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Mikhail Bakhtin PROBLEMAS DA POETICA DE Dostoiévski 5* edigao revista ‘Tradugao direta do russo, notas ¢ preficio de PAULO BEZERRA, UFF-USP Prefacio Uma obra a prova do tempo Paulo Bezerra Certamente, a maior vitalidade de uma obra se mede por sua capacidade de ampliar-se na recepedo e por sua duragio no tempo. Em 2009, Problemas da poética de Dostoiéuski (doravante PPD) completa 80 anos, ja traduzida em um imenso niimero de paises ¢ objeto de interpretagdo em numerosos livros, teses e artigos em revistas e jornais. No Brasil, PPD chega a quarta edigao (com uma reimpresso) como obra jé plenamente consagrada como um, classico da reflexao filoséfica em torno do discurso literério, euja importancia se amplia e se aprofunda com o passar do tempo. Ao preparar o texto para a segunda edigao, fiz uma revisdo profunda da traduedo, melhorando a redacdo e tornando mais preciso um ou outro conceito, Contudo, mantive a traduedo indireta das citagdes dos romances de Dostoiévski Gente Pobre, O Duplo, Crime Castigo, O Idiota, Os Deménios e Os Irméos Karamézov. ormente, ao trabalhar com PPD em meus cursos de graduacao e pos-graduacio, percebi que o tipo de linguagem dos trechos desses, romanees em tradu¢do indireta e1 7 preenséo do sentido profundo dos di na perspectiva do dialogismo, quintesséncia da teoria bakhtiniana do discurso, Esse desencontro da traducéo indireta com o original especialmente aberrante em O Duplo, obra publicada em conjunto ‘com Gente Pobre (com 0 titulo de Pobre Gente) pela Companhia v 1975). Nessa edigéo, além des do original, a traducdo é tao distante da linguagem original que nao passa de uma pélida deseri¢ao do discurso dostoievskiano, a tal ponto que se torna impossivel detectar a presenca das palavras de uma personagem abrindo fissuras na consciéncia da outra, esséncia da interagao dis que Bakhtin descobriu em Dostoisvski. Agora, porém, ao preparar © livro para esta quarta edic&o, procedi a uma nova reviséio do texto em portugués e substitui aquelas citacdes em tradugao indireta por tradueso direta do original, pois, além de recriar 0 espfrito da obra na linguagem mais proxima possivel do origin: tradugao direta permite uma compreensao mui © profunda das pecul citagdes que mantive em traducao indireta do conto O Sonho de um Homem Ridiculo e do romance 0 Adolescente nao di compreenséo das propriedades do discurso dostoievskiano e das peculiaridades do dialogismo bakhtiniano, A presente edigdo vem “encorpada” com dois textos essenciais dois escritos de Bakhtin (1961) a respeito de Problemas da poética inserimos como “PPD. A guisa de de PPD”, pois quem deu titulo as referidas notas ndo foi o proprio Bakhtin, mas Vadim K6jinoy, organizador dos manuseritos e responsavel por sua inseredo em Estética da criagao verbal, obra om que aqueles textos io uma espécie de corpo estranho. Os dois adendas so, ao mesmo tempo, um comentario a Problemas da poética de Dostoiév eaepee como pensamento € por isso autoritério, seu ‘Wesdobramento no processo de construgao das personagens vomanescas; a polifonia como | método, discursivo do universo aberto em formagao; 9 autor e sua re ativismo especial do r é a conseiéncia das iamento em relaco ao autor no romance polifonico, no qual o au consciéncias, a despeito de seu distal VI universo representado e da grande liberdade que concede as suas personagens. Portanto, os referidos adendos sao um complemento a Problemas da poética de Dostoiéuski, ¢ com eles os ivro ganham mais consisténcia e mais clareza. Uma revolugao na poética do romance Este livro representa uma auténtica revolugao na teoria do ro- ‘mance como género especifico e produto de uma postica histérica, ‘a IV - “Peculiaridades do género, do enredo e da compo- térico-cultural e da earnavalizagao da literatura, 6 ‘um exemplo raro de poética histérica do género e representa a descanonizacao da teoria ¢ da histéria tradicional do romance (observacao do saudoso Emir Rodriguez Monegal), antecipando a teoria bakhtiniana da prosa romanesca que se completar com Questées de Literatura e Estética, particularmente com seus trés capitulos-chave: “As formas do tompo e do erondtopo no romance” ~ 1937-1938, “Da pré-hist6ria do discurso romaneseo” - 1940 e “Bpopeia e romance” — 1941. Partindo (Capitulo IV de PPD) do conceito de destruicéo da distdncia épica absoluta (este seré ampliado e mais bem definido em “Epopeia e romance”), que ocorre com a inseresio de valores do cotidiano do tempo da enunciacao/ narracdo no tempo da acSo representada, Bakhtin conclui que o cruzamento desses dois tempos foi determinante na desintegragao dos géneros elevados, que néo resistiram ao contato com a realidade em formacao, propiciando a formagao dos géneros constituintes do sério-comico em oposicéo aos géneros antigos como a epopeia, a tragédia, a historia e a retérica cléssica, Bsses constituintes do sério- cémico séo modalidades de uma prosa que revela grande capacidade de abranger vastos campos da representagao literaria e esta centrada predominantemente nos simposiuns, nos didrios socré- ‘Trata-se de um género novo, que vem dialogar e disputar e: 15 generos elevados um lugar de destaque (e primazia!) na representacéo dos valores do passado. Como constituintes da prosa, essas modalidades de género impri- mem uma mudanga radical no tratamento das lendas, dos mitos, da retérica e da prépria histéria do passado, que agora so repre- sentados sem nenhuma disténcia, & luz e sob o impacto do contato vit direto com uma nova realidade em formagao. Nessa nova realidade ‘© homem vence 0 medo eésmico, a medo dos deuses e das forcas cegas da natureza, e as antigas lentes das lendas e mitos através das quais o homem enxergava o mundo sao agora substituidas pelas lentes da experiéncia imediata e da consciéneia. A luz, dessas no- vas lentes, os géneros antigos sao postos em contato com a nova realidade em formacdo, e nesse contato passam por um rebaixa- formas classicas. Com 0 advento do helenismo, as imagens dos heréis dos géneros elevados sao amplamente parodiadas e