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CXLIAP LEZPELOOELZ snivaga STHOTdd - one0y 6 ‘Compagnon, Antoine © demnia ds tora erature senso comumy Antoine Compagnon; taducao de {leonice Paes Belo Hor 2305p. ‘Tradugio de: Le démon de la théorie linéatre et sens comsmn TEVISNO DE TEXTO E NORMALIZAGAD hear keanoeeC ME N T O'S de Coltimbia, em Nova \irio intitulado “Some Puzzles for Em torno de mos alguns textos fundadores da teoria lite- ‘dos como definitivos € cuja avaliacao ja nto nos js. Posteriormente, na Sorbonne, dediquei um eratura. Desta vez, diante de um piiblico i-me necessirio fazer um discurso magistral, sem bordagem aporética, Este livro € fruto desse gradleco aos estudantes que 0 tornaram possivel. ago de La Troisiéme République des Lettres ica clas Letras) (1983), criticaram-me varias o de haver interrompido a pesquisa no momento em interessante: esperavam pelo fim da histr ou uma Quinta Repiiblica das Letras. Como des- jento em que a histria literdria foi substituida pela ar os epis6dios seguintes, sem que nossa ria intelectual neles se integre? Para romper 0 € por fim as controvérsias, decidi escrever um 10, Les Ging Paradoxes de la Modernité (Os Cinco Modernidade) (1989), do qual este € também a o. Sou grato a Jean-Luc Giriboni, que me estimulou assim como a Marc Escola, a André Guyaux, a mbardo e a Sylvie Thorel-Cailleteau, que o releram. pogos do Capitulo II foram publicados com os titulos logie” {Alegoria e Filologial, em Anna e Carla Locatelli, Ed., Retorica e Interpretazione, Roma, 1994, € “Quelques Remarques Sur la Méthode des 's Paralléles® [Algumas Observacdes sobre 0 Método s Passagens Paralelas], Studi di Letteratura Francese, 0.22, * APETULO 3 35 38 Comper dt enn: «Toma da expresdo 39 Lteredade 08 econo 2 cons € ert “ cartruio wo AUTOR ” 1 teve dere do stor ® Xx Voluntas © actio — Algor flog 36 loops © herent 9° Jeng « consdtocia 65 © eo da psmgens parks 6s ‘Sait fom the bo’: moth n Inteogdo coer %5 (Os dos agumertos cone 3 itengdo 9 Reino a neneo a Sendo nto 6 sgiagio 85 Inengo no € premedasto 30 2 presunio de ienconaldade 93 cavimiwo m0 MUNDO 7 Conte 4 mate 2 Anite 102 . 6 realm, reflexo 0 contengto 106 1, reference intend 10 ‘A resiséncia do leitor Recepcio e influgecia ae 0 gr cone moach de ee ere L Searvemer oma: | cans aoe ea cee eeeoed Sa Oa se pana es Boe cnet men or tees crme a | ines ee ee ess aos pa rs ad cole ee ee * flog Ste acre ian es ae onan | ome So ml poems so ing ease aes he cose De wee rca em es Valor € posteride Poe um relativism modersdo 46 “7 153 156 157 159. 163 165 166 173 176 180 0 AUTOR is controvertido dos estudes literdrios € o lugar é \do, tio veemente, que oso de ser abordado (seri também 0 capitulo | Sob o nome de intengao em geral, é 0 papel do »s interessa, a relagao entre o texto € seu autor, ile do autor pelo sentido e pela significacao, Ho texto. Po S correntes, a antiga € op6-las e elimind-las, ou conservar ambas, nte A procura de uma conclusdo aporética, A antiga rrente identificava o sentido da obra a intengao do habitualmente no tempo da filologia, do pos icismo. A idéia corrente moderna (¢ ademais ox New Critics americanos, 0 estruturalismo francés na. Os New Critics falavam de intentional fallacy, 10 intencional”, de “erro intencional”: 0 recurso & (0 de intengao Ihes parecia ndo apenas inttil, mas preju- 4108 estudos literirios. © conflito se aplica ainda aos ios da explicacao literaria como procura da intencao lor (deve-se procurar no texto o que o autor quis dizer), Jeptos da interpretacdo literdria como descricao das ces da obra (deve-se procurar no texto o que ele independentemente das intengdes de seu autor). Para 1 dessa alternativa conflituosa € reconciliar os irmaos 10S, uma terceira via, hoje muitas vezes privilegiada, 1.0 leitor como critério da significagao literaria: € uma ‘orrente contemporanea a que voltarei no Capitulo IV, mas arei tanto quanto possivel d de lado. no