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DAVI ARRIGUCCI JR. HUMILDADE, PAIXAO E MORTE A POESIA DE MANUEL BANDEIRA 2edigao mim ETS an 8 xara 20 FROFESSOR actenael 1 ENSAIO SOBRE “MAGA” (Do sublime oculto) MAGA or um lado te velo como um seio murcho Plo outro como um ventre de cujo umbigo pende ainda o cordto placentétio fs ver Denteo de ti em pequenas pevides Palpita 2 vida prodigiosa Iafinitamente ha como 0 amor divino E quedas tio simples ‘Ao lado de um ralher Num quarto pobre de hotel. Pesropolis, 25/2/1938.) 1. OLHAR E FASCINIO Logo 2 primeira letura, 0 poéma chama a atencdo pelo aspecto visual. {A figura da maga se impOe a0 leitor desde o principio, como um objeto para © olhat, El visada diversas vezes, por partes, no todo e por dentro, até ser situada no espago, perto de outs coisas, Assim é vista por fora, mediante comparagoes em que se distinguem, antes, suas formas por lados opostos; em seguida, a plenitude de sua cor. Depois, vista por dentro, até aintimida de das sementes ea latencia de vida em seb interior. Por fim, se integra com perfeita nirmonia plstica, numa visio de conjunto do ambiente. Sempre co- moalgo quese déa ver. O efcito geral 60 de um quadto estitico, onde apenas se desloca o olhar palpita a vids latente — espécte de natureza-morta, 2 Por diversos lados, 2 poesia pode lembrar aqui sis: assim como a pintura, 2 poesia; a formula magica, para insinuar um paralelismo entre as duas artes, poderia valer neste C250, ‘Ou quem sabe, a antiga comparaco que faz da pintura poesia muda, c desta, imagem que fala? Infelizmente, porém, embora sugestivas, 2judam pouco a compreender 0 que o leitor experimenta no ato de leitusa e 0 que tem diante dos olhos. Ele é levado a situar-se como espectador, como quem olha um quadro. E mais, é levado 2 seguir um olhar, cujo movimento de mudancas bruscas, conforme diferentes angulos de visio, deve modular de algum mo- do 0 ritmo dos vessos que s6 se aquicta na Gltima estrofe, dando a impressto de regularidade, justamente quando a visio do detalhe se integra & unidade do todo. Ess2 modulagio pelo olhar sugere que 0 resultado — a sensacéo de quem observa um quadro — pode depender de procedimentos de com- posiglo andlogos 0s da pintura, Aceitando-se o paralelismo — 0 poema € ‘como um quadro — feito um caminho para se compreender, cabe refazer a analogia até o pormenor. De fato, desde os primeiros versos o poeta lembra a arte de um pintor, pelo modo de ver e de compor a natureza-morta a que o poema dé forma. ‘Como um pintor que, partindo da imitago do natural, fosse delineando uma imagem na tela, a mag no branco do papel. Parece mesmo ter ido buscar ‘um pedago da natureza para compor com ele o motivo central de uma paist- ‘gem interior, onde a maca, isolada de seu ambiente natural, se mostca des- pojada, despida pelo olhar, até permanecer simplesmente em seu lugar no quarto pobre, formando, pela humildade de seu modo de ser, uma unidade harmOnica com o ambiente, sobre 0 qual s6 entio se aquicta 0 olhas, AO pro- ceder como um pintor, 0 poeta paralisa sob 0 crivo dos olhos todo movi- mento do que vé e descreve (2 nao ser 0 da vida latente), Diz ¢ representa ‘20 mesmo tempo, como se pintasse 0 pensamento, fixando-o em imagem. (© poema se faz um hierdglifo, cujo significado se imprime de algum modo ra expressao, em sua forma visual e sonora, diagrama de seu contetido.* O discurso ndo progride em sucessiio: cada verso equivale literalmente a wm zretomo, a uma retomada do olhat a partic de um Angulo novo sobre @ mes- ‘ma fruta, ustapondo-se faces de um mesmo objeto como um recomego sem- pre nascente da percepcio, até completar-se 0 quadro, retrato do interior de um quarto humilde. ‘Ao se entregar @ leltura e ao prazer da contemplagio de uma navureza- morta, 0 leitor desliza, por assim dizer, na direc30 que Ihe sugere o otha, tencadeado pelo fascinio da fruta, fxada como centro da atengo em sus vi da silenciosa, Ali ela permanece como umia figura hieroglificamente cifrada, ‘A medida que por todos 06 lados os olhos a desvetam, buscando descobri para 0 espirito. A mag vermelha se torna um objeto de conhecimento, no qual é preciso penetcar para conhecer. Paradoxalmente, o sentido se cifra, 22 ‘enguanto ea'se mostra na exterioridade das formas ¢ da cor. Por iso, 6 pre ciso ceder 2 seduclo e penet até Fundiese no mais fundo de coragdo do movimento oculto da vida. E56 endo repO-la em seu ples, onde fica com 2 humildade com que sabe guatdar 0 prodigio, Assi ‘omovimento do olhar aeastaoleitor para a sedugio da feuta aé 0 encontco {de outto movimento mals fundo e $6 depois se aquieta no quado de vida pacalisada, que €a natureza-morta. Acompadihando esse movimento, que 8° processa por justaposiclo de imagens, nfo se pode escapar a imagem maior {ue se forma afinal, com uma poderosa sugest2o plct6rica: a cena prosaica e uma refeigio frugal, mobilizada por um instante na moldura do quarto, ‘Ao ler, Vio se formando 2s vires faces da mesma fruta, recortadas pela visio, a6 Seu enquadramento final nesta cena maioz. Tirada da natureza, a ‘magi se acha no interior de um quarto de hotel, onde, emboraisolada, pare- ‘ce compartilhar 0 destino provis6rio de um observador to pobre ¢solitério quanto ela propria € 0 quarto que ele, aparentemente, habita de passagem. £ 0 movimento do olhar desse observador que se acompana pela leitura. ‘Um vinculo latente o prende 2 sua volta. por seus olhios que se ve a macd: 4s formas contradit6rias, conforme os lados; o vermelho da cor; a8 peque- ras pevides de dentro; alocalizagao por fim no quazto. O interior do quarto, conde se situa a maci, representa o limite de seu olhar, como uma dimensio Ge sua subjetividade. Ao se fxar sbre os tacos de seu ambiente como que ‘espelha seu modo de ser fntimo. Mais uma vez 0 quarto surge, em Manuel Bandeire, como 0 reduto da interioridade do sujeito: espace litco por exce- ne se recolhem as impressbes da realidade e se gers a poesia; lugar ‘Axa o tempo, no instante uminado de uma cena prosaica, num momento de vida retida, (O Eu que olha a magi, enquicrando-a nos limites do qu: nas um observador. f também quem fala, voz central caractert sa it ‘lo caso, se dirlge dirctamente 4 maga, como se esta fosse um. ‘mudo, interpelado num didlogo fictilo. Bse jet, a maga, confere a fruta um trago de hum