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LINGUA, CULTURA, EDUCACAO E COLONIALIDADE: REFLEXOES SOBRE O ENSINO-APRENDIZAGEM DE LiNGUAS EM UMA PERSPECTIVA POS-COLONIAL ANA CRISTINA DE MORAES HAZIN PALHARES* RESUMO. Este artigo apresenta uma reflexdo sobre como os processos de colonizacdo epistemolégica, linguistica e cultural tem acontecido no Brasil ¢ como o ensino de linguas, especialmente 0 ensino de lingua inglesa, tem contribuido para tais processos. Para uma andlise mais profunda dossas questdes, recorremos aos estudos pés-coloniais latino-americanos trazendo alguns dos principais conceitos desenvolvidos nesses estudos para nos ajudar a situar o desenvolvimento do ensino de lingua inglesa em uma perspectiva imperial e com caracteristicas colonizadoras. Por fim, levantamos algumas questdes e reflexdes sobre as possiveis contribuigdes da teoria pés-colonial latino-americana para 0 ensino de linguas baseadas principalmente nos conceitos de interculturalidade critica e pedagogia decolonial. Palavras-chave: lingua, cultura, educacao, colonialidade, interculturalidade ABSTRACT In this article we reflect on how the epistemological, linguistic and cultural colonization has occurred in Brazil and how language teaching, especially the teaching of English has contributed to these processes. For a more in-depth analysis, we use some of the main concepts developed by a Latin American post colonial studies group which help us think about the development of English Language Teaching (ELT) in an imperial perspective with its colonizing characteristics. We then propose a reflection on the possible contributions of the post colonial theory to language teaching based on the concepts of critical interculturality and decolonial pedagogy. Keywords: language, culture, education, coloniality, interculturality * Doutoranda do Programa de Pés-Graduagdo da Universidade Federal de Pernambuco. ‘Vocé e eu somos americanos imaginarios. Nossa experiéncia do Novo Mundo se deu, até agora, vicariamente, no escuro e seguro recesso das salas de cinema. Nao vivernos nossa hist6rla, nds a assistimos. Hé geragdes que somos hdspedes formals € um pouco constrangldos deste lado selvagem da Terra, ‘curopeus transplantados em permanente e hereditério susto com a ameaca da rejeicdo. Reconstituimos nossa civilizagio ibérica na praia, timidamente, com sacadas rendadas para 0 mat, e protelamos 0 sujo trabalho de desbravarmos nossa prOpria fronteira. © mato persiste na imaginagao nacional como a seara sombria de todos 0s terrores. No subconsciente de cada brasileiro, nao duvido, vive a secreta certeza de que os indios um \da se reagrupardo € nos mandardo de volta as caravelas. Calcamos toda uma cultura sobre 0 provisério... (VERISSIMO, 2003, p. 11) HA cerca de vinte e cinco anos, meu pai foi fazer o seu curso de doutorado nos Estados ‘Unidos, na cidade de Atlanta, e nés viajamos todos juntos (meus pais, minhas duas irmas e eu). Cheguel 40s Estados Unidos quando tinha dez anos de idade. Nao falava Inglés, ento ful colocada em uma turma de inglés para falantes de outras linguas’, como era chamada. Mas apenas por um semestre, depois jd compreendia e falava tudo com uma fluéncia surpreendente. O aprendizado de uma segunda lingua por uma crianca em contexto de imerso, no qual praticamente tudo ¢ falado e escrito na lingua a ser aprendida, é um processo muito rapido ¢ chega mesmo a impressionar. Frequentamos escolas puiblicas e além de americanos havia também uma grande quantidade de alunos de outros paises, muitos da América Latina e muitos também de paises da Asia. Na escola, uma das primeiras atividades do dia era professarmos todos juntos, americanos e estrangeiros, um juramento de lealdade a bandeira americana’. Confesso que nao entendia bem o que estava fazendo