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pierre menard, autor do guixote para Silvina Ocampo A obra visivel que deixou este romancista pode ser cil brevemente relacionada. Sio, portanto, imperdodveis as ‘omissdes e adigSes perpetradas por madame Henri Bache lier num catélogo falaz que certo jornal, enja tendéncia pro- testante no & nenhum segredo, teve a desconsideragio de’ infligira seus deploraveis leitores — se bem que estes sejam. poucos ¢ calvinistas, quando no magons e circuncisos. Os amigos auténticos de Menard viram com alarme esse caté Jogo e mesmo com certa tristeza. Dir se-ia que ainda ontem. ‘nos reunimos perante 0 mrmore final, em meio aos cipres- tes infaustos, ¢ ja 0 Erro trata de empanar-Ihe a Memoria Decididamente, uma breve retificagio faz-se inevitivel. Sei que é muito facil recusar minha pobre autoridade, Espero, no entanto, que no me proibam mencionar dois altos testemunhos. A baronesa de Bacourt (em eujos nen: dredis inesqueciveis tive a honra de conhecer o pranteado poeta) houve por bem aprovar as linhas que seguem, A. ccondessa de Bagnoregio, um dos espiritos mais finos do Drincipado de Ménaco (e agora de Pittsburg, Pennsylvania, depois de suas recentes bodas com o filantropo internacio. nal Simon Kautzsch, fo ealuniado — ai! — pelas vitimas Wo teremaddas manobra), sarifcon “A vercida- (6 dela ais plavras) a senor reserva que Je, muma carta aberta publica na revista Luxe, ime concede seu beneplicit, sss titlos de serio, creioinsufcientes. que a obra vsive de Menard ¢facilmente rela: HTendo examinado com exmero seu arquivo par erifique! que consa das sequintes pega Ssoneto simbolista que apareceu duas vezes (com tes) na revista La congue (nimeros de margo © de 1899) Gsnografia bre a posiblidade de formar um rio pottico de conceitos que ndo sejam sind: fu perifrases das que constituem a Tinguagem “mas objetos ideas criados por uma conven- 9 essencialmente destinados as necessidades podt (Nimes, 1901). Ie ografin eobrw “cartes comets on aFiida- Pdo penssmento de Descartes, Leibniz e John Wil (Nimes, 1905). faa monografia sobre a Characteristica universalis (Leibniz (Nimes, 1904) antigo técnico sobre a possbilidade de enriquecer xadrez eliminando um dos pedes de torre. Menard. y recomend, discute ¢ acaba por recusar essa «i. Tonografia wobre a Ars magna generals de 16n Llull (Nimes, 1906). tradugio com prélogo e notas do Libro deta in- én liberal y arte del juego del ajedrez de Ruy de Segura (Paris, 1997). Os rascunhos de uma monografia sobre a lagica sim Délica de George Boole ‘Um exame das leis métricas essenciais da prosa fran cesa, ilustrado com exemplos de Saint Simon (Rewue des langues romanes, Montpellier, outubro de 1909). ‘Uma réplica a Lue Durtain (que tinha negado a exis: téncia dessas leis), ilustrada com exemplos de Le Durtain (Revue des langues romanes, Montpellics, de- zembro de 1909). Uma tradugio manuscrita da Agua de navegar cltos de Quevedo, intitulada La boussole des préieus: ‘Um preficio a catalogo da exposigio de litografias de Carolus Houreade (Nimes, 1914) A obra Les problemes d'un probléme (Paris, 1917), que discute em ordem cronoldgica as solugBes do ilustre problema de Aquiles ea tartaruga. Duas edigles deste livro apareceram até agora; a segunda traz como epi- ¢grafe o conselho de Leibniz "Ne eraignee point, mon- sieur, la tortue”, e renova os capitulos dedicados a Russell ¢ Descartes. ‘Uma obstinada analise dos “habitos sintaticos” de Tou let (N. RE, margo de 1921). Menard — recordo — declarava que censurar e elogiar sio operagies senti :mentais que nada tém a ver com a ertiea Uma transposig@o em alexandrinos do. Cimetiére ‘marin de Paul Valéry (NR. F, janeiro de 1928). Uma invectiva contra Paul Vary, nas Hoja para las presién de la realidad, de Jacques Reboul. (Essa inveet va, diga-se entre paréntess, 60 reverso exato da verda: deira opinii dele sobre Valery. Este assim a entendew, a velha amizade entre os dois nao correu perigo.) “definiglo” da condessa de Bagnoregio, no “vi- volume” — a locugio é de outro colaborador, ile d’Annunio— que essa dama publica, anual te, para