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MARTIN HEIDEGGER CONFERENCIAS E ESCRITOS FILOSOFICOS NoTA DO TRADUTOR Em nossa época observamos um proceso de despersonalizagdo do filosofar. Em consegiiéncia, a figura do pensador solitério, que empolga e arrasta as massas académi cas, perde em importancia ou tende a desaparecer. Em seu lugar aparecem os trabalhos coletivos e a filosofia assume o papel de regulador de um fecundo labor interdisciplinar. Heidegger tera sido uma das iiltimas grandes figuras que, contra sua vontade pes soal, fornou-se um ponto de partida para diversos debates decisivos no cendrio da filoso- fia académica do séeulo XX. E verdade, 0 fildsofo foi a testemunka de uma época; mais ‘pelo contetido de suas andllises, que pelo estilo pessoal de comportamento. Retirado na provincia, irradiou, através dos alunos de muitos patses do mundo, que o vinham procu- rar, una temédtica que se matizaria, de acordo com os ambientes para onde era levada. Situado entre as duas grandes guerras, envolveu o motivo central de sua interroga- ¢do com uma linguagem muito ao gosto da época e com andlises hist6ricas e existenciais, que pareciam refletir a angtistia do mundo de entao. O jargdo expressionista e o elemento patético de certos temas de sua obra capital, Ser ¢ Tempo. foram tdo rapidamente assimi- Jados que terminariam encobrindo a questéo, central que movia as intengdes do filésofo: 4 questdo do ser. Néo foi esta, mas aspectos existenciais, antropoldgicos, éticos que for. ‘maram a moldura em que foi recebido Ser e Tempo, antes e sobretudo, apos a Il Guerra Mundial. Para melhor compreender a posiedo do pensador e de sua obra, convém situd-lo na vertente de uma idéia que nasceu com Dilthey e Nohl, e se bifurcou em dois tracos anta- génicos, que ainda hoje correm paralelos, sem esperanca de uma confluéncia. De Dilthey e Nohl receberam Heidegger e Carnap a idéia da superacdéo da Metafisica. Tomada como tarefa, esta idéia desdobrou-se, de maneira bem diferente, nos dois filésofos, geran do, nos seus seguidores, duas tendéncias separadas por barreivas intransponiveis até hoje. Heidegger, por influéncia dos contatos com a erttica de Nietzsche ao platonismo e cristianismo e com a polémica de Kierkegaard com a filosofia reflexiva do idealismo especulativo, moldou uma forma muito original de superacdo da Metafisica. O filésofo convenceu-se de que, até 0 seu tempo, toda a histéria da ontologia ndo passara de uma teologia e que, com os neokantianos, caira numa teoria do conhecimento.A Metafisica era esta hist6ria da ontologia como onto-teo-logia. Heidegger propds uma ontologia fundamental que, através de uma analitica exisiencial, preparasse um modo de colocar a questdo do ser. Enido, conduzido pela andlise do tempo, procederia a uma destruigdo da ontologia da tradi¢do, superando, assim, a Metafisica. Num processo regressivo, o fil6- sofo realizou, utilizando-se de um método fenomenoldgico husserliano radicalizado ¢ transformado, um adentramento nas camadas da existéncia, de um lado, na hist6ria da filosofia, de outro. Ambas as incursdes revelaram a questdo esquecida: a questéo do ser. "A temporalidade como sentido da preocupagdo que constitui o ser do ser-at tornar-se-ia 202 NOTA DO TRADUTOR 0 horizonte para a interrogagdo do ser; e a questdo do ser fora precisamente esquecida por wna falsa solugao dada ao problema no tempo na hist6ria da Metafisica ocidental. Deste modo, Heidegger move-se sempre em dois niveis; ao nivel da andlise da exis- téncia e ao nivel da andlise da historia da filosofia. Seu método the permite este modo paralelo e reciprocamente imbricado de interrogagdo, Pois conduz-se no modelo bindrio de velamento e desvelamenio: hé um encobrimento radical, ao nivel da existéncia, ¢ outro, ao nivel da historia da Metafisica. Este encobrimento vela a questiéo do ser-no plano da existéncia e no plano da histéria. A superacdo da Metaffsica mostrard que 0 ser sempre se vela no ente e que o homem tende a esquecer este velamento. Importa pensar 0 ser velando-se sempre e ndo propriamente expd-lo a luz da objetivacdo, 0 que seria ‘Confiundi-lo com o ente. Carnap entenderia de maneira bem diferente a questiéo da superagdo da Metafisica. Props sua solugdo no conhecido ensaio de 1932: Superagao da Metafisica pela Andlise Légica da Linguagem. Todo 0 movimento neopositivista, inspirado em Frege, levado avante por Wittgenstein através do Circulo de Viena, encaminka-se nesta diregéo: a Metafisica constitui-se de proposigées destituidas de sentido. A anélise ldgica de suas proposi¢ées levard @ sua superagéo. Realizada esta tarefa, o pensamento neopositivista envereda pelo caminho fecundo do pensamento ldgico e da filosofia das ciéncias. Enquanto a filosofia das ciéncias pée todo 0 seu empenho em promover a atividade cientifica na era da técnica, através dos subsidios indispensaveis da reflexdo metodold gica, Heidegger vé, em todo este processo, um signo do esquecimento do ser. Sua erftica 4 inelutdvel invasiéo do planeta pelo dominio da técnica ndo deve ser vista como postura anticientifica ou simplesmerite reacionéria e pessimista; ele quer salvar um espaco essen- cial para 0 humano, que ndo pode ser dissolvido no processo tecnocratico, e nisto coin- cide singularmente com pensadores neo-hegelianos € neomarxistas. Quando afirma que “a ciéneia ndo pensa”, néo 0 faz como uma critica, mas como uma constatagao do que é a estrutura interna da ciéncia. Heidegger reconhece o fendmeno da autonomizagéo das ciéncias do ambito da filosofia como um acontecimento inevitével e que nao possui nada de negativo. O que ele quer impedir é que a razéo se instrumentalize inteiramente e perca a visdo do todo. Também para Heidegger esté morta a possibilidade de wma filosofia pri. meira, no sentido classico, ¢ com isto libertou ele o homem e a obra humana de modelos cosmolégicos superados. A recepedo das idéias de Heidegger, sobretudo na América Latina, lamentavel- mente se orientou no sentido de compreendé-lo como restaurador de uma filosofia pri- meira e dos mitos ontolégicos superados. Nao apenas pelas influéncias que recebeu, também pelo sentido de abordagem de sua temdtica, pelas vivéncias pessoais, pelo nivel de consciéncia politica e pelo contexto historico em que se situava, mas sobretudo pelas pretensées falsas de uma problemati- zagdo e tematizaedo certas, revela Heidegger tragos reaciondrios. Nao é sua passageira adeséo a0 nacional-socialismo, cujas implicagdes bem cedo reconheceu que deve ser vista como iinico elemento de peso no julgamento de sua posi¢éo politica. Hd uma certa sobranceria que the vem da consciéncia de ser “o pastor do ser que o torna vulnerdvel quando se-trata de fazer ju‘z0s histéricos que tém a ver com 0 aqui e agora. Move-se no plano do ser e, a quem se move apenas neste plano, a asticia da razdo mostra muito cedo que the faltard 0 senso da proporedo para as coisas humanas, senso que s6 poderé advir de um conhecimento cieniffico das diversas regides dos enies. A tentacéo de apresentar- fewla. E Heidegger nem se como profeta, enquanto se é fildsofo, além de absurda é rid BiBgiO NOTA DO TRADUTOR - 203 sempre consegue fugir a esta tentacdo. E 0 que muitas vezes mais chama a atencéo & encobre sua enorme coniribuigdo para o pensamento do século XX. Além de recolocar a questo do ser numa dimensdo que a libertou das ilusdes de uma ontoteologia; além de estabelecer uma distinedo clara entre as questées ontoldgicas € as questdes Gnticas; além de libertar definitivamente a filosofia e de separd-la das visdes de mundo; Heidegger destruiu o sentido ilusdrio da metéfora da reconciliagdo de historia e natureza, enquanto ela implica uma busca de identidade absoluta. Esta metéfo- ra, base de todas as utopias, retoma, nele, suas verdadeiras dimensdes: 0 homem deve assumir-se na finitude. E de lamentar que tudo isto tenha permanecido implicito em seu pensaniento, faltando-the 0 sentido da mediagéo, a impaciéncia do conceito, para dar-the forma na praxis histérica. _O pensamento do futuro, tdo visceral em Ser e Tempo, nunca chegou a ser conereti- zado em posstveis formas histéricas de reflexdo. Néo podendo superar Hegel — tendo, contudo, nas maos, 0 remédio para a cura da doenca do absoluto —, nunca 0 enfrentou deveras; sempre acabou contornando-o. Por isso tornou-se tao dificil 0 didlogo com 0 pensamento marxista ndo-dogmético e com os neo-hegelianos de Frankfurt. E neles que a idéia w6pica de uma reconciliagdo do homem com a natureza em sentido absoluto deu lugar & idéia da maioridade, do processo de emancipacdo, da convivéncia e comunicacéo sem repressividade. Heidegger abriu 0 caminho, mas demasiadamente fiel a si mesmo, néo chegou a dimenséo crttica, onde tomam forma as interrogagdes humanas no campo da ciéncia, da técnica, do proceso emancipatério, do humanismo, da praxis, enfim. Boa parte do caminho que at esté-se trithando foi antecipado in nuce pelo filésofo da Floresta Negra. Mas este néo péde saltar sobre sua sombra. Talvez nesta fidelidade a si mesmo esconda-se a grandeza de Heidegger; nela, porém, abriu ele os maiores flan- cos para a critica. Os textos reunidos neste volume, que cobrem meio século, devem ser vistos e compreendidos nesta perspectiva. Eles representam realmente todos os passos fundamen- tais do pensador. Séo apenas wna pequena parte do que escreveu; mas siio a concentra- a0 de todos os temas centrais que Heidegger desenvolveu desde a grande aurora de Set Tempo. A presenga de Sartre e Heidegger num s6 volume pode ser discutida, Mas sio pala- vras textuais deste: “Aprecio muito a Sartre”’ isto significa, certamente, também e sobre- tudo, sua obra. E na Carta sobre 0 Humanismo que se dé 0 confronto direto do mestre com um inconfundivel diseipulo que, na sua perspectiva, superou omissées do mestre. Deste confronto, langa-se uma luz que poderd dar a envergadura do debate e da anilise fecunda que poderd aproximar textos tao distantes. QUE E ISTO- A FILOSOFIA? Nota do Tradutor Longos anos de reflexdio sobre determinada questo concentram-se ¢ explodem nas conferéncias de Heidegger. Todas elas surpreendem pela densidade ¢ pelas afirmagdes compactas. $6 a andlise mais detida de sua obra revela 0 proceso mediador, 0 longo caminho discursivo, que precede tais manifestagdes. As leituras, as prelegdes, os cold: quios, os seminarios de varios niveis, centenas de folhas manuscritas representam 0 cui dadoso exercicio ao ver fenomenolégico cujo resultado apenas resume nas conferéncias. O que, a