naquela época, e que s6 ful pensar sobre isso ha muito pouco tempo... Ao refletir sobre como toda essa experiéncia me influenciou, algumas lembrangas vém i tona, A primeira: quando descobriam que nés éramos do Brasil, as pessoas geralmente elé, futebol € sentiam a necessidade de falar alguma coisa; as primeiras eram quase sempre carnaval... Uma segunda lembranga: um pouco antes de voltarmos para o Brasil, muitos mostravam uma grande preocupacao e perguntavam como eu faria para retirar 0 aparelho ortodéntico que estava usando. Seria possivel no Brasil?... Uma terceira lembranca: parecia ESOL (English for Speakers of Other Languages) > 1 pledge allegiance to the Flag of the United States of America, and to the Republic for which it stands, one Nation, under God, indivisible, with liberty and justice for all” (Prometo lealdade a Bandelra dos Estados Unidos da América, e a Republica que ela representa, uma Nagdo, sob a protegdo de Deus, indivisivel, ‘com liberdade e justiga para todos. Tradugao minha.) 2 haver sempre brasileiros em todos os lugares que nés visitévamos, dentro e fora dos Estados Unidos. Durante uma das viagens que fizemos, havia algumas pessoas falando portugues bem __erto de nés e eu e minha irma comegamos a falar em inglés, inclusive quando nosso pai velo “falar conosco continuamos falando em inglés para que eles néo descobrissem que éramos _ brasiletras. Sentiamos, naquele momento, vergonha de ser brasiletras.. Quando voltei dos Estados Unidos, agora jé com quinze anos, alguns até me chamavam de americana, com sotaque de brincadeira e uma certa admiragio. Mas a verdade € que passei mesmo um bom tempo me sentindo meio americana. Torcla pelos Estados Unidos em algumas competigdes esportivas € chegava até a me emocionar quando escutava o hino americano. O jeito de falar, de me vestir, o sotaque, o portugués misturado com o inglés, era tudo um pouco diferente. $6 gostava de ouvir miisicas em ingles, escrevia tudo em inglés € achava tudo aqui um pouco estranho. Quando cheguei, fui logo chamada para trabalhar na biblioteca de um curso de inglés que havia aberto ha pouco tempo perto de casa. Depois de alguns meses, fiz um treinamento e comecel a dar aulas, mas nunca penset que seria professora de inglés para sempre, nem compreendia bem 0 que tudo isso significava. Mas falaremos um pouco mais sobre as questdes relacionadas ao ensino de lingua inglesa depois. O que gostaria de destacar nesse momento & que muitos brasileiros, dentre estes destacamos professores e também alunos de Lingua inglesa, na maioria das vezes sem ter morado em outros paises, demonstram também uma atitude de exaltagao ao estrangeiro e menosprezo pelo seu proprio pais, sua lingua e cultura, Moita Lopes (1996) realizou um estudo no qual constatou uma atitude colonizada nos Voltemos, entio, ao nosso texto de abertura. Ao propor analisar algumas de suas paixdes culturais, do cinema a literatura e miisica, passando por outras artes, Luis Fernando. Verissimo traga um perfil que, guardadas as devidas especificidades por se tratar de uma cronica, certamente pode nos levar a uma série de questionamentos e reflexdes. Fomos colonizados, nos identificamos e as vezes até nos confundimos com nossos colonizadores em alguns aspectos.’ Mas nao apenas com os portugueses que desbravaram nossas terras, também com outros. povos europeus e com os norte-americanos ao sermos colonizados epistemologicamente e culturalmente, * A respeito da relagao colonizador-colonizado ver também Fanon (2008) e Memmi (1977). © que estou propondo neste texto € uma reflexdo sobre como esses processos de colonizagao tem acontecido e como o ensino de linguas, especialmente o ensino de lingua inglesa, tem contribufdo para tais processos. Para uma anélise mais profunda dessas questées, recorremos aos estudos Pés-coloniais latino-americanos (QUUANO, 2005 e 2010; MIGNOLO, 2007 e 2008; WALSH, 2007, 2008 e 2010; MALDONADO-TORRES, 2007; entre outros) trazendo alguns conceitos importantes para a nossa reflexao. Faremos, em primeiro lugar, uma sintese de alguns dos principais conceitos desenvolvidos por esse grupo de estudiosos. Em seguida, situaremos (@/desenvolvimento do ensino de lingua inglesa| em (Cum paspectvrimperal eon earactersuesiclonizadrs; Por fm, levataremosalgumas questdes € reflexdes sobre possiveis contribuigdes da teoria pés-colonial latino-americana para 0 ensino de linguas baseadas principalmente nos conceitos de interculturalidade critica e pedagogia decolonial. RAGA, EUROCENTRISMO E COLONIALIDADE Gostariamos, primeiramente, de explorar trés conceitos centrais a toda a teoria pos- colonial na perspectiva latino americana: raga, eurocentrismo e colonialidade. Anibal Quijano (2005) destaca que a ideia de raca é uma abstragio, uma invengao sem qualquer relagao com processos biolégicos € foi desenvolvida a partir da hist6rla da América com a produgdo de novas identidades sociais (indios, negros, mestigos) além da redefinigdo de outras. Essa ideia de raca funcionou, portanto, como uma maneira de legitimar as formas de dominacio ja impostas pela colonizacaio. Como afirma o proprio autor, [1] a codificagio das diferengas entre conquistadores © conquistados na dela de raga, ou seja, uma supostamente distinta estrutura biolégica que situava a uns em situagdo natural de inferioridade em relagdo a outros. Essa ideia foi assumida pelos conquistadores como o principal elemento cconstitutivo, fundacional, das relagdes de dominagdo que a conquista exigia (QUITANO, 2005, p. 1). (]WlonizAAGS, Para explicar esses processos, Quijano desenvolve 0 conceito de eurocentrismo 4 € enfatiza que esta racionalidade/perspectiva de conhecimento ao tornar-se hegeménica coloniza todas as outras e os saberes a estas atrelados e, em relacao a experiéncia histérica latino-americana, opera como “um espelho que distorce o que reflete”. Em outras palavras: A imagem que encontramos nesse espelho no é de todo quimérica, ja {que possuiimos tantos e tio importantes tragos_hist6ricos europeus em tantos aspectos, materiais e intersubjetivos. Mas, ao mesmo tempo, somos (G0 profundamente distintos. Dai que quando olhamos para o espelho euracéntrico, a imagem que vemos seja necessariamente parcial e distorcida, (QUIJANO, 2005, p. 13). A colonialidade do poder (QUIJANO, 2005) serla, entdo, 0 uso da raca para a Cistribuigao de trabalhos e papéis socials. Lutar pela destruigao da colonialidade do poder significa terminar nao sé com o racismo mas também com o que sustenta © capitalismo eurocentrado € que, consequentemente, sustenta as formas hist6ricas de exploragio e dominagio material ¢ subjetiva dos seres humanos ‘A colonialidade do saber instaura 0 eurocentrismo como a ‘inica perspectiva de conhecimento e nega outras formas de produgio de conhecimento que nao sejam brancas € ceuropeias. Mignolo (2008, p. 301) esclarece que A colonialidade do ser, por sua vez, refere-se a desumanizacao, a inferiorizagao © a subaltemizacao, ao tratamento daqueles que foram trazidos para serem escravos nao como gente, mas como coisas, como mercadorias. Responde, segundo Maldonado-Torres (2007), & Italiano, espanhol e portugués durante o renascimento e inglés, francés e alemio aps o Hluminismo, necessidade de pensar sobre os efeitos da colonialidade na experiéncia de vida dos subalternizados, e nao apenas nas suas mentes. Para enfrentar e questionar a colonialidade em todas as suas diferentes perspectivas, Mignolo (2007) desenvolve o que ele chama de pensamento decolonial, cuja genealogia € pluriversal, diferentemente das teorias e de outras propostas de estudos pés-coloniais