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Cad.Est.Ling., Campinas, (32):9-23, Jan/Jun. 1997 10 ANOS DE NEUROLINGUISTICA NO TEL MARIA IRMA HADLER COUDRY (IEL/UNICAMP) 1. HISTORIA DA AREA Este texto, em sua versdo oral’, abriu @ ciclo de Seminérios em Neurolingiifstica, em novembro de 1996, no IEL, ¢ teve como objetivo relatar a histétia da area. O ponto inicia) dessa histéria passa por uma questo fundante para a drea, considerando a forma como desenvolveu-se ¢ 0 ugar que a acolheu: 0 que significa estudar a linguagem patoldgica em relagdo & linguagem nao patologica? O contato préximo com a neurolingiifstica tradicional em minha formagdo’ fez-me perceber 0 Obvio para um lingiiista: 0 recorte sobre os fatos de linguagem feito para avaliar a linguagem patolégica foi mesmo que Saussure efetuou, motivado por razbes metodolégicas relativas & escolha do objeto da Lingiifstica. Por equivoco teérico, a Neurolingiifstica tradicional, assumindo esse recorte, considerou que tado 0 que fosse telativo a fala e a sva desordem, ou A lixeira da Lingiifstica (numa feliz expressao de Possenti, 1979) estaria fora do campo de estudos da Neurolingiifstica. Nessa época, a visio que se depreendia dos fatos de linguagem produzidos por baterias de testes psicométricos era seu papel essencialmente clinico de avaliacio € diagnéstico das afasias, sem preocupagio tedrica explicita. Uma vez. afésico, por lesdio cerebral, ao paciente cra passada uma bateria de testes arranjada de modo a que aparecessem os sintomas de tal ou tal afasia. Um bloco de tarefas metalinguisticas ‘Nesta versio, descrevi os primeiros movimentos de alunos e docentes do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) e do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, desde 1972, visando o estudo da relaglo da Lingiistica com a Biologia, da linguagem com o cérebro. Destaquei a contribuigio especial de meu orientador de mestrado, Prof. Dr. Armando Freitas da Rocha (IB/Unicamp) ¢ de meu colega Edson Frangozo cuja tese de doutorado, Linguagem interna e afasia, defendida em 1987, é referéncia crucial para a érea de neurolingiistica. A idéia de publicar 0 texto de Apresentagdo nos Cadernas, em mimero dedicado & Neurofingisica, delineou outa forma de escreer essa histria. De fevereiro a julho de i982, acolhida pelo Prof. Lebrun, segui o curso de Neurolingiifstica rministrado por ele na Universidade Livre de Bruxelas (ULB), do qual fez parte um estigio clinico em afasia no Hospital Bordet (hospital-escola da ULB), centrado na avaliagio ¢ diagnsetico neurolingiisticos, Este foi © primeira investimento que o Departamento de Linglistica fez para que eu aprimorasse minha formacio em patologia da tinguagem - necesséria para que eu obtivesse 0 saber téenico de avaliar e diagnosticar afasia - através de testes padronizados, seguindo a tradigdo da época, (gramaticais, escolares) faziam a doenga pronunciar-se diante das dificuldades encontradas. O que aconteceria se o estudo da linguagem patoligica - a afasia, no caso - fosse feito com base em uma outra concepgdo de linguagem - 0 que necessariamente instalaria uma reflexdo sobre os préprios pressupostos tedricos assumidos? Foi o que realizei como projeto em minha tese de doutorado (Coudry, 1986/88), orientada pelo Prof. Carlos Franchi c co-orientada pelo Prof. Haquira Osakabe, Nela, a concepgio de Jinguagem assumida foi aquela que segue a tradig’o de estudar a linguagem ptiblica, 0 sujeito, a enunciagio, os fatores que se conjugam na atribuicao do sentido, as imagens que se formam entre interlocutores, a dialogia que atua nos processos de significagao. Esta é uma concepgao abrangente de linguagem, baseada na hipétese de indeterminagio da linguagem postulada por Franchi, cujos conceitos de atividade constitutiva ¢ trabalho atribuem, sob pardimetros Antropo-culturais, a0 sujeito (mesmo afasico) o exercicio da linguagem (mesmo fragmentéria). O principio tedrico-metodolégico que norteou 0 estudo discursivo da afasia considera que 0 sujeito affisico passe por atividades significativas de linguagem, exercendo o papel de sujeito para produzir e interpretar sentidos: contar, comentar, perguntar, sugerir, pedir, estreitar relagdes, estar ligado is coisas do mundo, compreendé-lo para falar dele, etc. Por isso, nessa tese, defini a afasia - do ponto de vista lingiifstico - como uma alteragio nos processos de significagio, processos esses que tratei de analisar lingufsticamente em trés estudos longitudinais de caso. Durante os trés anos que acompanhei P, N e L, semanalmente, percebi que a andlise iingiitstica dos dados - seguindo os ensinaiientos de Jakobson de que a afasia é um problema de linguagem - leva-nos & compreensdo do que foi alterado pela afasia e do que fazer para intervir na doenga, Essa opgio teérica levou-me a expor 0 sujeito afésico as activités langagidres que sujeitos nao afasicos praticam, em diferentes situagées discursivas, onde ele poderia enfrentar seu déficit e onde aparecessem processos alternativos de significagdo’. Percebi que a saliéncia de tais processos é motivada pela atividade significativa que mantém com seu interlocutor. Percebi, também, que 0 sujeito, sabendo 0 que tem, consegue lidar melhor com seu quadro de dificuldades, de modo a agir sobre a doenga. Percebi, ainda, que 0 exercicio da linguagem pode mudar a configurago de uma sindrome, seja em relagdo A melhora na escala de gravidade, seja para compreender a légica propria da linguagem da patologia. A abordagem marcadamente discursiva de nossos estudos aparece na incorporagao, por razes tedrico-metodolégicas, da dimensao histérica ¢ social da linguagem, em que ‘0s homens, por ela, atuam sobre os outros, da dimensio intersubjetiva em que, por ela, os homens se constituem como sujeito, da dimenstio cognitiva em que, por ela, os homens atuam sobre 0 mundo, estruturando a realidade, Ao mesmo tempo, a abordagem marcadamente lingiifstica aparece na andlise dos dados, que incorpora varios dominios da Lingiifstica para explicd-los, abrindo possibilidades mais precisas de intervengio, de modo que 0 sujeito compreenda e administre suas dificuldades. 