retificar os inevitaveis equivocos do jorna- fe apresentar “ao mundo e & Tilia” uma efigie tia de sua pessoa, to exposta (justamente em de sua beleza e atuagio) a interpretagbes err ou apressadas. ciclo de admiraveis sonetos para a baronesa de 1 (1954). ima lista manuscrita de versos cujaeficicia se deve a tuagio. té aqui (Sem outra omisso a nko ser uns vagos sone mnstanciais para o hospitaleiro, o desejoso, album dame Henri Bachelier), a obra visivel de Menard, ‘ordem cronologica, Passo agora & outra: a subterra- a interminavelmente herbica, a sem-par. Também pobres possbilidades humanas! — a inconclusa, Easa talver a mais significativa de nosso tempo, consta capitulo 1% e do XXxvit da primeira parte do Dom tee de um fragmento do capitulo xxi. Sei que tal aco parece um disparate; justificar esse “dispar €o objeto primordial desta nota? Hens achelerenamera igualmente wna verso litera da literal eita por Quev da Introduction levi dévote de to Fra te Sales Na iioec de Pere Menard nfo vets dal obra tata de uma brncadeira de nome amiga, mal oid “Tve também 0 propio secundrio de esboar a imagem de Piece Mas camo me arever x competi cm a gina reas qe cme dizem, prepara a baronet de Bacourt x ern 0 lps ddicado ponesl de Cras Houreade? Dois textos de valor desigual inspiraram a empreitada, Um é 0 fragmento filolégico de Novalis — 0 de nimero 2005 na edigZo de Dresden — que esboga 0 tera da foval ‘dentificagdo com um autor determinade. O outro & um esses livros parasitirios que situam Cristo num bulevar, Hamlet na Cannebiére ou Dom Quixote em Wall Street. Como todo homem de bom gosto, Menard abominava esses ‘carnavais imiiteis, capazes somente — dizia nar © prazer plebeu do anacronismo ou (0 que & pior) de ros deleitar com a idéia priméria de que todas as épocas so iguais ou diferentes. Mais interessante, embora de exe- ‘cugio contraditéria e superficial, parecia-Ihe o famoso pro: Pésito de Daudet: conjugar numa s6 figura, que é Tartarin, © Engenhoso Fidalgo e seu escudeiro... Aqueles que ins nuaram que Menard dedicou a vida a eserever um Quixo te contemporaneo, caluniam sua Kimpida meméria. Ele nio queria compor outro Quixote —o que seria facil — mas 0 Quirote. Initil aerescentar que nunca levou em conta uma transcrigfo mecinica do original; nn se propunha copid-lo. Sua admirével ambigio era produzir paginas que coincidissem — palavra por pala- vra e linha por linha — com as de Miguel de Cervantes. “Meu propésito ¢ meramente assombroso”, escreveu: ‘me de Bayonne, no dia 50 de setembro de 1954. “O termo final de uma demonstragio teoldgica ou metafisica — 0 ‘mundo exterior, Deus, a casualidade, as formas universais — nao é menos anterior e comum que meu divulgado ro- ‘mance. A tinica diferenga é que os filésofos publicam em agradaveis volumes as etapas intermediftias de seu traba Tho e eu resolvi perdé-las” Com efeito, nao resta um si rascunho que testemunhe esse esforgo de anos. de ocasio ‘método inicial que imaginou era relativamente sin Conhever bem o espanhol, recuperar a {é catdlica, ‘contra os mouros ou contra os turcos,esquecer ia da Europa entre os anos de 1602 e de 1gi8, ser 1 de Cervantes, Pierre Menard estudou esse proce- to (sei que chegou a manejar com bastante fidel © espantiol do século xvi), mas no o deseartou pela idade. Antes pela impossibilidade!, dira o leitor. De ‘mas a empreitada era de antemio impossivel e, ‘todos os meios impossiveis para levé-la a termo, este ‘6 menos interessante. Ser no século XX um romans lar do séeulo xvit parecen-Ihe uma diminuigho ce chegar a0 Quixote pa- lhe menos arduuo — por conseguinte, menos inte- ite — que continuar sendo Pierre Menard e chegar Quirote através das experiéncias de Pierre Menard ‘conviegio, diga-se de passagem, levou-o a excluir o autobiografico da segunda parte do Dom Quixo- Incluir esse prologo teria sido criar outro personagem Gervantes—, mas também teria significado apresen- ‘6 Quixote em fungio desse personagem e no de Me- Este, naturalmente, negou-se a essa facilidade.) empresa nao ¢ dificil, essencialmente”, leio nou- trecho da carta. “Bastaria que eu fosse imortal