cuja genealogia podemos localizar no pés-estruturalismo francés e da genealogia da modernidade europeia ¢ do eurocentrismo que € universal. Segundo o autor, o pensamento decolonial pressupde sempre a diferenca colonial, a abertura e liberdade de pensamentos ¢ formas de viver outras, um desprendimento da retérica da modernidade e de seu imagindrio imperial. Mignolo (2008, p. 289) defende a opcdo descolonial como uma opgao epistémica que exige ser politica ¢ epistemicamente desobediente para poder “desnaturalizar a construgio racial e imperial da identidade no mundo moderno em uma economia capitalista”. Descolonialidade, nesse sentido, significa “desvelar a légica da colonialidade e da reproducao da matriz colonial do poder” e também “desconectar-se dos efeitos totalitdrios das subjetividades e categorias de pensamento ocidentais” (MIGNOLO, 2008, p. 313), ou seja, libertar-se do espetho eurocéntrico e deixarmos de ser 0 que no somos (QUIJANO, 2005). Isto implica pensar a partir de outras linguas e outras categorias de pensamento que nao foram Inclufdas na fundamentagdo do pensamento europeu e ocidental. IMPERIALISMO LINGUISTICO E CULTURAL Para tentarmos compreender melhor a importancia de pensar a partir de outras linguas € categorias de pensamento, julgamos ser necessario refletir um pouco sobre o poder que ha nna linguagem. Poder de comunicar, de calar, de formar, de construir ¢ de constituir, além de tantas outras possibilidades. Nao hé como escapar desse poder e, muito menos da linguagem, pois, como afirma Barthes (1980, p. 12) ao dissertar sobre a capacidade de perpetuagiio do poder: A raziio dessa resisténcia e dessa ubiquidade ¢ que 0 poder é o parasita de um ‘organismo trans-social, ligado a histria inteira do homem, e nao somente sua histéria politica, histérica. Esse objeto em que se inscreve o poder, desde toda eternidade humana, é: a linguagem — ou, pata ser mais preciso, sua expresso obrigatoria: a lingua. autor insiste ainda que “assim que a ela é proferida, mesmo que na intimidade mais profunda do sujeito, a lingua entra a servigo de um poder” (BARTHES, 1980, p. 14). Nao a lingua como um sistema de signos esvaziada de sua dimensio social, mas a lingua como sistema de significagao, constitutiva do sujeito e do mundo. Isso nao quer dizer que estejamos sempre conscientes da poténcia da linguagem e de que a esta, como defende Orlandi (2009), ‘com seus equivocos e sua opacidade, estamos sempre sujeitos. Nao temos, portanto, como assumir uma posicdo neutra diante da linguagem uma vez que, ainda de acordo com Orlandi (2009, p. 9), “...ndo ha neutralidade nem no uso mais aparentemente cotidiano dos signos. A entrada no simbélico ¢ irremedidvel e permanente: estamos comprometidos com os sentidos e o politico.” Dai a necessidade de uma reflexio constante sobre a linguagem que usamos, sobre 0 que falamos, ouvimos, lemos e escrevemos no cotidiano e que mesmo que nao percebamos, nos constituem como sujeltos e podem ao mesmo tempo colonizar e descolonizar, reproduzir e transformar, oprimir e libertar: Nesta perspectiva, acreditamos que o imperialismo linguistico do inglés® no Brasil pode ser tomado como exemplo para refletirmos um pouco sobre algumas das questdes Jevantadas anteriormente ¢ sobre como a educacao tem contribuido para a colonizagdo das mentes, © Segundo Phillipson (1992, p.48), refere-se a como o dominio da lingua inglesa é afirmado e mantido pelo estabelecimento ¢ reconstituicao continua de desigualdades estruturals e culturals entre o inglés ¢ outras linguas, ‘que asseguram a alocagao de uma quantidade maior de recursos materiais para o inglés do que para outras, linguas e beneficiam aqueles que sio proficientes na lingua inglesa. 