primeira vista, pode parecer uma passageira fulguragao na noite do pensamento € alimentado por um paciente trabalho clarificador. Heidegger somente 0 pensador obs- curo, 0 filésofo de sentengas grandilogiientes, para quem desconhece a escola de trabalho de Husserl ¢ nao penetrou nos bastidores onde se escondem os preparativos de certas aparigdes espetaculares do autor de Ser e Tempo. Que é Isto — a Filosofia? O Principio da Identidade ¢ A Constituigdéo Onto-teo- légica da Metafisica sio tais momentos de cerradas afirmagSes, de parada ao fim de rduo caminho. Sao trés conferéncias pronunciadas respectivamente em agosto de 1955. junho de 1957 ¢ fevereiro de 1957. Situam-se na constelagao dos grandes textos de Hei- degger apis a discutida viravolta; fazem parte da década mais fecunda em publicagdes para o fil6sofo. Nos anos 50 foram editados: Sendas Perdidas (1950), Introduedo a Metafisica (1953), Que Significa Pensar? (1954). Ensaios e Conferéncias (1954). O Prin- efpio da Razdo (1957). A Caminho da Linguagem (1959) ¢ outros textos menores. Ainda que escritos no horizonte terminolégico e tematico do segundo Heidegger, 0 trés trabalhos se iluminam quando compreendidos a partir da analitica existencial. Os problemas da correspondéncia ao ser, da relagao de ser e homem e da diferenga ontolé: gica que af sio tratados nascem do confronto com a tradigao, da intengao destruidora do filésofo, do deslocamento da questo do ser e da verdade para 0 ambito da finitude. A linguagem utilizada nao deve ser vista como um jargao sacralizado, como acon, tece na tradigao escolastica, nem como tentativa de clarificagao de uma linguagem obs cura ¢ confusa que serviu de instrumento de anlise de determinado objeto, como acon- tece nas correntes da analitica da linguagem. O filésofo procede experimentalmente. As palavras nao so definitivas, nem pretendem apresentar-se como melhores face a outr: A linguagem é comandada pela coisa mesma, por um determinado modo de ver — 0 mé- todo fenomenolégico — que clarificou um estado de coisas £, sobretudo, das atuais concepgdes da linguagem que se deve distinguir 0 compor- tamento heideggeriano em face do dizer. Se, para simplificar, dividirmos em dois campos as tendéncias que se ocupam com o problema da linguagem, temos, de um lado, a con- cepgao técnico-cientifica da linguagem (por exemplo, Carnap) e, de outro a experiéncia especulativo-hermenéutica da linguagem (por exemplo, Heidegger). Os primeiros procu: 208 HEIDEGGER ram colocar todo 0 pensamento e linguagem, mesmo os da filosofia, sob a competéncia de um sistema de sinais que a técnica e a logica podem construir, isto é, fixar como instrumento da ciéncia. Heidegger assume sua posigao a partir da questo que procura saber qual é a coisa mesma que o pensamento da filosofia deve experimentar ¢ como deve ele dizé-ta. Nestas duas posigdes nao se trata simplesmente de duas filosofias da lin guagem. Mas a linguagem é vista como 0 dominio em cujo interior o pensamento da filo- sofia e qualquer espécie de pensamento e discurso residem ¢ se movem. Trata-se de um confronto de duas posigdes em que o problema da existéncia do homem e sua definig&o esto em jogo (ver a analise que 0 filsofo faz desta questo em Archives de Philosophie, jutho-setembro de 1969, paginas 396-415) Nestas trés conferéncias realiza-se, portanto, um processo ambivalente e circular: questiona-se 0 objeto do pensamento e questiona-se a linguagem que procura dizé-lo. A coisa que se busca dizer e o dizer mesmo se entrelagam numa interagdo circular. Querer definir e separar uma e outro seria pretender romper o cfrculo, perdendo a coisa mesma e, com ela, a possibilidade da linguagem para dizé-la. A coisa mesma que Heidegger persegue aqui é a questo do ser no horizonte da diferenga ontol6gica. Em Que é Isto — a Filosofia?, esta questo torna-se o centro a par- tir do qual se procura dizer 0 que é filosofia; em O Principio da Identidade, esta questio € 0 ponto de partida para uma andlise da relagdo entre ser e homem: em A Constituigdo Onto-teo-l6gica da Metafisica, a mesma questao é analisada especificamente na perspec- tiva da diferenga, para se determinar a relagdo entre ser e fundamento (Deus). Examinando a estrutura dos trés textos, pode-se descobrir uma certa homogenei dade no tratamento das questdes. Hé um esquema que se repete: primeiro: langam-se algumas interrogagSes; segundo: realiza-se a destruigao da tradigdo; terceiro: esboga-se uma resposta, Na tentativa de responder, 0 fildsofo introduz termos novos que procuram expressar o estado de coisas. Na primeira conferéncia: a questo do ser na perspectiva da correspondéncia ao ser é posta a partir do termo “dis-posigdo” (que est na origem da correspondéncia). Na segunda conferéncia: a questo do ser na perspectiva da relagao entre ser e homem é posta a partir dos termos “arrazoamento” e “acontecimento-apro- priagao”. Na terceira conferéncia: a questéo do ser na perspectiva da relagio entre sere Deus (solugao dada pela tradigao 4 questo da diferenga ontolégica) é analisada a partir dos termos “sobrevento”, “advento” e “de-cisio”. Desta maneira, as questdes da filoso- . da identidade e da diferenga so discutidas através de uma linguagem nova que pro- cura aproximar-se da coisa mesma que nelas se mostra. Heidegger introduz os modos novos de dizer aquilo que persegue, através do horizonte hermenéutico. O confronto interpretativo com a historia da filosofia, a atitude violentadora de sua interpretagao (que jf justifica em Ser e Tempo, § 63), dio como resultado uma nova abertura para o ver fenomenol6gico e o que nela se Ihe mostra é expresso com uma nova “violéncia” termi- nolégica: uma etimologia forgada fornece novos semantemas. Quer discutindo sobre a filosofia, quer desdobrando o principio da identidade, quer langando a questio da diferenga, o fildsofo repete trés temas paraleios ¢ aparentemente secundarios: a) Hegel, idealismo, dialética e mediagdo; b) técnica: automagio, tecnolo. gia, cAlculo e planificagdo; c) linguagem. Através de Hegel. realiza-se 0 encontro com a tradi¢do na sua plenitude. Nele ja se anunciam o fim da filosofia ocidental e as possibi dades para um novo pensamento com nova tarefa. No problema da técnica se mostra a possibilidade de captar o mundo atual como totalidade. As questdes levantadas em torno da questo do ser nas trés conferéncias mostram sua forga questionadora na medida em que respondem as interrogagdes da era da técnica. Ao problema da linguagem se reduz, QUE E ISTO — A FILOSOFIA? 209 afinal, o caminho do questionamento porque por ela somos carregados e somente na me- dida em que tornarmos transparente este ser possuido pela palavra somos capazes de co-responder de maneira conveniente ao que a coisa mesma nos pde como tarefa. Ha, finalmente, ainda um outro elemento que se repete nas trés exposigdes do fil6so- fo: a questéo do fundamento, Na primeira: por que 0 ser chegou a ser determinado como fundamento no sentido de causa? Na segunda: por que o traco de identidade no ser se tomou o principio do fundamento? Na terceira: por que o ser tornou-se fundamento fundamentante, enquanto causa sui? Em sintese: por que entificou a tradigao metafisica © ser do ente, essencializando-o? Uma palavra de Hélderlin serve-nos de sugestdo para uma leitura ainda mais pro- funda da unidade destes trés textos de Heidegger. O poeta diz no Hypérion: “A grande palavra, 0 hén diaphéron heautd (traduzo: 0 uno que em si mesmo se diferencia), de Heréclito, somente um grego pade descobrir; pois é a esséncia da beleza e antes de ter sido encontrada nao havia filosofia”, O texto € tirado do Banquete (187 a) de Platio, onde se lé: “Hén diapheromenon auté auté symphéresthai”: “O uno”, diz Herdclito, “se eencontra consigo mesmo, ainda quando tende para a diferenga” A identidade na diferenga é para Hélderlin a esséncia da beleza. Beleza significa para 0 pocta, naquela época, ser. Antes que se descobrisse que o enigma do ser esta no fato de ocultar em si mesmo a identidade e a diferenga, nao havia filosofia. Ou, ainda, 0 ser somente é ser porque é em si mesmo identidade e diferenga; a tarefa da filosofia é questionar o ser nesta dimensao, porque dela brota sua propria possibilidade. Quando Heidegger pergunta: Que é isto — a filosofia?, ele acena imediatamente para a questo da diferenga ontoldgica. Somente na correspondéncia ao ser do ente 0 homem pode filosofar e isto é saber 0 que é filosofia. Na questo da diferenga ontolégica se impdem como pélos determinantes a questio da identidade e a questo da diferenga. Desta maneira, pode-se concluir que os trés trabalhos de Heidegger, aqui reunidos, devem ser meditados, ndo apenas nas questdes que isoladamente levantam, nem mesmo 36 nas quest6es que objetivamente abordam como comuns, mas também, ¢ talvez sobre- tudo, naquela unidade originaria que os funde num s6 bloco: Hén diaphéron heaut6. Par- tindo da pergunta da filosofia em geral, 0 fil6sofo vai ao principio de identidade e deste para a diferenga. A questo: que ¢ isto — a filosofia? recebe sua resposta na andilise das questdes da identidade e da diferenga. Como as questdes da identidade e da diferenga s6 podem ser respondidas pela interrogagao filos6fica, pode-se concluir que as trés questdes se imbricam numa relago circular. Uma pressupde a outra, Nao ha filosofia sem as questdes da identidade e diferenga ontoldgicas; mas também nio se levantam estas ques- t6es sem a filosofia. O fato de estas questdes sempre terem sido postas implicitamente pela humanidade aponta para a universalidade da atitude filos6fica. Somente quando ho- mens Se puseram a interrogar explicitamente em torno delas comegou a filosofia. Para Heidegger, entretanto, a metafisica se afastou deste comego, esquecendo a questiio da diferenga, dando, em conseqiiéncia, uma resposta equivoca & questo da identidade. Retomar a estas questdes pelo passo de volta é revolver 0 solo em que mergulham as rat- zes da metafisica ocidental. Os problemas da tradugao apresentados por estes textos so os mesmos de outros do filésofo. Mais dificil foi a escolha de determinados termos que trouxessem no verné- culo a carga e 0 poder evocador dos usados no original, quando o sentido Ihes ¢ imposto de fora. As notas que acrescentei a0 texto poderdo apontar para a diregiio de onde vem a tradugao. Estou convencido de que a tradugo de textos filosdficos nao garantida em sua qualidade pelo simples dominio das duas linguas em contato. E preciso saber colo: 210 HEIDEGGER car-se na situagdo