho de Seguranga). Para uma explana exaustiva, dos diversos insiramentos juridicos internacionais ¢ regionais relevantes no ambito do terrorismo vide Abrantes (2017, 445-46, n.s 15 ¢ 16). 2 Sendo certo que oA. referido no realiza o seu estudo a partir dos crimes de terrorismo. 36 | NUNORICARDO PICA Dos SANTOS IL, A ineriminagao auténoma de atos preparatérios (¢ tipos de tipicidade) Crimes de perigo abstrato Como ja se viu, a expansio do Direito Penal — em concreto, no seu vetor de novas incriminagées ou, na expressdo de FERNAND PALMA, 0 seu movimento neo-criminalizador — tem-se materializado na definico de novos tipos legais de crime como reflexo de trés orientacSes: (i) a relagéo do Direito Penal quer com novos direitos quer com direitos vistos de outros prismas; (ii) 0 uso do Direito Penal para fins de melhoria do Estado de um ponto de vista politico-organizatério e eco- némico; e, por fim, (iii) uma antecipacio da protecao de certos bens juridicos, através da incrimina¢éo de comportamentos nao enquadraveis ou dificilmente en- quadraveis num Direito Penal classico (Palma 2014, 11-15). Se até 2014 as novas incriminagdes no 4mbito do terrorismo enquadrar-se-iam naquela segunda orientacdio (Palma 2014, 14), apds 2015, as alteracGes a Lei n.2 52/2003 (de 2015 e de 2019, acentuando a tendéncia iniciada em 2011) mostram uma fusio entre a segunda €a terceira orientagdes, ocorrendo uma proliferagdo de crimes de perigo abstrato. Esta é uma caracteristica genérica e transversal 2 expansdo do Direito Penal, isto 6, a modificagao da estrutura do delito — de um paradigma de crimes de les3o passou-se para um paradigma de crimes de perigo (Silva Sanchez 2011, 132). Mas em rigor, no dmbito do terrorismo, o paradigma foi sempre o do perigo e naa oda lesao efetiva’”. Ora, sendo o modelo tradicional construido na base de crimes de leséo de bens juridicos, a passagem para um modelo em que imperam crimes de perigo, nas suas diversas modalidades — perigo concreto, perigo abstrato-concreto e perigo abstrato”* — antecipando-se, por essa via, a tutela penal, reclama uma “especial Cf. Conde Fernandes (2010, 208-209 ¢ 220) em anotagio aos arts. 2." ¢4.°, na redagao da Lei n.° 25/2008 E dominante 0 entendimento de que o critério identificador dos crimes de perigo é a nfio exigéncia tipica de efetiva lestio do bem juridico tutelado pela norma — serao crimes de perigo equeles cuja consumagao se basta com 0 risco (efetivo ou presumido) de lesio do bem juridico”, ct: Rui Pereira (1995, 23), com amplas referéncias bibliogrificas, nacionais c estrangeiras. Mas existem diversas espécies de crimes de perigo: nos crimes dc perigo abstrato, o petigo € somente motivo da incriminagao, no constando do ti nos crimes de perigo abstrato-concreto, o perigo assenta na aptido (quea norma prevé) daagio tipica para a produgio de resultado danoso, tendo de haver comprovacao dessa aptidio no caso; nos crimes de perigo concreto, o perigo ¢ elemento tipico, formulado como efeito da agao (Pereira 1995, 24-26). (© FACTO NO DIREITO PENAL SECURITARIO; EM ESPECIAL, AS INCRIMINAGOES.... | 37 legitimag&o” (Schiinemann 2005, 27). A intensidade desta legitimacao é ainda superior nos crimes de perigo abstrato, pois nestes o comportamento proibido esta ainda mais distante do “ato verdadeiramente lesivo” (Schiinemann 2005, 28-29}, Esta legitimacao assentara, na perspetiva de SCHUNEMANN (2005, 27-28), em razées de “eficiéncia politico-criminal”, isto 6, razGes atinentes a “umaeficiente protecdo de bens juridicos”. Greco (2004, 126 e 135) sustentando-se em doutrina conceituada, entende que a legitimacio de crimes de perigo abstrato deve buscar-se diretamente na estrutura do delito, negando 0 A. a viabilidade de “solugdes globais”, que, por exemplo, afirmem logo a inconstitucicnalidade®, em bloco, de todos os crimes de perigo abstrato — a solugao ha de ser “diferenciada’, passando pela analise de “grupos de casos” e desenvolvimento de “critérios especificos de legitimidade”. Uma construcaoalicercada em grupos de casos foi a desenvolvida por WoHLERS, distinguindo o A. trés grupos ou espécies de crimes de perigo abstrato, que obedecerdo a diversos criterios de legitimagao: os crimes “de acao concretamente perigosa”; os crimes “de acumulacao’ ; e, os crimes “de preparacao”™. No Ambito deste trabalho, 0 objeto de estudo situa-se especificamente neste iltimo grupo, isto é, nas incriminagdes auténomas de atos preparatérios, que se configuram como crimes de mera atividade e de perigo (Pereira 1982, 24-25)" e, no Ambito da repressdo do terrorismo, por regra, como perigo abstrato™, ® Face aos crimes de perigo abstrato, 0 A. manifesta a sua preferéncia pelos crimes de perigo abstrato-concreto. 2 Bxiste doutrina que defende a inconstitucionalidade dos crimes de perigo abs:rato, em bloco, com fundamento em violagao do principio da ofensividade, Sobre iste, vide as extensas referencias bibliogrificas constanies em Greco (2004, 90-92 ¢ 119-126). Este A. queafasta tal conclusio, ainda assinala que o extremismo daquela posigdo ¢ atenuado por entendimentes daquela mesma doutrina que acaba por considerar como perigo concreto muitos crimes que serdo de perigo abstrato ou através da consideragio de falsos bens juridicos coletivos. s Cf. Wohlers cit. in Greco (2004, 127). 32 Mas entre estas classificagdes, em geral, néo hé uma correspondéncia exata, podendo haver crimes de mera atividade de perigo ou de dano e crimes de perigo que sejam de resultado ou de mera atividade, cf. Fernanda Palma (2018a, 95-96), 3 Uma excegio a esta regra é a configuragiio do crime de “spologia piblica do terrorismo”, introduzido em 2015, como crime de perigo abstrato-concreto, que se concretiza na expressiio legal “de forma adequada a criar perigo da pratica de outro crime da mesma espécic” (art. 4.°, n° 8, da Lei n.° $2/2003).

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