7 Em nosso pais, mais especificamente, 0 discurso que tem circulado jé hé algum tempo, dentro e fora da academia, € o da necessidade de aprender a lingua inglesa, de preferéncia desde cedo, (e, se possivel, logo nos primeiros anos de escolarizacao”) para conseguir 0 que quer que seja. Em outras palavras, para ser alguma coisa, para ser alguém, temos que saber inglés. Portanto, isso provavelmente quer dizer que sem esta lingua nao somos ninguém. Diante desta necessidade emergente, crescente e (para muitos) urgente, multiplicaram- se as escolas € os cursos de inglés e houve, durante muito tempo, uma busca incessante pelo método de ensino perfeito. Da énfase na traducao e na gramatica ao método direto, do método audiolingual 4 abordagem comunicativa, mas 0 que todos tinham em comum era a falta de énfase na reflexdo sobre a linguagem e a exclusdo dos aspectos sociais, histéricos e politicos que so constitutivos © indissoctiveis dos processos linguisticos. Na realidade, 0 foco excessivo nas técnicas e em métodos de ensino tem ajudado a perpetuar um discurso sobre lingua € educacio e, mais especificamente, sobre o ensino de lingua inglesa, que ao desprezar questdes sociais, econémicas e politicas da pratica pedagégica, contribui para legitimar o dominio da lingua inglesa, uma vez. que o discurso que prevalece é 0 da necessidade de aprender a lingua pata sobreviver na moderna e competitiva sociedade atual e para ter sucesso. Neste sentido, Mascia (2003, p. 211) defende que as metodologias e abordagens “consistem cm priticas politicas, em visées de mundo que, por sua vez, tém 0 potencial de organizar e moldar 0 individuo”, veiculando “nao apenas contetidos, mas formas pelas quais és “significamos a verdade’ a respeito de nds mesmos ¢ dos outros, por meio de relagdes de poder", Mesmo apés os diversos métodos e abordagens de ensino mencionados, 0 sujeito da educagdo na perspectiva do ensino de linguas estrangeiras e também de lingua materna permaneceu o mesmo, “universal, ahistérico ¢ associal” (p. 220), o que nos instiga a refletir sobre os porqués de tantas mudancas educacionais ocorridas nas tiltimas décadas. Campbell (2008) realiza um estudo sobre a histéria da lingua inglesa na cidade do Recife o qual confirma que o ensino desta lingua tem se desenvolvido dentro de um modelo de imperialismo linguistico. A autora ressalta ser esta uma histéria tanto “politica quanto linguistica, tanto cultural como educacional” (CAMPBELL, 2008, p. 137), mas que essa mensagem nao é bem aceite entre os professores por nao parecerem estar dispostos, por uma Além dos cursos de linguas, das escolas que oferecem ensino de lingua inglesa para criangas (geralmente a partir dos 4 anos, mas alguns ainda mais cedo) e das escolas bilingues, ha uma série de desenhos animados que fensinam inglés para criancas (Coleao de DVDs da Disney; Dora, a aventureira; Word World; Super Why ‘apenas para citar alguns). " Grifos do autor série de fatores, a pensarem sobre o que pode haver de negativo na maneira como a lingua inglesa € supervalorizada e sobre os efeitos da sua posigao hegem@nica. Campbell destaca, ainda, a necessidade de trabalhar essas questdes no ensino de inglés e a importancia de tanto professores como alunos se conscientizarem do lugar do poder simbélico desta lingua nos discursos e na construc de subjetividades. & preciso sempre enfatizar que inerente a educacao esta a sua politicidade, como nos Jembram sempre as palavras de Freire (1996, p. 78), “qualidade que tem a pritica educativa de ser politica, de nao poder ser neutra”, Nao existe, portanto, ensino dissociado das questdes politicas, pois mesmo que nao estejamos plenamente conscientes em nossa_pritica pedagégica, a dimensdo politica silenciada no curriculo e na sala de aula também constitui um tipo de discurso e, portanto, também exerce seu poder. Gadotti (2012, p. 79), ao fazer algumas