3 Exemplos desses recursos podem ser encontrados as p.153, 154, 182, 183 do “Didrio de Narciso: discursoe afasia” 10 Inicialmente, projetei como contribuigo para a area de Newrolingiifstica, o desenvolvimento de pesquisas de cardter tedrico-analitico, assentadas na anélise lingiifstica de dados - em contraposiyZo as pesquisas de cardter clinico-terapéutico, como tradicionalmente se fazia - para cumprir 0 dever de originalidade de sua historia. Uso essa expressio para qualificar a Neurolingiifstica que desenvolvemos, cujo dever de originalidade 6 0 de ter nascido no Departamento de Lingiiistica do Instituto de Estudos da Linguagem, numa época efervescente, com pesquisas importantes se consagrando, com movimentos académicos realizados em grupos de estudo, cursos, seminérios ¢ projetos nas areas de Aquisigtio da Linguagem, Projeto NURC, Andlise do Discurso, Sintaxe, Sociolinguistica, Seméntica Linguistica, Pragmética, Isto para dizer que a implantagdo da area foi sensivel aos corredores do TEL, como entre n6s referimo- 19s a um estilo muito académico de convivéncia. Um aspecto metodolégico que distingue os estudos projetados para a area de Neurolingiifstica do TEL relaciona-se com a natureza longitudinal das pesquisas que envolvem dados, por ser ela que possibilita a andlise lingiiistica atual e prospectiva. A afasia naa tem, sobretudo no Brasil, tradigao de tratamento. O seguimento sistemitico de sujeitos cérebro-lesados (registrado em fitas K7 ¢ em video) inicia-se pela avaliacao, cujo papel ¢ indicar - ¢ nao s6 classificar - @ que da linguagem esté alterado (por exemplo, em relagdo a processos de natureza sintitica, morfoldgica, fonolégica, seméntica, pragmatica, ¢, também, em relagio a condigdes discursivas do exercécio da Jinguagem). A partir dai, relaciona-se tal déficit com 0 estado cognitivo geral do paciente e com as dificuldades relacionadas @ outras atividades simbdlicas que envolvem 0 sentido, sentido esse que consideramos como sendo construfdo historicamente e partilhado por uma comunidade de falantes. Em suma, relaciona-se a linguagem da afasia ds dificuldades com atividades gestuais, com a percepgdo e com reconhecimento das coisas do mundo, organizadas em dominios de interpretagao. Tal avaliagdo informa 0 acompanhamento logitudinal e projeta uma rede de atividades linguistico-cognitivas a serem exercidas. Uma das tarefas a que meu trabalho de pesquisa se propés foi o de voltar sempre & definigao de afasia (formulada em 1986), pondo & prova seus termos em relagio a conceites e fatos, e expandindo-a para que recubra aspectos cognitivos, ou seja, para que relacione linguagem e cogni¢do. Beneficiada pela reflexdo sobre os niveis de andlise lingifstica formulada por Benveniste (1966) ¢ por Jakobson (1969), essa definigao adquiriu mais preciso quanto ao nfvel lingifstico alterado e sua repercussdo, em outros niveis, no funcionamento discursivo da Jinguagem, Jakobson (1975), referindo-se a Benveniste como um dos primeitos a propor a importéncia de estudos estritamente lingiifsticos sobre as sindromes afésicas, coloca a afasia como sendo, antes de tudo, uma desimtegragGo da linguagem relacionada ao quadro de um dado nivel lingiiistico, considerando as relagGes entre os demais nfveis e o todo da linguagem. * eaeiano Veloso, em entrevista ao Globo Repérter de 8/11/96, usou essa expressio para qualificar a brasilidade, como a sintese de uma cultura e de uma lingua, marcadas pela colonizago por portugueses, pela escravidio de negros africanos; pelo assujeitamento dos fndios que aqui jé estavam e pelas diversas outras. ‘racas de imigrantes que para aqui vieram. ul Para oferecer um tratamento tedrico aos dados e compreendé-los, bem como delinear uma configuragio semiolégica compativel com os sintomas lingiifsticos encontrados, também incorporamos em nosso patrimOnio tedrico estudos de linguagem que tematizam a nao homogeneidade do discurso (Coudry, 1986/88, Possenti 1986/88, Geraldi, 1990/1991), a nao univocidade do sujeito da linguagem, com os conceitos de heterogeneidade (Authier-Révuz, 1982), de polifonia (Bakhtin, 1970; Ducrot, 1984), com 0 prinefpio dialégico de tradigo bakhtiniana (Bakhtin, 1977), que se assenta a interdiscursividade e na dimensio interativa da linguagem, e com o postulado vygotskyano de que a atividade cognitiva nfo transcorre sem a maior ou menor participacdo da linguagem e néo se dé fora de condigdes interativas humanas (Morato, 1995). A formulagdo tedrica, levando em conta a relagao entre linguagem e cognigao, dos problemas de linguagem na afasia, produzida na area, de 1987 a 1992, é frute do trabalho de parceria académica e de co-autoria entre mim e Edwiges Morato, do que resultaram vérias publicagdes e participagdes em eventos cientificos. O cété neuropsicolégico de nossos estudos foi beneficiado pela contribuigao, nesse mesmo perfodo, da relag&o académica com Benito Damasceno, na Unidade de Neuropsicologia e Neurolingiifstica (UNNE), Departamento de Neurologia, Unicamp, onde mantemos, desde ento, estudos