carnava- lizadas, essas parddias criam uma espécie de territério romanesco a realidade em formagao se transforma em matéria e alimento da prosa romanesca, E nesse campo que Bakhtin enxerga o surgi- mento da prosa propriamente dita e seu desdobramento no ro- mance ainda em solo greco-latino, ressaltando, porém, que se trata de um romance ainda bastante limitado, o tnico possivel naquelas condigdes. Mas é precisamente dai que surgem as trés do romance: a épica, a retéricae a, a. Bakl existéncia de outr: Wameras Tormas transitérias de romance, mas. ressalta que é no campo do sério-cémico que estd uma das varie- dades da linha carnavalesea, precisamente aquela variedade que chega a Dostoiévski. Essa descoberta da génese do romanc em. solo greco-latino representa algo como a descanonizacéo da eda teoria da prosa e do romance, que os viam como produto ‘lo Renascimento tardio ou do século XVIII, Sob essa 6tica, o romance era algo sem antecedentes, uma espécie de galinha antes do ovo. Cabe ressaltar que, em Mimesis, Au: ch também vé romance ‘no universo greco-latino. Ainda no tocante aos elementos carnavalescos ¢ sua forca vivificante presente nos géneros do sério-cémico, Bakhtin afirma que géneros que guardam uma relacao, ainda que a mais distante, com as tradi¢des do sério-cOmico conservam mesmo em nossos di os fermentos que os distinguem dos demais. Um ouvido sensivel percebe essa ligagao. ‘Tratando-se especialmente da literatura brasileira, uma leitura atenta de Memérias Péstumas de Brés Cubas, de Machado de Assis, de Incidente em Antares, de Brico Verissimo, de Macunaima e “Peru de Natal”, de Mario de Andrade, s6 para citar alguns, & luz de VIII varios constituintes da sétira menipeia, provaria a grande atuali- dade do sério-cémico referida por Bakhtin. A tradigao carnavalesca tem uma fortissima presenca na literatura brasileira. O dialogismo, teoria do diseurso que constitui o fundamento maior de Problemas da poética de Dostoiévski, seria de grande eficiéneia para a andlise Dialogismo e polifonia mas da postica de Dostoiéuski revela um autor que se ‘acteriza pelo mais absoluto destemor teérico, fato que se mani- festa de imediato na maneira ousada e inusitada com que Bakhtin discute a fungao do autor na obra dostoievskiana. Desenvolvida traz um amplo levantamento do que a critica produziu de mais importante sobre Dostoiévski), sua abordagem desconcerta o leitor de formacéo teérica mais ou menos tradicional com uma novidade tao inusitada como a posicdo do autor no romance polifé- ido por Dostoiévski, Trata-se da posigao de distanciamento ¢nenokhodémost), que permite ao autor assumir o grau le objetividade em relacdo 20 universo representado e as criaturas que 0 povoam (note-se que, apesar de haver um ou outro trago do proprio Dostoiévski em algumas de suas personagens, ode ser considerada um alter e, 1a concepgao do distanciamento levaré Bak afirmar que “o autor-artista” ndo inventa a personagem, “ele a pré-encontra jai dada independentemente do seu ato puramente le gerar de si mesmo a personagem”, pois “esta 10 romance, como na vida, os personagens é que se nos impoem, ‘A razéo esta com Monsieur Gide: “eles nascem e crescem por si, procuram 0 autor, insinuam-se-lhe no espirito”.* Trata-se, pois, da concepgao de personagem como persona do mundo real, que cabe José Olympio, 1979, p. TL a0 autor enformar, convencionando-a como personagem, mas sem esquecer sua autonomia como criatura do mundo real. Em PPD, Bakhtin parte da hipétese segundo a qual as personagens de Dostoiévski revelam independéncia interior em relacéo ao autor na estrutura do romance, independéncia essa que, em certos momentos, permite-Ihes até rebelar-se contra seu criador. Cabe observar, porém, que se trata mais de uma independéncia em face de definigdes conclusivas ¢ modelantes, que desprezariam a con- digo de persona das personagens, a sua independéncia psicoldgica ¢ intelectual e suas individualidades como sujeitos representantes do universo social plural e dotados de consciéncias igualmente plurais. Tais definigdes procurariam resolver tudo no ambito de ‘uma tinica consciéneia—a do autor -,e tornariam essas personagens simples marionetes ¢ objeto cego da agéo do autor, carentes de iniciativa propria no plano da linguagem, surdas a vozes que nao fossem mera irradiagao da voz e da consciéneia do autor. Em Dostoiévski, cujo universo é plural, a representagdo das perso- nagens é, acima de tudo, a representagio de consciéncias plur nunea da consciéneia de um ed de muitas cons Tnterlocutores, ndo be objetiticam, sto & nose tornam objeto dos discursos dos outros falantes nem do préprio autor e produzem o que Bakhtin chama de grande didlogo do romance. Ele efetivamente admit jencia das personagens em relacao ao autor na obra dostoievskiana, mas deixa claro que, sendo dialégica a totalidade no romance dostoievskiano, o autor também participa do didlogo, mas 6 a0 mesmo tempo. coro de vozes, que participam do grande didlogo do romance mas mantendo a prépria individualidade. Portanto, por maiores que sejam a liberdade e a independéncia das personagens, serao sempro relativas, e nunca se situam fora do plano do autor, que, sendo “a consciéneia das consciéncias”, promove-as como estratégia de construcio dos seus romances, em que as vozes miltiplas dao 0 tom de toda a sua arquitetonica. Porque, segundo Bakhtin, Dostoiévski nao cria escravos mudos (eomo o faz Zeus), mas pessoas livres, capazes de colocar-se lado a lado com seu eriador, dediscordar dele e até de rebelar-se contra ele. Bem mais tarde, em “Esboco de x reformulagéo de PPD” (1961), Bakhtin compara o autor a Prome- teu e diz.que ele cria, ou melhor, recria (sic!) seres vivos com os quais vem a encontrar-se em isonomia. Nao pode ct descobriu o que difere o individuo de tudo o que ni Este est imune ao poder do existir. Nessa visio sao inconclusfveis como individuos imunes ao efeito redutor e modelador das leis da existéncia imediata. Esta se fecha em dado momento, ao passo que o homem avanga sempre ¢ esté sompre perto a mudancas decorrentes da sua condicdo de