You are on page 1of 40
Os Principios da Renovacado Litirgica do Vaticano II. Pelo Pe. Dr. Frei Boaventura Kloppenburg, O.F.M., Professor de Teologia dos Sacramentos, Petropolis, R. J. O Concilio de Trento, que encerrou seus trabalhos no dia 4-12-1563, abrira uma nova era a vida litirgica da Igreja. A unificagdo e uniformizagao da Liturgia parecia entéo uma exi- géncia da situagdo da época, que vivia de particularismos, mui- tas vézes confusos e decadentes, herdados da Idade Média. A edi¢ao do Brevidario Romano (1568), do Missal Romano (1570) e do Pontifical Romano (1588) — os trés livros litirgicos fun- damentais — unificaram entéo a Liturgia da Igreja do Oci- dente (isto é: do ocidente da Europa). Esta unificagao signi- ficou, de fato, uniformizacéo rigorosamente prescrita, gravemen- te imposta e zelosamente vigiada, até nas minimas_ particulari- dades das cerimdnias mais insignificantes. Exatamente quatro séculos depois, no dia 4-12-1963, 0 Concilio Vaticano 11 pro- mulgou a Constituigao Liturgica que ia encerrar definitivamente a época tridentina, a fim de inaugurar para a vida liturgica da Igreja uma nova era.’ “A preocupagao de fomentar e re- formar a Sagrada Liturgia — assim declara o préprio Concilio no artigo 43 déste importante documento — é tida com razao como sinal dos designios providenciais de Deus sdbre nossa época, como passagem do Espirito Santo em sua Igreja; mar- cou-Ihe com caracteristicas proprias a vida, e até mesmo im- primiu uma nota religiosa em todo o modo de sentir e agir désse nosso tempo”. Estamos, pois, no comégo de uma nova era. E o Concilio tem consciéncia da novidade. “Sébre mais de um ponto deve- remos mudar nossos habitos — adverte um dos Padres Con- ciliares, o Cardeal Liénart, cf. REB 1963, p. 491 — e isto po- deré desagradar-nos; mas nao se trata de nos comprazermos em nds mesmos, nem de guardarmos para nés os dons de Deus de que desfrutamos; trata-se, para a Igreja e, por conseguinte, para nés, de tudo fazer para comunica-los a todos os homens * Cf, Ferdinando Antonelli, entéo secretdrio da_Comissio Li- Conciliar, em L’Osservatore Romano de 8-12-1963, p. 6: “.. come il Concilio di Trento apri una nuova epoca nella storia della Liturgia, cosi il Vaticano II chiude quell’epoca e ne apre un’altra”. 1* 4 Kloppenburg, Os Principios da Renovacao Litargica nossos irmaos”. “Séde dignos da hora solene que vive hoje a Igreja inteira, a hora do Concilio Ecuménico”, recomenda Paulo VI aos seminaristas latino-americanos (30-11-1963); e continua: “Sabei viver-Ihe o espirito e penetrar-Ihe as escon- didas profundezas”. O primeiro documento conciliar oficial est4 em nossas maos. Quer e manda reformar e incrementar a vida litirgica. Em outras palavras nos o Concilio: assim como esta nao pode e nao deve continuar. Nao se iludem, porém, os Padres Conciliares: sabem perfeitamente que a nova vida li- turgica, que “com empenho deve ser buscada pelos pastdres de almas em téda ago pastoral” (art. 14), de fato nao sera transmitida aos fiéis “se os prdprios pastdres de almas nao estiverem antes profundamente imbuidos do espirito e da for- ga da Liturgia e dela se tornarem mestres. Faz-se, por isso, muitissimo necessario que antes de tudo se cuide da instrucao litirgica do clero” (art. 14). Seguem entdo diretrizes para a formacdo de mestres em Sagrada Escritura (art. 15), para a instrugo e formacdo liturgica nos semindrios e nas casas reli- giosas de estudos (arts. 16 e 17); e continua o documento: “Os sacerdotes, quer seculares, quer religiosos, que ja labutam na vinha do Senhor, sejam auxiliados por todos os meios opor- tunos para que sempre mais plenamente entendam o que rea- lizam nas sagradas fungdes, vivam a vida litirgica, e fagam dela participantes os fiéis a éles confiados” (art. 18). Como esta Revista se destina precisamente aos sacerdotes, “quer seculares, quer religiosos, que j4 labutam na vinha do Senhor”, faremos o que esta em nossas possibilidades a fim de auxiliar os leitores neste conhecimento mais pleno “do espirito e da forga da Liturgia” (cf. art. 14). No fasciculo anterior ja Ihes oferecemos o texto completo do documento, em latim e portugués, com notas e declaracées ilustrativas (cf. REB 1963, pp. 989-1046). Tentaremos agora um primeiro estudo funda- mental do documento para, segundo o conselho de Paulo VI, “viver-lhe o espirito e penetrar-Ihe as escondidas profundezas”. Com essa finalidade procuraremos descobrir os principios que orientaram o Concilio na confecc’o do texto. E através da me- ditagao e assimilagao déstes mesmos principios poderemos en- tao orientar nossa propria vida e acao litirgica, tornando-nos assim capazes de cumprir “um dos principais deveres do fiel dispensador dos mistérios de Deus”: 0 de levar também os fiéis a participar interna e externamente no Mistério Pascal de Cris- to (art. 19). Iniciaremos nossa busca procurando compreender como o préprio Concilio entende a natureza da Liturgia. Pois dé@sse conceito fundamental depende tudo o mais. Revista Eclesidstica Brasileira, vol. 24, fasc. 1, Marco de 1964 5 1. A Natureza da Liturgia. O documento fala da natureza da Liturgia principalmente nos artigos 5-8. Queira agora o leitor colocar diante de si o Proprio texto, abrindo a REB de dezembro ultimo nas pp, 991- 994; e nao tenha receios em aproveitar também seus conheci- mentos de latim, pois, para uma compreensdo exata do pensa- mento conciliar, teremos que basear-nos no original latino. Ja a primeira leitura dos artigos 5-8, alids muito densos em dou- trina teolégica, mostra que o Concilio tem, nesta sec¢ao, a in- ten¢do de rejeitar a opiniao daqueles que véem na Liturgia “ape- nas a parte externa e sensivel do culto divino, fazendo-a con- sistir no aparato decorativo das ceriménias”, ou “no conjunto de leis e regras com que a Hierarquia Eclesidstica manda orde- nar a execu¢do dos ritos sagrados”. Sao conceitos falsos, ja denunciados pela Enciclica Mediator Dei, de Pio XII, em 1947 (cf. a edig&o Vozes, n. 22). O conceito que o Concilio apresenta a nossa meditagao € incomparavelmente mais rico e teoldgico. Esta na parte final do art. 7: A Liturgia é 0 exercicio do minus sacerdotal de Jesus Cristo, no qual, mediante sinais sensiveis, é significada e, de modo peculiar a cada sinal, realizada a san- tificagao do homem; e simulténeamente é exercido o culto pi- blico integral pelo Corpo Mistico de Cristo, Cabega e membros. Temos nesta definicdo trés elementos a serem agora con- siderados separadamente, tendo porém presente que o conceito da Liturgia inclui 0 conjunto dos trés, a saber: 1. A Liturgia é o exercicio do minus sacerdotal de Jesus. O povo de Deus da Nova Alianca tem apenas um tnico e eter- no Sacerdote: Jesus Cristo. Para compreendermos o sentido e a importancia desta doutrina fundamental seria necessdrio ler e estudar a Epistola aos hebreus. Diante da multiplicidade dos sacerdotes leviticos, o Apéstolo afirma para o Névo Testamento um s6 Sacerdote eterno segundo a ordem de Melquisedec: Je- sus, o Filho de Deus; e aos milhares de sacrificios de touros @ carneiros, opde um sé sacrificio do Crucificado que “pelo seu proprio sangue” entrou no Santudrio celeste, “tendo obtido uma Redengao eterna”; a sombra fugaz do templo terrestre é substi- tuida pelo verdadeiro templo no céu.