interdisciplinares. Neste perfodo, eu ¢ Morato tratamos de refinar conceitos tedricos de nossos estudos patolégicos, integrando-os “as novas tendéncias” que se colocavam para a Anélise do Discurso, relativas ao funcionamento discursivo da linguagem. O autor de referéncia para este propésito é Dominique Maingueneav. Assumimos, para dar conta das vias explicativas dos fatos patolégicos, 0 que se convencionou chamar de uma teoria de Tinguagem enunciativo-discursiva, em que se explicitam ¢ se tratam conceitualmente princfpios que, desde o inicio, nortearam os estudos neurolingiifsticos de tradigo proeminentemente Jingiifstica: a questo dos processos de significagao. Enunciativo, porque importa a enunciagdo para o outro, em meio a contingéncias proprias de uso social da linguagem; discursivo, porque é a forma de a linguagem expor- se como atividade significativa, condicionada por fatores 4ntropo-culturais dissimulados ou aparentes, Nosso esforgo de analisar sintomas que aparecem em condigées discursivas (portanto, ausentes da semiologia tradicional das afasias e de outras neuropatologias de linguagem, tais como a sindrome frontal ¢ as deméncias degenerativas) demandou a incorporagdo de outro dominio de estudo da linguagem - a pragmética lingtifstica - para tratar de questées enunciativas essenciais para explicar, por exemplo, sintomas néo analisados de afasias posteriores, referidos inespecificamente na literatura como problemas de compreensdo. Essa generalizagdo dificulta a compreensiio do quadro afisico, 0 que repercute na imprecisio da configuragao semiolégica, limitando as possibilidades de o sujeito agir sobre sua condigao patolégica, ou seja, exercer controle sobre a doenga, O estudo de aspectos semanticos e pragméticos no contexto patolégico foi tema de dois textos que escrevi em co-autoria com Sitio Possenti sobre alteragdes no processo de significagdo de Iinguas naturais. O trabalho lingiifstico-cognitivo que a piada exige 12, para ser contada/interpretada, acionando vérios nfveis lingiifsticos e priorizando fundamentalmente um, tornou-se para nés um exemplar de como a integragio da Lingiifstica nos estudos de patologias de linguagem pode fazer avangar suas descrigies ¢ classificagées, compreendendo sua constelago semiol6gica’, A pesquisa sobre a introdugio sistemédtica de piadas em nossos protocolos de avaliagéo do nivel de andlise linglifstica alterado nas patologias adquiridas de linguagem tem se mostrado promissora, tanto no que se refere a elaboragio do diagnéstico, quanto & atientagao terapéutica. Além do mais, a motivagao tedrica para estudar alteragées lingufstico-cognitivas através de uma abordagem enunciativo- discursiva da linguagem é sensfvel a integraco de outros campos, como a pragmatica ¢ a semintica, para que seja realizada uma andlise mais precisa dos fatores envolvidos no déficit em questdo. As primeiras idéias do trabalho em parceria com Possenti tém resistido aos fatos, na forma de um desafio teérica-metodolégico para enfrentar a semiologia tradicional (ver Possenti & Coudry, 1991; Coudry ¢ Possenti, 1993). 2.0 CENTRO DE CONVIVENCIA DE AFASICOS - CCA" © Centro de Canvivéncia de Afisicos (CCA) é um grupo, conduzido por mim Edwiges Morato, de que participam pesquisadores, sujeitos cérebro-lesados ¢ alunos (bolsistas e pés-graduandos na frea de Neurolingtifstica © de Neurociéncias da UNICAMP), vivenciando situagdes de uso sociocultural da linguagem que demandam varias configuragbes textuais. O CCA faz parte da Unidade de Neuropsicologia Neurolingiifstica (UNNE), do Departamento de Neurologia, da Faculdade de Ciéncias Médicas da UNICAMP e do Departamento de Lingiifstica da UNICAMP, onde funciona. O CCA recobre a proposta de atendimento em grupo da UNNE e da direa de Neurolingiifstica do IEL e tem como eixo central o exereicio vivo da linguagem, em diversos contextos enunciativos, com alterndncia de interlocutores. Esse trabalho com a linguagem (Franchi, 1977, Coudry, 1986/88, Possenti, 1986/88 © Geraldi, 1990) requer a mobilizagio de varios processos cognitivos envolvidos na atividade simbélica de pracessos de significagZo, alterados nos sujeitos cérebro-lesados (linguagem em suas diferentes configuragdes textuais, processos °F produto dessa reflexio conjunta a orientacio te6rico-clinica conferida A tese de Mestrado de Monica Gandolfo, Sindrome frontal (leve) ou afasia semantico-pragmsitica, (defendida em dezembro de 1994), Nela, a autora mostra’o apazecimento de dificuldades semanticamente motivadas em wi paciente (RR) com sindrome frontal leve, cujo deficit lingtistico mais importante ~ até que se deu o trabalho énunciativo-discursivo com piadas e provérbios - concentrava-se no nivel pragmatico da inguagem. * Atualmente, 16 sujeitos cérebro-lesados (que recobrem quadros sindrémicos de afasias, ¢ sindrome frontal) da UNNE integram 0 CCA, em dois grupos: um que funciona desde 1989 e ost formado a partir de 1996. Cada sujeito que integra o CCA passa por uma avaliagio Neurolégica e Neutopsicolégics, condurida por Benito Damasceno,e Neurolingtistica, conduzida por im ¢ Morato, ¢ um conjunto de fonoaudislogas € neurolingustas, até entdo orientadas por mi, ¢ vinculadas a Pés-Graduagao em Lingifstica/lEL, érea de Neurolingistca, ¢ & pés-graduagio em Neurociéncias/FCM. Em principio, cada paciente & acompanhado Jongitudinalmente por uma dupisformada por neurolinguista & fonosudiGlogo, duas veaes por semana, ems sessbesindividuais ov em uma individual e uma no CCA, conforme cada caso demanda. 