estar no mundo agente, como sujeito, O homem-personagem é produto e 1g0 com outros antes ¢ com o seu criador, Nessa arquitetura de construgao do universo polifénico do romance, o discurso da personagem © o discurso sobre a personagem derivam do tratamento dialégico que se assenta em uma posicdo de abertura em face de si mesma e do outro, deixando a este liberdade suficiente para se manifestar como articulador do seu proprio discurso, vefculo da sua cons- dual. Porque, como entende Bakhtin, o enfoque dia- nico de Dostoiévski recai sobre personagens- \dividuos que resistem ao conhecimento objetificante e s6 se reve- lam na forma livre do diélogo tu-eu. Aqui o autor participa do diglogo, em isonomia com as personagens, mas exerce fungdes complementares muito complexas, uma espécie de correia de trans- missdo entre o didlogo ideal da obra e o diélogo real da realidade, Portanto, Bakhtin reitera a presenga indispensavel do autor na ‘ucdo do objeto estético ¢ sua posi¢ao especialfssima na nica do romance especificamente polifonico. Dostoiévski conhece a fundo a alma humana, sabe que o universo humano é constituido de seres cuja caracteristica mais marcante é a diversidade de personalidades, pontos de vista, posi¢des ideol6- rnia, gostos, manias, léncia, timidez, incia da diversidade de caracteres dos seres humanos como intes de um vasto universo social em formagao decorrem las vozes que o representam, razéo por que Dastoiévski aguca ao méximo o seu ouvido, ausculta as vores desse universo xT social como um diélogo sem fim, no qual vozes do pasado se cruzam ‘com vozes do presente e fazem seus ecos se propagarem no sentido do futuro. Daf a impossibilidade do acabamento, dai o discurso polifénico ser sempre o discurso em aberto, o diseurso das questoes no resolvidas. © didlogo do autor com o herdi é, no romance polifénico de Dostoiévski, um procedimento de construeao das personagens €, 0 mesmo tempo, a afirmacdo da presenca ndo ostensiva, porém eficaz, do autor nesse proceso. Sem ferir jamais a integridade da te do arranjo polifoni mento polifonico de Dostoiévski tampouco apaga ou neutraliza a presenga do autor e sua coneepcéio ativa no conjunto romanesco, conseguindo, ao contrério, criar condi¢ao efetivamente nova e origi- nal de materializagdo dessa presenga e dessa concepgso na estrutura do didlogo polifnico. A Bakhtin o que 6 de Bakhtin As primeiras contribuigées para a divulgacao de Bakhtin entre nés no campo especifico da reflexao sobre literatura e cultura vieram de José Guilherme Merqi Schnaider- mann. A estes se somaram, m se outras contribuicdes bastante pessoais de Beth Brait, José Luis Fiorin e alguns outros. Salvo engano, a primeira leitura de Bakhtin por Julia Kristeva que chegou ao Brasil foi seu prefaicio a La Poétique de Dosioieuski, obra publicada em Paris em 1970 com o titulo podado. Em 1967 ela ja publicara na dialogue et le roman’ Recherches pour une Sémanalyse, traduzido no Brasil como Intro- dugao a uma Semandlise.' Ninguém nega os méritos de Kristeva (ede'T. Todorav) na “descoberta” de Bakhtin para o pablico francés, mento da teoria de Bakhtin. Por essa razéo, alguns conceitos emitidos em Introducdo a uma Semandilise (cay 1 Julia Kriste na F Ferraz. 2. Introduciio « uma Semanélise. Tradugao de Liicia Hele- Sio Paulo: Perspectiva, 2005. XI romance”) requerem discuss4o, Depois de situar Bakhtin no (p. 66) como “uma das mais que 86 considera algumas poucas semelhangas mas néo percebe as enormes diferencas entre os dois modos de pensar a literatura ea Itura ~ fato exaustivamente enfatizado por Bakhtin no primeiro capitulo de Questies de Literatura e Estética), Kristeva lhe atribui “dinamizacéo do estruturalismo” e manterd sempre a visio ista, a despeito da diferenca radical ‘tre a maneira bakhtiniana de pensar e 0 método estrutu- énfase reducionista no texto e na personagem jana do dialogismo) com texto, Kristeva afirma (p. 68): “todo texto se constréi como mosaico de citagées, todo texto é absorcdo e trans- formagéo de outro texto, Em lugar da nogao de intersubjetividade, E aereseenta (p. 71): dialogismo bakhtiniano designa a escritura simultaneamente como subjetividade e como comunicatividade, ou melhor, como intertex- tualidade; em face desse di que 0 enfoque de Bakhtin por Kristeva ¢ linguistico, pois o duplo, que na reflexdo bakhtiniana 6 produto da interacdo dialégica entre personage: opr inguistiea)” (sic! ~ P B.) eseré “a sequéncia minimal da semistica paradigmatica que se elaboraria a partir de Saussure (Anagramas) Entio, temos uma fusdo de Saussure com Bakhtin? Mas Bakhtin que a diade saussureana falante-ouvinte é uma ficedo, uma vex fluxo tinico da fala”, ao passo que o ouvinte € totalmente passivo, 6 sé ouvinte (diga-se, fungao! ~ P. B.), nunea al. Logo, como é possivel a comuni- cago se s6 um fala? Belktihéo considera que os esquemas de russure sejam falsos e inaplicaveis a certos momentos da reali- iscurso.Por isso afirma que os esquemas saussureanos se tornam “ficgao Sea quando passam a objeto real da. comunicacéo enunciado vivo é de natureza ativamente responsive preensio é prenhe de resposta... 0 ouvinte se to Bakhtin esta se referindo ao proce: entre um falante e um ouvinte, mas 0 mesmo processo se verifica em si, consumir, esgotar, exaurir”? Ora, para Bakhtin, o outro néo se esgota em mim nem eu no outro; intercompletam-se, mas cada um sempre deixa algum excedente de si mesmo. E transformar 0 outro pela absorgao ¢ torné-o objeto exclusivo de mim mesmo, de é 6 negar-lhe minha prépria vontade, em sum: me convém. Ora, isso é acabamento, é fechamento do outro na definigao que faco dele. Isso 6 0 oposto do que propoe Bakhtin, paradoxo que aparece na reflexao de Kristeva acer- ygismo, Se a intertextualidade substitui a “intersubjetivi- im lugar da nogéo de intersubjetividade, instala-se a de am na intertextualidade sao entidades desprovidas de subjetividade. Ent€o, como entender que “o dialogismo bakhtiniano designa a escritura simultaneamente como subjetividade e como comunica- tividade, ou melhor, como intertextualidade”? Como entender isso? Sena