nidade, envolvendo-a na Interloridade subjetiva, da mesma forma que ela parece objetivartragos do modo de ser do sujeito. Tl tratamento se reforca ‘com a comparagao do aspecto exterior da fruta a partes do corpo Feminino como realce dado & sua vida interna, tudo tomnando 2 maga um ser harmo- Aicamente assimilavel 20 universo humano, ao espaco intetior do quarto, di rmensio subjetiva do Bu lrico. Por outro lado, carter dialégico da lingua. ‘gem, sua fungdo apeativa, voltada para interlocutor do discurso, dé ao poe- ‘ma o aspecto de cena virtualmente dramética, de repente parslisada e des 23 vendada aos olhos do leitor, além do mais, receptor privilegiado de uma fala que na verdade é int tériae, sobretudo, iva. Desse modo, 0 olhar que penetra no interior do quarto até 0 miolo da fruta reverte sobre si mesmo, uma vez que desvenda 0 espago de sua propria interioridade, ‘Aceita 2 analogia com 2 pintura e recomposto o quadro com a cena pa- radz num quarto de hotel, © leitor pode ser tentado por uma interpretagzo Imediata do conjunto, associando a magi 20 fruto proibido, conforme um Jugar-comum da tradigio crista medieval, até hoje persistente. A tendéncia seria entdo para uma tradugdo rédutora do sentido global, com base no este ipo que logo vern 4 mente, num tipo de interpretacto aleg6rica de uma ‘cena de amor furtivo ¢ fugaz, Dada a conotagao exética da magi, esta acaba- ria personificando a mulher (a cujas partes € de fato comparada), de-prefe- rencla a mulher cafda, de acordo com 0 quarto ¢ 0 fruto, favorecendose, Esta sempre se mostrou afcerada 20 resguardo dos tragos individuals no ambiente privado ao valor pritico e concreto dos objetos de uso do dia-adiz, como instrumentos de teabalho ou de lazer. Sdo precisamente 0s objetos que sc acham 20 alcance da mio — artifciais ov naturais — 0s que se convertem em motivos caracte- risticos da naturezasmorta: 2 mesa com comida e bebida, as flores ea frutas, 695 livros, as lougas, 0s utensilios domésticos etc. O olhar ganha para a refle- xxio ¢ para a contemplaclo estética 0 que se destina ou se dispoe para o trae batho das mos, para o uso diicio. Os objetos como que se congetam sob 2 visio no momento em que so arcanjados aparentemente com um propé- sito, por mais arbitefria que seja sva disposigdo. Desse modo, se dt estrutura as mimeticamente no espago do quadro, 2s colsas ‘goes entre arte ¢ realidade, entre estilizacio e natureza, Seu proprio modo de ser propicia uma permanente oscilagéo de énfase entre 0 aspecto formal dda convengo pietézica e a semelhanga mimética com o tema representado. Entre a tendéncia para a estilizacZo mals abstrata ¢ a inclinagio para um ilu- sionismo do tipo trompe v4 com certeza lugar para muita meditagao. Mais do que em outros generos, aqui € nitida a tenso entre os procedimen- tos de compasicio artistica e a realidade objetiva do assunto, o que tem ser- 26 ‘vido de explicagio para a sua extraordindria constancla entze os pintores de ‘todos os tempos e sobretuco entre os modernos, como os cubistas, que le- ‘varam adiante a pesquisa plistica de Cézanne, no sentido dos contrastes si- :multaneos ¢ da busca de configuragOes geométcicas subjacentes 2 realidade 1o até certo ponto 2 opinio corrente na critica de arte, obser 3p Frye que 0 apego dos pintores& natureza-morsa nfo depende resse que possam ter pelo contetdo do assunto representado quanto daquele que revelam pelas relagbes formais entre planos; volumes, cores e espago. Mas Frye encara 2 nanureze-morta como o género onde se exprimem os principios formais da pintura, onde se equacionam as regras cia gramética da pincura® A imobilizaglo da vida que € caracteristica desse tipo de obra pict6rica (a vida tranqiila ou silenciosa do seu nome em alemao ingles — stileben, ) tende arealgar os principios abstratos da estra- + tra, aunidade formal das imagens que compoem o tema endo propsiamen- te 0 movimento da “narragio”, que as integra num desenvolvimento dint rico de representagzo do assunto. Assim, num quadro de natureza inanima- a, com freqiéncia se quebra a ordem de sucessio linear da realidade empf- rica, por uma nova ordem que reorganizaarbitcariamente 0 espaco, mas re- presenta ainda, de forma absrata, a unldade essencial do tema. Tal como fo mito € no conto folelérico, formas descarnadas ¢ abstratas de narrativa, também na natureza-mocta se evidenciariam os principios estrururnis da ar- te, espécie de fonte arquetipica 2 que retornam sempre os artistas quando, buscando a renovacio, se desviam da verossimilhanca realista, do efeito ilu. s6rlo de acercamento 2 realidade sensivel, para descobrir a convengio artis. tica num nfvel mals fundo de abstraga0. Nessa direcio se poderia compreen- der a busca de Cézanne, como se configura na natureza-morta, rumo a des tries latentes na natureza, as quals Se reduzici a 0 Cubismo, que parte do mundo empirico, mes ostas, de uma variedade de le Cézanne como Lionello Ve rin arquetipica da arte como a de Frye, thane sobre. preferéncia pela natureza- morta. Para le, desde 1860, o artista demonstrava um interesse predominante pelo estudo da for- :ma, simbolizado na pintura das magds, que consttuiiam urn motivo simy {ficado, especialmente propicio 2 concentracto no problema,” Também pa- ‘a Jean Leymatie, os "volumes simples e primordiais" corresponderizen 2 uma necessidade de concentragio do pintor € as suas exigencias de “‘densidade concreta” ¢ de “estabilidade”. O confronto obsessivo entre a arte ea natu reza tenderiaase resolver no que Cézanne chamou de “barmonie paralldle 2 la nature”. No mesmo sentido ainda, Charles Sterling v8 a natufeza-morta Go grande artista como ‘soporte de harmonias plisticas” 9 Contudo, Meyer a7 Shapiro reconhece uma complexidade maior tanto na escolha do género {quanto na do motivo da maga, em Cézanne. Seguindo Baudelaire, admite 4 importincia da escolha do assunto na determinacio do modo de ser de um artista, Tende a interpretar psicanalticamente a presenga recorrente da fruta como produto simbélico ¢ inconsciente do desejo sexual reprimido, ‘mas levanta igualmente um grande ntimero de m6vels conscientes para essa escolha. Sempre atento para a dimensio social do genero e para o enorme leque de qualidades e significagdes de que uma simples fruta pode ser porta- dora no esp2¢o do quadiro, procura nao reduzi as