13 cognitivos relativos 4 memiéria, atengdo e percep¢ao, raciocinio através de inferéncias, gestos). Como no atendimento individual, que todo paciente do CCA tem, 0 objetivo do atendimento em grupo é tornar visiveis tanto as alteragdes que ele apresenta e as tentativas de superé-las, quanto 0s processos alternativos de significagao de que langa mio para enfrentar as atividades verbais e nao verbais &s quais € exposto. OCCA 6 0 laboratério de pesquisa neurolingiifstica do Projeto Integrado apoiado pelo CNPq desde 1992 - Contribuigdes da pesquisa newrolingiitstica para a avaliagdo do discurso verbal e ndo verbal - que tem promovido um contexto académico instigador, a partir do que avangamos na formulagio tedrico-metodolégica das condigdes patoldgicas da linguagem. Tal projeto também investe na organizagio dos dados da area, na confecgdo tedrica de um banco de dados, patriménio académico a que nos propomos o dever de organizagio. A pesquisa neurolingtifstica (Coudry & Morato 1990, 1992) sobre avaliagao do discurso verbal ¢ nao verbal que sustenta esse projeto baseia-se, no que tange & concepgdo de linguagem, numa perspectiva discursiva bem delimitada: aquela que assume conceitos ¢ prinefpios de andlise de dados da vertente enunciativa da chamada Escola francesa de Andlise do Discurso (AD), que se define como disciplina pelo ponto de vista também lingiiistico sobre seu objeto e que integra em seu dominio tanto questées enunciativas quanto o lugar da enunciagdo e o modo de configuragio textual. Em relagao a essa Neurolingiifstica - comprometida com o estudo de alterages de processos de significagdo em sujeitos cérebro-lesados (Coudry, 1986/88) - essa AD fornece motivago tedrica para que a avaliagdo lingiifstico-cognitiva seja um registro amplo de tais processos; ou seja, que a linguagem (mesmo fragmentéria) se exiba em toda sua complexidade, oferecendo visibilidade ao que esta ou nao alterado, a0 que falta e a0 que excede, em rela¢o ao funcionamento normal da linguagem (Coudry, 1993, Morato, 1995). Em outras palavras, tomamos a avaliagio dos processos de significagio ¢ a orientagio terapéutica num quadro de referéncia teérica fundamentalmente enunciativo e que contempla as diversas instincias verbais de uso da linguagem. E ponto central para essa Neurolingiifstica investir no levantamento andlise. do conjunto de sintomas lingiifstico-cognitivos que os sujeitos gue acompanhamos apresentam e programar seu seguimento longitudinal. Esse modo de conceber a linguagem aponta para 0 fato de que os contextos de uso (mental sociocultural) da linguagem (a ser avaliada ¢ tratada) no devem se restringir a discursos condicionados por tarefas metalingiifsticas. Ao contrério, devem concentrar- se no uso da linguagem veiculado pelos sujeitos da linguagem (locutor ¢ interlocutor), de modo a produzir um conhecimento mais completo possivel do déficit (por parte do sujeito e do investigador) ¢ vias explicativas, baseadas nos niveis de andlise lingiifstica eno funcionamento discursivo da linguagem. 14 3. FORMACAO ACADEMICA 3. 1, Prospectivas para a érea Como descrevi, sucintamente, nesse texto, 0 recorte teérico-metodolégico que introduzimos no estudo lingifstico de neuropatologias da linguagem (iniciado pelo da afasia, a partir de 1982) produziv uma definigdo de afasia, a partir de argumentos lingifsticos, Minha tese de doutorado (1986) - Didrio de Narciso: Discurso e afasia - andlise discursiva de interlocugdes com afésicos - elegeu uma tese crucial para o estudo da linguagem, no contexto patolégico, qual seja, a de que a afasia produz alteragdes de process0os lingiifsticos de significago, condicionados pot varios fatores que se estendem além do estritamente dito e que também si condicionados pelo que pode e deve ser dito, 0 que confere um cardter discursivo a nosso estudo. Ressalta-se, nessa perspectiva, © exereicio da condigda de sujeito, sem o que nao é possfvel a linguagem (mesmo a patol6gica). Como jé indiquei, a reflexdo de Benveniste e Jakobson ¢ aquela veiculada pelos estudos discursivos de tendéncia enunciativa, contribufram crucialmente para que essa defini¢ao adquirisse mais preciso quanto ao nivel lingiifstico alterado, bem como a0 de sua repercussio no funcionamento discursivo da linguagem. Dois pontos destacam-se na pesquisa de tendéncia analitica que nossos estudos realizam: o valot semiol6gico que 0s dados longitudinais imprimem na configuragao da doenga e as condigdes discursivas de sua produgdo. Tal tendéncia revela-se na andlise de dados, suscitando, pois, uma partivipago esucial da lingiiistica no estudo de patologias que afetam a linguagem, em suas varias dimensdes, bem como sua relagio com os demais processos cognitivos de significagao. © movimento de formagio académica’ na érea resultou numa série de dissertagdes de mestrado € teses de doutorado, projetadas ¢ desenvolvidas para recobrir um programa de estudos lingiisticos relativos a processos de significagio de natureza fonol6gica, sintética, semantica ¢ pragmética, alterados por patologias cerebrais, bem como estudos te6ricas € conceituais que fazem avangar a teoria da linguagem ¢ sua relagdo com processos cognitivos. © movimento conceitual em torno do estudo lingifstice de neuropatologias de linguagem produzido por essas pesquisas explicita questées metodolégicas cruciais para estudos de carer Jongitudinal, bem como promove a reinterpretagio de itens semiolégicos, sobretudo considerando que os dados por elas analisados provém de instancias de uso culturalmente partilhado de linguagem em préticas discursivas (formulagdo desenvolvida por Maingueneau, 1987, 1991). 