primeira definigao afasta-se a intersubjetividade ena segunda ela esté presente (pois a comunicatividade presssupée reciprocidade 1 M.Bakhtin. kstética da C» Paulo: Martins Fontes, 201 2 Did. riagdo Verbal. Tradugio do Paulo Bezerra. So e271. © nao pode dispensar o prefixo “inter”, logo a subjetividade vira \tersubjetividade), entao na primeira a intertextualidade nao 6 logismo”, sendo-o apenas na segunda? Como entender esse paradoxo? Com qual das duas definicoes devemos ficar? O ponto de partida do referido texto de Kristeva, objeto do nosso comentario, é 0 livro PPD, ao qual ela dé um enfoque predominan- stico. Uma vez que ela substitui palavra por texto e dialogismo por intertextualidade, e a palavra, 0 discurso em inte- racdo com outros discursos é a base do dialogismo bakhtiniano, proprio Bakhtin atribui ao texto nas Dostoiévski”, ele afirma que ndo se pode enfocar 0 lo dialégico dos discursos “por critérios genuinamente linguis- , pois as relagées dialégicas “nao pertencem a um campo ge- re os textos” em uma pers- ois elas pertencem ao campo , Fazio por que “devem sor mo Bakhtin acalentava 0 inguistica, trading inadequaa que Kristeva faz.do conceito de Bakhtin com a finalidade nada disfareada de reduzir-Ihe o pensa- mento a mais uma corrente da linguistica), eesta seria uma interagao dialégica daquelas disciplinas, o discurso literdrio, eom as relagies dialégicas que 0 sedimentam, seria objeto de estudo de uma nova teoria da cultura, assentadaem fundamentos interdisciplinares e eapaz contemplar um vasto leque de formas humanas de pensar e agir. | teoria seria um antidoto aos reducionismos de que tem sido vitima pensamento do préprio Bakhtin. Admitindo o enfoque predomi- intemente lin da teoria bakhtiniana do discurso romanesco ialogismo) por Kristeva, ndo estarfamos repetindo a diade saus- rreana falante-ouvinte, na qual, segundo Bakhtin, o ouvinte nunca lante, ja que no esquema de Kristeva (intertextualidade) quem apropria do texto do outro ou nao da voz a esse outro ou apenas 1M. Bakhtin. Problemas da Poética de Dostoiévshi. Tradugéa de Paulo Bezerva. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitaria, 2002, p. 182-183, xv ‘usa como autoridade para respaldar um pensamento do apropria- dor? Em qualquer dos casos, haveria apagamento da voz de uma das partes, restando apenas um falante, e 0 didlogo (ou “intertex- tualidade”) simplesmente se evaporaria. O reducionismo linguistico com que Kristeva enfoca a teoria dialégica de Bakhtin chega a0 pice quando ola afirma que “o jogo dialégico da (.81). Que relacio haveria entre esse “jogo dial6gico redundando em um “significado” e a propria reflexao tedrica de Bakhtin? Ora, em Estética da Criagao Verbal, o proprio Bakhtin afirma que “o significado est exclufdo do didlogo”. Mesmo admitindo ai que icado existe uma “poténcia de sentido”, responde a certas perguntas”, ao passo que responde se afigura sem sentido, afastado do que “0 significado esta afastado do didlogo”.\ Poder-se- cender com Kristeva, jé que na referida passagem seu se refere ao épico como discurso monoldgico, o que corresponde ao pensamento de Bakhtin, Contudo Homero como objeto especifico de sua reflexdo sobre o épico, ao passo que Kristeva (que nao refere nenhuma obra) fala do épico em geral. Eu, pessoalmente, acho que em relacdo a Iliada 0 monolo- gismo bakhtiniano est corretissimo, mas j4 penso diferente no que tange a A Odisseia, Mas vejamos Virgilio, por exemplo, Ser que, ao “fundir” em sua Eneida a Mfada e A Odisseia tomado essas obras como mera “permutacéo” de d ficantes” em um grande “significado”, fechando, restrin, isso o universo de suas significagies e privando-as da transcen- déncia, questo essencialissima para a literatura, ou teria esta- belecido um grande dislogo com elas no contexto de outra época e de outra cultura ~ a cultura latina? Porque, contrariando o que Kristeva entende por textos (intertextualidade), para Bakhtin “o texto 6 tem vida contatando com outro texto (contexto)”,? vale 1M, Bakhtin, Estétion da Criagdo Verbal, p. 381 2 Ibid.,p.a01. xv dizer, na mediagao de Virgflio nao é seu texto, mas o contexto, a cultura latina de sua époea que, por necessidade de afirmar-se como eu, estabelece um grande didlogo com a grega como seu outro na distancia (12 séculos apds a guerra de Troia e sete a oito séculos depois de Homero), na transcendéncia espacotemporal, isto é no “grande tempo — didlogo inacabado em que nenhum sentido morre”.! 0 mesmo poderiamos dizer de Camées em Os Lusiad¢ que, movido pela necessidade de resgatar 0 passado hist6rico portugués em um momento de profunda crise e afirmar o ew de sua cultura em didlogo com Virgilio (e outras fontes antigas), revivifica na distancia, no contexto portugués de sua época; o8 sen- tidos do passado, aqueles sentidos que, “nascidos dos diélogos dos, séculos passados”, nao “podem jamais ser estaveis (concluidos, acabados de uma vez por todas)”, pois sempre haverdo de mudar ¢ renovar-se no eterno processo de dilogo entre as culturas, no qual “existem massas imensas ¢ ilimitadas de sentidos esquecidos” que, jo obstante, “sero relembrados e reviverao em forma renovada”* Portanto, é 0 sentido e nao o “significado” que permite a transcen- déncia espacotemporal da cultura e da literatura, Assim, o monolo- gismo que Kristeva aplica dogmaticamente ao pico em goral ¢ dela, ndo de Bakhtin Segundo Kristeva, em face do dialogismo bakhtiniano como intertextualidade, “a nocdo de pessoa-sujeito da escritura comeca ase esfumar”. Essa afirmacdo esta em flagrante contradicdo com pensamento de Bakhtin, que sempre enfatiza 0 papel do sujeito, quer como autor em todas as insténcias do processo de criag: quer como leitor, Como autor, nés 0 “encontramos (percebemos, compreendemos, sentimos, temos a sensagao del qualquer obra de arte... Nés o sentimos em tu tador puro (0 sujeito representadi consciéncia, a conseiéneia do interpretad pode ser climinada ou neutralizada”. Para ele, o texto é um enunciado, 0 dislogo entre textos é um didlogo entre enunciados, e por tras do enunciado existe o falante, 0 sujeito dotado de consciéneia. “Por tras desse contato esté o contato entre individuos, e nao entre coisas. 