You are on page 1of 14
WO. 221. 39 Theodor W. Adorno NOTAS DE LITERATURA I Colegio Bsplrite Cetieo Ongena de eg alemé olf Tiedemann Traduploeapresentagio Jonge de Almeida Roberto Schwaet SBD-FFLCH-USP ing [Ad Livearia TA dues Cidades: editoralll34 2003 Palestra sobre lirica e sociedade antincio de uma palestra sobre lirica ¢ sociedade deve provocar, em muitos dos senhores, um certo desconfarto, Esta- #40 esperando uma dessas consideragSes socio linhavadas a bel-prazer sobre qualquer objeto, assim como hi cingiienca anos se inventavam psicologias e, bé erinta, Feno- menologias de todas as coisas imagindveis. Além disso, ficario desconfiados de que o exame das condigSes sob as quais deter- minadas configuragbes [Gebilde] foram criadase recebidas quer se intrometer no lugar da experiéncia delas mesmas; de que su- bordinagées ¢ relacGes deixardo de lado a percepcio da verdade ‘ou inverdade do préprio objeto. Os senhores levantarlo a sus- peita de que um intelectual pode acabar se tornando culpado. daquilo que Hegel reprovava no “intelecto formal ter uma perspectiva geral do todo, ficar acima da lar de que fala, isto &, simplesm (© que incomoda em um procedimento como este seré espe- cialmente sens{vel, para os senhores, no caso da lirica. Afinal, trata-se de manusear’o que hé de mais delicado, de mais frégil, sproximando-o justamente daquela engrenager, de cujo con- «ato 0 ideal da litica, pelo menos no sentido tradicional, sempre pretenden se resguardar. Uma esfera de expressfo que tem sua cesséncia precisamente em néo reconhecer © poder da socializa- Go, ou em superi-la pelo pathos da distancia, como no caso de Baudelaire ou de Niewsche, deve ser arrogantemente transfor- mada, por esse tipo de consideracio, no contrétio do modo co- mo concebea si mesma. Quem seria capaz de falar de liicae so ciedade, perguntario, sengo alguém totalmente desamparado pelas musas? Obviamente, essa suspeita s6 pode ser enfrentada quando composigées liricas nfo sfo abusivamente tornadas como obje- tos de demonstragio de teses sociolégicas, mas sim quando sua referencia ao social revela nelas préprias algo de essencial, algo do fundamento de sua qualidade. A refertncia 2o social nao deve levar para fora da obra de arte, mas sim levar mais fundo para dentro dela. E isso 0 que se deve esperar, ¢ até a mais simples reflexdo caminha nesse sentido, Pois o teor [Gebali] de um poe- ma néo éa mera expresso de emocées ¢ experiéncias Pelo contréio, estas s6 se tornam artsticas quando, em virtude da especificacio que adquirem ao ganhar forma es- tética, conquistam sua pattcipagio no universal. Nio que aquilo {que © poema lirico exprime senha de ser imediatamente aquilo ue todos vivenciam, Sua universalidade no é uma volonté de do daquilo que os outros sim- plesmente no séo capazes de com gulho no individuado eleva o poema lisco ao universal por tor- nar manifesto algo de néo distoreido, de nio captado, de ainda nio subsumido, anunciando desse modo, por antecipacio, algo de um estado em que nenhum universal ruim, ou s do algo particular, acorrente 0 outro, 0 universal humano. A ‘composigio litica tem esperanga de extrait, da mais irresti individuacéo, o universal. O risco peculiae assumido pela liric, entretanto, é que seu principio de individuagio néo garante nun- ‘ca que algo necessério e auténtico venha a ser produzido, Ela nio sem o poder de evitar por completo o risco de permanecer na contingéncia de uma existéncia meramente isolada Essa universalidade do teorlitico, connudo, é essencialmen- > atomisti cidade de eriar vineulos vive da densidade de sua sat sobre a obra de arte guntar concretamente pelo teor 5 vago sentimento de algo universal e abrangente. Esse tipo de determinacio pelo pensamento nfo é uma reflexéo externa ¢ alheia Marve, mas antes uma exigéncia de qualquer configuragio préprio dessa configuragéo, os conceitos, io, Para poderem ser ruidos, 0s conceitos sempre querem ser também pensados, € © pensamiento, uma vex posto em jogo pelo poema, nfo pode mais, a seu comande, ser sustado. Esse pensamento, porém, a interpretagio social da litica, co- ro alids de todas as obras de arte, nfo pode portanto ter em mira, sem mediagio, a assim chamada