3.2. Dissertagies e teses em neurolingiifstica A tese de doutorado de Margareth de Souza Freitas (1997) Alteragdes fono- articulatérias nas afasias motoras: um estudo lingiifstico concentra-se em aspectos 7 Aé enti, foram defendidas 4 dissertagGes de mestrado ¢ 4 teses de doutorado, cuja referéncia consta a bibliografia. deste texto; esto em fase final de redagdo és dissertagoes de mestrado; quatro teses de doutorado e duas dissertagdes de mestrado estdo em elaboragao, 15 fonético-fonolégicos das afasias, explicitados como alteragdes lingtifsticas, do que decorre um rearranjo semiolégico das afasias motoras, desfazendo muito da confusio terminolégica ¢ conceitual que caracteriza a relagio entre a apraxia verbal ¢ 0 déficit afésico. Os dados do acompanhamento longitudinal (desde 1983) do sujeito P e a relevincia do tema agramatismo para a drea motivaram duas teses que recobriram 0 estudo de processos de significagdio de natureza sintitica: a dissertagio de Rosana Novaes Pinto (1992) - Agramatismo: uma contribuigéo para o estudo do processamente normal da linguagem estuda a relayao entre patologia ¢ processamento normal, incorporando a variagao nos padrdes de agramatismo ¢ as mudangas a0 longo do seguimento longitudinal, como se deu com P na melhora de seu quadra afiisico ¢ nas solugdes pragmaticas que encontrou para resolver o que sua complexidade sintética ndo dé conta, A tese de doutorado de Reny Maria Gregolin-Guindaste (1996) - 0 Agramatismo: um estudo de caso em Portugués - analisa 0 seguimento longitudinal de P, em tertmos da reconstrugo de sua sintaxe, a luz da Gramética Gerativa proposta por Chomsky, a partir dos anos 80, relacionando a melhora do quadro afésico com a obediéncia a certa hierarquia das categorias funcionais. A dissertagdo de mestrado de Ménica Gandolfo (1994) - Sindrome frontal (leve) ou afasia semantico-pragmdtica - baseada num estudo longitudinal de caso, aponta dificuldades semanticas que condicionam o sentido que uma palavra tem, num contexto Particular de uso, a seus varios sentidos possiveis, em outros contextos. As dificuldades seminticas detectadas somam-se dificuldades pragmaticas, produzidas por infragao de leis discursivas partilhadas culturalmente, que regulam 0 que pode e o que deve ser dito. A dissertagao de mestrado de Edwiges Morato (1991) - Das fungaes ¢ do funcionamento da linguagem: um estudo das reflexdes de L. S. Vygotsky sobre a ‘Fungao Reguladora da Linguagem' ¢ algumas impticagdes lingiiistico-cognitivas - promove um estudo minucioso da nogo de ‘Fungo Reguladora da Linguagem’ de Vygotsky, mostrando sua pertinéncia para o estudo da relagio entre discurso e cognigao e redimensionando-a no contexto de teorias lingiiisticas do discurso. Sua tese de doutorado (1995) - Um estudo da confabulagdo no contexto neuropsicoldgico: O discurso a deriva ou as sem-razdes do sentido - serve-se do estudo lingiifstico da confabulagao (por ser um fato exemplar de linguagem e envolver diversos processos que estdo em jogo na construgio da significagdo e suas contingéncias), bem como de seus aspectos neuropsicolégicos, para fazer avangar 0 estudo do quadro relacional entre linguagem e cognigio. A tese de doutorado de Dayse Borges Keiralla (1994) - Sujeito com dificuldades de aprendizagem x sistema escolar com dificuldades de ensino e a dissertagio de mestrado (1995) de Ana Cristina de Aguiar - Consideragdes sobre aspectos neuropsicoldgicos da aprendizagem de leitura e escrita ¢ a prdtica pedagdgica - tematizam a questao da “produgo de uma doenga”, a dislexia especifica de evolugdo. A primeira mostra e critica a configuragéo da doenga na érea médica, apontando equivocos de ordem lingiifstica c cognitiva; a segunda analisa 0 processo de construgao da escrita, 16 relacionando-o a outros processos cognitivos, como atengao, meméria e percepcio, mobilizados em atividades que fazem sentido para a crianga. A dissertagdo de mestrado de Milica Satake Noguchi (1997) - A linguagem na Doenga de Alzheimer: consideracées sobre um modelo de funcionamento linguistico- cognitivo’ - discute a relagao entre 0 comprometimento seméntico dos sujeitos estudados e alteragées na percepgao visual, ou seja, as varias alteragdes cognitivas presentes nessa sindrome progressiva, sobretudo considerando que o expediente metodolégico utilizado foi a interpretagao verbal de figuras, insténcia que convoca dos sujeitos um trabalho sobre a Ifngua, a linguagem e a cognigao, 4, O DILEMA DE ENFRENTAR SUJEITOS "INTRATAVEIS": A LINGUAGEM COMO CHAVE-MESTRA Em todos esse anos venho tratando do sujeito em sua condigao patolégica, procurando pela légica prépria de sua linguagem. A dificuldade desse empreendimento € tanto maior quando ele encontra-se fortemente condicionado por um estado mérbido grave em que nao se consegue perceber tragos de sua presenca expressos por meio da Vinguagem, Em tais contextos patol6gicos, hid de se considerar a falta ou 0 excesso de percepgdo que 0 sujeito tem sobre as alteragdes provocadas pelo novo estado em que se encontra, uma espécie de protegdo ou defesa psfquica diante da gravidade de seu estado cognitive geral. Esse estranhamento apresenta-se sob a forma de um estado anosognésico que prowege ou defende o sujeito de sua condigéo patolégica, ao mesmo tempo em que o impede de atuar contra seu estado atual. Esse é 0 dilema para o qual a chave-mestra da linguagem pode ajudar a encontrar solugdes, E fato para essa abordagem neurolingiiistica que 0 sujeito tem varias faces, manifestas ou nao pela linguagem verbal © por oustas atividades simbélicas. E fato também, pelas afecgdes decorrentes da doenga, que 0 sujeito