dimensbes do problema, ‘matizando-o por diversos lados. A transferéncia do lnteresse er6tico na es colha és natureza morta com magis aparece entZo num painel amplo de e- nal dessa fruta — que tem fre: 2 interpretapo abrangente de Shapiro tem o grande mato de colocat a ques- tao da natureza-morta na complexidade das foras contadtGrae que ca c= trutur, 20 a08 aproximar, de forma extilzada, dos objeto datealidade col diana ¢, 20 mesmo tempo, da ntimidadc pessoal do artista, de que ela tende 4 se omnar um simbololatente. Sua compreensio do sentido ca navrezs morta acaba por identifica a um campo vasto de experiénclae aprendiza- fem, onde se pode buscar o dominio dos mios no exempio da impessoal- dade da matéra, a concentrapio, na sObciaobjetvidade das cosas © 0 des pojmento, como Cézanne, nos humildes objetos & nossa volta, Resukago de um procesto quase ascético de auto-superagdo dos impulsos que reben tam deforma agressiva e bastante sombria em certos quadtos nial, 38 ma is de Cézanne surgem com a beleza da plenitude artistic, feato amadureci- fo da experiencia no confronto com a natureza, em dural pela pereigio. Do éxtase 2 forma pacats; da eurbulencia do expo & solldao sere dla mais profunda natureza 40 conhecimento; do apelo ex6tico ao mi Ga pulsto latente& cor chamejante, as simples magas de Cézanne mantém 2 forga do seatico pelo fasciaio do olhar. Ao se debrugar sobre a "Mas" de Bandeira,o leitor poder recordar n smplicidade ds palavras um cami- rho semeltantee 0 encanto ainda vivo das imagens [é vistas, abrindo para tm miséro comum na iminéncia de uma andlogs revelagio. 3. METODO Observando-se melhor, se percebe que “Maga, por sua analogia evi- dente com a pintura, no ¢ um poema isolado na obra de Manuel Bandetra, 28 ‘Ao conttirio, em sva arte s¢ revela uma tendéncia poderosa para a composi- ‘clo na forma da natuceza-morta, como jf assinalaram Gilda e Antonio Candi- do, em sua "Introdugio” & Estrela da vida inteira."! Bssa tendéncta se mos- ‘fa como um pendor para a reorganizacio arbitréria do espaco p« 3 tindo 0 espaco pict6rico, de modo que seres ¢ coisas, atos ¢ sentimentos, retirados de sen contexto habitual, passam a figurar num contexto diverso, ‘20 mesmo tempo depurados de toda ganga bruta e imantados por nova € te carga expressiva, O procedimento implica uma redugio dréstica a0 es- 's6 pronunclar as palavras essenciais”, conforme a ligio aprendida pelo poeta) ¢, 20 mesmo tempo, a coadunagao dos elementos significativos tora concentrada, coerente multissimo A técnica do pintor de pintor de paisagens ou de quadros 1m 0s erfticos citados, essa técnica lem- idade exterior, com sua visio por lados diversos, conforme se d nos primeiros versos de "Magi" ou no retrato de mulher de ““Peregrinacio”, Certamente, a retomada de elementos anterio- res, por assim dizer “desrealizados", num contexto novo, arbitrério e as ve- es insOlito, faz pensar sobretudo na técnica de montagem surrcalista, dis- creta mas profundamente arraigada em Bandeira, sempre tio sensivel poe: sia do onttico, do il6gico, do absurdo e do nonsense. Basta recordar poemas como 0,"Noturno da Parada Amorim’ ou a insGlita revelagdo do "“Noturno da Rua da Lapa”, ¢ tantos outros. No mais profundo, porém, este método implica um acentuado trabalbo pessoal do poeta, sua longa aprendizagem das palavras ¢ das relagdes de sua ‘poesia com outras artes ¢ esferas da realidade, contendo, a uma s6 ver, © ‘mais intimo de sua experiéncia poética € o mals aberto para diversas saldas da arte moderna, B af sobretudo que lembra a posigio de Cézanne, sempre tio encafuado em si mesmo e to anunciador do futuro, Batista” do Modernismo. Seiccionando, dep. morto como no bom desenho (segundo disse) e simultaneamente reorgani- zando num todo coeso os elementos poéticos, Bandeira acabou forjando um método de construgo que consistia em desentranbar a poesia do mundo, ‘como quem tira ouro da ganga, « golpes de bateia.™ Esse verbo, que ele gos- tava de empregar para designar 0 ato decisivo que definia seu officio de poe- ta, guarda sob sua fei¢do materi das entranhas’” 0 valor expressi- v0 de “tirar do intimo ou do coraglo", ¢ ainda a ligagio profunda com 0 sentido cognitive de dar a ver, de dar a conhecer ou trazer @ luz, de re- 29 velar 0 oculto (como 0 vidente que Ie 0 mistélo oculo nas entranhas). As: sim se retinem nessas acepcdes txts modos de conceber 2 poesia, implicados 1nos pr6prios meios de buscar 0 poético ¢ de dar forma ao poems, conforme os concebeu um dia 0 poeta "Em primeito lugar, procedimento de desencranhar a poesia como quem 66 metal nobre das entranhas da tessa, como uma garimpagem do que x0 € dificil de conseguir, implica, em seu sentido material e concteto, ‘a nog da poesia como um fazer. Os elementos desentrantiados si0 0 pro- to de um trabalho de busca e, simultaneamente, partes de um todo que se consti, Por outro lado, na acepcio de “ticar do intimo” aflora @ nolo de poesia como expressio, sempre to viva em Bandeira, que a todo mo- meno parece prolongaralinhagem romantica, reconhecendo-se como poe- ta de “circunstancias e desabafos”. Por fim, um significado mais sutl de desentranhar nos condv 2 concepgio da poesia como forma de connect mento, como sevelacio de um sentido oculto, 0 qual se chega por um mo: vimento de penetragio até a entranha do objeto e por um movimento de saida 2 luz e 20 conhecimento assim desentranhado. 0 ato do poeta equiv le, pois, a uma percepeio penctrante do outro, do objeto, a um “habitar 3s coisas” que &, uma s0 ver, 0 desvelamento de sua natureza mais profunda, do que sto." Entendido deste modo, ele € ainda, rigorosamente, uma for- sma de imitaglo, de mémesis, no sentido aristotlico. Em desentranbar se fundem, portanto, concepgbes diversas da possia na acto tinica de fazer expt (© mesmo movimento que c jeto unidos, em amorosa ¢ iluminada entrega, Representar mimeticamen uum objeto equivale, neste caso, a penetrar até 0 seu modo de ser mais in fala de si mesmo; a0 falar do mundo, a poesia de algum modo fala também ce si mesma, porque hi um momento em que tudo é um s6, para uma tal concepcio do ato postico. Por isso, diante da entranha aberta da maga o poeta talver pudesse dizer, com Cézanne: “Sinto-me colorido de todos os matizes ro. Nesse momento, cu ¢ meu quadro somos um s6. Somos um 1do. Vou 20 encontro do meu motivo, perco-me nele" Ao construir 0 poema como um bierdglifo, 0 poeta imprimiu na figura sua marca ea do objeto que procurou representar,cifrando no todo o senti do que tudo une e atravessa, Ao fixar 0s olhos agora sobre o poema pict6ri- 0, 0 leitor busca refazer o percurso, a direcio ali impressa pelo outro olhar, desde 08 minimos tragos significativos até o desenho total, a figura comple- ta, atrés de um sentido que a magi to simples guarda naturalmence. 