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€xng 234 a j | ! Aulas de Lingua Portuguesa: ii quais as praticas de letramento? Luzia Rodrigues da Silva 1. Introdugéo Neste capitulo, proponho-me a apresentar um recorte de uma pesquisa — de cardter metodolégico qualitativo e etnografico — rea- lizada em escolas publicas de Ensino Basico localizadas na cidade de Goiania, estado de Goids. Demonstro excertos de eventos de letra- mento! da sala de aula — gravados em Audio e transcritos — e ana- liso o discurso das aulas das professoras 4 luz da Andlise de Discur- so Critica (ADC) (Fairclough, 2003; Chouliaraki e Fairclough, 1999) e da Teoria Social do Letramento (Barton e Hamilton, 1998). Examino © que esta sendo feito, como e Por quem, o que implica analisar 0 papel que o letramento* desempenha nas instituicdes sociais e 05 propésitos a que ele esta servindo. Com tal andlise, proponho-me 4 i aracteristica de ter \cfpio e um fim. 2. Conforme Barton ¢ Hamilton (1998), 0 letramento é mis be um prinel A on conjunto de préticas sociais observaveis em eventos medi, ‘doe en entendido mediados por textos. DISCURSOS, IDENTIDADES E LETRAMENTOS. 235 analisar as atividades das professoras na sala de aula, buscando per- ceber como essas profissionais materializam, nesse espaco escolar, suas posicdes em torno do ensino de Lingua Portuguesa e em que concepcées de letramento estao fundamentadas. Considero, para andlise, os eventos de letramento, pois, como defende Street (2000, p. 21), eles “habilitam a pesquisadoras/es, e também a praticantes, focarem sobre uma situacdo particular, onde as coisas estéo acontecendo e vocé pode vé-las acontecendo”. Street destaca aqui 0 caréter concreto dos eventos de letramento, que faci- litam a compreensao de convencées e concepgdes que embasam os propésitos pedagégicos. Emprego as discussées de Fairclough (2003) sobre modalidade, focalizando, sobretudo, os tipos de troca, as fungdes do discurso e os tipos de modalidade. A anélise do modo como nos comunicamos com as/os outras/os, do modo como fazemos os tipos de troca, 6 um re- levante aspecto para a identificagao dos sujeitos, pois, como defende Kleiman (2002, p. 271), as identidades sdo consideradas “uma produ- ao social emergente da interag4o”. Partindo dessa perspectiva e sabendo que a interacao esta atra- vessada por varios elementos da vida social, analiso os usos da mo- dalidade apresentados nas aulas, pois eles contribuem para iluminar as relagGes estabelecidas e, dessa maneira, para indicar o estilo? das professoras. Isso porque € possivel perceber 0 uso que essas profis- sionais fazem de determinados modos oracionais, bem como as es- colhas e as trocas que realizam nos eventos de letramento. 2. Anialise de Discurso Critica e letramento como pratica social O termo discurso, com base nos pressupostos da ADC, é com- preendido como parte da pratica social, dialeticamente interconecta- 3. Estilos so modos de ser — identidades (Fairclough, 2003). 236 OTTONI * LIMA do a outros elementos (Fairclough, 2003), como o mundo material, as relagoes sociais, a agao e interagao, as pessoas com suas crengas, seus valores e desejos (Chouliaraki e Fairclough, 1999, p. 21). Nesse senti- do, como uma dimensao das praticas sociais, 0 discurso 6 determi- nado pelas estruturas sociais,’ mas, ao mesmo tempo, tem efeito sobre a sociedade ao reproduzir ou transformar tais estruturas. Assim, 6 (2001)! Desse modo, sustenta relagdes de poder® e ideologias, mas também as transforma. Portanto, 0 discurso deve ser entendido tam- bém em sua dimensao constitutiva, pois como argumenta Fairclough (2001, p. 91): (...) 