momento. Uma introducao & teoria da literatura pode limitarse a explorar um pequeno nimero de nodes em torno das quais a humanismo e o indi eliminar dos estudos nbém porque si mitica arrastava consigo todos os outros anticonce teoria literdria. Assim, a importincia atribuida as qu: especiais do texto literario (a literariedade) é inversamente proporcional & aco atribuida a intengao do autor. Os proce- dimentos que insistem nessas qualidades especiais conferem ‘um papel contingente ao autor, como os formalistas russos 08 New Critics americanos, que eliminaram 0 autor para asse- gurar a independéncia dos estudos literirios em relacao A historia e a psicologia. Inversamente, para as abordagens que fazem do autor um ponto de referéncia central, mesmo que variem o grau de consciéncia intencional (de premeditagao) ‘que governa o texto, ¢ a maneira de explicitar essa consciéncia (alienada) — individual para os freudianos, coletiva para os marxistas —, 0 texto nao € mais que um veiculo para chegar-se 40 autor. Falar da intengio do autor ¢ da controvérsia da qual nunca deixou de ser 0 objeto € antecipar em muito as outras nogdes que serio examinadas em seguic: Nao vejo melhor iniciacao a esse delicado debate do que apresentar alguns textos guias. Citarei trés. O prdlogo bem conhecido de Gargantua, no qual Rabelais parece primeiro hos encorajar a procurar o sentido oculto (o “mais alto sen- ido”, altior sensus) de seu livro, segundo a antiga doutrina da alegoria, depois zombar dos que acreditam nese método medieval que permitiu decifrar sentidos cristios em Homero, Virgilio e Ovidio — a menos que Rabelais remeta o leitor & sua prOpria responsabilidade por suas interpretagdes, even- tualmente subversivas, do livro que tem em maos. Nem sempre houve acordo sobre a intengao desse texto capital sobre a tengo, prova de que a questio é sem saida. Em seguida, © Contre Sainte-Beuve (Contra Sainte-Beuvel, de Proust, porque esse titulo deu seu nome moderno ao problema da intengiio na Franca: nele Proust defende a tese, contra Sainte-Beuve, que a biografia, 0 “retrato literirio”, ndo explica a obra, que € 0 produto de um outro eu que nao o eu social, de um eu profundo irredutivel a uma intengio consciente. Veremos, no Capitulo IV, sobre o leitor, que as teses dle Proust abalariam 4a textos diferentes, cujos sentidos podem mesmo contextos € as intengdes nao silo as mesmas, ot nos estudos literérios tradicionais tinha uma ampla aprovacio. Mas ao afirmar que o autor € indiferente no que se refere a significagio do texto, a teoria nio teria levado demais a légica, ¢ sacrificado a razio pelo prazer de bela antitese? E, sobretudo, nao teria ela se enganado € sempre fazer conjeturas sobre uma intengZio humana em ato? A ‘TESE DA MORTE DO AUTOR Partamos de duas teses em presenca, A tese intencionalista € conhecida, A intengio do autor € 0 critério pedagégico ou académico tradicional para estabelecer-se o sentido literirio. Seu resgate €, ou foi por muito tempo, o fim principal, ou mesmo exclusivo, da explicagao de texto. Segundo 0 precon- ceito cortente, 0 sentido de um texto € 0 que o autor desse texto quis dizer. Um preconceito nao € necessariamente despro- vido de verdade, mas a vantagem principal da identificagao lo sentido a intengio 6 a de resolver 0 problema da interpre- taco literdria: se sabemos 0 que o autor quis dizer, ou se podemos sabé-lo fazendo um esforgo — € se nao o sabemos. € porque nao fizemos esforgo suficiente —, nao & preciso interpretar 0 texto. A explicagao pela intengao torna, pois, a critica literiria inttil Cera o sonho da historia literdria). Além disso, a prépria teoria torna-se supérflua: se 0 sentido € inten- cional, objetivo, hist6rico, nao ha mais necessidade nem da critica, nem tampouco da critica da critica para separar os criticos. Basta trabalhar mais um pouco ¢ ter-se-4 a solucio, A intengio, € mais ainda o proprio autor, ponto de partida habitual da