cérebro-lesado é mais condicionado em relagdo as possibilidades de produzir e interpretar sentidos do que 0 sujeito que tem condigdo de lidar com o funcionamento normal da linguagem. E sobre esse condicionamento, ¢ no limite sobre formas de aprisionamemo, que a feflexdo sobre casos “intratdveis” vem se fazer. Para ilustrar esse condicionamento € 0 conflito do sujeito diante da doenga, sirvo- ime de uma passagem do filme Do you remember love? - que tematiza a instalagao progressiva da doenga de Alzheimer - em que a protagonista Barbara Hollis, pocta © professora universitéria, comegar a sentir as primeiras dificuldades em sua vida académica, Voltando de uma licenga sabatica, viu-se diante de uma turma grande que nao conseguiria enfrentar. Para diminuir o niimero de alunos, colocou varias exigéncias em relagdo a seu curso, 0 que fez muitos alunos desistirem. Ao verificar que a classe estava de bom tamanho, referiu-se a essa “possibilidade inventiva de argumentos”, que : Essa dissertagio de mestrado em Neurociéncias - Faculdade de Ciéncias Médicas, Departamento de ‘Neurologia, UNICAMP - foi orientads pelo Prof. Dr. Benito Pereira Damasceno e co-orientada por mim. 7 rompe a l6gica do que pode e deve ser dito, comentando com os alunos que resistiram: how language can be abused! 4.1. O processo de desfrontalizagio do sujeito MS MS" (professor universitério, 57 anos, dextro, casado, trés filhos) softeu um traumatismo crineo-encefilico grave, na regio ¢émporo-parietal esquerda, pasando por ‘um coma prolongado (de {7 dias). De volta a convivéncia familiar, apresenta um estado cognitivo bastante alterado, seu cérebro e sua identidade alterados, pela natureza da lesio e pela repercussio frontal do traumatismo. Acompanho esse caso a domicflio com a fisioterapeuta Cléudia Mérmora e a fonoaudiGloga Blenir Fedosse (que desenvolvem dissertagdo de mestrado sob minha orientagdo), em sessées conjuntas, ora com uma, ora com outra, na tentativa de compreender 0 estado cognitivo geral do sujeito, para ajudé-lo a sair da condigao frontalizada em que se encontra, assumindo sua natureza humana. Meu desafio é algar” sua condigdo de sujeito, de modo que nao permanega & mercé de um cérebro gravemente traumatizado. E dificil enfrentar casos graves, sem que 0 sujeito compreenda, minimamente, 0 que Ihe aconteceu, devido a seu estado anosogndsico, que o mantém apartado de sua condigdo pré-mérbida, bem como impede-o de reconhecer seu estado atual (0 que, no caso, funcionou como uma espécie de proteco para o sujeito). Seu estado cognitivo esté to alterado que nffo entende 0 que se passa; sua condigo de sujeito € tio pouca que ndo Ihe 6 possivel reconhecer sua doenga. Para dar-Jhes uma idéia de seu estado inicial, € como se MS tivesse aportado em um mundo que no conhece (mais) e cujas regras Ihe sdo alheias, nfo sabendo (mais) quem é, nfo se reconhecendo como sujeito, nem atribuindo ao outro 0 papel de sujeito: nao h4 subjetividade nem alteridade. Nos primeiros dias em que retornou & sua casa, ele precisava ficar na cama (embora ndo tivesse déficit motor que o impedisse de andar), porque estava fraco, magro, sem comer € com uma agitagao muito intensa, somada a uma brutal forga fisica que seu cérebro lesado impunha & sua condigao humana indomada (pesava 39 quitos, mas empurrava a enfermeira, que tinha duas vezes o seu tamanho, para fazer inrefletidamente o que 0s impulsos desordenados de seu cérebro lesado demandavam).. ” A propisito desse caso, 0 texto Processos de subjeivagdo num caso de desfrontalizagao pés- traumdtica, apresencado nos Seminécios do Grupo de Estudos Lingistcos de 1997, Campinas/Unicamp eu, Claudia Mérmora e Elenir Fedosse descrevemos ¢ analisamos momentos cruciais das condigdes enunciativas de MS e sua relagdo com processos de subjevicao e alteridade, O objetivo deste testo € mostrar num caso grave de frontalizasio pés-traumatica 0 papel da inerocugio ~ ¢ de suas marcas de subjetividade © de alerdace na mudanga do estado cognitivo geal do sujeito pelo exereicio de sua condo linge, sentido de algar refere-se as diversas manifestagdes do sujeito, seja em relagio & sua condigdo patoldgica (através do que se passa a conhecer © conjunto de sintomas de seu quadro patolégico), seja em relagdo a sua condigo normal (convocado a atuar na reorganizagaa de processos patoligicos). Vale observar que um sujeito afésico nfo & sempre afésico ¢ um sujeito cont sindrome frontal no se encontra sempre frontalizado (bem como um sujeito nora! ndo € sempre normal). A instalagao (sobretudo abrupta) da doenga Produz um efeito na condigdo de sujeito - que passa a conviver com a telagao normal patoligico em condigdes mais extremas. 18 Tratar a linguagem de um paciente como esse é antes compreender seu estado cognitivo geral, ou seja, como esto os processos cognitivos (linguagem, atengao, percepcao, memoria, movimentos ¢ gestos) ¢ 0 trabalho (des)integrado por que passam tais processos. A linguagem mostrou-se - em sua qualidade de atividade significativa © de atribuigao de sentidos - a chave mestra para convocé-los. De setembro a dezembro de 1996, MS passou a apresentar um ruido laringeo intenso e constante em estado de vigilia, que se tornava mais intenso quando irritava-se, forcando gravemente as pregas vocais. Seus movimentos nao foram atingidos pela lesio, mas, sim, o sentido e a diregao de seus gestos. Era capaz de andar, mas nao reconhecia o sentida da marcha. Dava o passo maior do que a perna, descia as escadas sem perceber que podia cair (jogava-se pelas escadas ¢ derrubava quem tentava seguré-lo). Recusava- se a