hermenéutica adequada ao texto. Isto quer dizer: ¢ preciso saber ante- cipar e projetar um sentido sobre a totalidade do tema que o texto aborda, Muitas luzes para a tradugo adequada s6 nascem desta capacidade antecipadora com que se envolve © texto num sentido que a tradugdo das partes aos poucos confirma. A melhor tradugio sob 0 ponto de vista técnico pode despersonalizar completamente um texto. E, por outro lado, muitos textos filoséficos terminam apresentando na tradugao um carater diferente do original porque 0 tradutor nao assumiu a situagdo hermenéutica adequada ¢ projetou a obra num falso horizonte hermenéutico. E nisto que se concentra a responsabilidade e © risco do tradutor. Ele ndo ¢ apenas a ponte entre a lingua-fonte e a lingua-meta; ¢ tam- bém, por exceléncia, o mensageiro (Hermes) que veicula o sentido. Erlangen, Alemanha Ocidental 9 de dezembro de 1970 ERNILDO STEIN QU’EST-CE QUE LA PHILOSOPHIE? * Com esta questio tocamos um tema muito vasto. Por ser vasto, permanece indeter- minado. Por ser indeterminado, podemos traté-lo sob os mais diferentes pontos de vista e sempre atingiremos algo certo. Entretanto, pelo fato de, na abordagem deste tema to amplo, se interpenetrarem todas as opinides possiveis, corremos o risco de nosso didlogo perder a devida concentragio. Por isso devemos tentar determinar mais exatamente a questio. Desta maneira, levaremos o didlogo para uma diregiio segura. Procedendo assim, 0 didlogo & conduzido a.um caminho. Digo: a um caminho., Assim concedemos que este nao ¢ 0 tinico caminho. Deve ficar mesmo em aberto se 0 caminho para o qual desejaria chamar a atengio, no que segue, é na verdade um caminho que nos permite levantar a questio e respondé-la. Suponhamos que seriamos capazes de encontrar um caminho para responder mais exatamente a questio; entio se levanta imediatamente uma grave objegéio contra o tema de nosso encontro. Quando perguntamos: Que é isto — a filosofia?, falamos sobre a filo fia, Perguntando desta maneira, permanecemos num ponto acima da filosofia e isto quer dizer fora dela. Porém, a meta de nossa questo é penetrar na filosofia, demorar- mo-nos nela, submeter nosso comportamento as suas leis, quer dizer, “filosofar”. O caminho de nossa discussio deve ter por isso nfo apenas uma direcfio bem clara, mas esta diregGo deve, ao mesmo tempo, oferecer-nos também a garantia de que nos move ‘mos no Ambito da filosofia, e nfo fora e em torno dela. O caminho de nossa discussio deve ser, portanto, de tal tipo e diregdio que aquilo de que a filosofia trata atinja nossa responsabilidade, nos toque (nous fouche),? ¢ justa mente em nosso ser. Mas nao se transforma sentimental? “Com 08 belos sentimentos faz-se a mé literatura.” “C est avec les beaux sentiments que Von fait la mauvaise littérature." Esta palavra de André Gide nao vale sd para a lite- ratura; vale ainda mais para a filosofia. Mesmo os mais belos sentimentos nao pertencem a filosofia. Diz-se que os sentimentos so algo de irracional. A filosofia, pelo contrario, nao € apenas algo racional, mas a propria guarda da ratio. Afirmando isto decidimos sem querer algo sobre 0 que é a filosofia. Com nossa pergunta jé nos antecipamos & res- posta. Qualquer uma tera por certa a afirmago de que a filosofia é tarefa da ratio. E, contudo, esta afirmagao é talvez uma resposta apressada e descontrolada 4 pergunta: im a filosofia num objeto de nosso mundo afetivo Em francés, no texto original ® Palavras e citagdes gregas, latinas e francesas, que ocorrem no original alemio, sio mantidas no texto portugués, 212 HEIDEGGER Que é isto — a filosofia? Pois a esta resposta podemos contrapor novas questées. Que @ isto — a ratio, a raztio? Onde e por quem foi decidido 0 que é a razio? Arvorou-se a ratio mesma em senhora da filosofia? Em caso afirmativo, com que direito? Se negativa a resposta, de onde recebe ela sua missio e seu papel? Se aquilo que se apresenta como ratio foi primeiramente e apenas fixado pela filosofia e na marcha de sua historia, entdo nao é de bom alvitre tratar a priori a filosofia como negécio da ratio. Todavia, tio logo Pomios em suspeigio a caracterizagio da filosofia como um comportamento racional, toma-se, da mesma maneira, também duvidoso se a filosofia pertence & esfera do irracio. nal. Pois quem quiser determinar a filosofia como irracional, toma como padrio para a determinagao o racional, e isto de um tal modo que novamente pressupde como ébvio 0 que seja a razao. Se, por outro lado, apontamos para a possibilidade de que aquilo a que a filosofia se refere concerne a nés homens em nosso ser ¢ nos toca, entdo poderia ser que esta maneira de ser afetado nfo tem absolutamente nada a ver com aquilo que comumente se designa como afetos e sentimentos, em resumo, o irracional. Do que foi dito deduzimos primeiro apenas isto: é necessério maior cuidado se ousamos inaugurar um encontro com o titulo: “Que é isto — a filosofia?” Um tal cuidado exige primeiro que procuremos situar a questo num caminho cla- ramente orjentado, para nao vagarmos através de representagdes arbitrdrias e ocasionais @ respeito da filosofia. Como, porém, encontraremos 0 caminho no qual poderemos determinar de maneira segura a questo? O caminho para o qual desejaria apontar agora esté imediatamente diante de nds. E precisamente pelo fato de ser 0 mais préximo o achamos dificil. Mesmo quando 0 encon- tramos, movemo-nos, contudo, ainda sempre desajeitadamente nele. Perguntamos: Que isto — a filosofia? Pronunciamos assaz freqiientes vezes a palavra “filosofia”. Se, porém, agora ndo mais empregarmos a palavra “filosofia” como um termo gasto: se em vez disso escutarmos a palavra “filosofia” em sua origem, entio, ela soa philosophia. A palavra “filosofia” fala agora através do grego. A palavra grega é, enquanto palavra Srega, um caminho. De um lado, esse caminho se estende diante de nés, pois a palavra Jé foi proferida ha muito tempo. De outro lado, ele ja se estende atras de nbs, pois ouvi- mos ¢ pronunciamos esta palavra desde os primérdios de nossa civilizagdo. Desta manei ta, @ palavra grega philosophia é um caminho sobre o qual estamos a caminho. Conhece: mos, porém, este caminho apenas confusamente, ainda que possuamos muitos conhecimentos histéricos sobre a filosofia grega e os possamos difundir. A palavra philosophia diz-nos que a filosofia é algo que pela primeira vez e antes de tudo vinea a existéncia do mundo grego. Nao 86 isto — a philosophta determina também a linha mestra de nossa histéria ocidental-européia. A batida expressio “filosofia ociden- tal-européia” & na verdade, uma tautologia. Por qué? Porque a “filosofia” é grega em sua esséncia — e grego aqui significa: a filosofia é nas origens de sua esséncia de tal natureza que ela primeiro se apoderou do mundo grego e s6 dele, usando-o para se desenvolver, Mas a esséncia originariamente grega da filosofia é dirigida e dominada, na época de sua vigéncia na Modernidade Européia, por representagdes do cristianismo. A hege- monia destas representagdes é mediada pela Idade Média. Entretanto, nao se pode dizer que por isto a filosofia se tornow crist&, quer dizer, uma tarefa da fé na revelago e na autoridade da Igreja, A frase: a filosofia 6 grega em sua esséncia, no diz outra coisa que: 0 Ocidente e a Europa, e somente eles, so, na marcha mais intima de sua his originariamente “filoséficos”, Isto ¢ atestado pelo surto e dominio das ciéncias. Pelo fato ria, QUE E ISTO — A FILOSOFIA? 213 de elas brotarem da marcha mais intima da historia ocidental-européia, o que vale dizer do proceso da filosofia, sdo elas capazes de marcar hoje, com seu cunho especifico, a historia da humanidade pelo orbe terrestre. Consideremos por um momento o que significa o fato de caracterizarmos uma era da histéria humana de “era atémica”. A energia atémica descoberta e liberada pelas ciéncias € representada como aquele poder que deve determinar a marcha da histéria, Entretanto, a ciéncia nunca existiria se a filosofia nao a tivesse precedido e antecipado. A filosofia, porém, é: he philosophta. Esta palavra grega liga nosso didlogo a uma tradi- gio historial, Pelo fato de esta tradigao permanecer nica, ela é também univoca. A tra- digo designada pelo nome grego philosophta, tradigio nomeada pela palavra historial philosophia, mostra-nos a direc de um caminho, no qual perguntamos: Que é isto a filosofia? A tradigio nio nos entrega & prisio do passado ¢ irrevogavel. Transmitir, déli- vrer,? ¢ um libertar para a liberdade do didlogo com o que foi e continua sendo, Se esti- vermos verdadeiramente atentos 4 palavra e meditarmos o que ouvimos, o nome “filoso- fia” nos convoca para penetrarmos na historia da origem yrega da filosofia. A palavra philosophia esta, de certa maneira, na certiddo de nascimento de nossa propria historia podemos mesmo dizer: ela esta na certidfio de nascimento da atual época da hist6ria uni- versal que se chama era atémica. Por isso somente podemos levantar a questo: Que isto — a filosofia?. se comegamos um didlogo com o pensamento do mundo grego. Porém, nao apenas aquilo que esta em questao, a filosofia, é grego em sua origem, mas também a maneira como perguntamos, mesmo a nossa maneira atual de questionar ainda é grega. Perguntamos: que isto, . .? Em grego isto é: i estin. A questio relativa ao que algo seja permanece, todavia, multivoca. Podemos perguntar, por perguntar, por exem- plo: que @ aquilo 14 longe? Obtemos ent a resposta: uma rvore. A resposta consiste em darmos o nome a uma coisa que no conhecemos exatamente. Podemos, entretanto, questionay mais: que é aquilo que designamos “arvore”? Com, a quest@o agora posta avangamos para a proximidade do a estin grego. E aquela forma de questionar desenvolvida por Socrates, Plato e Aristoteles. Estes perguntam, por exemplo: Que é isto — 0 belo? Que é isto — o conhecimento? Que é isto — a natureza? Que é isto — 0 movimento? Agora, porém, devemos prestar atengZo para o fato de que nas questdes acima nio se procura apenas uma delimitagio mais exata do que é natureza, movimento, beleza; mas é preciso cuidar para que ao mesmo tempo se dé uma explicagao sobre o que signi- fica 0 “que”, em que sentido se deve compreender 0 tf, Aquilo que o “que” significa se designa 0 quid est, 16 qui diversamente nas diversas épocas da filosofia. Assim, por exemplo, a filosofia de Plato é uma interpretagdo caracteristica daquilo que quer dizer o 1. Ele significa precisamente a idéa. O fato de nds, quando perguntamos pelo 1, pelo quid, nos referirmos a “idéa nao & absolutamente evidente. Aristételes d4 uma outra explicagdo do que Plato. Outra ainda da Kant e também Hegel explica o tf de modo diferente. Sempre se deve determinar novamente aquilo que é questionado através do fio condutor que representa o Hf, 0 quid, © “que”. Em todo caso: quando, referindo-nos & filosofia, perguntamos: que é isto?, levantamos uma questio originariamente grega. |: a quidditas, a qiiididade. Entretanto, a quidditas se determina * Em francés, no texto, 214 HEIDEGGER Notemos bem: tanto o tema de nossa interrogagio: “a filosofia”, como o modo como perguntamos: “que @ isto, ..?" — ambos permanecem gregos em sua prove- nigncia. Nos mesmos fazemos parte desta origem, mesmo entiio quando nem chegamos a dizer a palavra “filosofia”. Somos propriamente chamados de volta para esta origem, reclamados para ela ¢ por ela, to logo pronunciemos a pergunta: Que é isto — a filoso. fia? nao apenas em seu sentido literal, mas meditando seu sentido profundo. [A questdo: que é filosofia? nao é uma questo que uma espécie de conhecimento se coloca a si mesmo (filosofia da filosofia). A questio também nao é de cunho historico; ndo se interessa em resolver como comegou e se desenvolveu aquilo que se chama “filo. sofia”. A questéo é carregada de historicidade, é historial, quer dizer, carrega em si um destino, nosso destino, Ainda mais: ela ndo é “uma”, ela & a questo historial de nossa existéncia ocidental-européia.