30 4, CONSTRUGAO ASSIMETRIA © cariter visual de “Maga? jo até aqui em analogia com a pintura, nasce de uma certa configuragio da linguagem poética, por efeito de deter: minados procedimentos mitidos de sua construgio €, provavelmente, ain- da, por sugestio metaférica do todo, A relacio'com @ pintura resulta, como se disse, de uma afinidade analégics, também ela construfda por meios ver- 0 consiste, antes de mais nada, numa iusto decorrente da lerdria: 0 conteddo figurativo da navureza-morta € um2 proj ‘slo do significado das frases e de suas partes, em detecminadas relagbes; 0 cespago postico € apenas representado a maneira do espaco pict6rico; a ma- ‘cA, enim, € feita de palavras Neste caso, porém, quem sabe levado pelo reforgo da ilusio de estar diante de um quadro, 0 leitor tende a encarar 0 aspecto visual do texto num se ele estivesse inscrito nos signs ¢ no espa $0, na forma material das palavras e do poema como um todo, destacado contra 0 branco da pagina. Por certo, este modo de ler um pocma , que tanto interesse despertou em Bandera no final da década de 50, integrand tendéncias htentes edifusas na hist6ria da poesia moderna emes- ‘mo anterior, nos acostumou a ver no espago um elemento significative na eserutura do poema. Habito de espera que se quebra pelo inesperado, quan- o de fatoiccompe a poesia como suepresa viva. Em "Maga", datada de 1938, 4 poesia nascida por um modo peculiar de dar forma as palavras (que pode. Jembrar ainda 0 smpasto denso de Cézanne ou a pincelada sliente do come- <0 do século para realear a natureza morta como coisa materia), a poesia raz Consigo um impulso para a expressividade visual, legivel em configuragSes clementares e geométricas, gravadas na estrutura material dos signos No seu ensaio sobre a poesia de 30, Mario de Andrade, 20 lidar com 0 verso live enquanto aquisiclo de ritmo pessoal, chamou a atengio para um aspecto caracteristico de Bandeira, aproximando 2 ritmica 4spera do poeta 20 fisico do homem, marcando ainda o cariter tbogrdfico de sua poesia, capaa de cispensar qualquer docura de ondvlacao e até de prescindir do som, oferecendo-se “leitura de olhos mudos". & parte certo exagero quanto 20 som € A ondulagio, que Bandelra sabia manipula como bem queria, Maio Gefiniu com a agudera de grande critico: “Ritmo todo de angulos, incisivo, tem versos espetados, entradas bruscas, sentimentos em lascas, Restos que- brados, nenuma ondulagio”.27 Essa espécie de expressio corporal do ritmo encontra em “Maga” um momento tipico, uma vez que 0 poema comeca por se distinguirvisualmen: 3 te, chamando a atencio pelo perfil anguloso dos versos livres, muito discre- pantes na extensio. A combinaga0 de niimero atbitririo de silabas pe ccaracterfstica desse tpo de verso, € empregada agui em sua méxima incerte- 2a, produzindo os “‘versos espetados” eas “entradas bruscas” que Matio no- tou do bem. O resultado € que so de fato Asperos e bastante intrataveis, ‘mas também belos, em sua perfelta adequaclo 20 tema. & preciso olhé-los mais de perto, Em 1917, Pound restringia 0 emprego do verso live somente para os ‘casos em que realmente se deve, isto €, por necessidade 52”, quando dé um ritmo mais belo que © metro, ou mais real, por integra- lo A emoglo poética de que se trata, sendo enti mais ligado, fntlmo ou Interpretative que a medida regular. Lembrava a frase famosa de Eliot, se~ ‘gundo a qual nio ha realmente verso livre para quem quiser fazer um bom trabalho.!8 Em 30, Mério comecava por criticar 0 abuso ou mau uso do ver- 3 livee entre nés, Bandeira, que fol dos primeiros a usé-lo ¢ bem, na poesia brasileira, em 38 era senhor absoluto da técnica, ¢ aqui logo se vai perceber por qué. O poeta parece ter posto em destaque o cariter prosaico do verso Ih que € “‘como botar prosa no verso,/ como transmudé-la em poesia”, para dizé-lo com outros versos paradoxais de Jo40 Cabral. A cena realista ¢ pro- salca que se forma 20s possos olhos comega péla dicgdo também prosaica os vers0s livres, logo acentuada pelo contraste de tamanho dos dois pri: meiros versos: Por um lado te velo como um seio murcho Peto outro como ura ventee de cujo umbigo pende ainda 0 cordio placentério les formam um distico como que isolado no inicio do poema, ja que ‘oterceiro verso parece ter se desprencido deles, em sua singularidade, rom- pendo.o esquema dominante no resto do texto, onde os versos subscqdentes se dispGem em duas estrofes de trés versos cada uma. O poema pode sugérit A primeica vista uma distribuig30 ternaria dos versos, acomodadas tes die- ‘$0es principais do olhar, 0 qual, como se apontou, parece modular Gino ambiente. Est a irregularidade inicial, apontando jf talvez para 0 papel relevante da. trlano todo do poema. Por outro lado, 0 par do comego é marcado pela forte assimetria do comprimento, de modo que somos levados a encarar com es- tranheza a continuldade de prosa do segundo verso, que, na edigao citada, go chega a caber no espago da pagina, fraclonando-se ¢ deixando pen- 32 der literalmente 0 cordlo placentirio, que transfigura metaforicamente 0 c2- bo cottado da macd, Este recorte irregular, dependente do ndmero ales de silabas de cada verso, parece materializar ainda outro contraste mii portante no plano semintico: € que os versos contrastantes contém vis contrastadas da magé. Sua altecnancia introduz uma contradi¢ao fundament ja, a percep contradit6ria dos dé -ontradigao salta ainda mais 20s oltios porque deriva fe se apdia em semelhangas igualmente evidentes. Se nao, vejamos. ‘A parelha de versos comeca pela expressio cortelata (Por wm lado /Pelo ‘utro) que a liga internamente no contraste, feito a5 iva le, ou seja, uma comparacio com forga metafOrica, capaz de de esferas diferentes do conhecimento, vinculados pelo ne- to da conjuncdo comparativa. Esta semelhanga dos componentes opostos se ap6ia ainda no