* Propriamente falando nao ha, na Nova Alianga, outros “sacerdotes”: a ordenacao ou sa- gracdo conferida pelo sacramento da Ordem nao cria em sen- tido préprio novos “sacerdotes”, mas apenas participantes no mtinus sacerdotal do tinico e eterno Sacerdote Jesus Cristo, * Cf. Frei Mateus Hoepers, O.F.M., A Missa e a Epistola aos Hebreus, REB 1951, pp. 135-156. 6 Kloppenburg, Os Principios da Renovacéo Litirgica nistros (isto é: instrumentos racionais) do sacerdécio de Cristo. Neste ponto o conceito do Vaticano II se torna marcadamente cristocéntrico. O exercicio do minus sacerdotal de Cristo € apre- sentado em suas quatro dimensdes: preanunciado no povo de Deus do Antigo Testamento (art. 5), realizado na vida terres- tre do praprio Cristo (art. 5), continuado na Igreja, sobretudo em sua agao litirgica (arts. 6-7), eternizado na Liturgia celes- te, onde Cristo esta sentado a direita de Deus, ministro do San- tuario e do Tabernaculo verdadeiro (art. 8). Justamente para levar a efeito obra tao importante — explica a Constituicao no artigo 7 — “Cristo esta sempre presente em sua Igreja, sobre- tudo nas agées litirgicas. Presente esta no sacrificio da missa, tanto na pessoa do ministro, pois aquéle que agora oferece pelo ministério dos sacerdotes é 0 mesmo que outrora se ofe- receu na cruz, quanto sobretudo sob as espécies eucaristicas. Presente esta nos Sacramentos, de tal forma que quando alguém batiza € Cristo mesmo que batiza. Presente esta pela sua pa- lavra, pois é Ele mesmo que fala quando se Iéem as Sagradas Escrituras na igreja. Esté presente, finalmente, quando a Igreja ora e salmodia, Ele que prometeu: Onde dois ou trés estiverem reunidos em meu nome, ai estarei no meio déles (Mt 18,20). Realmente, em t&o grandiosa obra, pela qual Deus é perfeita- mente glorificado e os homens sao santificados, Cristo sempre associa a si a Igreja, sua Espdsa diletissima, que invoca seu Senhor e por Ele presta culto ao eterno Pai”. E’ um grande texto, éste do Concilio, sébre a presenga de Cristo na Igreja e nas agdes littirgicas (cf. também art. 35, 2). Repete e amplia a conhecida passagem de Pio XII na Mediator Dei, n. 17: “Em todo ato littirgico esta presente, juntamente com a Igreja, o seu divino Fundador; esta presente Cristo no augusto Sacrificio do altar, nao sé na pessoa do seu minis- tro, mas sobretudo debaixo das espécies eucaristicas; esta pre- sente nos Sacramentos, pela virtude que Ihes confere para que sejam meios eficazes de santidade; esta presente, enfim, nos lou- vores e suplicagdes feitas a Deus, conforme aquilo: Onde estéo dois ou trés...” E’ assim que — continua entéo a mencionada Enciclica no n. 19 — “o sacerdécio de Jesus Cristo é sempre atual, por todo o decurso dos séculos, visto que a Sagrada Liturgia outra coisa nao é que o exercicio déste minus sacer- dotal”. E’ manifesto que o Concilio foi buscar sua formulagao nestas passagens da Mediator Dei. Ampliou, contudo, a doutri- na afirmando a presenga de Cristo também por sua palavra (“pois é Ele mesmo que fala quando se Iéem as Sagradas Es- crituras na igreja”; cf. também o art. 33); e esclareceu ainda

You might also like