explicacio literdria desde 0 século XIX, consti tuiram o lugar por exceléncia do conflito entre os antigos (a 9 (Orla litera essenta. Foucault pronut 1969, intitulada *Qu’Est-ce qu'un A\ € Barthes havia publicado, em 1968, bistico, “La Mort de L’Auteus” {A Morte do Autor aos olhos de seus partidrios, assim como de seus adver slogan anti-humanista da ciéncia do texto. Tod literdrias tradicionais podem, alias, ser remetidas a nogao de intengio do autor, ou dela se deduzirem. Assim também, todos 0 anticonceitos da teoria podem partir da morte do autor. Afirmava Barthes: © autor & um personagem moderno, produto, sem divid nossa sociedade, na medida em que, ao sair da Idade Mé& ‘com o empirismo ingles, o racionalismo francés, e a f& pesso: se diz mais nobremente, da “pessoa humana’ Esse eta 0 ponto de partida da nova critica: 0 autor nao era senao o burgués, a encamagio da quintesséncia da leologia capitalista, Em torno dele se organizam, segundo Barthes, 05 manuais de hist6ria literiria e todo ensino da literatura: “A explicagdo da obra é sempre procurada do lado de quem 2 produziu’,* como se, de uma maneira ou de outra, a obra fosse uma confissdo, nto podendo representar outra coisa que nao a confidéncia. tura por Mallarmé, Valéry, Proust, pelo surrealismo, e, enfi pela lingiistica, para a qual “o autor nunca é mais que aquele que escteve, assim como ew nao € outro senao 0 que diz eu’! assim como Mallarmé jf pedia “o desaparecimento elocut6rio do poeta, que cede a iniciativa as palavras’.* Nessa compa- rac2o entre 0 autor e © pronome da primeira pessoa reconhe- ce-se a reflexio de Emile Benveniste sobre “La Nature des Pronoms” {A Natureza dos Pronomes] (1956), que teve uma grande influéncia sobre a nova critica. © autor cede, pois, o lugar principal 4 escritura, ao texto, ou ainda, ao “escriptor", que nao é jamais sendo um ‘sujeito” no sentido gramatical ou linguistico, um ser de papel, nao uma “pessoa” no sentido 50 a’, *pintar” 2 sua enunciagao, € que ela, 10 tém origem. Sem origem, “o ": a nogao de intertextualidade la morte do autor. Quanto a explicacio, © autor, pois que nao ha sentido tnico, io, no fundo do texto. Enfim, diltimo elo ma que se deduz inteiramente da morte do autor: of, € nao o autor, € o lugar onde a unidade do texto se no seu destino, nao na sua origem; mas esse leitor mais pessoal que o autor recentemente demolido, e ele também a uma fungio: ele € “esse alguém que Jos, num tnico campo, todos os tracos de que 6 constituida a escrita’? Como se vé, tudo se mantém: 0 conjunto da teoria lit le ligar-se a premissa da morte do autor, como a qualquer jutro de seus itens; mas a morte do autor € o primeiro, porque le mesmo se opde «to primeiro principio da histéria lite- Quanto a Barthes, ele the confere ao mesmo tempo a tonalidade dogmatica: “Sabemos agora que um texto...", € "Agora no somos mais vitimas de...". Como previsto, teoria coincide com uma critica da ideologia: a escritura ou © texto “libera uma atividade que poderfamos chamar de contrateol6gica, propriamente revolucionatia, pois recusar deter 0 sentido é, finalmente, recusar Deus € suas hipéstases, a razao, a ciéncia, a lei’.* Estamos em 1968: a queda do autor, que assinala a passagem do estruturalismo sistematico 20 p6s-estruturalismo desconstrutor, acompanha a rebelio anti- iia da primavera, Com a finalidade de, ¢ antes de exe- cutar 0 autor, foi necessirio, no entanto, identifi viduo burgués, & pessoa psicol6gica, e assim reduzir a questo do autor a da explicacio do texto pela vida e pela biografia, restrigio que a hist6ria literdria sugeria, sem divida, mas que nao recobre certamente todo problema da intengio, € nie © resolve em absoluto. Em “O que E um Autor?”, o argumento de Foucault parece depender, também ele, da confrontacao conjuntural entre a historia literdria € 0 positivismo, donde the vieram criticas 51 maneira como tratava 8 Homes proprios & Os noMes: Les Mots et les