reflexdes sobre o trabalho de Paulo Freire na Africa, ressalta que “a linguagem sempre representa um poder, ela pode ter ¢ tem forca politica. Quando um dominador, um colonizador chega a um pais, a primeira coisa que faz é impor aos nativos a sua lingua.” O que representaria, portanto, essa imposigio da lingua inglesa em nossa sociedade? Nessa perspectiva, & necessétio refletir também considerando que pensar sobre o poder da lingua significa pensar também sobre a cultura, dada a sua relagdo de dialeticidade e indissociabilidade com a lingua. Como afirma Fanon (2008, p. 33), “falar € estar em condigdes de empregar uma certa sintaxe, possuir a morfologia de tal ou qual lingua, mas € sobretudo assumir uma cultura, suportar 0 peso de uma civilizagao”, ¢ ainda, “um homem que possui a linguagem possui, em contrapartida, o mundo que essa linguagem expressa e que lhe bi plicito”, ou seja, a cultura Esta relagdo de interdependéncia também ¢ enfatizada por Hall (1997, p. 10), para quem “cultura nada mais & do que a soma de diferentes sistemas de classificagao e diferentes formagées discursivas aos quais a lingua recorre a fim de dar significado as coisas”. Nao nos referimos aqui a cultura em uma perspectiva homogénea e nem de acordo com uma visio reducionista e dicot6mica que considera as obras cléssicas jé consagradas como cultura e desconsidera a producdo popular regional, por exemplo. Compreendemos a cultura como sistema de significagdes, como modo de vida global de uma sociedade, na perspectiva de Williams (1992). Podemos, portanto, afirmar que o imperialismo da lingua inglesa, além de lingufstico, tem sido também um imperialismo cultural, principalmente da cultura norte-americana. Além da propria lingua, sfo incontaveis os produtos culturais que sio “importados” diretamente dos Estados Unidos e que trazem consigo ideais, valores e conceitos préprios da cultura americana e que terminam sendo assimilados, chegando até mesmo a substituir 0 que é préprio da nossa cultura. Os filmes hollywoodianos, por exemplo, tém_ contribuido fortemente, como constatam Verissimo (2003) e Ferreira (2002)’, para disseminar de forma predominantemente homogénea, linear € coerente, valores norte-americanos pautados por uma visdo estadunidense de igualdade econdmica, justica social ¢ direitos humanos. Jé 0 Brasil é, muitas vezes, retratado nesses filmes de forma bastante estereotipada, como um lugar onde nao hé justiga (fuga ideal para os que cometeram algum tipo de delito), como um lugar 1no qual as pessoas s6 gostam de se divertir (jogar futebol, brincar Carnaval, fazer festa e ir & praia usando biquinis minisculos), mas ndo gostam muito de trabalhar™”. Barbie, Disney, Mickey, shopping center, OK, cowboy, country, hambiirguer, Halloween, McDonald’s, TV sio apenas uns poucos dos inumerdveis produtos que trazem consigo uma imensa carga cultural repleta de valores estéticos, racistas, sexistas ¢ imperialistas, que ajudam a difundir a ideologia capitalista, educando desde os primeiros anos para © consumismo, e a propagar a superioridade norte-americana e a homogeneizagao cultural. © ensino de lingua inglesa tem, neste sentido, contribuido fortemente para a colonizagao das mentes uma ver. que nao desvela os padrdes de poder vigentes e nem muito menos questiona as desigualdades entre linguas, culturas povos. Ao contratio, 0 foco do ensino de inglés é aprender a lingua e a cultura imperiais impostas sem fazer qualquer tipo de reflexio critica sobre as condigdes de produgio dos discursos a respeito do ensino- aprendizagem dessa lingua, sobre os papéis sociais que assumimos ¢ deixamos de assumir € sobre a colonialidade que nos subalterniza e nos inferioriza'!. Passamos a ser 0 que nao somos quando comegamos a assumir o que nao € nosso. Deixamos de ser... INTERCULTURALIDADE CRITICA E PEDAGOGIA DECOLONIAL: Perspectivas e Possibilidades ° A autora realizou um exame critico de filmes americanos produzidos entre 1955 ¢ 1975 e que representam historias de professores, personagens que so romantizados objetivando a disseminacio (ou no) do American Way of Life (modo de vida americano). °° Um dos exemplos mais recentes ¢ o filme Rio. ™ Neste sentido, Pereira (2000) desenvolve una reflexdo sobre como os livros didéticos de lingua inglesa tem ccontribufdo para mantere reforgar as relagdes de poder existentes em nossa sociedad. 