vocabulério parecido que serve as com- paragdes correlacionadas: sefo ¢ ventre sto partes do corpo humafo, assim como os demais elementos (umbigo; corddo placentdrio) que compoem 2 oracdo adjetiva introduzida por cujo, oragio essa equivalente ao adjetivo que ‘qualifica sefo, no peimeiro verso: murcho. Entre esta palavra ea oragio adj tiva correspondente podemaos perceber desde logo uma oposiga0 semantica forte, uma vez que murcbo conota 2 vida que se extingue, a0 passo que na oragio em contraste, se sugere 0 Nascimento recente; em termos mais ge- sais, um contraste entre o movimento para a morte ¢ 0 movimento para a ‘vida. A nogdo de movimento temporal parece estar latente tanto em murcho ‘quanto tia idéia do cordao placentério que ainda pende, incoativo das ages que implicam: perecer ou nascer. No ent ‘murcbo nao pertence & mesma esfera ov 20 mesmo campo semantico das demais palavras que se prestam & comparagio das formas exteriores da ma- ‘gh. Em geral, em seu sentido proprio, no se liga 2 partes do corpo humano; {quase sempre se prendca seres do reino vegetal, para designar 0 vico, a fres- ‘cura, 2 cor ou a beleza. Ou sefa, murcbo parece implicar a destruigo que Imente com a passagem do tempo: sugere a morte como uma foduz apenas 2 idéia de um movimen- to para.a mor ‘na natureza. Considerado com relagio ao corpo humano, const to de assimetria dentro do contraste fundado em semelhangas ¢, provavel- ‘mente por isso, nos chama a atenglo a0 surgir na poderosa imagem do verso Inicial: como um sei murcho. Bi logo nos choca, pois parece insinuar um contraste entre 0 substanti- vvo sefo e sua qualificagio, uma oposicio assimétrica jé denteo do primeito verso. Murcho, por estat empregado no sentido proprio, se destaca em 33 meio 2 linguagem Agurada do simile que transpOc a magi, por sua forma, ao plano humano. Leva a magi de novo.a sua origem vegetal, ou melhor, reaproxima a fruca humanizada & natureza, de onde se desprendeu, revelan- do, por assim dizer, seu teor natural sob a forma humanizada, A comparagao smetaforica tem por base uma qualidade fisica, a redondez da mag, que per- mite’ analogia com seto e depois com ventre, mas essa cedondez € aqui assi- métrica (como em tantas magis de Cézanne) ¢ significativa: « palavra seio, aque se associa facilmente 4 Idéla de desejo, de maternidade, de vida, 20 unic- se 20 adjetivo murcho, aparece entio sob a forma do que definha a caminho da destruigao, H4, portanto, no uso de murcho uma grande precisio voca- bbular (que de resto se percebe mals claramente depois em pevide, semente dos fratos carnosos como a mac, ou no verbo quedar-se, que se ajusta com perfeigdo a vida tranquila ou silenciosa da fruta na natureza-morta). Essa pre- cisto s6 faz-ampliar o halo significativo da palavra: € que a fruta, comparada ao universo humano, como pacte do corpo, & vista sob a mira da morte, mas dentro da perspectiva do ciclo natural. A assimetria de sua forma exterior 6 um sinal de vida — de eedondez ex6tica ¢ maternalmente plena — ¢ de destruigfio, conforme processo normal de desaparecimento dos seres vi- e dos componentes lings 7a da forma redonda que parece funcionar como indice da destruigio natural, do que potencialmente se des- tina ao desejo € A reprodugio da vida ¢ jd caminha naturalmeate para a motte través da mac, 0 olhar capta, no limire mais absttato, 08 movimentos das formas naturallzadas, quer dizer, assimiladas 20 pracesso da natureza, ¢o- ‘mo no mito, em que o contesido natural toma forma humana na figura do deus: Apolo, luz encarnada, de Delos, a brilhante, A forma humana da fruta aproxima de nossos olhos 0 contetido natural, o processo de perecimento e nascimento da natuseza, paralisado na visio da magi, em cuja redondez assimétrica, imagem uterina onde se renova o ciclo, se exprime emblemati- ‘camente o movimento perene de destruicio € regeneragio da vida na natu- reza, Percebemos entio que a imobilidade ¢ a assimetria da fruta sio meios simb6licos de exprimir abstratamente a generalidade do contetido tematico. olhar fixa na exterioridade da magi préxima um fundo oculto, que se evoca, patalisendo nela o movimento natural da vida: a natureza-morta nos poe dian- te dz contemplagio do processo imobilizado da natureza, em sua forga la- tente de construcio ¢ destruicao. A primeira visio da magi, por lados con- teastantes, como na fragmentagio cubista da realidade exterior, recorta a con- tradigao na simultaneidade dos scus pOlos antitéticos, ao congelar © movi: a4 mento dos opostos. A magi assim visada adquire a dimensio arquetipica de ‘uma imagem que € concreta ¢ abstrata a0 mesmo tempo: é sensivel e con- ‘cretamente a fruta sob o olhar e, a uma s6 vez, 2 Mgura exemplar da fonte a vida, espécie de emblema, tomado 20 mundo natural como um modelo. anguéripos No entanto, esse pélo antitético da vida (do sefo), dado assimetrica- ‘mente em murcbo, contcasta fortemente com a longa frase do segundo ver- so, onde a pequenez do adjetivo € confrontada com 0 longo cordiio pla- ccentirio que liga a maga a redondez plena do ventre, a0 desejo corporifica do, 2 imagem uterina e maternal do nascimento, ssa plenitude da forma a fruta se preenche pela cor, no terceiro verso, posto isoladamente em estaque: ffs vermelha como amor divino impoe-se ‘Ros uma visto ‘mediante a mesma construgao sintética comparativa c litcréria do simile. A sugestio erdtica, que jf se insinuava nos dois primeiros versos, agora se torna ostensiva, a0 ligar 0 vermelho da cor ‘20 amor, dando-se a este, porém, 2 dimensdo transcendente do sagrado. Aqui se torna aguda 2 tensdo entre o aspecto sensivel da imagem € sua dimensio exemplar de arquétipo, anteriormente assinalada: 0 erético na concretude da cor chamejante, aspecto sensorial ¢ sedutor da figura, e um fundo oculto, agora ostensivamente sacralizado na expressio amor divino. A énfase no esté mais na contradicdo dos tados, mas na afirmagio plens (felta na forma de juizo) da dimensio arquetfpica. A fruta, imagem sensual de concreta, se faz suporte do desejo sacralizado. Salta A vi superficie vermelina, a profundidade mitica da mag2, como que atualizada ‘ng fascinio erético da cor. Sensivelmente menor que os anteriores, quanto 20 nimero de silabas, edeles separado por um espago maior, 0 verso se concentra na cor ¢ no si- mile mitificante. Com ele, 0 poema comeca 2 afvnilar-se, em Angulo aguco: a saliéncia em cotovelo do verso antetlor, seguc-se esta entrada sdbita, ten- dendo 20 perfil geométrico. Paradoxalmente, porém, a concentraglo cor- sesponde uma visio méxima da generalidacle convencional de fruta. A ima- gem colorida da magi, posta em relagio com 0 sagrado, evoca outras ima- gens semelhantes, de outros tempos distantes, primordiais. De certo modo, 4 frata rogride a fruto divino, embora préximo sensorialmente. 