Choses \As vagas que a obra de fulano ou b Assim, apoiando-se na literatura moder ouco a pouco o desaparecimento, o enfraquecimento do autor, de Mallarmé — “admitido que 0 volume nao traz nenhum signatario” — a Beckett ¢ a Maurice Blanchot, ele define “fungio autor” como uma construgio histérica e ideol6gica, como a projeco, em termos mais ou menos psicologizante: do tratamento que se da ao texto. E certo que a morte do , como conseqiiéncia, a polissemia do texto, a pro- mogio do leitor, € uma liberdade de comentirio até entao descomheci de uma verdadeira reflexao sobre a natureza das relagdes de intencao e de interpretagao, nio é | do leitor como substituto do autor de que se es Para que a p6s-teoria nao seja um retorno a pré-teoria, & preciso também sair da especularidade da nova eri historia literaria que marcaram essa controvérsia, e permi- tiram reduzir o autor a um principio de causalidade e a um testa-de-ferro, antes de climini-lo. Liberado dese confronto magico € um pouco ilusério, parece mais dificil guardar 0 autor numa loja de access6rios. Do outro lado da intenca0 1 do autor ha, na verdade, a intencao. Se € possivel que o | autor seja um personagem moderno, no sentido socioldgico, © problema da intengao do autor nado data do ri mo, do empirismo € do capitalismo. Ele é muito antigo, sempre esteve presente, € nao € facilmente solucioniivel. No fopos da morte do autor, confunde-se o autor biogrifico ou so l6gico, significando um lugar no cinone hist6rico, com 0 autor, no sentido hermenéutico de sua intengao, ou intencio- nalidade, como critério da interpretag2o: a “funcao do autor” de Foucault simboliza com perfeigao essa redugao. Depois de termos lembrado como a retérica tratava a inten- lo, veremos que essa questio foi profundamente renovada pela fenomenologia e pela hermenéutica. Se hi uma tal conso- nancia na critica dos anos sessenta sobre o tema da morte do autor, ela nao seria 0 resultado da transposigao do problema hermenéutico da intencio € do sentido, nos termos muito simplificados e mais facilmente negociaveis, da historia literiria? 52 es VOLUNTAS ® ACTIO — sobre 0 autor — € muito ar smo do pensamento € da linguagem, losofia ocidental. Na ver- jsta di um peso ao intencionalismo, mas a ntemporinea de dualismo nem por isso resolve intengo. O mito da invengio da eseritura no latdo afirma que a ese distante da palavra como a palavra (logos) € distante mento (dianoia). Na Poética de Aristételes, a dua contetido e da forma esta no prineipio da separacio a historia (muthos) e sua expressio (lexis). Enfim, toda Ao ret6rica distingue a inventio (busca das idéias), € clocutio Cemprego das palavras), ¢ as imagens que acentuam, posigo so numerosas, como as do corpo e da roupa. isses paralelismos sto mais embaragosos que esclarecedores, is que fazem deslizar a questao da intengao para o estilo. A ret6rica clissica, em razao do quadro judiciério de sua pritica original, nao podia deixar de fazer uma distingao prag- itica entre intenedo e acdo, como sugere Kathy Eden na Hermeneutics and the Rhetorical Tradition {A Hermenéutica © a Tradigao Ret6rica] (1997), obra a qual muito devem as istingBes que se seguem. Se tendemos a esquecé-la, é porque ‘onfundimos habitualmente os dois principios hermenéuticos istintos — na teoria, se nao na pritica — sobre os quais se fundamentava a interpretatio scripti, principios que ela ex- twaiu da tradicao ret6rica: um principio juridico e um principio stilistico Segundo Cicero © Quintiliano, os ret6ricos que deviam explicar textos escritos recorriam habitualmente & diferenca juridica entre intentioe actio, ou voluntas e scriptum ho que conceme a essa acao particular que é a escritura (Cicero, Do Orador, I, wu, 244; Quintiliano, Instituigdes Ora- {6rias, VIL, x, 2). Mas a fim de resolver essa diferenca de origem juridica, esses mesmos retéricos adotavam habitualmente um método estilistico, € procuravam nos textos ambigiii- dades