0 discurso contribui para construir todas as dimensées da estrutu- ra social que, direta ou indiretamente, o moldam e o restringem; as proprias normas e convengées, como também relagées, identidades e instituigdes que Ihe sdo subjacentes. OdiSCuFSO)é uma! praticay nao) -constituindo e construindo o mundo em significados. Um viés social também se aplica aos conceitos de letramento _ preconizados pela TSL. Nessa abordagem, b letramento configura-se _como usos da leitura e da escrita em contextos situados. Ele esta as- sociado a vida social, interagao entre as pessoas, as questdes ideo- légicas, as disputas hegemOnicas e aos varios dominios da vida contemporanea (Barton e Hamilton, 1998; Barton, 1994) Desse modo, como reconhece Magalhaes (1995), o letramento esta intimamente abstratas. Pode-se 4, Para Fairclough (2003, p. 23), as estruturas sociais sao entidades m pensar em uma estrutura social (tal como uma estrutura econémica, uma classe social, um sistema de parentesco ou uma lingua) em termos da definigao de um potencial, um conjunto de possibilidades. 5, Segundo Foucault (1979, p. XIV), “o poder, rigorosamente falando, nao existe, nao € um objeto, uma coisa, mas uma relagao social. Existem sim, praticas ou relagdes de poder. O poder é algo que se exerce, efetua-se, que funciona como maquinaria social que nao esta situ- ada em lugar exclusivo, mas se dissemina por toda a estrutura social”. DISCURSOS, IDENTIDADES E LETRAMENTOS 237 imbricado as premissas da ADC, pois, de letramento tém caréter institucional identidades, valores e crengas mediado: Para essa autora, as Praticas Ou comunitério e constituem Ss pelo meio escrito. Dessa forma, o letramento, na abor relacionam-se, pois visam a Praticas e transformadoras. de ensino ‘dagem aqui adotada, ea ADC Sociais concretas, fortalecedoras Da mesma forma, assumir 0 letramento, social, significa, por parte das/os professoras/es, sobre 0 letramento e seus significados. na sua dimensao com o adquirir consciéncia Os pressupostos ancorados na TSL, portanto, esto orientados para os processos interacionais existentes entre os sujeitos, em que sao defendidos projetos de letramento relacionados ao contexto social em que as pessoas estao situadas.|Desse modo, é relevante analisar a “variedade de praticas cult is las % m diferentes contextos” (Street, 1993, p. 7), com o intuito dé desna lizar praticas hegeménicas e valorizar os saberes das Pessoas em suas comunidades (Street, 1984). Nesse sentido, conforme Baynham (1995, p- 1), investigar o letramento como uma “atividade humana concreta” envolve nao somente 0 que as pessoas fazem com o letramento, mas_ também as suas conclusées sobre o que fazem; envolve, ainda, os valores que sao aplicados e as ideologias que s4o configuradas. associadas 4 leitura e a escrita e [0 letramento aborda os modos culturais de uso da linguagem que incluem valores, crengas, sentimentos, relagbes sociais represen- tados por meio de ideologias e identidades, questies que, ome ae gerem Street (1993) e Barton e Hamilton (1998), sao i eee relagdes de poder| Essa perspectiva Sh er women de Fairclough (2003), para quem as praticas é que ar! ics nae tos discursivos com outros nao discursivos, por exemp' ee m ae A compreensao sobre a conexao entre 0 ey ° eee sociais é reafirmada por Street (1993, p. a, que de! ne culturais e de de letramento “inextricavelmente ligadas as estrutur 238 OTTONI + LIMA poder na sociedade”. Tal conexao é também reafirmada por Barton e Hamilton (1998, p. 3), para quem o letramento, como toda atividade humana, “é essencialmente social e esta localizado na interagao entre as pessoas”. Ainda para reforcar essa perspectiva, Street (1993, p. 13) afirma que o modo pelo qual as atividades sao situadas nas institui- Ges implica outros proce liticos e culturais. is amplos, sociais, econdmicos, po- Assim, na sala de aula, para analisar as praticas de letramento em que as/os estudantes estado engajadas/os, é preciso identificar as atividades pedagégicas em que os textos escritos estao envolvidos e os dominios da vida social aos quais esses textos se relacionam. E nesse sentido que se torna pertinente a andlise da didatizagao das professoras em sala de aula, dos discursos construidos nesse contexto. Para a andlise de tais discursos, recorro a discussao de Fairclou- gh (2003) sobre modalidade. Esta categoria de andlise esta ligada a “comprometimentos”, “atitudes”, “julgamentos”, “posturas” e, por- tanto, esta ligada a identificagao. Além disso, a modalidade sugere o quanto as pessoas se comprometem quando fazem afirmacées, per- guntas, demandas ou ofertas. Assim, ela “6 importante na tessitura das identidades, tanto pessoal (‘personalidades’) quanto social, no sentido de que aquiloycommorqueyaypessoayseicomprometeyé\umallil (Parte significativa do que ela 6 (Fairclough, 2003, p. 166). De acordo com Fairclough (2003), a modalidade pode ser associa- da a tipos de troca (de conhecimento e de atividade) e fungées de fala (ordem/ pedido — demanda, oferta, pergunta e declaragao). Declaragées e perguntas referem-se a troca de conhecimento e demandas e ofertas referem-se a troca de atividade. O foco no primeiro tipo de troca é na troca de infor- magao, na elucidagio de afirmagées, nas reivindicagdes, na afirmacao de fatos. J4 no segundo tipo, o foco é na atividade, nas pessoas fazen- do coisas ou conseguindo que as/os outras/os as fagam. Frequentemen- te 6 orientada para acao nao textual (Fairclough, 2003, p. 106). Fairclough (2003) associa esses tipos de troca e essas fungdes de fala 8 modalidade. Na troca de conhecimento, a modalidade 6 episté- mica. Ela se refere ao comprometimento com a “verdade”, Na troca DISCURSOS, IDENTIDADES E LETRAMENTOS 239 de atividade, a modalidade é deéntica, que é rel : d lativa ao comprometi- mento com a obrigatoriedade/necessidade, A visdo de modalidade do autor vai além dos casos de modali- zagao explicita, ou seja, com marcador explicito. Os marcadores ar- quetipicos de modalidade so os “verbos modais” (poder, dever, poderia, deveria), embora haja muitas outras formas pelas quais a modalidade seja marcada. As escolhas feitas, relativas a modalidade, dizem-nos muito sobre como um texto é tecido, como 0/a produtor/a Posiciona-se e como ele/ela posiciona 0/a leitor/a, sobre quais atitudes sao veiculadas e como as identidades sao construidas. 3. Os eventos de letramento: uma possibilidade de andlise No excerto a seguir, a professora Patricia’ propée a discussio sobre um texto poético, Poema tirado de uma noticia de jornal, de Manuel Bandeira. Professora: Quem que seria o Joao Gostoso, aqui no poema? O Joao é um nome, é um nome comum, nao é um nome comum? Pedro: E. Ele é um trabalhador que da duro. Julia: £ um trabalhador, porque ele é um carregador de feira livre. Entao ele é um trabalhador... bragal, quem é carre- gador de feira livre é trabalhador bracal. Joana: F, normalmente é preto. rr oo ekto a seguir 6. Este, como todos os outros nomes — de professoras e de alunas/os — que virao a segui aa ; baatios é um pseudénimo. Obedeso, com isso, a um dos princfpios éticos que orientam os tral cientificos, 240 Professora: Alexandre: Professora: André: Professora: André: Professora: Sar Professora: Sara: Rubens: Professora: Sara: Professora: Sara: Professora: Pedro: OTTONI « LIMA