} Se penetrarmos no sentido pleno ¢ originario da questo: Que ¢ isto — a filosofia? entéio nosso questionar encontrou, em sua proveniéncia historial, uma diregdo para nosso futuro historial. Encontramos um caminho. A questo mesma é um caminho. Ele conduz da existéncia prépria ao mundo grego até nés, quando nao para além de nés mesmos, Estamos — se perseverarmos na questio — a caminho, num caminho claramente orien tado. Todavia, nao nos dé isto uma garantia de que ja, desde agora, sejamos capazes de tilhar este caminho de maneira correta. J4 desde ha muito tempo costuma-se caracte- rizar a pergunta pelo que algo & como a questo da esséncia. A questo da esséncia tor- na-se mais viva quando aquilo por cuja esséneia se interroga, se obscurece ¢ confunde, quando ao mesmo tempo a relag&io do homem para com o que é questionado se mostra vacilante e abalada. A questo de nosso encontro refere-se a esséncia da filosofia. Se esta questo brota realmente de uma indigéncia e se ndo est fadada a continuar apenas um simulacro de questéo para alimentar uma conversa, entio a filosofia deve ter-se tornado para nés problematica, enquanto filosofia. E isto exato? Em caso afirmativo, em que medida se tomou a filosofia problematica para nds? Isto evidentemente s6 podemos declarar se ja langamos um olhar para dentro da filosofia. Para isso € necessario que antes saibamos que € isto — a filosofia. Desta maneira somos estranhamente acossados dentro de um circulo. A filosofia mesma parece ser este circulo. Suponhamos que nao nos podemos libertar imediatamente do cerco deste circulo; entretanto, é-nos permitido olhar para este Girculo. Para onde se dirigird nosso olhar? A palavra grega philosophia mostra-nos a diregio. Aqui se impe uma observagio fundamental. Se nés agora ou mais tarde prestamos atengdo as palavras da lingua grega, penetramos numa esfera privilegiada, Lentamente vislumbramos em nossa reflexdo que a lingua grega nao é uma simples lingua como as européias que conhecemos. A lingua grega, e somente ela, é /égos. Disto ainda devere- mos tratar ainda mais profundamente em nossas discussdes, Para 0 momento sirva a A palavra grega philosophia remonta palavra philésophos. Originariamente esta palavra é um adjetivo como philérgyros, o que ama a prata, como philétimos, 0 que ama a honza, A palavra phildsophos foi presumivelmente criada por Heraclito. Isto quer dizer indicagdo: 0 que é dito na lingua grega é, de modo privilegiado, simultaneamente aquilo que em dizendo se nomeia. Se escutarmos de maneira grega uma palavra grega, entio seguimos seu /égein, 0 que expde sem intermedidrios, O que ela expde € 0 que esté af inte de nés. Pela palavra grega verdadeiramente ouvida de maneira grega, estamos imediatamente sem presenga da coisa mesma, af diante de nés, e no primeiro apenas diante de uma simples significagdo verbal. QUE F ISTO — A FILOSOFIA? 215 que para Herdclito ainda no existe a philosophta. Um anér phildsophos nao & um homem ' filosdfico”. O adjetivo grego phildsophos significa algo absolutamente diferente que 0 adjetivos filosdfico, philosophique. Um anér philésophos & aquele, hos philet 10 sophén, que ama a sophdn; philein significa aqui, no sentido de Heraclito: homologetn, falar assim como o Légos fala, quer dizer, corresponder ao Légos. Este corresponder esti em acordo com 0 sophdn. Acordo harmonta. O elemento especifico de philein do amor, pensado por Herdclito, é a harmonia que se revela na reciproca integragao de dois seres, nos lagos que os unem originariamente numa disponibilidade de um para com o outro. 0 anér philésophos ama 0 sophdn, O que esta palavra diz para Herdclito ¢ dificil traduzir. Podemos, porém, elucida-lo a partir da propria explicagio de Herdclito. De acordo com isto, 16 sophén significa: Hén Panta “Um (@) Tudo”. Tudo quer dizer aqui: Panta té dnta, a toralidade, 0 todo do ente, Hén, o Um, designa: o que & um, 0 nico, 0 que tudo une. Unido é, entretanto, todo o ente no ser. O sophén significa: todo ente € no ser. Dito mais precisamente: o ser é 0 ente, Nesta locugdo, o “é" traz uma carga transi- tiva e designa algo assim como “recolhe”. O ser recolhe o ente pelo fato de que é o ente. O ser € 0 recolhimento — Légos. Todo o ente é no ser. Ouvir tal coisa soa de modo trivial em nosso ouvide. quando nao de modo ofensivo, Pois, pelo fato de o ente ter seu lugar no ser. ninguém precisa preocupar-se, Todo mundo sabe: ente é aquilo que é. Qual a outra solugo para o ente a ndo ser esta: ser? E entretanto: precisamente isto, que o ente permanega recolhido no ser, que no fendmeno do ser se manifesta o ente; isto jogava os gregos, a eles primeiro unicamente, no espanto. Ente no ser: isto se tornou para os gregos 0 mais espantoso. Entretanto, mesmo os gregos tiveram que salvar e proteger o poder de espanto deste mais espantoso — contra o ataque do entendimento sofista, que dispunha logo de uma explicagio, compreensivel para qualquer um, para tudo ¢ a difundia, A salvagao do mais espantoso — ente no ser — se deu pelo fato de que alguns se fizeram a caminho na sua diregdo, quer dizer, do sophdn. Estes tornaram-se por isto aqueles que fendiam para 0 sophén e que através de sua propria aspirag%io despertavam nos outros homens 0 anseio pelo sophdn eo mantinham aceso. O phileii 16 sophén, aquele acordo com 0 sophén de que falamos acima, a harmonia, transformou-se em drecsis, num aspirar pelo sophon. O sophén — 0 ente no ser — @ agora propriamente procurado. Pelo fato de o philefn no ser mais um acordo originario com 0 sophdn, mas um singular aspirar pelo sophén, 0 philein t6 sophén torna-se “philosophia”. Esta aspiragao é determinada pelo Eros. Uma tal procura que aspira pelo sophdn, pelo hén pdnta, pelo ente no ser, se arti- cula agora numa questo: que o ente, enquanto €? Somente agora o pensamento torna- se “filosofia”. Herdclito e Parménides ainda nao eram “fildsofos”. Por que naio? Porque eram os maiores pensadores. “Maiores” nao designa aqui 0 calculo de um rendimento, porém aponta para uma outra dimensio do pensamento. Herdclito e Parménides eram “maiores” no sentido de que ainda se situavam no acordo com 0 Légos, quer dizer, com 0 Hén Pénta. O passo para a “filosofia”, preparado pela sofistica, s6 foi realizado por Socrates e Plato. Aristételes entio, quase dois séculos depois de Heraclito, caracterizou este passo com a seguinte afirmacdo: Kai dé kai 16 pdlai te kai njin ka’ aet zetoiimenon kat ae? aporotimenon, tt t6 én? (Metafisica, VI, 1, 1028 b 2 ss.). Na tradugao isso soa: “Assim, pois, é aquilo para o qual (a filosofia) esta em marcha ja desde os primérdios, ¢ também agora e para sempre e para o qual sempre de novo nao encontra acesso (¢ que & por isso questionado): que € 0 ente? (tf 16 dn)”. 216 HEIDEGGER A filosofia procura 0 que é 0 ente enquanto é. A filosofia esti a caminho do ser do ente, quer dizer, a caminho do ente sob 0 ponto de vista do ser. Aristételes elucida isto, actescentando uma explicagio ao a 16 dn, que € 0 ente?, na passagem acima citada: toiit6 esti tis he ousta? Traduzido: “Isto (a saber, tf 16 dn) significa: que é a entidade do ente?” O ser do ente consiste na entidade. Esta, porém — a ousfa —. determinada por Plato como idéa, por Aristateles como enérgei De momento ainda nao ¢ necessario analisar mais exatamente 0 que Aristateles entende por enérgeia e em que medida a ousta se deixa determinar pela enérgeia. O importante por ora é que prestemos atengdo como Aristoteles delimita a filosofia em sua esséncia. No primeiro livro da Metafisica (Metafisica, I, 2, 982 b 9 s,), 0 filésofo diz 0 seguinte: A filosofia é epistéme 16n préton arkhn kat aition theoretiké. Traduz-se facil- mente epistéme por “ciéncia”. Isto induz ao erro, porque, com demasiada facilidade, per- mitimos que se insinue a moderna concepgao de “ciéncia”. A tradugio de epistéme por “ciéncia” € também, ent&o, enganosa quando entendemos “ciéncia” no sentido filosdfico que tinham em mente Fichte, Schelling e Hegel. A palavra epistéme deriva do participio epistémenos. Assim se chama 0 homem enquanto competente ¢ habil (comipeténcia no sentido de appartenance). * A filosofia é epistéme ws, uma espécie de competéncia, theo- retiké, que & capaz de theorein, quer dizer, olhar para algo e envolver e fixar com o olhar aquilo que perscruta. E por isso que a filosofia € epistéme theoretiké. Mas que é isto que ela perscruta? 