35 Motivo central de uma natureza-morta, a (em contraste com a vislo fragmentadora do distico inicial), nos faz.concen- tra sobre ela toda a atengo, 20 mesmo tempo que realea suas relagbes com ‘© passado mitico. Ao surgir por inteiro como um feuto (de fruere, fr tador faz ecoar 0 fundo arquetipico, a laténcia de seu simbolismo tradicio- do mesmo modo que evoca outras magis recorzemte, t6pico 1¢H, agora em sua totalidade rato proibido da Arvore da Ciencia; pomo de ouro ‘com o poder da imortalidade...1° Na diregao que igada 20 amor como se acha no poema, ela apare ia da Itecatuca, zodeada de ressonainclasbiblicas « cléssicas. Nao € apenas um dos atributos de Venus ou tum objet nas de casamento, cujas raizes remontam provavelmente 205, ceultos de fetilidade € 20s festivats de aldeia® (Nos primeiros versos, hé uma clara tendéncia, como se viu, a encaré-la como um motivo relacionado 20 ‘Processo natural de reprodugz0 da vide). No CAntico das Cantices, ido cheo de imagens da poesia pastoral, € varias vezes termo de comparacio para a ‘amada, com evidente contacto erética,e, segundo Origenes, uma encarna- ‘sio da fecundidade do Verbo divino. Ela aparece, por exemplo, 20 lado do ‘cacho de uva.e da roma (malm puenicum, na teducio latina da Vulgata, ex: pressio em que entra também 0 termo latino que al designa 2 maga: ma- Jum), em relagio com partes do corpo feminino ¢, pelo menos uma vez, nit ‘damente como oferenda de amor.*" Na poesia pastoral clissica, como em “TeGctito, ela surge exatamente com esse duplo sentido, ligada aos seios da mulher € como ddiva de amor. Transformou'se num claro t6pico para os selos femininos na poesia do Renascimento, como se vé na Aminta (1573) -om certeza, por essa via foi diversas vezes glosada ao longo da conforme se observa ainda ma “gigantesca natureza- * que Zola retrtou em Le ventre de Paris (1873), onde compatece en- prodiutos veges, exposta com “rougeurs do seins naissants" 22 ‘Shapiro, 20 estudar as magis de Cézanne, parte de um quaciro de assun- to aparentemente mitolbgico, O fulgamento de Paris, onde a fruta€ tcatada como uma oferenda de amor, vinculando-se, na verdade, 4s leturas que fez artista da poesia bucélica clissica, segundo mostra o cxftico, Ou seja, ama «parece ser um motivo proveniente da conven¢io pastoral, esse género de poesia baseada cial de um desejo de proximidade da nat Flo ainda perto do mito, e de tio gran ‘Ocidente e na formacao do sistema literério'no Brasil? Shapiro, contudo, ‘ago parece trae todas as conseqiiéncias dessa filiagio que estabelece para © motivo das magis, levado como foi pela tendéncia a interpreti-io no 36 sentido de um simbolo da vida pessoal ¢ intima, como imagem de um inte- resse sexual reprimido. lam Empson, numa livro decisivo sobre a tradigdo stido ele soube renovar erm profundidade, Algu ‘pastoral (1933), analisa 0 conjunto de propriedades convencionais que em jgeral se roma pela esséncia do género como elementos relacionados numa ura particular (no que hoje talvez se pudesse chamar um arquétipo lite- tario),capaz de sobreviver, estendendo-se para além dos limites estrtos dos proprios generos bucélicos. Essa estrutura consistiia fundamentalmente numa Organizagao do camplexo no simples ("putting the complex into the sim iple’), isto €, num modo recorrente de dar forma, de tal sorte que amplos .cados problemas contextuais se articulem num padro textual sim: ta nessa perspectiva, como um componente da tradiglo da ps ‘a mag& aparece de fato como um motivo “'simplificado”, conforme a tendeu a assinalar no caso das mags de Cézanne ¢ se poderia ver também ‘no de Manuel Bandeira: simplificado e, no entanto, portador da maior com- plexidade. No Céntico dos Cénticos, muitas das comparacbes da amada # elementos do bortus conclusus, do jardim ou do pomat de inspicagao edent- ina da Biblia, da expressio absque dentro 20 quod intrinsecus latet, ov si de ti” (conforme as tradugSes correntes). Jinguagem, que lembra imediatamente 1 no¢io de ambigitidade considers- dda por Empson entre as prprias raizes da poesia, num livro anterior, tem ‘a peculiaridade de sugerit, neste caso, que o melhor nto est4 ainda A mostra, ocuita.26 ue 0 maior valor 6 0 que g6rica da fruta como motiv. ‘gum modo o vinculo com a tencial na estrutura da obra como fator de despojamento da linguagem ¢ no apenas como tema, jé que tr22 consigo ura modelo de tratamemto, até certo pponto determinado, como parte que é de uma tradicdo cultural ¢ hist6rica. Esse modelo se traduz numa tendéncia pata 2 simplicidade natural, obtida no entanto por wm esforgo de estilizagio abstrata ¢ idealist, préxima dos cesquemas arquetipicos do mito. Por fim, enquanto imagem recorrente de ‘duplo sentido (0 simples que esconde o complexo), vem envolta no fascinio ‘do mistério e da revelagio: do que atrai, por se esconder, Pot este siltimo aspecto, se reveste da seriedade do sagrado (do amor divino) propria de um t6pico da tradiglo mitico-religiasa, Como observa Stax ‘magi identificada com o fruto da rvore do conhecimento no Géne- iis, arastando consigo @ Guplicidace do mal, seria propriamente um produ- to da tradicio, influenciada pela conotagio erdtica da fruta na mitologia 37 ‘gtcga pagi¢, na Idade Média, pelo trocadilho entre as palavras i mndilum = maga e miilum = mal, uma vez que nfo encontra apoio na Biblia. Nos primeiros escritos judaicos, o fruto da rvore do conhecimento € a uva, © figo, © trigo ou outros, mas no a maga. Um dos primeiros textos cristdos 1 estabelecer a ligagao com a arvore do conhecimento € o de Comodiano, rovavelmente do século 1V, onde se contrastam as magas que trazemia morte ‘20 mumdo € as que trazem a vide, por conter os preceitos de Cristo.?” © texto de Comodiano € um exemplo, entre outros, da transformagio fundamental do motivo operada pelo Cristianismo, que injetou sangue no- ‘vo