para vila a cabo.” Confessarei que costumo imaginar que a terminou © que leio 0 Quizote— todo 0 Quixote — 10 se Menard o tivesse pensado? Noites atris, a0 fo ‘o capitulo xxv — que ele nunca ensaiou —, reco 4 o estilo de nosso amigo e como que a sua vor nesta lexcepeional: “as ninfas dos ris, a dolorosa e dimida ", Hssa conjungo efieaz de um adjetive moral com ” outro fisico trouxe-me & meméria um verso de speare que discutimos uma tarde: Where a malignant and a turbaned Turk: Por que precisamente © Quixote?, diré nosso leitor, ssa preferéncia, num espanhol, nfo teria sido inexplici- vel; mas seri, sem diivida, num simbolista de Nimes, de- voto essencialmente de Poe, que gerou Baudelaire, que gerou Mallarmé, que gerou Valéry, que gerou Edmond ‘Teste. A carta acima citada ilumina este ponto, “O Qui- zoe", esclarece Menard, “interessa-me profundamente, ‘mas nio me parece, como direi?, inevitavel. Nao posso imaginar o universo sem a interjeiglo de Poe: Ah, bear in mind this arden was enchanted! ‘ou sem 0 Bateau ivre ou o Ancient Mariner; nio obstante, sinto-me eapaz de imagin-lo sem 0 Quizote. (Palo, natu ralmente, de minha capacidade pessoal, nao da ressonan- cia historica das obras.) O Quizote é um livro contingente, © Quixote no & necessirio. Posso premeditar sua escrita, pposso escrevé-lo, sem incorrer numa tautologia. Aos doze ou treze anos eu o li, talver integralmente. Depois reli com atengio alguns capftulos, aqueles que por ora nio ten. tarei escrever. Percorri também os entremezes, as comé- dias, a Galatéia, as Novelas exemplares, os trabalhos sem diivida penosos de Persiles ¢ Segismunda © a Viagem ao Parnaso... Minha lembranga geral do Quirote, simplifica da pelo esquecimento e pela indiferenga, pode muito bem equivaler imprecisio da imagem anterior de um livro escrito, Uma vee postulada essa imagem (que com ‘a justiga ninguém pode me nega), éindiscutivel que problema é bastante mais dificil que o de Cervantes. ‘complacent precursor nfo rejeitou a colaboragdo do ia compondo a bra imortal um pouco dla diable, pela inéreia da linguagem e da invengio. Eu, de parte, assumi 0 misterioso dever de reconstrair jente sua obra espontnea. Meu jogo solitario & go- lo por duas leis polares. A primeira permite-me vvariantes de carter formal ou psicol6gico: a se obriga-me a sacrifici-las ao texto ‘original’ e a jiderar de um modo irrefuravel essa aniquilagao... A travas artificiais é preciso somar outra, congénita, spor © Quixote em principios do século xvi! era uma, itada razoivel, necessiria, quem sabe fatal; em prin. do século Xx, & quase impossivel, Trezentos séculos transcorreram em vio, carregados como foram de lexissimos fatos, Entre eles, para apenas mencionar 0 proprio Quixote.” ‘Apesar desses trés obsticulos, o fragmentario Quirote de rd & mais sutil que o de Cervantes. Este, de uma tosca, opde as fieges cavalheirescas a pobre realida- provinciana de seu pais; Menard escolhe como “realida ‘terra de Carmen durante o séeulo de Lepantoe Lope. cespanholadas essa escolha milo teria sugerido a Mauri Barrés ou a0 doutor Rodriguez Larreta! Menard, com ‘a naturalidade, evita-as. Em sua obra niio ha cigani ‘em conquistadores, nem misticos, nem Filipe -de-fé. Prosereve a cor local ou nio lhe da atengé deselém indica um sentido novo do romance histbrico. desdém condena inapelavelmente Salammby. io menos assombroso & considerar capitlos isolados Por exemplo, examsinemos o xxxvtt da primeira parte. qu “ata do curioso discurso que fer Dom Quixote sobre as armas eas letras". K said que Dom Quixote (como Que veo em passgem anélogs posterior, de ahora de todos) juga pleto contra as letras e em favor das armas. Cervan tes era um velho militar: seu julgamento se explca. Mas aque 0 Dom Quixote de Pierre Menard — homem conten porineo de La takin des cers e de Bertrand Russell — reincida nessas nebulosas sofsticarias! Madame Bachelier vin nelas uma admirivele tipica subordinagio do autor Psicologia do heréi; outros (de maneira nada perspica), uma transrigao do Quixote; a baronesa de Bacourt a in fluéncia de Nietzsche, A essa terceira imterpretagio (que