2 Arristoteles di-to, fazendo referéncia as protai arkhai ka’ aitfai. Costuma-se traduzir: “as primeiras razdes e causas” — a saber, do ente. As primeiras razdes ¢ causas consti tuem assim o ser do ente. Apds dois milénios ¢ meio me parece que teria chegado 0 tempo de considerar o que afinal tem o ser do ente a ver com coisas tais como “raz” e“causa™s. Em que sentido é pensado o ser para que coisas tais como “razéo”’e “causa” sejam apropriadas para caracterizarem e assumirem o sendo-ser do ente? Mas nés dirigimos nossa atengao para outra coisa. A citada afirmagio de Aristé- teles diz-nos para onde esta a caminho aquilo que se chama, desde Plato, “filosotia”. A afirmagao nos informa sobre isto que € — a filosofia. A filosofia é uma espécie de competéneia capaz de perserutar o ente, a saber, sob 0 ponto de vista do gue ele é enquanto é ente, A questiio que deve dar ao nosso dialogo a inquietude fecunda ¢ 0 movimento e indicar para nosso encontro a diregao do caminho, a questo: que é filosofia? Aristételes Jé a respondeu. Portanto, néo é mais necessario nosso encontro. Esta encerrado antes de ter comegado. Revidar-se-4 logo que a afirmagdo de Aristételes sobre o que é a filosofia nao pode ser absolutamente a tinica resposta a nossa quest’io, No melhor dos casos, é ela uma resposta entre muitas outras. Com o auxilio da caracterizagao aristotélica de filoso: fia pode-se evidentemente representar e explicar tanto 0 pensamento antes de Aristdteles ¢ Plato quanto a filosofia posterior a Aristételes. Entretanto, facilmente se pode apontar para o fato de que a filosofia mesma, e a maneira como ela concebe sua esséncia, passou Por varias transformagSes nos dois milénios que seguiram o Estagitita. Quem ousaria nega-lo? Mas nao podemos passar por alto 0 fato de a filosofia de Aristételes e Nietzsche permanecer a mesma, precisamente na base destas transformagées e através delas. Pois as transformagdes so a garantia para o parentesco no mesmo. * Em francés, no texto, QUE £ ISTO — A FILOSOFIA? ae De nenhum modo afirmamos com isto que a definig¢&o aristotélica de filosofia tenha valor absoluto. Pois ela é ja em meio a historia do pensamento grego uma determinada explicagao daquele pensamento ¢ do que Ihe foi dado como tarefa. A caracterizagao aris totélica da filosofia nao se deixa absolutamente retraduzir no pensamento de Herdclito e de Parménides; pelo contrario, a definigao aristotél é de filosofia certamente é livre continuagdo da.aurora do pensamento e seu encerramento. Digo livre continuagao por- que de maneira alguma pode ser demonstrado que as filosofias tomadas isoladamente € as épocas da filosofia brotam uma das outras no sentido da necessidade de um processo dialético. Do que foi dito, que resulta para nossa tentativa de, num encontro, tratarmos a questo: Que é isto — a filosofia? Primeiramente um ponto: ndo podemos ater-nos ape nas A definigfo de Arist6teles. Disto deduzimos o outro ponto: devemos ocupar-nos das primeiras e posteriores definigdes de filosofia. E depois? Depois alcangaremos uma for mula vazia, que serve para qualquer tipo de filosofia. E entdo? Entdo estaremos 0 mais longe possivel de uma resposta a nossa questio. Por que se chega a isto? Porque, pelo processo ha pouco referido, somente reunimos historicamente as definigdes que esto af prontas ¢ as dissolvemos numa formula geral. Isto se pode realmente fazer quando se dis- poe de grande erudigao ¢ auxiliado por verificagdes certas. Nesta empresa nao precisa mos, nem em grau minimo, penetrar na filosofia de.tal modo que meditemos sobre a esséncia da filosofia, Procedendo daquela maneira nos enriquecemos com conhecimentos muito mais variados e sblidos e até mais titeis sobre as formas como a filosofia foi repre- sentada no curso de sua histéria. Mas por esta via nunca chegaremos a uma resposta auténtica, isto é, legitima, para a questio: Que é isto — a filosofia? A resposta somente pode ser uma resposta filosofante, uma resposta que enquanto res-posta filosofa por ela mesma. Mas como compreender esta afirmagio? Em que medida uma resposta pode, na medida em que é res-posta, filosofar? Procurarei esclarecer isto agora provisoriamente por algumas indicagdes. Aquilo que tenho em mente e a que me refiro sempre perturbara novamente nosso didlogo. Sera até a pedra de toque para averiguar se nosso encontro tem chance de se tornar um encontro verdadeiramente filoséfico. Coisa que nao esti absolutamente em nosso poder. Quando & que a resposta a questo: Que € isto — a filosofia” é uma resposta filoso: fante? Quando filosofamos nés? Manifestamente apenas entio quando entramos em d Jogo com os fildsofos. Disto faz parte que discutamos com eles aquilo de que falam. Este debate em comum sobre aquilo que sempre de novo, enquanto o mesmo, ¢ tarefa especi- fica dos fildsofos, € 0 falar, o légein no sentido do dialégesthai, 6 falar como dialogo. Se e quando o didilogo é necessariamente uma dialética, isto deixamos em aberto. Uma coisa é verificar opinides dos fildsofos edescrevé-las. Outra coisa bem dife- rente é debater com eles aquilo que dizem, e isto quer dizer, do que falam. Supondo, portanto, que os filésofos so interpelados pelo ser do ente para que digam o que o ente é, enquanto é, entZo também nosso didlogo com os filésofos deve ser interpelado pelo ser do ente. Nés mesmos devemos vir com nosso pensamento ao encon- tro daquilo para onde a filosofia esté a caminho, Nosso falar deve co-responder aquilo pelo qual 0s fildsofos so interpelados. Se formos felizes neste co-responder, res-pon- demos de maneira auténtica 4 questo: Que é isto — a filosofia? A palavra alem worten”, responder, significa propriamente a mesma coisa que ent-sprechen, co-respon- der. A resposta nossa questo nfo se esgota numa afirmagao que res-ponde a questo ‘com uma verificagdio sobre 0 que se deve representar quando se ouve 0 conceito “filoso fia”. A resposta nao 6 uma afirmagao que replica (n est pas une réponse), a resposta é 218 HEIDEGGER muito mais a co-respondéncia (la correspondance), que corresponde ao ser do ente. Imediatamente, porém, quiséramos saber 0 que constitui o elemento caracteristico da resposta, no sentido da correspondéncia. Mas primeiro que tudo importa chegarmos a uma correspondéncia, antes que sobre ela levantemos a teoria. A Tesposta a questo: Que € isto — a filosofia? consiste no fato de correspon- dermos aquilo para onde a filosofia esté a caminho. E isto é: 0 ser do ente, Num tal corresponder prestamos, desde 0 comego, atengao aquilo que a filosofia ja nos inspirou, a filosofia, quer dizer, a philosophia entendida em sentido grego. Por isso somente chega. mos assim a correspondéncia, quer dizer, a resposta A nossa questdo, se permanecemos no didlogo com aquilo para onde a tradigdo da filosofia nos remete, isto &, libera. Nao encontramos a resposta A questo, que é a filosofia, através de enunciados historicos sobre as definigdes da filosofia, mas através do didlogo com aquilo que se nos transmitiu como ser do ente. Este caminho para a resposta 4 nossa questo no representa uma ruptura com a historia, nem uma negagdo da hist6ria, mas uma apropriacdo ¢ transformagao do que foi transmitido. Uma tal apropriagio da histéria é designada com a expresso “destruigi0”, O sentido desta palavra é claramente determinado em Ser e Tempo (§ 6). Destruigio nao significa ruina, mas desmontar, demolir e pér-de-lado — a saber, as afirmagdes pura- mente hist6ricas sobre a historia da filosofia. Destruigao significa: abrir nosso ouvido, tomé-lo livre para aquilo que na tradigao do ser do ente nos inspira. Mantendo nossos ouvidos déceis a esta inspiragdo, conseguimos situar-nos na correspondéncia. Mas, enquanto dizemos isto, ja se anunciou uma objegdo. Eis o teor: sera primeiro necessario fazer um esforgo para atingirmos a correspondéncia ao ser do ente? Nao esta- mos nés homens ja sempre numa tal correspondéncia, ¢ nao apenas de fato, mas do mais intimo de nosso ser? Nao constitui esta correspondéncia 0 trago fundamental de nosso ser? Na verdade, esta é a situagio. Mas, se a situagdo é esta, entio nfo podemos dizer que primeiro nos devemos situar nesta correspondéncia. E, contudo, dizemos isto com Tazo, Pois nds residimos, sem diivida, sempre ¢ em toda parte, na correspondéncia ao ser do ente; entretanto, s6 raramente somos atentos inspiragao do ser. Nio ha divida que a correspondéncia ao ser do ente permanece nossa morada constante. Mas s6 de tem- Pos em tempos ela se torna um comportamento propriamente assumido por nés ¢ aberto a um desenvolvimento. $6 quando acontece isto correspondemos propriamente aquilo que concerne a filosofia que esta a caminho do ser do ente. O corresponder ao ser do ente € a filosofia; mas ela o somente ent&o e apenas entdo quando esta correspondéncia se exerce propriamente ¢ assim se desenvolve e alarga este desenvolvimento. Este corres. ponder se dé de diversas maneiras, dependendo sempre do modo como fala o apelo do ser, ou do modo como é ouvido ou nio ouvido um tal apelo, ou ainda, do modo como é dito e silenciado o que se ouviu. Nosso encontro pode dar oportunidade para meditar sobre isto. Procuro agora dizer apenas uma palavra preliminar ao encontro. Desejaria ligar o que foi exposto até agora aquilo que afloramos, fazendo referéncia a palavra de André Gide sobre os “belos sentimentos”. Philosophia é a correspondéncia propriamente exer- cida, que fala na medida em que é décil ao apelo do ser do ente. O corresponder escuta a voz do apelo. O que como voz do ser se dirige a nds dis-pde nosso corresponder. “Co- responder” significa entio: ser dis-posto. étre dis-posé, ° a saber, a partir do ser do ente. ® Disposicio (Stimmung) & um originarie modo de ser do ser-al, vineulado ao sentimento de situagio Gefindlichkei) que acompanha a derelicgio (Geworfenheit), Pela disposigao (que nada tem a vet com QUE E£ ISTO — A FILOSOFIA? 