numa antiga imagem da tradi¢ao clissica: a duplicidade erética da macé serve agora a0 desfgnio da verdade espiritual, sem perder seu poder de ali cclamento pelos sentidos. Essa ambigtlidade essencial se torna inerente 20 t6- pico, como se a fruta com seu apelo natural 20 amor fisico se fizesse vefculo do verdadeiro amor conforme o espirito cristic. Uma oferenda do amor pa- gio se torna uma didiva do amor divino. Em sua simplicidade natural se oculta a ligdo de Cristo. Uma verdade elevada se esconde no coracio de uma sim- ples fruta, Na maga humilde se oculia o sublime, Por certo, 2 transformacko crista do tépico cléssico faz parte de um con- texto muito maior: o da metamorfose que 0 Cristianismo operou na ret6rica classica, 20 procurar veicular uma doutrina complexa e de carter elevado mediante palavzas simples, através do que Erich Auerbach estudou nos tér- liscurso humilde), presente em todas as formas da fim, ainda uma ressonancia mais préxima ¢, de certo modo, mais simples ‘nessa imagem vermelha da magi que se da ver. Agora, porém, no sentido al como aparece nas figuras do Sagrado Co- ronizado nos laces", até nos mais humildes, pelo Bras -ado ¢ banalizado em toda sorte de reprodugées, como nas ras formas de representagio que popularizam ess dda paixio de Cristo, Provavelmente por via do interesse modern ‘mas da vida brasileira, sobretudo a partir de 30, ou do acercamento do pr6- prio poeta a0 cotidiano do pobre, a verdade € que se nota na magi de Ban- deira uma forte laténcia da imagem visual do amor divino tio conhecida de 38 todos em todas as partes do Brasil, como uma religui polar, misturada a outros quadros da iconografia cf ‘mum, junto com objetos de uso dito ov de enfete tc humilde do imaginirio popular 0 poeta parece ter ido colher'a sugestao cde metéfora visual, 2 conotacdo em que a figuras e fundem imaginaramen- tc, dando & magia cor de sangue da paixio ¢ a dimensio elevada do divino. ‘Uma imagem que tem-uma base matedalefetiva no cotidiano popular, onde se mistura 2 outros objetos que servern 20 trabalho ou simplesniente matl- zam com sua beleza ingénua e a cor do sagrado a existtncia bana. LENTRANHA No poema de Bandeira, essa base material da imagem tende a ser refor- sada desde 0 inicio (apesar do vinculo espiritual explicito 20 amor divino) Zo apenas pela compara¢io da magi 20 corpo feminino, mas pelo procedi- mento geral de apresentacZo da fruta, mediante imagens diferentes ¢ justa- postas, © que arma um jogo metonimico entre ocultamento ¢ revelz¢30. Com ccertamente, 0 aspecto lidico € 0 erético surgem entrelagados numa es- pécie de esteatura de ‘onde 2s formas exteriores parecem excluir-se para 2 dissolugo em outras imagens; 0 essen- esconder-se, Mas, na verdade a magi nos atrai pola totalidade sugerida ‘pelo jogo das partes. A atrago do que se escondé se mantém pela sugesta0 de slumbramento a cada instante: pelos lados, peta cor, pelo Interior de re- fevelado, como num mostrar-sc intermitente de estecla, gravada a fo- gona enteanha da frura. A magi € comparada 2 partes nuas da mulher: equi- vale 20 nu, mas o recobre pela cor, atraindo para o mais fundo. Desse modo, ‘se estabelece uma tensio entre 0 exterior € 0 interior, o ostensivo € o laten- te, a poesia e 0 conhecimento. Alvo de conhecimento, ela € um convite penetracdo, que comeca pela sedugdo do olhar e se abre até a entranha mais intima, Assim ela aparece por dentro, no meio da construgio, no coragio do poems, que slo 0s tr8s versos centcais, no momento de malor concentra- lo do texto, dos versos mais breves: Denteo de ti em pequenas pevides Palpits a vica prodighosa Infisitamente Nesta admirivel estrofe do melo, chama logo aatengio a diminuicao pro- sressiva do némero de sflabas poéticas dos versos livres, também muito dis- ‘crepantes quanto ao tamanho, como se reproduzissem em pequeno 0 aspecto de todo 0 poeta — aproximadamente a figura geométrica de um trapézio. 39 O primeiro deles tem dex silabas; 0 Gltimo, cinco; © do melo se equilibra ‘entre ambos. Este constitu uma sorte de xo de simetria de voda a compo- sigao, uma vez que em sua posigo rigorosamente centeal ¢ precedido ¢ se- Buldo por quatro versos. Posigzo significativa, pois nele se representa tam- ‘bém 0 centro mais fntimo da fruta, 0 recesso onde se acha latente o movie ‘mento da vids, énico movimento objetivo do quadro, apanhado entio pelo movimento subjetivo do olhar que nele se projeta e se funde, A estrofe, com seu geometrismo implicito, se encalxa assim no todo, repetindo em menor o principio de organizacSo geral, como embrido ou se- mente ela também do organismo total a que pertence. Como fata 20 poema {qualquer pontuagzo que nfo seja 0 ponto final, 0s versos livres furuam no branco da pagina, chamando ainda mais nossa atenzo para 0 sev alinharnento pacalelistico em unidacdes recortadas tipograticamente, que devem ser sign- ficativas, jf que para isso foram assim cortadas € dispostas. A visualizagio 4a lina tende a ser aqui mais importante do que no caso de versos regulz- res, quando 0 metro define a linha de antemao. Salta, postaato, aos olhos 2 importéncia dos cortes, que, dstibuindo os elementos da frase na linha, aliam vigorosamente a sintaxe, 0 ritmo e 0 sentido. A disposicio de cada ele- mento vira um elo sigaificaiv. Nessa estrofe do meio, os versos de fora coincidem quanto & funcio de adjuntos adverbiais (de lugar € modo, respectivamente), enquanto 0 verso ‘central reine 05 componentes também centrals da oraco, assim reralhada, para realce de suas partes, pela segmentagio dos versos livres. Nesse verso ‘medial, se acham 0 predicado verbal (Palpita), destacado enfaticamente pe- 2 testa da linha — expressfo que do movimento deci- (vida), acompanhado de seu adjunto adnominal (prod ‘Biosa). & palavra vida, termo essencial da entranha mais funda da fruta, se destaca ainda uma vez, no centro do verso do centro, onde recebe © acento também central do ritmo do verso, por conter a quactasllaba de um verso de oito: Palpice a vida prodigiosa No terceico verso, a sabedoria construtiva de Bandeira pds em cealce oadvérbio (fnfinitamente), muito valorizado por preencher todo um verso. Provavelmente atento ao uso impar que poetas anteriores, como Cruze Sousa Augusto dos Anjos, haviam feito dos advérbios em -mente, em versos me- ttificados, Bandeira