Serpa Pinto, un homem do
seu tempo
Elizabeth Ceita Vera Cruz*
28 de Dezembro de 2000, 0:00
Serpa Pinto, africanista, explorador, icone
da politica oitocentista de coloniza¢ao,
morreu a 28 de Dezembro de 1900. O
século XIX portugués termina com um
ponto final sobre uma biografia que
marcou 0 seu territério.
Em "Como Eu Atravessei a Africa", obra de
2 volumes (1881), publicada
primeiramente em Londres, Serpa Pinto da
conta da grande aventura que foi a
primeira expedic¢ao cientifica (oficial)
portuguesa a Africa Central. A abertura deum crédito de 30 contos de reis para
subsidiar a expedicado a Africa com o
encargo de estudar parte da hidrografia da
regido atravessada pelo rio Zaire, expressa
nao somente o interesse que o continente
africano ja suscitava na Europa, mas
também e sobretudo, o arranque
portugués na aventura e no imperativo que
constituiu a ocupagao das terras
"conquistadas". A criagao da Sociedade de
Geografia 6 bem exemplo da viragem da e
na politica colonial que entretanto se
comega a fazer sentir em Portugal, sendo
a expedicdo de Serpa Pinto (capitao do
exército), Hermenegildo Capelo e Roberto
Ivens (oficiais da armada) um marco
histérico. A propdsito da sua obra, diz
Serpa Pinto buscar realgar 0 que mais
interessante se tornava para os estudos
geograficos e etnograficos, em suma, 0
estudo do continente desconhecido. Nesta"cruzada do séc. XIX, a da civilizagao do
Continente Négro', no dizer do autor, pode
entender-se logo nas primeiras paginas do
1° volume que o espirito que animou este
projecto inscrevia-se nesse outro mais
geral que foi a missao civilizadora das
ciéncias e técnicas na empresa colonial,
no quadro das intengdes dos paises
colonizadores e dos seus esforcos
relativamente a aquisi¢ao, pacificagao e
exploracdo das coldénias. E bem verdade
que nada disto seria possivel sem o
concurso da opiniao publica no que diz
respeito a expansao colonial, o que
naturalmente passava pelo dar a conhecer
as terras visitadas e a etnologia, a
botanica, a zoologia, a geografia ea
medicina sao algumas das areas de
enfoque dos exploradores. Por tudo isso, é
neste duplo contexto - como missao
civilizadora e colonizadora - que aexpedicao de Serpa Pinto tem de ser
interpretada: a luz de imperativos
histdricos, culturais, cientificos e
econdémicos a que Portugal também nao
escapou, enquanto poténcia
colonial.Nomes como os de Luciano
Cordeiro, Barros Gomes, Paiva Couceiro,
Silva Porto, Henrique de Carvalho, Paiva de
Andrade, Jodo (0 traidor), Cecil Rhodes e
Salisbury, integram a galeria de figuras que
fizeram a historia colonial do século XIX.
As referéncias a Livinstone e Stanley
remetem-nos para aquilo que ficou
conhecido como "Mapa Cor de Rosa". O
que comecou por ser um sonho e um
desafio, acabou numa querela com os
ingleses, cujo epilogo foi o célebre
"ultimatum" de 1890, em que a pretensao
de ocupacao e dominio por parte dos
portugueses da Africa Central, através da
ligagdo de Angola e Mogambique por terra,se esfumou. Contudo, a ligagao Angola-
Mogambique ja havia sido feita em 1811
(viagem iniciada em 1802) por Pedro Jodo
Baptista e Amaro José, pombeiros
(negros, de Angola) a servicgo do tenente-
coronel Francisco Honorato da Costa.
Falar de Serpa Pinto é, como se pode
atestar, falar da colonizagao portuguesa,
das suas venturas e desventuras. Serpa
Pinto, para quem a expedicao ultrapassava
em muito as conveniéncias politicas
segundo uns, enquanto outros defendem
que o seu objectivo principal consistia em
abrir o caminho a consolidagao do império
portugués em Africa, é como explorador
que se assume, muito embora 0 espirito
de aventura e a aventura ela propria
estejam presentes através das descri¢oes
que o autor faz das inumeras dificuldades
com que Se deparou e debateu, desde a
separacao dos seus companheiros(Capelo e lvens), a dificuldade de arranjar
carregadores, passando pela travessia do
sertao indspito e insalubre. A solidao ea
tenacidade foram, sem sombra de
duvidas, seus fiéis companheiros na
travessia que se propés empreender. Se é
possivel avaliar o caracter cientifico da
sua expedi¢ao, o mesmo nao se pode
fazer em relacdo as descrigdes que faz
das gentes - 0 euro e etnocentrismo estao
bem presentes, o que prefigura a prdpria
conjuntura que entao se vivia. Nao se
pense que o herdi Serpa Pinto deixa de o
ser por tudo o que foi dito; afinal, Serpa
Pinto € um homem da sua época. A leitura
de "Como Eu Atravessei a Africa" é
seguramente uma radiografia de um
espaco-tempo, sugerindo ao leitor de hoje
que estoutro tempo devera ser também
ele de aventura (porque nao?), mas
igualmente de venturas, para todos, queprecisam de ser reinventadas. Sejamos
seres do nosso tempo, este tempo cuja
sedugao esta na descoberta de que "o
outro sou eu".*Investigadora, professora
universitaria