que thes permitissem passar do scriptum a voluntas. as 3 terpretadas Como seriptum, O autor eng to estilo e1 8 vere ¢ disting2o juridica — voluntas e scriptum — ‘uma distingao estilistica — sentido proprio e sentido fig Mas sua coincidéncia na pratica nao deve nos deixar ignorar que se trata de dois principios diferentes em teoria. Santo Agostinho repetira essa diferenga de tipo juridico entre © que querem dizer as palavras que um autor uti Para exprimir uma intencao, isto €, a significaclo seméntica, € 0 que o autor quer dizer utilizando essas palavras, isto é, a intencao dianoética. Na distingio entre o aspecto lingifstico © aspecto psicol6gico da comunicacao, sua preferéncia recai, conforme todos os tratados de ret6rica da Antigtiidade, na intengao, privilegiando assim a voluntas de um autor, por opesigao ao scriptum do texto. Em A Doutrina Crista (1, XII, 12) Agostinho aponta o erro interpretative que consiste em preferir o scriptum & voluntas, sendo sua relagao aniloga da alma (animus), ou do espirito (spiritus), e do corpo do qual sto prisioneiros. A decisio de fazer depender herme- neuticamente 0 sentido da intengio nao é, pois, em Santo Agostinho, senilo um caso particular de uma ética subordi- nando 0 corpo € a carne ao espirito ou a alma (se 0 corpo tho deve ser respeitado € amado, nao € por ele mesmo). Agostinho toma o partido da leitura espiritual do texto, contra a leitura carnal ou corporal, ¢ identifica 0 corpo com a letra do texto, a leitura carnal com a da letra. Entretanto, assim como © corpo merece respeito, a letra do texto deve ser preser- vada, nao por si mesma, mas como ponto de partida da inter- Pretagio espiritua A distingao entre a interpretagio segundo a carne e a inter- pretagao segundo 0 espirito nao é propria de Agostinho, que assumiu o bindmio paulino da letra e do espirito — a letra mata, mas 0 espirito vivifica —, que é de origem e de natureza nio estilisticas, mas juridicas, como na tradligao ret6rica. Sa0 Paulo nao faz sendo substituir 0 par ret6rico grego rheton dianoia, equivalente do par latino scriptum e voluntas, pelo Par gramma e pneuma, ou letra ¢ espirito, mais familiar aos judeus aos quais se dirige? Mas a distingao entre a letra e espitito, em Sio Paulo, ou ainda entre a interpretacao corporal € 4 interpretagiio espiritual, em Santo Agostinho, que tendemos 54 espirito sob a letra, e interpretagio figurativa, de tipo es procurando 6 sentido figurado a0 lado do sentido o. Entretanto, mesmo se empiricamente o cruzamento nterpretagio espiritual e da interpretacio figurativa & as vezes realizado em Agostinho, teoricamente, e contra- és, ele no reduz. um tipo de interpretacao ao outro, » identifica nunca a interpretaao espiritual com a inter netaco figurativa; ndo confunde a distingao juridica entre a letra © 0 espirito — adaptagao crista de seriptum e voluntas, ou actio © intentio— com a distingao estilistica entre o sentido eral (significatio propria) e o sentido figurado (significatio translata). Somos n6s que, utilizando a expressio sentido Jueral de maneira ambigua, 10 mesmo tempo para designar 0 sentido corporal oposto ao sentido espiritual, e 0 sentido proprio ;posto ao sentido figurado, confundimos uma distingao juri- Chermenéutica) e uma distingao estilistica (semantic). Agostinho, como Cicero, mantém pois uma firme separagio entre a distingao legal do espitito € da letra (ou came), € a Alistingo estilistica do sentido figurado € do sentido literal (ou préprio), mesmo que sua prépria pritica hermenéutica isture com frequiéncia os dois principios de interpretagio, A tradigao ret6rica situa as duas principais dificuldades da interpretagio dos textos, por um lado, na distancia entre o texto € a intengo do autor, por outro, na ambigtidade ou ‘obscuridade da expresso, seja ela intencional ou nao. Pode- riamos ainda dizer que o problema da intencao psicolégica (letra versus espirito) refere-se mais particularmente & primeira parte da ret6rica, a inventio, enquanto que o problema da obscuridade semantica (sentido literal versus sentido figurado) refere-se mais particularmente a terceira parte da retorica, a elocutio. 