219 Dis-posé significa aqui literalmente: ex-posto, iluminado e com isto entregue ao servigo daquilo que é. O ente enquanto tal dis-pde de tal maneira o falar que o dizer se harmo- niza (accorder) com 0 ser do ente. O corresponder é, necessariamente e sempre e no ape- nas ocasionalmente e de vez em quando, um corresponder dis-posto. Ele esta numa disposigdo. E s6 com base na dis-posicio (dis position) o dizer da correspondéncia rece- be sua preciso, sua vocagao. Enquanto dis-posta e con-vocada, a correspondéncia é essencialmente uma dis-posi- go. Por isso 0 nosso comportamento é cada vez dis-posto desta ou daquela maneira. A dis-posigo no ¢ um concerto de sentimentos que emergem casualmente, que apenas acompanham a correspondéncia. Se caracterizamos a filosofia como a correspondéncia dis-posta, no é absolutamente intengdo nossa entregar o pensamento as mudangas for- tuitas e vacilagdes de estados de animo. Antes, trata-se unicamente de apontar para 0 fato de que toda precisio do dizer se funda numa disposigaio da correspondéncia, da correspondance, digo eu, a escuta do apelo. Antes de mais nada, porém, convém notar que a referéncia a essencial dis-posigao da correspondéncia nao ¢ uma invengao apenas de nossos dias. J4 os pensadores gregos, Plato e Aristételes, chamaram a atengdo para o fato de que a filosofia e o filosofar fazem parte de uma dimensdo do homem, que designamos dis-posigdo (no sentido de uma tonalidade afetiva que nos harmoniza e nos convoca por um apelo).. Plato diz (Teereto, 155 d): mdla gar philosdphou toiito (6 pathos, 16 thaundzein, ou gar dlle arkhé philosophtas hé haite. “E verdadeiramente de um fil6sofo este pathos — 0 espanto; pois nao ha outra origem imperante da filosofia que este”. O espanto é, enquanto pathos, a arkhé da filosofia. Devemos compreender, em seu pleno sentido, a palavra grega arkhé. Designa aquilo de onde algo surge. Mas este “de onde” no é deixado para tras no surgir; antes, a arkhé torna-se aquilo que é expresso pelo verbo arkhein, 0 que impera. O pathos do espanto nao esta simplesmente no comego da filosofia, como, por exemplo, 0 lavar das mos precede a operagao do cirurgifio. O espanto carrega a filosofia ¢ impera em seu interior. Aristételes diz 0 mesmo (Metafisica, 1, 2, 982 b 12 ss.): did gar 10 thaumdzein hoi Anthropoi kat nyn kat proton éresanto philosophein. “Pelo espanto os homens chegam agora e chegaram antigamente & origem imperante do filosofar” (Aquilo de onde nasce 0 filosofar e que constantemente determina sua marcha). Seria muito superficial e, sobretudo, uma atitude mental pouco grega se quisés- semos pensar que Plato ¢ Aristoteles apenas constatam que o espanto é a causa do filo- sofar. Se esta fosse a opinido deles, entao diriam: um belo dia os homens se espantaram, a saber, sobre 0 ente e sobre o fato de ele ser e de que ele seja. Impelidos por este espanto, comegaram eles 2 filosofar. Tao logo a filosofia se pds em marcha, tornou-se o espanto supérfluo como impulso, desaparecendo por isso. Pade desaparecer jé que fora apenas um estimulo. Entretanto: 0 espanto é arkhé — ele perpassa qualquer passo da filosofia, O espanto pathos. Traduzimos habitualmente pathos por paixio, turbilhao afetivo. Mas pathos remonta a paskhein, softer, agiientar, suportar, tolerar, deixar-se levar por, deixar-se con-vocar por. E ousado, como sempre em tais casos, traduzir pathos por tonalidades psicologicas).oser-no-mundo éradiealmente aberto. Esta abertura antecede oconhecere o querere € condigao de possibilidhue de yualyucr orientar se para prdiprns cit imtenciomalidde (veja se Ser e Tempo, § 29). Jogando com a riqueza semantica das derivagSes de Srinmung: bestimmt, gestion, abstieamen, Gestimmtheit, Bestimmntheit, Heidegger procura tornar claro coma esta disposigao é uma abertura que deter mina a correspondéncia ao ser, na medida em que ¢ instaurada pela voz (Stimme) do set. O filésofo toca aqui znas raizes do comportamento filosifico, da atitude originante do filosofar. 220 HEIDEGGER dis-posigio, palavra com que procuramos expressar uma tonalidade de humor que nos harmonizit ¢ nos con-voca por um apelo. Devemos, todavia, ousar esta tradugdo porque s6 ela nos impede de representarmos pathos psicologicamente no sentido da moderni- dade. Somente se compreendermos pathos como dis-posigao (dis-position) podemos tam- em caracterizar melhor o thaumdzein, o espanto. No espanto detemo-nos (étre en arrét). E como se retrocedéssemos diante do ente pelo fato de ser e de ser assim e nao de outra maneira. O espanto também ndo se esgota neste retroceder diante do ser do ente, mas no proprio ato de retroceder e manter-se em suspenso é ao mesmo tempo atrafdo e como que fascinado por aquilo diante do que recua. Assim o espanto é a dis-posigdo na qual e para a qual o ser do ente se abre. O espanto é a dis-posigdo em meio a qual estava garantida para 0s fildsofos gregos a correspondéncia ao ser do ente. De bem outra espécie é aquela dis-posigo que levou 0 pensamento a colocar a questo tradicional do que seja 0 ente enquanto é, de um modo novo, e a comegar assim uma nova época da filosofia. Descartes, em suas meditagdes, nao pergunta apenas e em primeiro lugar if 16 6n —~ que € 0 ente, enquanto é? Descartes pergunta: qual é aquele ente que no sentido do ens certum é 0 ente verdadeiro? Para Descartes, entretanto, se transformou a esséncia da certitudo, Pois na Idade Média certitudo nio significava certe za, mas a segura delimitagao de um ente naquilo que ele é. Aqui certitudo ainda coincide com a significagdo de essentia. Mas, para Descartes, aquilo que verdadeiramente é se mede de uma outra maneira. Para ele a divida se torna aquela dis-posigio em que vibra © acordo com o ens certum, o ente que & com toda certeza. A certitudo torna-se aquela fixagio do ens qua ens, que resulta da indubitabilidade do cogito (ergo) sum para 0 ego do homem. Assim o ego se transforma no sub-iectum por exceléncia, e, desta maneira, a esséncia do homem penetra pela primeira vez na esfera da subjetividade no sentido da egoidade. Do acordo com esta certitudo recebe o dizer de Descartes a determinagao de um clare et distinete percipere. A dis-posigio afetiva da divida é o positive acordo com a certeza. Dai em diante a certeza se torna a medida determinante da verdade. A dis-po- sigGo afetiva da confianga na absoluta certeza do conhecimento a cada momento acess vel permanece 0 pathos e com isso a arkhé da filosofia moderna Mas em que consiste 0 éélos, a consumagio da filosofia moderna, caso disto nos seja permitido falar? £ este termo determinado por uma outra dispo-sigio? Onde deve- mos nés procurar a consumagao da filosofia moderna? Em Hegel ou apenas .na filosofia dos tiltimos anos de Schelling? E que acontece com Marx ¢ Nietzsche? Ja se movimen tam eles fora da érbita da filosofia moderna? Se no. como determinar seu lugar? Parece até que levantamos apenas questées histéricas. Mas na verdade meditamos © destino essencial da filosofia. Procuramos pér-nos a escuta da voz do ser. Qual a dis-posigdo em que ela mergulha o pensamento atual? Uma resposta univoca a esta per- gunta é praticamente impossivel. Provavelmente impera uma dis-posigao afetiva funda- mental. Ela, porém, permanece oculta para nds. Isto seria um sinal para o fato de que nosso pensamento atual ainda ndo encontrou seu claro caminho. O que encontramos sio apenas dis-posigdes do pensamento de diversas tonalidades. Diivida e desespero de um lado ¢ cega possessio por princfpios, ndo submetidos a exame, de outro, se confrontam. Medo e angiistia misturam-se com esperanga e confianga. Muitas vezes ¢ quase por toda parte reina a idéia de que o pensamento que se guia pelo modelo da representagao e cal- culo puramente logicos ¢ absolutamente livre de qualquer dis-posiga0, Mas também a frieza do célcuto, também a sobriedade prosaica da planificagao sao sinais de um tipo de dis-posigao. Nao apenas isto; mesmo a raz&o que se mantém livre de toda influéncia das QUE E ISTO — A FILOSOFTA? 221 paixdes é enquanto razio, pre-dis-posta para a confianga na evidéncia logico-mate- mitica de seus principios ¢ regras. ® ‘A correspondéncia propriamente assumida e em processo de desenvolvimento, que corresponde ao apelo do ser do ente, é a filosofia, Que é isto — a filosofia? somente aprendemos a conhecer ¢ a saber quando experimentamos de que modo a filosofia é. Ela & ao modo da correspondéncia que se harmoniza e poe de acordo com a voz do ser do ente. Este co-responder é um falar. Esta a servigo da linguagem. O que isto significa é de dificil compreensio para nés hoje, pois nossa representagao comum da linguagem pas- sou por um estranho processo de transformagSes. Como conseqiiéncia disso a linguagem aparece como um instrumento de expresso. ’ De acordo com isso, tem-se por mais acer- tado dizer que a linguagem est a servigo do pensamento em vez de: 0 pensamento como co-respondéncia esta a servigo da linguagem. Mas, antes de tudo, a representago atual da linguagem esta tio longe quanto possivel da experiéncia grega da linguagem. Aos gre- gos se manifesta a esséncia da linguagem como o [dgos. Mas 0 que significa l6gos e lé- gein? Apenas hoje comecamos lentamente, através de miltiplas interpretagdes do légos, a descerrar para nossos olhos 0 véu sobre sua originaria esséncia grega. Entretanto, nds néio somos capazes nem de um dia regressar a esta esséncia da linguagem, nem de simplesmente assumi-la como heranga. Pelo contrario, devemos entrar em didlogo com a experiéncia grega da linguagem como légos. Por qué? Porque nés, sem uma suficiente reflexo sobre a linguagem, jamais sabemos verdadeiramente o que é a filosofia como a co-respondéncia acima assinalada, o que ela ¢ como uma privilegiada maneira de dizer. Mas pelo fato de a poesia, em comparagéo com o pensamento, estar de modo bem diverso e privilegiado a servigo da linguagem, nosso encontro que medita sobre a filoso- fia € necessariamente levado a discutir a relagao entre pensar e poetar. Entre ambos, pen- sare poetar, impera um oculto parentesco porque ambos, a servigo da linguagem, inter- yém por ela e por ela se sacrificam, Entre ambos, entretanto, se abre ao mesmo tempo um abismo, pois “moram nas montanhas mais separadas”. © 44 em Ser e Tempo (§ 29) se alude & disposigfo que acompanha a teotia e se afirma que “o conhecimento vido por determinages logicas se enraiza ontolégica ¢ existencialmente no sentimento de situagio, caracte- ristico do ser-no-mundo” (p. 138). Apontando para o fato de que a propria razio esta pre-dis-posta para con- fiar na evidéncia logico-matematica de sevs principios e regras, Heidegger fere um tabu que 05 sucessos da técnica ainda mais sacralizam. Mas, desc que Habermas, em seu livro Conhecimento e Interesse (Ed. Shut- amp, Frankfurt a. M. 1968), mostrou que atras de todo conhecimento existe 0 interesse que o dirige, que & teoria quanto mais pura se quer mais se ideologiza, pode-se descobrir, nas afirmagdes de Heidegger, uma antecipacio das razGes ontologico-existenciais da mistura do conhecimento ¢ interesse. Néo ha conheci- mento imune ao processo de ideologizago; dele n&o escapa nem mesmo 0 conhecimento cientifico, por mais exato, rigoroso e neutro que se prociame. 