posicio social ou. insergio s0- cial dos interesses das obras ou até de seus autores. Tem de esta- belecer, em vez disso, como o fodo de uma sociedade, romada ‘como unidade em si mesma contraditéria, aparece na obra de ‘arte; mostrar em que 2 obra de arte lhe obedece ¢ em que a ultra- passa, O procedimento vem de ser, conforme alinguager da filo- sofia, imanente. Conceitos sociis no devem ser tazidos de fora as compotigdeslircas, mas sim dever surgit da rigotosa intuicso ddelas mesmas. Aquela frase das Mavimas e reflexies de Goethe, ‘que diz que 0 que nio entendes tu também nfo possus, nfo vale somente para o relacionamento estético com obras de arte, vale ais (allgemeine Verbinalichket] 1agdo. Por isso mesmo, 0 pen- autorizado e comprometido a per ial, a nfo se satisfazer com 0 também para a teoria est sus forma especifica, legitima a deciséo quanto aquilo que seu ‘01, 0 que foi pocticamente condensado, representa em termos sociais. Determind-lo requer, sem duvida, nao 56 0 saber da obra de arte por dentro, como também o da sociedade fora dela. Mas ‘esse saber s6 cria vinculos quando se redescobre no puro aban- donar-se & prépria coisa. Recomends-se vigilin de ideologia, hoje debulhado at do suportivel. Poisideologia ¢ inverdade, fsa consciéncla, menti- 1. Ela se manifesta no malogro das obras de arte, no que estas tém de falso em si mesmas, que deve ser apontado pela critica, Mas dizer de grandes obras de ate, que tém sua eiséncia no po- der de configuragéo ¢ apenas por iso sao capazes de uma recon iagdo tendencial das contradigées fundamentais da existéncia ue clas so ideologia, nfo ¢ simplesmente faerinjustica a0 préprio teor de verdade dessas obras, & também falseat 0 conceito de ideologia. Este néo afirma que todo o esplrito serve apenas para que alguns homens evencualmente escemoteiem eventuais inceresses particulares, fazendo-cs passat por universas, mas sim quer desmascarar 0 espirito determinado a ser filso e, 20 mes- mo tempo, apreendé-lo conceitualmente em sua necessidade, Obras de arte, entretanto, tém sua grandeza unicamente em dei. arem falar aquilo que a ideologia esconde. Seu pr6prio éxito, quer elas queiram ou no, passa além da false consciéncia, Permitam-me que tome como ponto de partida a prépria desconfianga dos senhores, que sentem lirica corno algo oposto sociedade, como algo absolutamente individual, A afetividade dos eenhoresfax-questio de que isso permanega assim, de que a expresso litica, desvencilhada do peso da obj 1 imagem de uma vida que seja livre da coerefo da préxis domi- nante, da utilidade, da pressfo da autoconservacio obtusa. Con ‘ado, essa exig@ncia fica lirica, a exigéncia da palavra vtginal, 4 em si mesma social. Implica o proteseo contra uma situagio so- cial que todo individuo experimenca como hostl,alien’ada, fria , uma situaco que se imprime em negativo na con! quanto mais essa situacio pesa sobre ela, mz flexivelmente a configuracio resi ‘Seu distanciamento da mera existéncia torna-se a medi- da do que hd nesta de falso ede ruim. Em protesto contra es, © ppoema enuncia 0 sonho de um mundo ern que essasituagao seria diferente. A idiossincrasia do espirito Ilrico contra a prepoténcia das coisas é uma forma de reacio & coisificagdo do mundo, & dominacio das mercadorias sobre os homens, que se propagow desde o inicio da Bra Moderna e que, desde a Revolugio Indus- trial, desdobrow-se em forga dominance da vida. Mesmno o culto & coisa [Dingkudtl, pretendido por Rilke, j& pertence ao circulo das, creditando metafisicamente em favor delas essa sua aliena- fo. A fraqueza estética desse culto & coisa, seu gesto afetadamen- te misceriosoe sua mistura de religto ¢ arcesanato, denuncia a0 mesmo tempo 0 real poder da coisificacio, que nio se deixa mais dourar por nenhuma aura litica, nem se resgatar pelo sentido. ‘Quando se diz que 0 conceito de litica, para nds algo ime- dato ¢ até certo ponto uma segunda naturezs, tem um caréter completamente moderno, apenas seesté exprimindo de mane!