comer, ndo parava em lugar nenhum, Passamos a ir a sua casa todos os dias, para que ele nos reconhecesse. A primeira coisa de que tratamos, para que 0 sentido se fizesse, foi o trabalho com o seu corpo, dando diregdo a seus gestos. Eu participava ora das sessdes da fisioterapeuta, ora da fonoaudidloga, para integrar as atividades possiveis, de serem realizadas diante de seu estado. Explicava-Ihe tudo que era feito e porque estivamos ali. Logo na primeira semana, conseguimos que ele nos desse a mao dircita (negligenciada até entao) ao nos cumprimentar, seu primeiro gesto com sentido, que a fisioterapeuta integrou no trabalho com seu corpo: foi quando ele juntou as duas més, incorporando os dois lados de seu corpo. Todo o trabalho da fisioterapeuta buscava, através de comandos verbais, que o sujeito MS “aparecesse” ¢, com ele, a possibilidade de sentido e de controle dos movimenios. Meu papel era o de dar sentido ao que fazfamos, compreendendo cada vez mais seu estado cognitivo geral, tomando todo o cuidado para que ele nao entrasse, sem protego ou defesa, em contato direto com a gravidade de seu estado. A palavra de ordem era controle das agdes sem sentido (controlar a interferéncia em sua labilidade ¢ agitagao motora dos rufdos do mundo, tais como 0 do telefone, 0 do canto de passarinhos, o de carros na rua de sua casa, 0 da chuva, etc.), que intervinham no que estivesse fazendo e o dispersavam com tal forga que o faziam levantar-se abruptamente da cama e despencar correndo pelas escadas. O que se estava fazendo era anulado por qualquer coisa, 0 que mostrava quanto sua percep¢ao estava desfigurada e quanto sua atengdo estava sem qualquer foco seletivo. Evidentemente, o fato de MS ndo compreender 0 que se passava e nada fazer sentido tornava muito dificil ajudé-lo. Destaco, nesse caso, bem como em outros graves que tenho acompanhado, 0 papel do outro na constituigao da subjetividade. Nesse caso especifico, 0 proceso patolégico decorrente da frontalizagio liberou uma sucessio de reagdes patolégicas que dificultavam que 0 interlocutor pudesse algar o sujeito MS, impedido de se manifestar por sua condigao patolégica. A cada exploso emocional, eu mostrava-lhe seu cardter irrefletido, pois que, de fato, nao era dirigida a ninguém, mas determinada pela doenga, que aprisionava sua capacidade de locutor de se colocar como "sujeito” (Benveniste, 1966) © de reconhecer a alteridade. Quando a fisivterapeuta the dava os comandos verbais, empurre a sua perna, essa que eu estou segurando contra o meu peito, era-lhe muito dificil dar sentido ao gesto solicitado. Foi fazendo junto com ele, levando com a minha mao sua perna junto ao peito da fisioterapeuta, que MS projetou forga suficiente 19 no movimento solicitad contra 0 corpo dela, controlando outros movimentos que pudessem interferir no sentido daguele gesto, a ponto de conseguir fazé-los sozinho. A ‘compreensio da linguagem de instrugdo (coloque a perna contra meu peito, apertando- 0) passa pelo sentido que 0 gesto adquire com 0 outro, pois envolvia partes do corpo dos dois sujeitos. Era preciso integrar 0 que 0 outro dizia com o que ele deveria executar. Isso exigia um controle por parte de MS de seu cérebro lesado, ou seja, um controle de seu estado frontalizado geral em relac¢do a um trabalho integrado dos processos cognitivos: linguagem, atengdo, meméria, percepgio, raciocinio inferencial, requisito bésico para a reorganizagio de sua condigdo de sujeito, Para fazer o gesto solicitado, era preciso reconhecer 0 do outro, calculando o sentido das instrugdes verbais. Foi a partir de situagdes com sentido para os interlocutores que MS comegou a exercer um controle sobre a incomprecnsdo desse estado cognitivo frontalizado (somado ao fato de sua personalidade pré-mébida ser irreverente, de nao se dobrar ao que nao acredita, de ser desconfiado, de fazer 0 que queria e de nao limitar suas ages a regras institufdas). A palavra de ordem para ele, quando eu chegava, era controle (eu segurava em sua mio direita, colocando-me ao lado de sua cama, pois, devido & ptose da pilpebra esquerda, seu campo visual esquerdo estava reduzido), pois 2 pressa dos movimentos impedia nessa época qualquer atividade reflexiva, dificultando que ele atribufsse sentido a seus gestos impulsivos, sem alguma l6gica aparente. Foi pela atividade significativa ¢ pela busca de intercompreensio que travamos com MS que ele foi conseguinds ver sentido no que fazfamos ¢ dizfamos, quando lhe explicévamos 0 controle que ele precisava exercer sobre a parte lesada de seu cérebro (nao deixando 0 sujeito MS a deriva), por exemplo, controlando 0 ruido intenso que fazia, forgando as pregas vocais, a0 mesmo tempo em que mantinha a boca fechada quando néo estava tentando falar. Em sessées conjuntas, explicdvamos 0 porqué da estimulagio dos misculos da face, dos érgios intra-orais; da propriocepgo ¢ do reconhecimento do desgaste provocado por seus gritos em suas pregas vocais, 0 que impedia o uso da cavidade oral para articular. Em seis meses, ele conseguiu controlar a condic&o contraditéria imposta pela frontalizagao: 0 rufdo intenso ¢ os gritos constantes foram substitufdos por um rufdo menos intenso, expresso especificamente quando queria falar, 0 que garantia a seu ipterlocutor am espago silencioso para scu turno, Chamamos, ‘entéio, sua atengo para o fato de que conseguia exercer controle sobre a abertura de sua boca e para o fato de que seu olhar jé tinha uma orientago dirigida, mantendo 0 foco sobre 0 outro ¢ desenvolvendo expressdes significativas com a face, com as maos ¢ com © corpo. Um