1 Bid.,p. 409, 2 Ibid., p. 410. 3 Bid., p. 410, XVI Se transformarmos 0 didlogo em um texto continuo, isto 6, se apagarmos as divisdes das vozes (a alternancia de sujeitos falantes)... o sentido profundo (infinito) desaparecer4 (bateremos contra o fundo, poremos um ponto morto.”! Assim, por trés do texto sempre ha vozes, uma linguagem, sendo ele “nao seria um texto, mas um fendmeno das ciéncias naturais”, “o acontecimento 0 6, a sua verdadeira esséneia, sempre se desenvolve na fronteira de duas consciéncias, de dois sujeitos”.* Essa mesma reiteracao da presenga do sujeito perpassa toda a reflexio em torno do dialogismo em PPD e no restante da obra de Bakhtin. Como, pois, conciliar essa defesa explicita do autor como sujeito com a afirmacio de Kristeva, segundo a qual 0 autor em Bakhtin atinge o estigio de “zero”, de negacéo, de exclusio? (p. 79). Portanto, em que obra bakhtiniana esse sujeito “se esfuma”? serd que Bakhtin no entendeu a prépria obra? Certamente inspi- rada em Kristeva, uma pesquisadora brasileira (bastante respei- tével!) descobriu 0 “deslocamento do sujeito” em Bakhtin. Mas deslocamento de onde? E para onde? Mais um pouco e estaremos no besteirol pds-moderno da “morte do autor”, ja presente em Kristeva, a obra literdria, O objeto imediato e fonte do dialogismo bakhtiniano 6a obra de Dostoiévski, na qual o didlogo entre as personagens 6 uma luta entre pontos de vista e juizos de valor, na qual cada perso- nagem-voz ora mira em torno ein uma polémica velada com outra ou outras , ora as enfrenta no dilogo direto, ¢ em ambos os processos cada uma procura fazer prevalecer seus Pontos de vista sobre si mesma e sobre 0 mundo, externados por suas vozes. Ji em Gente Pobre, primeiro romance de Dostoiévski, seu protagonista Makar Diévuchkin se sente ofendido pelo simples olhar do chefe e cria uma verdadeira diatribe, isto é, um didlogo (Gem texto do outro) com seu interlocutor ausente. Goliddkin, protagonista de O Duplo, na sua caréneia de convivio social, 1 Ibid. p. 401. 2 Ibid, p. 311. XVII imagina-se convidado a uma festa na casa de seu chefe, entra pela porta dos fundos, 6 expulso, e uma vez. expulso do festim dos homens cria um duplo que ir realizar na “vida real” tudo o que ele sonhara e com o qual desenvolver um acirrado didlogo (sem texto uma intensa luta de pontos de vista sobre si mesmo. ‘ov, protagonista de Crime e Castigo, revoltado contra a injustiga social, vé em Napoleao uma espécie de responsdvel por tal injustica, mata uma velha usuréria por vé-la como desdo- bramento de Napoledo e, ao longo de todo o romance, dialoga intensamente com ele (sem texto do outro) a respeito do assassinat davelha. Em Os Irmaos Karamdzou, Ivan, “consciéneia profunda” ¢ protagonista marcado por uma filosofia ética, desenvolve a seguinte tese existe imortalidade, no existe virtude, portanto, tudo é permitido. As palavras de Ivan penetram fando na consciéncia de Smierdiak6y, abrindo nesta uma fissura. ‘Smierdiak6v, seu irmao desprovido de ética e sentido desse pregacdo do parricidio e acaba por matar o pai. Assim, 0 Ivan ético cria (pelo discurso!) um duplo aético. Entretanto, no didlogo com Smierdiak6v, apés o parricidio este afirma reiterada- ‘mente que apenas cumpriu a vontade de Ivan. As palavras daquele penetram jéncia deste, criando af uma insuportavel tensio, e quando Ivan descobre que o “réptil” Smierdiakév é seu outro, seu duplo, sofre um profundo distarbio mental. Seria possivel dar conta de tamanha tenséo no interior da obra literdria partindo da “intertextualidade”? Ao substitur voz por -xto, Kristeva nao teria como explicar esse diélogo entre vozes. ‘Talvez isso explique a auséneia de qualquer mengdo a personagens ‘em seu ensaio, assim como a leitura de qualquer obra literéria que Ihe permita “reformular” a seu modo a teoria de Bakhtin, Limi sea afirmar e reafirmar, sem jamais apontar a razao, que Tolsti ‘monol6gico, repetindo afirmagao similar que Bakhtin fez a respeito de Tolstéi. Em PPD, Bakhtin analisou o conto de Tolstsi As Trés Mortes e demonstou cabalmente seu monologismo. No entanto, no tocante aos romances de Tolstéi considero essa tese de Bakhtin muito discutivel e acho dificil comprovar tal monologismo em um, romance como Guerra e Paz, por exemplo. Kristeva tampouco demonstra conhecer Dostoiévski, obje do dialogismo bakhtiniano. Entretanto, cor de conhecimento do fundamento de uma teoria na reflexaode quem pretende substitui-la por sua propria “teoria”? Parafraseando um grande mestre uspiano, o que atrapalha a reflexdo tedrica sobre literatura é uma tal de literatura. Na abertura de seu notdvel livro A Personalidade de Dostoi Boris Bartzov escreve: “O tipo mais desagradavel de arrogi acentuadamente no campo de toda a literatura universal.”! Guardadas as devidas proporgoes, 2s palavras de Burtzov se aplicam a Bakhti Kristeva e ao que dela deriva em termos de interpretacio da obra de Bakhtin, Em 1998, Kristeva deu uma entrevista a C, Thomp- son (publicada pela revista canadense Recherches Sémiotiques.... niimero especial “Bakhtine et l'avenir des signes, p. 15-29, 1998 — Association Canadienne de Sémiotique), mais traduzida para o russo e publicada pela revista Dialog, Karnaval, Krhonotop (DKK ~ n. 1, 2002), . de reclamar que os bakhti Ocidente), wa afirma que adaptou Bakhtin no contexto francés e para o leitor frane@s, e sem essa “adaptagao” Bakhtin “poderia parecer algo oriundo do folclore russo e nao suscitari interesse que suscita hoje” (p. 114). Conclusdo: sem a “adaptacai de Kristeva, Bakhtin nao teria saido do limbo russo. Quanta empéfia! Que desrespeito a inteligéncia dos franceses! Que falta de respeito pelo cara ao préprio Bakhtin! No Brasil, essa “adaptacdo” vem contribuindo para a deformagio do pensamento bakhtiniano em escala temivel. Citemos ao menos ‘um exemplo. No livro Intertextualidades (Belo Horizonte: Lé, 1995), de G, Paulino, I. Walty e M. Z. Cury, lemos: “a intertextualidade foi estudada primeiramente pelo pensador russo Mikhail Bak (p. 