- ra diferente essa percepsio da esséncia social da lirica. De modo andlogo, a pincura de paisagens e sua idéia de “nacureza” 56 se desenvolveram auronomamente na Idade Moderna, Sei que es- tou exagerando 20 dizer isso, e que os senhores podeciararetrs- cat com muitos conra-exemplos. O mals incisivo seria Safo, Nio falo da litica chines, japonesa ou arabe, pois nfo aleio no or ginal e nutro a suspeita de due através da tradugio ela é apanha- cia por um mecanismo adaptativo que rorna completamente ime adequado, Mas as manifestagées mais no sentido especifico que nos é faini- $6 reluzem esporadicamente, asim como certos fundos da Bincuraancga s vezes anecipar,carregados de press Ga intura de pisagens. Ele no esabelecem a forma, Aquees grandes pects do pasado remoto que sio clas conceitos his iterdrios como representantes da litica, por Sramle Pindaro eAlceu, mas também boa parte da obra de dither von de: Vogelweide, etéo a uma distincis descomunal é ‘nossa mais priméria representacdo do que seja a lirica. Falta- hag, stele carder do imediato, do desmatrializado, que nos fabicamcs 2 considerar, justa ou injustamence, como critétio » € que apenas uma rigorosa formacio [il ralaos permive sapere, nn? (Bing! cae Entretanto, aquilo que encendemos por lirica, antes mes- ica € um ex que ese exprime come oposto ao colt, oberdade ee cagdo com a caruteza,& qual sua expressio se refer, tambon liagao. O eu lirico acabou sim ds, esa unidade com ancuraa ego ee restibelecé-, pelo animismo ou pelo merpulhono propio ca omente através da humanizacio hi de se devolvide Loans, 220 direio que the foi trado pela dominagdo humane denn cai nenhum iio da existencia convencional e objeciva, ne. lade crua, as mais altas composic i das por nova lingu,devem suadgailae renee com que nelas o eu desperta a aparéncia da nacureza, cecapand sobre lice e soviedade 2 alienagdo..A pura subjetividade dessas composigées, aquilo que elas parece harménico € nao fraturado, testemunha 0 contra- 16, 0 softimento com a existéncia alhefs ao sujeico, ber como © amor a essa existéncia — aids, sua harmonia ndo é propriamen- re nada mais que a consonancia reciproca deste softimento e desse amor. Os versos de Goethe “Warte nur, balde/rubest du auch” (Espera um pouco, logo / tu repousards também} ainda tém 0 _gesco de consolagio: sua abissal beleza ¢ inseparével daquilo que cles calam, da representagio de um mundo que rejeita 2 paz. Somente a0 compartilhar 0 luto por essa situagio o tom do poe- ma reafirma que, apesar de tudo, hé paz. Quase serlamos tenta- dos a ir buscar em auxilio, no poema vizinho de mesmo titulo, © verso “Ach, ich bin des Treibens mild” [Ah, estou cansado da fina), pata servir de interprecacio 20 “Wanderers Nachilied” [Norurno do andarilho). Este poema cerramente deve sua gran- deva 20 fato de que nio fala de nada alienado e pereurbados, de que, nele préprio, o desassossego do objeto nfio & contiaposto 20 sujelto: pelo contritio, o pocma reverbera 0 desassossego do pr6- 0. & prometida uma segunda imediatidade: 0 que & humano, a prépria linguagem, aparece como se fosse ainda uma ver a criagio, enquanto tudo 0 que vem de fora se extingue no eco da alma, Esse elemento humano, porém, é mais que aparén- cia, vorna-se verdade integral porque, gracas 3 expresséo verbal do bom cansago, ainda paira sobre 2 conciliagio a sombra do anseio, ¢ mesmo da morte: no verso “Warte nur, balde” a vida inteira se transforma, com enigmético sorriso de tristeza, no breve inscante que antecede o adormecer. O tom de paz testemunha que a paz nio foj alcancada, sem que entretanto 0 sonho tenha sido rompido. A combra nfo cem nenhum poder sobre a ima- gem da vida que retorna a siymesma, mas somente ela confere 0 sonho, como tltima lembtanga de sua deformagio, a pesada profundidade sob a cancéo sem peso. No semblance da nature- 2a.¢m repouso, do. ual se thang humane, ¢ ‘qual se apagaram os tracos de qualquer seme- interorita sua propria nulidade, Im. rora.em siléncio o que hé de conso- os que antecedem a bem-aventuranga eseparam da morte a cutta vida. Esse Goethe, deca em sarcasmo, Mas sem. Petmutérel, de mero ser c ara outros i Poneto eeceuermaanmces te do "Noturo”,entetanto, stem ses eran ts de es frea desta fist dear dy eagle peo tom de poss dade se Tce ine I em i mia, osc 0 infinio. Se isso for algo m: ~comu Fae oi igo mais que um lugar su i FEA mo, como paraetoren

You might also like