fato surpreendente em que se reconhece 0 sujeito MS, em sua condigio pré- mérbida: solicitado a escrever o que antes da doenga era-lhe trivial, fez uma matriz (template) em que se identifica o sentido do que escreveu, ndo em seu conteddo, mas na forma de um esbogo de escrita. Parecia saber o que fazia, uma carta ou um oficio. Batendo o olho de longe sobre a folha escrita, reconhece-se que ele preencheu o higar da data, logo abaixo a referéncia ao destinatério, depois um texto de uma pagina e, por fim, sua assinatura. Olhando de perto, identifica-se o limite de palavras, em seqiiéncias de letras que nao formam palavras, mas saltava aos olhos as letras de seu sobrenome. Essa resposta a meu pedido mostrou-se bastante diferenciada em relagdo a que me foi 20 dada dois meses antes, Nessa ocasido, percebendo que, toda vez que MS passava perto do computador que havia em seu quarto, mexia apressadamente no teclado e fitava-me por instantes com um olhar familiar, solicitei-Ihe que escrevesse, dando-Ihe uma folha de papel. MS rabiscou rapidamente o papel, em que nao se reconhecia nada, e jogou a caneta no cho. Depois da segunda tentativa, comentei com ele a diferenga do que conseguira fazer, ao que ele, pela primeira vez, parou, sorriu e apertou-me a mio com ‘vérios toques, gesto que faz sentido entre sujeitos. 4.2. 0 encontro com o sujeito LS Tenho aprendido muito com 0 seguimento de casos "intrataveis", de “pacientes” condenados a reflexos, impulsos, interagdes patoldgicas, aparentemente irremedidveis. Venho percebendo que um sujeito cérebro-lesado ndo se apresenta todo tempo nessa condigio: foi o que reconheci também nos primeiros encontros com LS", portador de uma sindrome psico-organica, que apresenta como proeminente uma lesao cerebral frontal bilateral, deixando como sequela um estado demencial por graves perdas cognitivas, sobretuda seménticas. Um trago semiolégico fundamental de LS é a perda do conhecimento e da organizagio do mundo em sistemas de referencia fatuais e dominios de interpretagdo, culturalmente motivados e partilhados por sua comunidade de falantes (Franchi, 1977, 1986). Quando o vi pela primeira vex, ele gritava, se debatia, mordia a roupa ¢ cuspia constantemente, 0 que fez com que, naturalmente, as pessoas que conviviam com ele ficassem mais longe dele do que se fica, usualmente, de uma pessoa. Aproximei-me dele de tal forma que o cuspe me atingiu. Reclamei, disse 0 que ele tinha feito, que eu tinha nojo de cuspe, ao que ele me pediu desculpas, interpretando meu desconforto, © que wm “reflexo” do faria. Para pedir desculpas, hé de se reconhecer 0 outro e regras partilhadas por uma comunidade de falantes; outro que o interpelou como sujeito, condigao que o fez aparecer para exercer controle sobre o reflexo de cuspir (que foi se espagando ao longo de um ano © que, hoje, s6 em condigdes muito particulares apresenta-se). Na sessio seguinte, quando coloquei rosto na porta para fazer-me anunciar, vi que LS tinha levantado a fralda que usava como “babador” acima do nariz, de modo que s6 se viam scus olhos. Lembrei-me do cavaleiro mascarado de minha infaincia, introduzido por meu irmio, ¢ da idade proxima dos dois: fiz 0 barulho de cavalo trotando ¢ 0 grito do Zorro para chamar seu cavalo, ao que ele completou: Silver! Deparei-me, ento, com o sujeito LS, de quem comecei a tratar. Essa histéria, e 0 que As primeiras reflexdes sobre esse caso esto descritas no texto Condigdes de subjetividade e atologia cerebral, apresentado no I CELSUL, Florian6polis, abril de 1997. Nesse trabalho, mostro que LS tem preservada boa parte da fonotogia ¢ da gramdtica da lingua: falta-lhe, no enfanto, boa parte da linguagem, porque faltem-the parémetros seménticos através dos quais organizam-se e interpretam-se relagdes entre coisas do mundo e sujeitos que partlham umn sistema de referéncia cultural. Falta-the a condigdo de sujeito da linguagem pata atuar sobre 0 outro © sobre o mundo estruturando socialmente & realidade. Tal condigdo, durante o seguimento longitudinal de tx83 anos, tem sido “algada” por meio do cexercfcio da linguagem. 21 ela assinala em relagdo A expressio pela linguagem do sujeito e seu trabalho lingiifstico, estou tratando de escrever, em textos que compéem a séric sujeitos “intratdveis”. Em relagdo aos rumos que a integragdo de diferentes frentes de pesquisas pode tomar na drea de Neurolingiifstica, lembro a reflexao de Picasso sobre o papel de seus mestres na sua pintura, ¢ em seu vOo préprio. Qu'est-ce que c'est au fond un peintre? C'est un collectionneur qui veut se constituer une collection en faisant lui-méme les tableaux qu'il aime chez les autres. Clest comme ¢a que je commence et ga devient autre chose. Exposigdo Tempordria no Museu do Louvre - Les Copistes - Paris, junho de 1993. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS AUTHIER-REVUZ, J. (1982) Hétérogeneité montrée et hétérogeneité contitutive: éléments pour tune approche de l'autre dans le discours. DRLAY, 26. p. 91-151, BAKHTIN, M. (1970) La poétique de Dostoievski, Paris: Ed. du Seuil. . (1979) Marxismo e Filosofia da Linguagem. Tradugio de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira, 6* ed. Sao Paulo: Hucitec. BENVENISTE, E. (1966) Problémes de linguistique générale, Paris: Gallimard. COUDRY, M. I. H, (1986/88) Diério de Narciso: discurso e afasia. So Paulo: Martins Fontes. . (1993) Para bom entendedor meia palavra basta. In; Atas do IX Congresso Internacional da ALFAL, 385-403. Campinas: UNICAMP. COUDRY, M. I. H. e MORATO, E. M. 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