21), Eas autoras citam minha tradueao de PPD como fonte biblio- 1B, Burtzov. Litehnost Dostoievekovo (A Personalidade de Dostoiévski) Moscou: Soviétski Pissétiel, 1974, p. 5. Em que pagina do livro aparece o termo “intertextualidade”, imas caras-palidas, que eu, 0 tradutor, nunca o encontrei? , Kristeva afirma (p. 114) que fez de um “interlocutor da moderna teoria dos anos sessenta e que a linguistica © fundamento profundo do Quanto @ mim, em tudo eu icas entre elas... No estruturalismo, * Quanto a psicanélise, Bakhtin dela se distingue porque, ao longo de toda a sua obra, sempre enfatiza como essencial a questao da consciéneia. “A consciéneia 6 muito mais terrivel que quaisquer complexos ineonscientes, jue leva em conta os eonceitos de carnaval e polifonia, considerando is elaboragées freudianas nao preciso voltar sempre a Bakhtin... Porque me parece... que, partindo daquele psiquismo conflituoso que se revela durante as sessies de psicandlise, o que posso desenvolver com base em casos clinieos avanga bem mais do que as intuigdes bakhtinianas” (p. 119). Portanto, Kristeva transforma em um banal procedimento clinico a teoria do carnaval, grandiosa contribuigao bakhtiniana para a teoria da literatura e da cultura. Assim, aplica-se perfeitamente a Kristeva a afirmacio de Bakhtin obre o estruturalismo: “no estruturalismo existe apenas um sujeito: isteva com sua intertextualidade. Nao ha sujeito falante, nao ha vozes nem relacées dialégicas entre elas, ha apenas texto. Nenhuma contribuicao para o entendimento de Bakhtin, lo”, ela produz uma leitura reducionista e uma M. Balehtin, 2 Ibid, p. 343. tétiea da Criagao Verbal, p. 409-410, deformagio grosseira, pretensiosa e arrogante da teoria bakhtiniana, arvorando-se do direito de mudar conceitos, fato gravissimo que desnatura uma teoria e pode reduzi-la a metéfora. dialogismo, esséncia do pensamento filoséfico bakhtiniano e fundamento de Problemas da Poética de Dostoiéuski, permite acompanhar as tenses no interior da obra literdria, as relagées in- terdiscursivas e intersubjetivas, as intengdes ocultas das personagens, © didlogo entre culturas como esséncia da literatura, a luta entre tendéncias e “escolas literdrias”, entre vozes como pontos de vista sobre o mundo, o homem ea cultura, Na 6tica do dialogismo, a cons- ciéneia néo 6 produto de um eu isolado, mas da interagao edo convivio entre muitas consciéneias, que participam desse convivio com iguais direitos como personas, respeitando os valores dos outros que igual- mente respeitam os seus. Eu tomo consciéncia de mim mesmo e me torno eu mesmo s6 me revelando para o outro, nao posso passar sem © outro, nfo posso construir para mim uma relago sem 0 outro, que éarrealidade que, por minha prépria formagéo, trago dentro de mim, exerce um profundo ativismo em relagéo a mim. Essa relativizagio de mim mesmo é o que me permite ver 0 mundo fora de mim mesmo, construir minha autoconsciéneia, nao me colocar acima do outro, ser nuto-humanizado, entender © outro como parte de mim mess como parte dele, tirando-me do isolamento, que é a morte (veja-se a que desespero o isolamento leva personagens dostoievskianas como Makar Diévuchkin, de Gente Duplo, Raskélnikoy, de Crime e Castigo, se mata em Os Deménios, etc.), permitindo-me mo é uma visio de mundo, uma filosofia que mostra o individualismo exacerbado como impasse ¢ 0 culto desse individualismo como tragédia. Dai a necessidade do didlogo como superagao dos impasses da exis- téncia e sua representacao na literatura, dai a importéncia funda- Sumario Introdugio. ice polifonico de Dostoiévski e seu renfoouey na teraria i 2 nna <5 87 iaridades do género, do enredo e da composigio s de Dostoiévski 7 115 0 discurso em Dostoiéwski =: soe 207 de discurso na prosa. O discurso |. 0 discurso do herdi e 0 diseurso do narrador nos mances de Dost cnt ogo em Dostoi 274 292 O discurso em Dostoiévski 1. Tipos de Diseurso na Prosa. 0 Discurso Dostoievskiano Algumas observagies metodolégicas prévias. Intitulamos este capitulo “O discurso em Dostoiévski” porque temos om vista 0 discurso, ou seja, a lingua em sua integridade concreta viva, e néo a lingua como objeto especifico da linguistiea, obtido por meio de uma abstragdo absolutamente legitima e necessaria de alguns. aspectos da vida concreta do discurso. Mas sao justamente esses aspectos, abstraidos pela linguistica, os que tém importéncia primor- dial para os nossos fins. Por esse motivo as nossas anélises subse~ quenites nao séo linguisticas no sentido rigoroso do termo. Podem ser | situadas na metalinguistica, subentendendo-a como um estudo—ainda nao constituido em disciplinas particulares definidas ~ daqueles {— aspectos da vida do discurso que ultrapassam — de modo absolutamente legitimo — os limites da linguistica. As pesquisas metalinguisticas, evidentemente, néo podem ignorar a linguistica e devem apliear os seus resultados. A linguistica e a metalinguistica estudam um mesmo fenémeno coneréto, muito complexo e multifacético - 0 diseurso — mas estudam sob difererites aspectos e diferentes Angulos de visio. Devem completar-se mutuamente, e néo se fundir. Na prética, os limites entre elas 840 violados com muita frequéncia. 