10 Uma das solugdes propostas na atualidade para tentar “resolver” 0 problema do impetialismo linguistico-cultural da lingua inglesa vem através dos conceitos de multiculturalismo e interculturalidade’* ou educacao intercultural'*, conceitos que tém sido muito valorizados em nossa sociedade, inclusive na educagao. E importante, em primeiro lugar, compreendermos os diferentes significados atribuidos a esses conceitos para entao podermos refletir sobre as possiveis contribuigdes no processo de ensino-aprendizagem de Linguas estrangeiras Temos no multiculturalismo uma proposta de contato e convivéncia com diferentes pontos de vista, visdes, interpretagdes € atitudes provenientes de diversas culturas. Esta possibilidade de se relacionar com outras culturas (e nfo sé com a cultura norte-americana, por exemplo), é compreendida, inclusive no ensino de lingua inglesa, como uma oportunidade de enriquecimento e abertura para novas experiéncias e para a inovagao. A interculturalidade, por sua vez, pode ser compreendida de acordo com diferentes perspectivas (WALSH 2007, 2008). De acordo com uma perspectiva relacional, a Interculturalidade refere-se ao contato com outtas culturas e ao intercambio entre estas. J4 na perspectiva da interculturalidade funcional, temos 0 reconhecimento, o didlogo e a tolerancia entre culturas. No entanto, assim como o multiculturalismo, busca “incluir” os que cram excluidos, mas para atender aos interesses do mercado, servindo ao sistema neoliberal, respondendo aos interesses € as necessidades das instituicdes sociais dominantes deixando de fora os padrdes de poder que mantém a desigualdade, reconhecendo e tolerando as diferencas. Como podemos ver, nem o multiculturalismo nem as perspectivas de interculturalidade relacional € funcional propde questionar as desigualdades e os padrdes de poder que regem a sociedade modema-capitalista na tentativa de transformé-la. No entanto, encontramos no conceito de terculturalidade critica desenvolvido por Walsh, (2007, 2008, 2010) a diferenca para podermos re-conceitualizar e repensar uma educacio linguistica visando a sociedades outras. Isso porque a interculturalidade critica parte do problema de poder estrutural-colonial-racial dos padrdes de racializagao e da diferenga construida a partir deles e dirige-se a transformacao das estruturas, instituigdes e relagdes socials. f ferramenta pedagégica, projeto que aponta para um imaginério outro, para modos de ser, estar pensar e viver outros; ainda nao existe, é um processo a ser construido coletivamente. Os PCNs de Lingua Estrangeira (MEC, 1998) defendem a aprendizagem intercultural como 0 objetivo ‘educacional principal no processo de ensino-aprendizagem de lingua estrangelra ™ Nogueira (2009) desenvolve uma investigacio sobre o potencial do ensino de lingua estrangeira para uma aprendizagem intercultural EET Para lutar contra uma educacéo que tem contribuido ¢ continua contribuindo para reproduzir as relagdes de poder dominante e pata a colonizagao das mentes, para a ideia de uma ciéncia e uma epistemologia singular, objetiva e neutra, como destaca Walsh (2007), tendo a interculturalidade critica como ferramenta, processo e projeto, precisamos criar um outro tipo de