Normalmente, normalmente, é mesmo. Ai “morava no morro da Babilénia, num barracéo sem ntimero”. O que que o “morro da Babilénia, barracéo sem ntimero” traz pra gente? Favela. Que ele mora numa favela e sem ntimero mostra 0 qué? Que ele vive perdido. Ok e 0 que isso significa? Que é um Joao Ninguém. Ele nem nome tem, né? Nao tem identificacéo como pessoa, nao é isso? E um Joao Gostoso, ou quase um Joao Ninguém, que é trabalhador bragal, mora num morro e num barracéo sem ntimero. Além de ser barracdo é sem numero. Entao ele néo tem uma identificagdo normal, digna de um ser humano. Nao da essa impressao? Aha. Ai depois ele fala assim, oh: “Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro”. Percebam duas coisas, viu, Leticia? Aqui, artigo definido e artigo indefinido, qual que é artigo indefinido? “um”. ‘uma”. Isso. “um”, “uma”, “uns”, “umas”. Singular e plural, feminino e masculino. “Um Joao”, pode ser um Joao qualquer, “o Joao”, pode ser esse Joao, pode ser um outro Joao especifico, ta? O Joao Gostoso. Af aqui, olha s6, “num barracdo sem ntimero”, ele usa “num”, artigo indefinido. Entao esse Joao ta sem identifi- cacao por essa razo também, s6 que quando ele passa pro bar, o bar é definido. Dé pra perceber isso? Tanto que até o bar tem definigao do lug ar, tem nome. As coisas sao consideradas mais importantes do que gente. (Aula: 1" série do Ensino Médio, professora Patricia) DISCURSOS, IDENTIDADES E LETRAMENTOS Esta sequéncia remete-me ao evento de letra; professora Patricia, fazendo uso do texto de carter Ifrico, promove asua recontextualizagao (Bernstein, 1996). Esse texto é ace de um livro literério e levado pa sala de aula para se tornar objeto de estudo. AfeeGntextualloacte, Portanto, conforme conceito de Bernstein (1996), mento em que a quesolbe Esse movimento, segundo Magalhaes (2005, p- 235), implica “o deslocamento, a apropriagao, a relocagao e o esta- belecimento de relagdes com outros discursos em um contexto insti- tucional particular”. Dessa maneira, nesse processo de mudanga, os acontecimentos sociais, as /os Participantes, a Tepresentacao simbéli- ca sob a forma de texto ganham novos contornos, em que se atualizam significados sociais. As perguntas iniciais levantadas pela professora desafiam as/os estudantes e as/os orientam a estabelecer a relagao entre linguagem e sociedade. Sao questées que, baseadas na construgao de conheci- mento a respeito da identidade de “Joao Gostoso”, conduzem as/os estudantes a construir uma visao critica da realidade social. E exata- mente isso que acontece. O aluno Pedro, depois de muitos questio- namentos, assim se expressa: “Tanto que até o bar tem definicdo do lugar, tem nome. As coisas sao consideradas mais importantes do que gente, isso é horrivel”. Desse modo se expressando, Pedro constréi uma comparacdo em que aprecia de forma negativa (Martin, 2000; White, 2004) o fato de as coisas serem consideradas mais importantes que as pessoas. Com tal posigao, 685e aluno indica quélolletramento> Nesse sentido, é possfvel constatar que a professora Patricia faz per- guntas nao simplesmente para obter respostas e verificar conhecimer tos, mas para provocar a reflexao das/os estudantes, fazendo resu tar dai elaborages verbais de dimensao critica da vida social. Rel acio- nado a isso, hd um outro feito: a producao de saberes PrOprios, Assit © conceito de praticas de letramento dessa Professora, como defende Street (2000, p. 21), est relacionado 4 tentativa de “al cl ee € os padrées de atividade em torno do letramento pai 2 OTTONI + LIMA 24; alguma coisa mais ampla de carter social e cultural”. Isso implica um tratamento discursivo dado ao