207 10 ponto de vista da linguistica pura, entre 0 uso monolégico e polifonico do discurso na literatura de fiegdo nao se devem ver quais- quer diferengas realmente essenciais. Por exemplo, no romance poli- fonico de Dostoiéysksi ha bem menos diferenciacio linguistiea ~ ou seja, diversos estilos de linguagem, dialetos territoriais e sociais, jargdes profissionais, ete. — do que em muitos escritores de obras centradas no mondlo Muitos, inclusive L. Tolstéi, acusaram Dostoiévski dessa uniformi- dade da Ocorre, porém, que a diferenciagéo da linguagem eas acentuadas “caracteristicas do discurso” dos herdis tém precisamente maior significacao artfstica para a criagéo das imagens objetificadas e acabadas das pessoas. Quanto mais coi mais acentuadamente se manifesta a fisionomia da sua linguagem. No romance polifénico, o valor da variedade da linguagem ¢ das caracteristicas do discurso 6 mantido, se bem que esse valor diminui e, 0 mais importante, modificam-se as fungées artisticas desses fenémenos. O problema néo esti na existéncia de certos estilos de linguagem, a ber sob que fingulo dialogico eles confrontam ou se opdem na obra. ‘Mas 6 precisamente esse Angulo di estabelecid io de crité Jégico que nao pode ser genuinamente linguiaticos, porque com sua propria fala) sao objetos da metalinguistica. Mas aqui esta- mos interessados precisamente nessas relagdes, que determinam jaridades da construgéo da linguagem nas obras de sintéticas, por exemplo, entre as oragies vistas de uma perspectiva rigorosamente lingufstica. ‘Nao pode haver relacées dialégicas tampouco entre os textos, vistos também sob uma perspectiva rigorosamente lingufstica, Qualquer confronto puramente linguistico ou grupamento de quaisquer textos abstrai forosamente todas as relagées dialégicas entre eles enquanto enunciados integrais. guistica conhece, evidentemente, a forma composicional do “discurso dialégico” e estuda as suas particularidades sintaticas léxico- semanticas, Mas ela as estuda como fendmenos puramente lin- gufsticos, ou seja, no plano da lingua, e nao pode abordar, em hipétese alguma, a especificidade das relacoes dialégicas entre as réplicas. Por isso, ao estudar 0 “discurso dialégico”, a Linguistica deve aproveitar 0s resultados da metalingufstica. ‘Assim, as relagées dial6gicas sfio extralinguisticas. Ao mesmo tempo, porém, nio podem ger separadas do campo do discurso, ou seja, da Iingua como fendmeno integral concreto. A linguagem s6 vive na comunicagéo dialégica daqueles que a usam. f precisamente essa comunicagao dialégica que constitui o verdadeiro campo da vida da linguagem. Toda a vida da linguagem, seja qual for o seu campo de nguagem cotidiana, a prética, a cientifica, a artistica, gnada de relagbes dial6gicas. Mas a linguistica estuda a “linguagem” propriamente dita com sua légica especifica na sua _generalidade, como algo que torna. possivel a comunicagao dial6gica, pois ela abstrai consequentemente as relagées propriamente dialogicas. Essas relacdes se situam no campo do discurso, pois este é por natureza dial6gico e, por isso, tais relagoes devem ser estudadas pela metalin- guistica, que ultrapassa os limites da linguistica e possui objeto autdnomo e metas proprias, ‘As relagoes dial6gicas sdo irredutfveis as relacSes légicas ou as con- creto-seménticas, que por si mesmas carecem de momento dialogico. Devem personificar-se na linguagem, tornar-se enunciados, converter~ se em posigdes de diferentes sujeitos expressas na linguagem para que entre eles possam surgir relagées dialégicas. “A vida 6 boa.” “A vida nao 6 boa.” Estamos diante de dois juizos revestidos de determinada forma lgica e um contetido concreto- seméntico (juizos filos6ficos acerca do valor da vida) definido. Entre ‘ossos juizos ha certa relagio légica: um é a negacdo do outro. Mas entre eles nao hé nem pode haver quaisquer relagbes dialégicas, eles 209 henesoee> b 7 weunt absolutamente entre si (embora possam propiciar matéria concreta e fundamento légico para a juizos devem materializar-se para que possa surgir relagao dialégica entre clos ou tratamento dialégico deles. Assi i . Assim, esse 20s, com uma tase euma antivese, eS que expresse a posicao di entao surgirao entre eles relacdes dial6gic gicas. bet ‘A vida 6 boa.” Estamos diante de dois juizos absolutamente idénticos, em esséncia, diante de um tinico juizo, escrito (ou pronunciado) por duas vezes, mas es i materializagao da palavra, e nao ao pré} podemos falar de relagdo légica de identidade entre dois juizos. Mas 80 esse juizo puder expressar-se em duas enunciagées de dois diferentes sujeitos, entre elas surgirdo relagbes dialdgicas (acordo, confirmacéo). i oo ‘relagdes dial6gicas sao absolutamente impo: ‘is sem relagdes égicas e concreto-semanticas, mas sao irt ih ieee ‘redutiveis a estas e tém Para se tornarem dialégicas, i a8 s légicas e concreto- semanticas devem, tomo jd dissemos, materializar-se, ou seja, deve passa a outro campoda existéncia, deve tomar dseurso ou se enunciado, e ganhar au iador 1 posigao teen gar utor, criador de dado enunciado cuja posigao Nesse sentido, todo enunciado tem uma ido, lo espécie de autor, que no ee enunciado escutamos como o seu criador. Podemos ae al elueementa nada sobre o autor real, como ele existe fora do ny ci 2 lo. As formas dessa autoria real podem ser muito diversas. obra qualquer pode ser produto de um trabalho de equipe, pode ser interpretada como trabalho hereditario de varias geragbes,ete.,, spesar de tudo, entimos mela uma vontade criativa ini, ‘uma posicéo leterminada diante da qual se pode reagir dialogicamen A dialogion pone pe ‘eagir icamente. A reacio ‘ indo apenas entre enunciagd tivamente), mas o enfoque dinibglen oasa ela als ter inte do enunciado, inclusive a uma palavra isolada, caso esta ndo seja interpretada como palavra impessoal da lingua, mas como signo da posicdo semAntica de um outro, como representante do enunciado de um outro, ou seja, se ouvimos nela a voz do outro, 210 Por isso, as relagées dialégicas podem penetrar no mago do enunciado, inclusive no intimo de uma palavra isolada se nela se chocam dialogica- mente duas vozes (o microdidlogo de que ja tivemos oportunidade de falar). Por outro lado, as relagées dialégicas sao possfveis também entre os estilos de linguagem, os dialetos sociais, ete., desde que eles sejam entendidos como certas posiges semAnticas, como uma espécie de cosmoviséo da linguagem, isto 6, numa abordagem nfo mais ling a ‘as relagdes dialégicas so possfveis também com a sua propria enunciacao como um todo, com partes isoladas desse todo e com uma palavra isolada nele, se de algum modo nés nos se- paramos dessas relagées, falamos com ressalva interna, mantemos distancia em face delas, como que mos ou desdobramos a nossa autoridade. "Lembremos para concluir que, numa abordagem ampla das relagbes dialdgicas, estas so possiveis também entre outros fendmenos cons- cientizados desde que estes estejam expressos numa matéria signica. Por