pedagogia. Defendemos, juntamente com a autora, a necessidade de desenvolver pedagogias decoloniais que questionem a ordem atual, que desvelem os padrdes de poder racializado, moderno € colonial que alimenta © projeto neoliberal, que gerem Intervengao e acao sociopolitico transformadora. A opgao decolonial requer, portanto, uma atengio especial as contribuigdes as implicagdes das historias locais, das histdrias negadas, marginalizadas € subalternizadas, daquilo que € nosso. Exige também , confrontar la hegemonia y colonialidad del pensamiento ‘occidental, es necesario, ademés, enfrentar y hacer visible nuestras prdprias subjetividades y practicas, incluyendo nuestras pricticas pedagégicas (WALSH, 2007, p. 33). Pensando mais especificamente na formacao de professores de linguas e no ensino de lingua inglesa, € preciso desenvolver reflexdes nos processos de formagéo docente e de aprendizagem questionando como € por que esta Iingua fol e ¢ imposta, assim como os processos de exclusdo e de deslocamento Identitérlo, linguistico e cultural gerados por essa Imposicao. Que valores linguistico-culturals estao sendo transmitidos no processo de ensino- aprendizagem e como estes tém ajudado a manter as relagdes de poder e de desigualdade e a reproduzir o ‘status quo"? Como podemos pensar o ensino-aprendizagem de uma lingua oy hegeménica de um modo “outro CONSIDERAGGOES FINAIS Nao resta qualquer diivida que o inglés tenha se tornado a lingua de prestigio em nosso pais, estando associada as classes economicamente privilegiadas, considerada imprescindivel para adentrar no mercado de trabalho, portanto, agente de imperialismo lingufstico-cultural. 2 Entretanto, concordamos com Pereira (2000) que ela também pode ser utilizada para resistir a esse imperialismo. Para tanto, faz-se necessério partir da nossa historia local, de nossas especificidades e subjetividades, tentando compreender e questionando as imposicées ingufsticas e culturais que tém nos construido e tentando desconstrui-las através de edagogias e abordagens criticas e descolonizadoras que, para além do sistema educativo e do ensino, tenham como objetivo formar novos modos de ser e estar no mundo, transformar a nossa sociedade em outra mais justa e igualitéria para todos. ‘Ao trabalharmos com a lingua Inglesa (com a lingua materna e outras Iinguas estrangeiras também) e com as questes culturais que a ela so inerentes, precisamos estar conscientes do poder que os saberes linguistico-culturais (também politicos e sociais) tém de nos constituir e de construirem a realidade. Por isso, todos esses saberes, em todas as suas dimensées, precisam estar presentes de forma explicita nos curriculos de formacao de todos ‘0s professores, dos professores de linguas em especial. Apenas para dar alguns exemplos praticos, quantas vezes trabalhamos com textos (literdrios ou nao), filmes, miisicas e outros artefatos culturais de forma superficial, mais preocupados com a forma do que com o contetido, orientando os alunos a valorizarem mais o que vem de fora, a obras clissicas, ja consagradas, desenvolvidas de acordo com 0 padrao eurocéntrico, e (mesmo que de forma implicita) a desprestigiar a cultura local? Como esse discurso nos constitui e nos significa? Precisamos, principalmente, refletir sobre como a nossa pratica pedagégica esta contribuindo para manter ou nao as estruturas dominantes de conhecimento e poder e assumir um posicionamento politico e epistémico de desobediéncia. A formagio inicial é o lugar propicio para uma reflexdo critica sobre essas questdes, fundamentais para 0 exercicio de uma pritica docente comprometida com a sociedade e a realidade brasileira, como destacam as novas Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Letras (2001). 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