7” A critica da instrumentalizagao da linguagem visa a proteger o sentido, a dimenséo conotadora e simbé- lica, contra a redugo da linguagem ao nivel da denotagao, do simplesmente operativo. Nao se trata apenas de salvar a mensagem lingiifstica da ameaga da pura semioticidade, filésofo descobre na linguagem 0 poder do légos, do dizer como processo apofantico; entrevé na linguagem a casa do ser, onde o homem mora nas raizes do humano. Se lembrarmos as trés constantes que a tradigdo apresenta na filosofia da linguagem — a l6gica da linguagem, o humanismo da linguagem e a teologia da linguagem —, verificamnos que 0 filé- sofo assume a segunda, radicaliza-a pela hermenéutica existencial, carrega-a de historicidade ¢ transforma a Jinguagem em centro de discussao, pela idéia da destruigio da ontologia tradicional, a partir de sua tessitura ccategorial. Em Heidegger, uma ontologia ja impossivel & substitufda pela critica da linguagem, numa anteci- pagdo da moderna analitice da linguagem. Veja-se esta admoestagio do fikisofo que abre um texto seu, saido no jornal Neue Ziircher Zeitung (Zeicker, 21-9-1969): “A linguagem reptesentada como pura semioticidade (Zeichengebung) oferece © ponto de partida para a tecnicizagdo da linguagem pela teoria da informagio. A instauragao da relagao do homem com a linguagein que parte destes pressupostos realiza, da mancira mais inguietante, a exigéncia de Karl Marx: ‘Trata-se de transformar o mundo’ ”. 222 HEIDEGGER Agora, porém, haveria boas razées para exigir que nosso encontro se limitasse a questo que trata da filosofia. Esta restrigdo seria s6 entiio possivel e até necessria, se do didlogo resultasse que a filosofia no é aquilo que aqui lhe atribuimos: uma corres- pondéncia, que manifesta na linguagem o apelo do ser do ente. Com outras palavras: nosso encontro nao se propée a tarefa de desenvolver um pro- grama fixo. Mas ele quisera ser um esforgo de preparar todos os participantes para um recolhimento em que sejamos interpelados por aquilo que designamos 0 ser do ente, Nomeando isto, pensamos no que jé Arist6teles diz: “O sendo-ser torna-se, de miltiplos modos, fendmeno”. To dn légetai pollakhés. QUE E METAFISICA? NOTA DO TRADUTOR E tarefa primordial da filosofia conduzir 0 homem para além da pura imediatidade ¢ instaurar a dimensao critica. Superada a postura ingénua diante da realidade ¢ entdo possivel assumir responsavelmente a verdade como um todo. Pois somente a perspectiva que abre 0 comportamento filosdfico é capaz de antecipar os limites e as possibilidades das diversas areas em que se move a interrogago pela verdade. E por isso que o destino do homem e da historia depende da lucidez e distancia critica que so 0 apandgio da filosofia, Num momento de crise da sociedade brasileira, em que uma falsa seguranga é bus- cada com o sacrificio da liberdade; em que se elabora um projeto nacional comprimido dentro de uma visio tecnocratica, nada melhor que a serena meditagdo da filosofia, Ela nos ensina a paciéncia diante da historia e a coragem para apostar nas possibilidades que se escondem no risco da liberdade. Ela nos mostrar principalmente o verdadeiro lugar da ciéncia ¢ da técnica na construgao da historia humana, Todo o determinismo que se quer imprimir a sociedade brasileira e & consciéncia nacional, mediante a absolutizagio da tecnologia, deve ser desmascarado pela consciéncia critica instaurada pela filosofia. Ela é um instrumento de libertagdo das amarras deste novo positivismo teenocratico com que o sectarismo e 0 interesse nos querem prender. Que & Metafisica?, de Heidegger, ¢ um texto de grande penetragio e oportunidade. Os amplos horizontes que descerra garantem contribuigao segura para o despertar da verdadeira consciéncia critica. Com rara felicidade o filésofo desenvolve neste texto o horizonte metafisico em que o cientista antecipa a visio da totalidade e clarifica as con- digdes de sua propria existéncia de pesquisador. A luz da tanscendéncia exercida no comportamento concreto destacam-se as possibilidades e os limites da pesquisa cienti- fica, do cdlculo e da técnica, e prepara-se um novo pensamento, Dele Heidegger nos fala insistentemente como de uma terra onde o homem reencontra suas raizes. As notas que seguem procuram situar a obra em seu verdadeiro lugar. Antecipam elementos importantes para uma interpretagao adequada das idéias centrais. 1. Origem dos Textos — Depois de varios anos de atividades na Universidade de Freiburg im Breisgau, como livre-docente, Heidegger deixara a companhia de seu mestre Husserl e aceitara o convite para a catedra de Filosofia em Marburgo, até entéo ocupada por Nicolai Hartmann. Ali trabalhou de 1923 a 1928, Neste ano foi convidado para assumir a catedra de Filosofia em Freiburg, vaga com a aposentadoria de Edmund Hus- serl, Ao comegar ali suas atividades de professor ordinario, Heidegger pronunciou, como era de praxe, sua primeira aula diante de todo o corpo docente ¢ discente da Universi- dade. Esta aula inaugural piblica, que teve lugar no dia 24 de julho de 1929, trazia o tf tulo Que é Metafisica? Publicado no mesmo ano, 0 texto integral da prelegao obteve pro- 226 HEIDEGGER funda repercuss%io. Provocou também muitos mal-entendidos. Parecia vir reforgar suspeitas despertadas ja por Ser e Tempo. Heidegger era promotor do niilismo, da filoso. fia do sentimento da angiistia ¢ da covardia, do irracionalismo que combatia a validez da logica. Em resposta as objegdes que se multiplicavam o fildsofo acrescentou a quarta edi- go de 1943 um posficio que respondia As abjecdes ¢ elucidava aspectos da prelego que suscitavam diividas ¢ mal-entendidos. Em 1949 0 autor publicou, com a quinta edicdo do texto, uma introduce com o titulo “Retorno ao Fundamento da Metafisica”, 2. Posigiio no Contexto da Obra — Se prescindirmos dos dois livros de sua juven- tude — a tese de doutorado O Juizo no Psicologismo e a de livre-docéneia A Doutrina das Categorias e do Significado em Duns Scot — e levarmos em conta apenas as obras da maturidade, 0 texto da prelegfio Que é Metafisica? & 0 terceiro trabalho impresso por Heidegger. Depois de Ser e Tempo e Kant e 0 Problema da Metafisica, Que é Metaft- sica? foi publicada no mesmo ano em que surgia Sobre a Esséncia do Fundamento no volume complementar do Anuario de Filosofia e Investigagdes Fenomenoldgicas, come morativo dos setenta anos de Edmund Husserl. Em 1933 se editou seu discurso de toma- da de posse da Reitoria da Universidade de Freiburg i, B, A Auto-afirmagdo da Universi- dade Alema. Além dos comentarios sobre a poesia de Hoelderlin, os primeiros textos marcantes publicados aps Que é Metafisica? so Sobre a Esséncia da Verdade em 1943 € a carta Sobre o Humanismo em 1947. Os textos do posfacio e da introdugio acrescen- tados posteriormente ja sio manifestagdes nitidas do segundo Heidegger. Revelam o gio em que o filésofo analisa a metafisica como histéria do ser. Os dois volumes inti tuiados Nietzsche, que contém as prelegGes entre 1936 ¢ 1946, retratam 0 contexto te tico em que nasceram os dois textos. 3. Elementos Caracteristicos — Heidegger toma como ponto de partida para a pre- lego uma situagao conereta: a reunio de pesquisadores, professores ¢ estudantes. Reali tica da existéncia cientifica e a partir dela procura responder o que é metafi Nao define a metafisica, Um problema que emerge do proprio comportamento do homem de ciéncia € examinado. A questo do nada como questio metafisica envolve toda metafisica e a existéncia global daqueles que interrogam. Assim é possivel respon der a pergunta pela metafisica aprofundando uma questo metafisica Dentro do mais auténtico estilo heideggeriano, a prelegdo marcha para seu objetivo. Importa, porém, acompanhar a tessitura da interrogagdo que perseguir a meta que, desli gada do movimento problematizador, aparece despida de qualquer interesse. Este enca. deamento dialético visa a arrancar 0 ouvinte ou leitor da postura ingénua e imediatista para eleva-lo ao nivel em que se deve desdobrar a interrogagiio metafisica. Atingido tal nivel, a resposta é encontrada pelo esforgo pessoal Que é Metafisica? & um testemunho desta pedagogia heideggeriana que socratica- mente faz participar do processo interrogador aquele a quem se dirige. Mas ela nfio se reduz a isto. Ha uma particularidade que a faz uma pedagogia propria da filosofia. Hei degger arranca o ouvinte ou leitor da imediatidade da postura natural em face das coisas € 0 leva a postura transcendental. Torna reflexo no interlocutor o exercicio cotidiano e npensado da transcendéncia. Mostra, pelo proprio movimento da interrogagao, 0 Fato de que o homem nio esta ao lado da pedra, da flor ou da estrela, mas que as envolve pela compreensdo numa estrutura referencial, abre um espago antecipador a partir do qual tomam sentido. Isto é a caracteristica primeira da existéncia humana e que Ihe dé a dis- tancia do mundo natural ¢ a faz ser transcendentalmente na cotidiancidade. Assumir, no exercicio da interrogagao, esta condigéo transcendental é proprio do comportamento filoséfico. QUE E METAFISICA? 227 magistrais andlises fenomenoligicas de Que é Metafisica?, que tanto lembram Ser e Tempo, nao visam a outra coisa, A fenomenologia é precisamente a arte de desve- lar aquilo que, no comportamento cotidiano, nos ocultamos a nés mesmos: o exercicio da transcendéncia. Por isso Heidegger nao permanece aqui na analitica existencial. Até a maneira como ela ¢ realizada ja vem marcada pela finalidade a que se dirige: 0 pro- blema do ser, que em sua radicalidade é precisamente a revelagio da condigZo transcen. dental do homem. Mas no texto que estudamos o ser & buscado a partir do nada. O pos facio dira que este € 0 véu do ser. A questo do nada é a que foi desencadeada a partir da pesquisa cientifica. Esta diregao ontoligica de toda a fenomenologia heideggeriana ¢ que a distingue da orientacdo puramente antropol6gica de Max Scheler ou da orientagio légico-gnosiologica de Edmund Husserl A marcha da prelegao mostra como toda problematica metafisica deve ser colocada a partir do homem, ainda que nele ndo deva parar. E o que separa radicalmente Heideg- ger de Husserl. Este transformara a ontologia em fenomenologia. Aquele, sem voltar atrés de Husserl, procura antes radicalizar a fenomenologia para recolacar o problema da ontologia. E a radicalizagao da fenomenologia é a radicalizagdo da subjetividade. E a partir desta ele recoloca o problema da ontologia. Heidegger, portanto, nao rejeita as conquistas do pensamento moderno. Leva-o as suas tiltimas conseqiiéncias e, mediante a radicalizagao, 0 supera para instaurar uma ontologia que aproveita as conquistas do pensamento moderno e supera, assim, também a ontologia classica A ontologia classica é superada através do proprio ponto de partida antropoldgico da fenomenologia, No pensamento grego a ontologia constituia 0 ponto de partida da interrogagao metafisica. Isto se mostrou, de modo inequivoco, na divisio da filosofia apresentada por C. Wolif no século XVIII. A partir da ontologia ou metafisica geral se constituiam as metafisicas especiais: cosmologia, psicologia racidnal e teologia natural. Considerado o ser como evidente, era possivel nele fundar toda a interrogago posterior. ‘Mas, uma vez posta em diivida a auséncia de problematicidage do ser, a ontologia perdia © privilégio de ponto de partida indiscutivel. Assim, aos poucos, a antropologia foi tomando a si o privilégio de ponto de partida para toda a interrogagio filoséfica. Esta mudanga, que foi iniciada com o pensamento moderno, representa um momento decisivo na obra de Heidegger. A analitica existencial do homem em sua cotidianeidade torna-se © ponto de partida necessario para a discussio do problema do ser, do mundo e de Deus. Na prelegao 0 problema do nada (0 véu do ser) é levantado a partir do homem, Nao é, sem diivida, uma dimensdo qualquer do homem que serve de ponto de partida, mas aque- la em que ele se revela na sua cxisténcia, enquanto exercicio da transcendéncia (Heideg- ger da uma interpretagdo etimoldgica de existéncia escrevendo-a ek-sisiéncia, para acen- tuar sua forga de transcendéncia). Desta maneira o homem & considerado o lugar privilegiado para a manifestagao do ser, manifestagio que se realiza pela experiéncia do nada. Nem é preciso chamar particularmente a ateng3o para a seguinte conseqiiéncia 1o- gica: assim como 0 conceito de ser se modifica quando se toma o homem como ponto de partida, assim também o nada. O nada heideggeriano se distingue nitidamente do nada grego e do nada da tradi assim como no pode ser confundido com a negativi- dade da filosofia moderna. Pelo que vimos até aqui. compreende-se também por que Heidegger nao chama expressamente a atengdo para a necessidade de uma ruptura com a atitude natural do cientista para que assim se instaure o ambito transcendental, No pensamento do fil6sofo desaparece a epoche ¢ o processo de redugo que procurava instaurar metodicamente a Tuptura com o mundo natural para atingir a dimensio transcendental. Para Husserl tal procedimento se impunha pelo fato de, segundo ele, o homem movimentar-se, em seu cotidiano, na atitude natural. Para Heidegger no ha propriamente um comportamento 228 HEIDEGGER natural do homem. Em todo o comportamento humano ja é exercida a transcendenta- lidade. O que importa & mostrar tal comportamento pela analitica existencial. A fenome- nologia nao sera um método que busca a transcendentalidade pelo processo redutivo; para Heidegger ela consiste em desvelar o que propriamente sempre est em marcha. A transcendentalidade nao reside na intelectualidade do sujeito, mas na pré-compreensio. do ser pelo ser-ai no homem. O texto Que é Metafisica? deve, portanto, ser meditado na dimensio em que se apresenta, a transcendentalidade. Todas as objegdes que contra ela se levantaram nasce- ram da postura do objetivismo ingénuo. O ‘inico modo de o filisofo responder as obje- Ges era determinar a verdadeira dimens%o em que toda prelegdo se movimentava. Entio caiam as trés objegSes principais: 1 — o nada nada tem a ver com qualquer tipo de nii- lismo ou pessimismo. Ele se apresenta, na prelegao, como o véu do ser. Isto s6 com- preende quem se desprende da atitude do objetivismo e se eleva para a dimensao trans- cendental. E ali que se desdobra a fenomenologia heideggeriana; é ali que o nada é um nome para o ser; 2 — também a angistia deve ser compreendida na dimensio transcen- dental. Ela no representa algum estado psicol6gico ou sentimento. E um acontecer no ser-ai (na dimensdo transcendental) em que se realiza a experiéncia do ser como o nada; 3 — 0 mesmo acontece com a légica. Heidegger no the nega a validez. Mostra apenas que ha dimensdes, ¢ uma delas é aquela em que se manifesta o ser, em que se ultrapassa © ldgico do entendimento. A verdade do ser ou a manifestco do ser ou, ainda, a compreensio do ser ultrapassa a légica dos entes. A dimensio transcendental vai em busca das condigSes de possibilidade da logic: © posficio acrescentado a prelegio procura tomar claro como é preciso ler ¢ compreender tal texto, Mas quem pergunta Que é Metafisica? problematiza a propria metafisica. E proble- matizé-la é situar-se fora dela. E a partir deste fato que o filésofo elabora a sua introdu- gdo. Para compreender o que é metafisica, é preciso voltar aos seus fundamentos. A isto se destina toda a obra do pensador. Somente se compreende a pergunta Que é Metaft- sica? quando se descobriram as razées, os fundamentos da metafisica. E para Heidegger a metafisica mergulha num fundamento que ela mesma ignora, Assim, nao é ela que responder a pergunta Que é Metafisica?, mas um pensamento que a superou, isto & que penetrou em seus fundamentos. E este o pensamento que o fildsofo desenvolve desde 0 comego de sua obra Ser e Tempo. O pensamento originario que retorna ao fundamento da metafisica somente pode fazé-lo porque superou o objetivismo da metafisica que con- fundiu 0 ser com o ente e nao pensa o proprio ser. Este somente pode ser pensado quando se parte da transcendentalidade do ser-ai, isto ¢, quando se leva em consideragdo aquela dimensdo em que misteriosamente o ser se revela no ser-ai. Na dimens&o que se abre com © encontro do homem com o ser pode surgir a metafisica. Ela, entretanto, ndo é capaz de pensar esta dimensio que ¢ seu fundamento e esconde em si a resposta 4 pergunta Que é Metafisica? Com a introdugdo Heidegger recapitula toda a marcha de seu pensamento, para reinterpreta-la e nela inserir a questo do nada a partir da qual se procurou responder 0 que é metafisica. 4, A Tradugdo — Ha passagens dos textos que traduzimos em que o sentido filos6- fico esta estreitamente vinculado com a lingua alema. Certos “topoi”: palavras, expres- sdes, frases carregadas de contetido essencial, exigem circunlocugdes. Mas isto vem em prejuizo da beleza da linguagem e obscurece, por vezes, 0 sentido exato que 0 autor quer QUE £ METAFISICA? 229 dar. Procuramos fazer um solitério esforgo para atingir um nivel aceitével na tradugao, tornando-a ao menos um instrumento itil para leitores indulgentes e para o exercicio de anélise de textos na universidade. TradugSes como estas exigiram o trabalho combinado de fil6sofos e filélogos. Nao para carregar as paginas com notas, mas para elaborar um texto em que se transportassem com fidelidade os conteddos expressos em alemio para uma lingua romanica. Tempos melhores talvez permitirlio que se tratem com a seriedade exigida os textos classicos que devemos usar no Brasil. Temos presente as exigéncias ¢ nfio esquecemos as inconveniéncias de uma tradugio. O texto poderd ser aprimorado pelo auxilio que prestarem os estudiosos, apontando erros e sugerindo modos mais claros € menos equivacos de dizer pensamentos dificeis. Utilizamos para a tradugdo a redagao da sétima edigdo alema e nao fazemos alu- sdes a redagGes anteriores. A discussio de certas modificagdes seria interessante, mas no se faz necessaria para compreendermos o texto que traduzimos. ‘Alguns talvez estranhardo a distribuigo da matéria no volume que apresentamos. Colocamos a introdugdo no fim do volume, em primeiro lugar, porque quisemos respei- tar a ordem cronolégica do aparecimento dos textos; em segundo lugar, porque, ainda que interligados entre si, 0 texto da introdugdo tem sentido independente; em terceiro lugar, porque 0 texto que sera mais usado para o estudo é 0 da prelegao. Poderiamos acrescentar um quarto argumento: num volume editado pela Editora Vittorio Kloster- mann, em 1967, ¢ que contém grande parte dos trabalhos menores de Heidegger, os trés textos em questdo so apresentados na ordem cronoldgica de sua publicagio. ' Finalmente, sugerimos, para a compreensio deste volume, a leitura de Sobre o Pro- blema do Ser. Ha ali referéncias explicitas a Que é Metaffsica?, que constituem preciosas elucidagées. Porto Alegre, 25 de janeiro de 1969. * Heidegger, M. — Wegmarken, Vittorio Klosterman, Frankfurt am Main, 1967, A PRELECAO (1929) QuE E METAFISICA? — A pergunta nos da esperangas de que se falara sobre a metafisica. Nao 0 faremos, Em vez disso, discutiremos uma determinada questo metafi- sica, Parece-nos que, desta maneira, nos situaremos imediatamente dentro da metafisica. Somente assim lhe damos a melhor possibilidade de se apresentar a nés em si mesma. Nossa tarefa inicia-se com o desenvolvimento de uma interrogago metafisica, pro cura, logo a seguir, a elaboragao da questo, para encerrar-se com sua resposta. O Desenvolvimento de uma Interrogagio Metafisica Considerada sob 0 ponto de vista do so entendimento humano, é a filosofia, nas palavras de Hegel, o “mundo as avessas”. E por isso que a peculiaridade do que empreendemos requer uma caracterizagao prévia. Esta surge de uma dupla caracteristica da pergunta metafisica De um lado, toda questo metafisica abarca sempre a totalidade da problematica metafisica. Ela é a propria totalidade. De outro, toda questio metafisica somente pode ser formulada de tal modo que aquele que interroga. enquanto tal, esteja implicado na questo, isto 6, seja problematizado. Dai tomamos a indicagdo seguinte: a interrogagio metafisica deve desenvolver-se na totalidade e na situago fundamental da existéncia que interroga. Nossa existéncia — na comunidade de pesquisadores, professores e estudantes — é determinada pela ciéncia, O que acontece de essencial nas raizes da nossa existéncia na medida em que a ciéncia se tornou nossa paixdio? Os dominios das ciéncias distam muito entre si. Radicalmente diversa é a maneira de tratarem seus objetos. Esta dispersa multiplicidade de disciplinas é hoje ainda apenas mantida numa unidade pela organiza- go técnica de universidades ¢ faculdades e conserva um significado pela fixago das finalidades praticas das especialidades. Em contraste, 0 enraizamento das ciéncias, em seu fundamento essencial, desapareceu completamente. Contudo, em todas as cigncias nés nos relacionamos, déceis a seus propésitos mais auténticos com 0 préprio ente. Justamente, sob o ponto de vista das ciéncias, nenhum dominio possui hegemonia sobre o outro, nem a natureza sobre a histéria, nem esta sobre aquela. Nenhum modo de tratamento dos objetos supera os outros. Conhecimentos mate- maticos nao so mais rigorosos que 0s filolégico-historicos. A matematica possui apenas © cardter de “exatidiio” e este ndo coincide com o rigor. Exigir da histéria exatidao seria chocar-se contra a idéia de rigor especifico das ciéncias do espirito. A referéncia a0 mundo, que impera através de todas as ciéncias enquanto tais, faz com que elas procu-

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