tira deles os mais sutis efeitos no verso livre, como se pode verificar em “Profundamente”, “Momento num Café" e varios outros de seus melhores poemas. Aqui, Infinitamente constitul 0 verso mais curto do poems (o seguinte tem as mesmas cinco silabas, mas € visualmente maior) ‘Com ele, 2estnutura toda encontra seu ponto maximo de concentragiio. Con- traditoriamente, porém, corresponde & maxima expansio do sentido, que 40 ais tliiado,equvaiendo asin, por sua endo, i pequnes da pe serene no esse mesma etote. Tamber 2 pees 80 pe rea a porters do valor mas pelo. O puradovo do peaveno qe tee msn repete a dpensio flea as serentese dos verso 3 soiree ardor ds complenisade qu Se come no Simple, Por ese re stn sagas cmencio fea doespago acquire uma enorme fr cana apa de wenspoc messfeicaente Tm ro signi eee eepanto sbsttre abst do sea. O infinite + See a eapers co lfntancatepequen.o ais de odor =m cee a be concen ina pate nia df, Nes Deguens vues se cata subline 1 ibcantcem sada, sublime se dea ov. Ao conse dos vo anton, exes se disinguem pas sonotiade © movment da ee Sinead ng aap ote das consoantes ena coven a ee re qu ctonm tol imico amo os). As oli aa cranstas (6 e( navgoram un movimento de consio dos sors we oan soda 9) ae Fazpate da patra deca tio paar seeps cinco vezes nos Ue Yo fasemere como frend conta plait seni Dentro De Ti em Pequenas PeviDes rraexpresso pequenas pevides,além ds posi siméica dos es, tee er apucest em Pali, a epeiao expresiva Yo! aan ences pao ence sonoro pace ecerum veelo ene 000 Cv este (onto sane pres) 2 ae pent aaa smn sgn. Alters eavaraeriente uma setae no plano dos significant, efeundo uma eng des Sinilh are tease pena, como seo setdo fa coe eee Patan deseneadenno nels 803 igen qe 8 Ia ge ummesmo to, A segment sia do vem sadam fone do od, que, porsv8 Yer. eet glosa ¢ Infinttamente. Esta cetrada coesio dos elem ficativos exprime de forma concentrada, no momen ccntcanha da fruta, a coeréncia orginica do pocma, solida ¢ rna sobre o modelo natural da maga. a No eixo de simettia, 0 adjetivo que se liga & palavra vida (prodigiosa) chama a atengio: 0 © estd preso a0 substantive que ocupa o melo do versoe lo. Um adjetivo decerto fu damental, num texto de palavras essenciais, contadas ¢ precisas. Seu sig cado cortente designa 0 que sai do natural: 0 sobrenatural, o maravilhos ‘omilagroso, O fato de que a vida se encerra na pequenez da semente, da qual depende todo 0 movimento de regeneragio da natureza, implica um parado- 0 verso, A maga, em cuja intimidade ela se renova, mis 1grosamente, a abriga, renovando 0 ciclo, contza 0 espera: visio que se di da maca é a do ser que tende para a morte A redondez plena de seio da fruta € quebrada pela assimetria, pela flacidez csse sentiment moderno da contingencia e da fugacidade imp {nicial logo reconhece o movimento de regeneragio que tambérn| em sua vida silenciosa. © lento caminhar para a morte é superado, no mais {ntimo da magi, peas pequenas pevides. vaa vida da natureza, germina o futuro infinitamente. £ 0 infinitamente pe- cexprime. Na particularidade concreta desta imagem, pintada até as mintcias, a clevagao do sublime encontra sua expresso humana, terrena ¢ hummilde. © todo depende do mfnimo, onde se cumpre o milagre. Na mag as pontas da morte ¢ da vida se unem naturalmente, com toda a simplicidade, Pela sabia unio do infinitamente grande ao infinitamente pequeno © ctitico dinamarqués Georges Brandes procurou explicar a grandeza de Sha- kespeare ?? Nao se pode buscar explicagao melhor para a arte de estilo hu- milde de Manuel Bandeira. O restante do poema © comprova, DESENTRANHAR A POBSIA Altima estrofe sugere uma regularidade inusitada dos verses, ou seja, ‘uma certa simetria final, em contraste com 0 resto, como fica visivel no re- corte mais ou menos equilibrado das linhas, Uma pequena difeenca no ni- ‘mero de sflabas, em ordem crescente, marca esses versos: a2 E queda tio simples ‘Ao lado de unm ralher [Num quarto pobre de hotel. ‘Onndimero de sflabas varia de cinco a sete, mas sem grande alteragZo rit- ‘mice, como se nota pela regularidade na distribui¢ao dos acentos, jf que 1m tempo forte na segunda silaba: F quédas/Ao 10, mais longo, repete ainda uma vez o mesmo pé ‘por duas slabas e dispostos também em posicao simétrica dentro dos versos € do terceto: E quedas to simples ‘Ao dado de um talber Num quarto pobre de hotel ‘Ainda no mesmo sentido 20 contrério da estrofe do meio, agora a dis- posigdo dos elementos sintéticos obedece a ordem de importincia na frase, sem qualquer inversio de expectativa: sulelto ¢ predicado vémn em primeiro lugar e $6 depois, os adjuntas adverbiais, Nesta order equilibrada e sem sur- presa tende a se completar de fato 0 quadro imével de vida tranqdila ou si Tenciosa da fruta, que tanta impressto nos causa desde a primeira ‘Agora se nota mais concretamente que essa impressio de tranqiilidade deriva em grande parte da estrofe final e da mudanga de diregio do olhar ‘que nela se d4. A visio j6 no se concentra sobre a fruta; pelo contrério, desloca'se para situé-la no interior do quarto, em harmonia com o ambiente, numa disposi¢ao definitiva que sugere a mesa arrumiada para a refeigio soli- aria, onde cumpricé seu destino de simples alimento humano. Mas 0 que importa € 0 momento de espera muda ¢ sem énfase, em que a magi se imo- billza diante dos olhos na simplicidade de seu modo de ser. Esta permanen- cia momentinea, “‘suspensa no ar” do quarto, vem expressa pelo verbo ‘quedar-se, que a torna intemporal, como se a magi se fizesse uma didiva eterna em sua quietude de objeto que se entrega humildemente a necessida- de humana, sem ostentar © bem mais precioso que traz em si ‘© contsaste entce a revelacio do valor extraordindrio da mag nos ver- sos anteriores do poema, sobretudo na estrofe central, ¢ sua simplicidade ‘quieta na estrofe final é a assimetria maior do texto ¢, com certeza, também © paradoxo essencial do modo de ser da fruta, o que 2 torna exemplar 208 olhos de quem a observa, Trata-se, portanto, de um segmento decisive pa- 8 ra compreensio do poema como um todo, visto que por ele se passa de ‘um instante de maxima intensidade, na estrofe do melo, & trangtilidade do fim, Ou seja, o segmento da passagem marcante entre um breve momento

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