exomplo, as relagées dialégicas sao possiveis entre imagens de outras artes, mas essas relagbes ultrapassam os limites da meta- Tingufstica. © objeto principal do nosso exame, pode-se dizer, seu heréi princi- pal, 60 discurso bivocal, que surge inevitavelmente sob as condigdes da com 40 dialégica, ou seja, nas condigées da vida auténtica da palavra. A linguistiea desconhece esse discurso bivocal, Mas, achamos, 6 precisamente ela que deve tornar-se o objeto principal de estudo da metalinguistica. "Aqui concluimos as nossas observacbes metodolégicas prévias. O que temos em vista seré aclarado pelas nossa anélises concretas subsequentes. Existe um conjunto de fenémenos do discurso-arte que h muito tempo vem chamando a atengao de criticos literarios ¢ linguistas. Por sua natureza, esses fendmenos ultrapassam 0s limites da linguistica, isto 6, so fendmenos metalingufsticos. Trata-se da estilizagdo, da parédia, do skaz’ e do dislogo (composicionalmente expresso, que se desagrega em réplicas). yma pessoa * “Pipo especifico de narrativa estruturado co1 entendida), distanciada do autor (pessoa concretamente aun Apesar das diferencas substanciais, todos esses fenémenos tém um trago comum: aqui a palavra tem duplo sentido, voltado para o objeto do discurso como palavra comum e para um outro discurso, para 0 discurso de wm outro. Se desconhecermos & existéncia desse segundo contexto do discurso do outro e comecarmos a interpretar a estilizacéo ‘ou parédia como interpretamos o discurso comum voltado exclusiva mente para o seu objeto, ndo entenderemos verdadeiramente esses fendémenos: a estilizagéo sera interpretada como estilo, a parédia, simplesinente como obra mé. Essa dupla orientacéo da palavra é menos evidente no skaz e no disilogo (nos limites de uma réplica). As vezes, o skaz pode ter realmente uma 86 orientagéo: aquela voltada para o objeto. Assim também a réplica do didlogo pode tender para uma significagao conereta direta e imediata, Mas, na maioria dos casos, tanto o skaz quanto a réplica esto orientados para o discurso do outro: o skaz, estilizando esse discurso, a réplica, levando-o em conta, corresponidendo-lhe, antecipando-o Os referidos fendmenos tém um significado profimdo e de prin- cipio. Requerem um enfoque totalmente novo do discurso, enfoque esse que ultrapasse os limites da costumeira abordagem estilistica © linguistica. O enfoque comum toma o discurso nos limites de um con- texto monolégico, sendo 0 discurso definido em relacao ao sewobjeto (por exemplo, & teoria dos tropos) ou em relagio a outras pala- vras do mesmo contexto, do mesmo discurso (a estilistica no sentido restrito). I verdade que a lexicologia conhece um tratamento um tanto diferente da palavra. O matiz lexical da palavra, um arcaismo uum regionalismo, por exemplo, sugere outro contexto no qual dada palavra funciona normalmente (a escrita antiga, o discurso regio- nalista), mas esse outro contexto 6 um outro contexto da Imgua, ¢ nao do discurso (no sentido exato), ndo 6 um enunciado estranho, mas um material da Imgua impessoal e nao organizado num enunciado conereto. Mas se 0 matiz lexical for individualizado ao menos até certo ponto, isto é, sugerir algum enunciado de um outro ao qual dada palavra é tomada de empréstimo ou em cujo espfrito ela se constr6i, entao estaremos diante da estilizacao, da parodia ou do um fenomeno de uma forma de discurso propria © sui generis” (Kréthaya 1aya entsiklopédya (Breve Eneiclopédia de Literatura), 1971, v. 6, p. 876). 212 andlogo. Desse modo, a lexicologia também permanece essencialmente nos limites de um contexto monoldgico e conhece apenas a orientagéio direta e imediata da palavra voltada para o objeto, sem levar em conta 6 discurso do outro, 0 segundo contexto. O préprio fato de existirem discursos duplamente orientados, que compreendem como momento indispensavel a relacéo com a enuncia- do de um outro, coloce-nos diante da necessidade de fazer uma classificagéio completa e definitiva dos discursos do ponto de vista desse io desprezado pela estilfstica, a lexicologia e a semantica. I nos convencermos de que, além dos discursos concretamente orientados e dos discursos orientados para o discurso de um outro, existe ainda um tipo. Contudo, os discursos duplamente orientados (que levam em conta o discurso do outro) também prgcisam ser diferenciados, pois englobam fenémenos heterogéneos como a estili- zagéo, a parédia e 0 didlogo. & necessério indicar que estes séo essen- cialmente heterogéneos (do ponto de vista do incipio). Depois, coloca-se inovitavelmente a questéo da p i quais se combinam em um contexto discursos pertencentes a diferentes tipos. Nessa base surgem novos problemas estilisticos até hoje omitidos pela estilistica, E esses problemas so d ia primordial para ‘a compreensao propriamente dita do estil surso da prosa.? ‘Ao lado do discurso referencial direto e im 0 discurso que nomeia, comunica, enuncia, representa -, que visa a interpretacao referencial e direta do objeto (primeiro tipo de discurso), encontramos ainda o discurso representado ou objetificado (segundo tip. i mais tipico e difundido de discurso representado e objetificado ¢ 0 discurso direto dos herdis. Este tem significagéo objetiva imediata, mas nao se situa no mesmo plano ao lado do discurso do autor, ¢ sim wriedsides de “Ko ilustramos com exemplos a classifengto dos tipos ¢ - eee Bi e toievskiana ineurso, pois arTolaremos poetoriormente vasts materia para cada um dos exemplos aqui examinados. * Discurso objetifieado (derivado do obit i. objeto). Trats-se do discurso TG aalfcado or Bakhtin comocbisenoi loco, aproximada- mnonts palavra ou ciscurso-objto, Por tratar-se de produto da construgéo autor proferimoso terme dscursockjetifieado, por ear mals de acordo com a conceituagao balthtiniana j& exposta no primeiro io. Bakhtin emprega ainda ote pradncino napra Contrada na palavra rusta prisdmige, que tanto pode 8 Guanco referent, Por ensayo o taduzimos coo dscuraoreferencal gu diveurso contrado no referente (N. do T para esta edi) 213

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