35 ‘Tendo perdido de vi tenclemos, na interpretagao © problema da intenc20 ao do estilo. O' € 0 que chamamos tradicionalmente de alegorie? A interpre- tagio alegorica procura compreender a intengao oculta de um. texto pelo deciframento de suas figuras. Os tratados de ret6- rica, de Cicero a Quintiliano, nao sabiam nunca onde col a alegoria. Ao mesmo tempo figura de pensamento € tropo, mas tropo em muitas palavras (metifora prolongada segundo a definicao habitual), ela é equivoca, como se flutuasse entre a primeira parte da ret6rica, a inventio, remetendo a uma questo de intengao, e a terceira parte, a elocutio, remetendo a um problema de estilo. A alegoria, por intermédio da qual toda a Idade Média pensou a questo da intengio, repousa, na realidade, na superposigio de dois pares (e de dois prin- cipios de interpretacio) teoricamente distintos, um juri outro estilistico. A alegoria, no sentido hermenéutico tradicional, € um método de interpretacdo dos textos, a maneira de continuar a explicar um texto, uma vez que esti separado de seu contexto original e que a intencio do seu autor nao é mais reconhecivel, se € que ela jf 0 foi." Entre os gregos, a alegoria tinha por nome byponoia, considerada como 0 sentido oculto ou subter- raneo, percebido em Homero, a partir do século VI, para uma significacao aceitivel aquilo que se tornara estranho, € para desculpar © comportamento dos deuses, que pareci doravante escandaloso. A alegoria inventa um outro sentido, cosmol6gico, psicomantico, aceitivel sob a letra do texto: el sobrepde uma distingao estilistica a uma distingao juridl Trata-se de um modelo exegético que serve para atualizar um texto do qual estamos distanciados pelo tempo ou pelos costumes (de qualquer forma, pela cultura). N6s nos reapro- priamos dele, emprestando-Ihe um outro sentido, um sentido oculto, espiritual, figurativo, um sentido que nos convém atualmente. A norma da interpreta aleg6rica, que permite separar boas e mas interpretagdes, nao € a intengao original, € 0 decorum, a conveniéncia atu: A alegoria & uma interpretagio anacrdnica do passado, uma leitura do antigo, segundo 0 modelo do novo, um ato 56 Média, A alegoria € um instrumento todo poderoso para inferir n sentido nove num texto antigo. nece, entretanto, a inevitivel questao da intencao, iro juridico € do registto esti ‘© que Homero queria dizer? Homero teria em mente idade dos sentidos que as geragdes posteriores deci- n na Iiadd Para o Antigo Testamento, © cristianismo, 10 do livro revelado, resolveu a dificuldade pelo dogma inspiragio divina dos textos sagrados. Se Deus guiou a 1o do profeta, entao € legitimo ler na Biblia outra coisa que que seu autor instrumental e humano quis ou pensou ver. Mas 0 que dizer dos autores da Antigtidade, aqueles Dante colocou no limbo, no inicio do “Inferno”, porque, mo que nao tenham vivido antes do nascimento do Cristo, ‘obras nao eram incompativeis com o Novo Testamento? esse dilema que Rabelais aborda no prologo de Gandntua, encorajando, primeiro, a interpretar seu livro “no mais alto sentido", conforme a imagem do osso ¢ da medula, do habito que nao faz o monge, ou da feitra de Sécrates, em seguida recomendando, depois de abruptamente mudar de direcio, anter-se perto da letra: “Pensais vés, em vossa fé, que Homero, escrevendo a Ilfada e a Odisséia tenha pensado nas alegorias que Ihe atribuiram Plutarco, Hericlides do Ponto, Eustiquio, Phornute?” Nao, diz ele, Homero no pensara nisso, nao mais que Ovidio em todas as prefiguragdes do cristianismo que encontramos nas Metamorfoses. Entretanto, Rabelais ndo critica aqueles que Iéem um sentido cristio na Ilfada ou nas ‘Metamorfoses, mas somente aqueles que pretendem que Homero ou Ovidio haviam