texto. A professora Patricia promove um letramento em que 0 texto é visto pelo viés do discurso. Assim, ele é compreendido como um continuo comunicativo em que entram em jogo as crengas, as ideolo- gias, as relagées identitarias presentes nas praticas sociais. Dessé modo, (@atadowiscursivamente) O estudo do artigo (definido e indefinido) serve para construgao do sentido do texto, nado valendo, portanto, por si mesmo. Assim fajprofessora nao) toma esse litem gramatical/comollll> objeto final do letramento na sala de aula. Ela considera o seu carter linguistico-hist6rico-cultural ao desvendar o mecanismo dos proces- sos de significagéo, que regem a textualizagaio do discurso. Desse modo, 0 estudo sobre 0 artigo ajuda a construir a identi- dade de “Joao Gostoso” imbricada as coisas e, consequentemente, contribui para a reflexo e a construgao de novos significados. Trata-se, portanto, de um letramento que, na atividade de leitura de um texto poético, evidencia a reflexao e 0 posicionamento sobre um problema social relacionado as posigées identitérias no mundo social. Assim, tem-se aqui um evento de letramento que direciona o olhar para a 6tica do humano. HA a atengao voltada para as Pessoas e para os lugares sociais que elas ocupam no mundo. Isso conduz a questiona- mentos e mudangas em relagao a crencas e valores e, mais profunda- mente, a mudangas de praticas sociais. A sequéncia a seguir indica que a professora Renata esté filiada aos mesmos pressupostos, relacionados ao letramento, que orientam as praticas da professora Patricia. Professora: A Macabeia’ era um ser tnico, uma tnica mulher nor- destina? Kennedy: Nao. Acho que ela representa muitas mulheres e nao sé nordestinas, mas... 7. Personagem central do livro A hora da estrela, de Clarice Lispector DISCURSOS, IDENTIDADES E LETRAMENTOS. 243 Joao: Se fosse s6 Macabeia, Macabeia era s6 uma, mas nas con- digdes que ela vive tem varias. Professora: Tem varias, por exemplo, passando pelos mesmos pro- blemas? Sandra: Professora, eu nao sei se isso t4 no mesmo nivel, mas, POF _ exemplo, o narrador é um homem, e tem uma parte, da, do, da introducéo da histéria que diz assim: que ele vai nos dar um recado, que tem varias Macabeias. Ana: Eu também li isso. Sandra: Ele fala que a gente pode encontrar elas na rua. Professora: Entdo, podemos dizer que a histéria de Macabeia pode ser a historia de muitas outras mulheres que estao presentes na vida contemporanea? Sandra: Sim. Eu nao tenho diivida disso. Joao: A gente pensa que as mulheres libertaram, mas tem mui- tas mulheres que séo como a Macabeia, sao sempre sub- missas. (Aula: 2* série do Ensino Médio, professora Renata) Aqui, a professora Renata também recontextualiza um texto li- terdrio, Ela traz o romance A hora da estrela, de Clarice Lispector, para a sala de aula, focalizando a personagem central “Macabeia” como objeto de estudo. Com suas perguntas, a professora se mostra inte- ressada em conduzir as/os estudantes a relacionarem 0 texto ao contexto social contemporaneo, sobretudo, situando-as/os em relagao tarias femininas. Com essa postura, Renata propicia a construcéo de um pensamento critico por parte das/os estudantes mas tem muitas mulhe- (“A gente pensa que as mulheres libertaram, sao sempre submissas”), 0 que se cimento e abertura 4 mudanga pratica, como aponta Kalman as posigdes identi res que s4o como a Macabeia, configura como elaboragao de conhe social. Isso significa que a nos ‘ao de (2005, p. 204), “ cod COTTON! « LIMA Pprocessos culturais e sociais mais amplos” (ver Barton e Ivanié, 1991; Street, 1993). Cabe evidenciar que, neste excerto, a professora Renata faz trés