reputo irefutdvel) nfo sci se me atreverei a acrescentar uma quaria, que condiz muito bem com a quase divina mo- Aleta de Pierte Menard: seu hibito resignado ou ino de propaga idéias que eram oestritoreverso das que preferia ememoremos outra ver sua diatribe contra Paul Valéry na efémera folha surrealista de Jacques Reboul.) O texto de Cervantes eo de Menard sfo verbalmenteidénticos, mas 0 segundo ¢ quase infinitamente mais rico. (Mais ambiguo, dirt seus detratores mas aambighidade é uma riqueza) uma revelagio cotejar © Dom Quirote de Menard com 0 de Cervantes. Este, por exemplo,escreven (Dom (Quiote, primeira parte, capitulo 1): caverdade, cuja mae é.a histria, muta da tempo, depésito das acbes,testeruunha do passado, exemplo e aviso do pre sent, adverténcia do futuro no século xvi, redigida pelo “ingenio lego”* 5, essa enuumeragio é um mero elogio retorico ia, Menard, em contrapartida, escreve: verdade,cuja mae éa histiria, emusta do tempo, depésito ‘ages, testerunha do passado, excmplo e aviso do pre 5 advertencia do fturo. historia, mae da verdade; a idéia 6 assombrosa. Me- contemporineo de William James, nao define a fia como uma indagagio da realidade, mas como gem. A verdade historia, para ele, nao é 0 que 1u;€ 0 que julgamos que aconteceu, As cldusulas — “exemplo e aviso do presente, adverténcia do J" — so descaradamente pragmaticas. ‘Também. lo 0 contraste dos estilos. O estilo arcaizante de —estrangeiro, afinal — padece de alguma af. No assim o do precursor, que maneja com desen- ‘espanhol corrente de sua época. fio hi exercicio intelectual que niio seja afinal inti. ‘doutrina filosbfica é no inicio uma descrigio verossi- do universo; passam os anos e é um mero capitulo — jo nfo um pardgrafo ou um nome —da histéria da Na literatura, essa caducidade final é mesmo notéria. “O Quixote”, disse-me Menard, “foi antes de tum livro agradivel; agora ¢ uma ocasido para brindes bticos, saberba gramatical, obscenas ediges de luxo. A fia @ uma incompreensio e, quem sabe, pior delas.” io ignorant” expres da pen, com que fo designe Cervan eae formngo nell € motive de divides Nada tém de novo essas comprovagies niilistas; singu lar é a decisio que delas derivou Pierre Menard. Resol- veu adiantar-se 4 vaidade que aguarda todas as fadigas do homem; empreendew uma tarefa complexissima e de antemio fitil. Dedicou seus escrispulos e vigilias a repe- tir mum idioma alheio um livro preexistente. Multiphi ou 0s rascunhos; corrigiu tenazmente ¢ rasgou milhares de piginas manuscritas> Nao permitiu que ninguém as examinasse e cuidou de que niio the sobrevivessem. Km vio procure reconstrui-las, Refleti que ¢ licito ver no Quérove “final” uma espécie de palimpsesto, no qual devem transparecer os tragos — énues mas no indecifraveis — da eserita “prévia” de nosso amigo. Infelizmente, apenas um segundo Pierre Menard, invertendo o trabalho do anterior, poderia exu-” mar e ressuscitar essas Tréias, “Pensar, analisar, inventar [esereveu-me também] no io atos andmalos, io a respiragio normal da inteligéncia Glorificar 0 ocasional cumprimento dessa funglo, entesou- rar antigos e alheios pensamentos, recordar com incrédula estupefagdo o que © doctor universalis pensou, & confessar nossa languidez ou nossa barbérie, Todo homem deve ser capaz de todas as idéias ¢ entendo que no futuro sera.” ‘Menard (talvez sem querer) enriqueceu mediante uma ‘técnica nova a arte detida ¢ rudimentar da leitura: a téeni- ca do anacronisimo deliberado e das atribuigSes erréneas. § Lembro me de seus caderosqusdriculadn, das negrasrsurs, dos pe: calaresimbosipgeticos ed letra de net, No i daar le go tava de caminhar pelos arrabalder de Nimoy conta leva consi edema fuer ta slegrefoguia, jca de aplicaglo infinita nos insta a percorrer ‘como se fosse posterior & Eneida eo livro Le jar- {Centaure de madame Henri Bachelier como se fosse ‘Henri Bachelier. Essa técnica povoa de aventu imais pacatos. Atribuir a Louis Ferdinand Géli- Ja James Joyoe a Imitapao de Cristo nfo seré uma re- suficiente desses tmues conselhos espirituais? 1959 “6

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