posto esse sentido cristio nas suas obras. Em outras palavras, aqueles que lerem em Gargantua um sentido escandaloso, como aqueles que encontrarem um sen~ tido cristio em Homero ou Ovidio, serao responsaveis por isso, mas no o préprio Rabelais. Assim, para se liberar da 7 ali deixar. Alifs, relendo-se, ele acaba descobrindo 5 que ele mesmo desconhecia. Mas se Rabelais e Montaigne, como os antigos ret6ricos, entre eles Cicero e Agostinho, desejavam, ainda que cum grano salis, que a intengio fosse distinguida da alegoria, esta ainda viveria belos dias, até 0 momento em que Spinoza, o pai da filologia, pedisse, no Tratado Teoldgico-Polttico (1670) que Biblia fosse lida como um documento hist6rico, isto é, que © sentido do texto fosse determinado exclusivamente pel relacio com o contexto de sua redacio. A compreensio em termos de intencao, como jf era o caso quando Agostinho alertava contra a interpretacao sistemitica pela figura, € funda- mentalmente contextual, ou hist6rica. A questao da intencao ea do contexto se confundem, desde entao, em boa parte. A vit6ria sobre 03 modos de interpretacao cristd € medieval no século XVII, com as Luzes, representa assim uma volta ao pragmatismo jurfdico da ret6rica antiga. O alegorismo ana- Eronico parece inteiramente eliminado. Do ponto de vista racional, uma vez que Homero e Ovidio nao eram cristaos, seus textos no podiam ser legitimamente consideracios como alegorias cristis."" A partir de Spinoza, a filologia aplicada 08 textos sagrados, depois a todos os textos, visa essenc mente prevenir 0 anacronismo exegético, fazer prevalecer a azo contra a autoridacle e a tradigo. Segundo a boa filolos a alegoria crista dos Antigos € ilegitima, o que abre caminho A interpretacdo hist6rica. J que poderiamos pensar que esse debate fora resolvido ha muito, ou que € abstrato, nao seria talvez instil lembrar que ele ainda esta vivo, e continua a dividir os juristas, em particular 0s constitucionalistas. Na Franca, o regime nao cessou de mudar ha dois séculos, e a Constituicio juntamente com ele, € a Inglaterta nao tem Constituicao escrita; mas nos Estados Unidos, todas as questdes politicas se colocam, num. ‘momento ou noutro, sob a forma de questdes legais, isto 6, de questdes sobre a interpretacao € a aplicaglo da Constituigao. 58 Assim se opdem, quanto a todos os probl dos pais fundadores, ar © sentido obje- lo tinha no momento em Como sempre, as duas posicoes — lista — sao insustentavei: ceitar, numa democracia moderna, que em nome de fidelidade a intencio original, supondo-se que ela seja -avel, os direitos dos vivos sejam garantidos pela auto- le dos mortos? Que 0 morto confisque o vivo, como diz velho adagio juridico? Seria necessirio, por exemplo, perpe- r 08 preconceitos raciais do final do século XVIII, e ratificar \s intengdes escravagistas e discriminat6rias dos redatores Constitui¢do americana? Aos olhos de muitos je, € mesmo de historiadotes, a idéia de que um texto um Gnico sentido objetivo € quimérica. Além disso, artidarios da intencao original raramente estao de acordo entre si, € a compreensio do que a Constituicao queria dizer, ‘a origem, permanece tao indeterminada que, para cada ltemnativa concreta, 0s modemnistas podem invocar sua caugao nto quanto os conservadores. Finalmente, a interpretacao dle uma Constitui¢io, ou mesmo de todo texto, levanta ndo somente uma questio histérica, mas também uma questao o sugeria FILOLOGIA E HERMENEUTICA. A hermenéutica, isto &, a arte de interpretar os textos, antiga disciplina auxiliar da teologia, aplicada até entao aos textos sagrados, tornou-se, ao longo do século XIX, seguindo a tritha dos tedlogos protestantes alemaes do século XVIII, € gracas a0 desenvolvimento da consciéncia hist6rica européia, a ciéncia da interpretagio de todos os textos e o préprio fundamento da filologia e dos estudos literirios. Segundo Friedrich 9

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