perguntas as/aos estudantes (“A Macabeia era um ser unico, uma unica mulher nordestina?”; “Tem varias, por exemplo, passando pe- los mesmos problemas?”; “Entéo, podemos dizer que a histéria de Macabeia pode ser a hist6ria de muitas outras mulheres que estdo Ppresentes na vida contemporanea?”). Todas elas sao questées fechadas. Contudo, as respostas das/os estudantes nao se limitam ao sim e ao nao, elas se ampliam, estendem-se. Além disso, para todas as pergun- tas, mais de uma/um estudante tem algo a dizer. Tal quadro remete-me a prtica de letramento da professora, pois sugere que j4 6 comum, nesse espaco de sala de aula, o debate que implica a relagdo texto e contexto social. E comum também o trabalho voltado para a constru- gao de uma visao critica da realidade e identidades sociais, 0 que indica que a linguagem é percebida como parte irredutivel da vida social, dialeticamente interconectada a outros elementos, como as identidades (Fairclough, 2003). Essa posigao contraria modelos de letramento que legitimam relagdes de poder entre professor/a e estudante. A sequéncia a seguir foi protagonizada por uma outra professo- ra, Madalena. Em -ar, no é isso? O que que vai acontecer? Retira esse Professora: -ar e acrescenta 0 qué? -ava. Em qualquer palavra, nés ainda estamos naqueles verbos terminados em -ar, té cer- to? T6 s6 lembrando vocés. E quando a gente tiver verbos terminados em -er e em -ir, 0 que que vai acontecer? Daniel: Vira “-ava”, oh, foi mal, “-eva”. Professora: Vocé t4 de graca? (Em tom de irritagao) Daniel: Nao, professora, em “-ir “é “-ia”. DISCURSOS, IDENTIDADES E LETRAMENTOS 245 Professora: Gragas a Deu: is! Entao : wando voce ti tetminados em or. aus ido vocé tiver, no caso, verbos . = vit, ndo 6? Se, i conjugacao. O que que vai gunda e terceira . acontecer? Retira o -er, retira 0 ‘Ir € acrescenta o qué? E acrescenta o tem que fazer pra ter o pretérito, (Aula: 8° ano, professora Madalena) -ia, nao € isso que Pretérito imperfeito? Esse excerto leva-me a um evento de letramento em que a pro- fessora Madalena tem como tépico da aula a conjugacao dos verbos. Como se pode notar por essa pequena amostragem, Madalena desen- volve tal evento de uma maneira completamente desencaixada dos significados sociais e culturais. O modelo de letramento da professora est centrado nos princfpios da gramitica tradicional, que nao consi- dera 0 estudo da lingua em conexao com textos produzidos em pré- ticas sociais. Aqui, Madalena sustenta os turnos com questdes que, em sua maioria, ela mesma responde. Nesse sentido, ela da a impressao de que est4 em interlocugao com um/a outro/a, dissimulando, assim, uma relacdo de poder (Thompson, 1995). Isso significa que, €mbora’o) (Kalman, 2005). Madalena nao se mostra interessada em obter informacao das/ os estudantes, mas sim em distribui-la, afirmé-la, o que pode pressu- por que essa professora nao vé as/os alunas/os como ne de construir o conhecimento, reforgando a concepgao vinculada a um padro tradicional de que o saber 6 um bem do/a Penal : Entretanto, o que quero destacar nessa sequéncia éa elise do aluno Daniel no momento em que onna ated oe ae estudante responde 4 indagacao de Ma ae Me eee de wraca?”. tivamente a resposta do aluno, perguntan . “ao funcionar como uma 4¢ x im proposta parece funck Contudo, tal questao assim prop i ge trata, na verdade, de uma ja, na ; sstatégiea Fairclough, ee choca pois nao se busca aqui a ob de conhet 4 ivi rte do —— a orm, mas pretende-se uma atividade por pal lengao de inform: a OTTONI LIMA 246 aluno, a de ficar quieto, nao falar mais. Isso pode significar que Ma- dalena esta defendendo-se de uma possivel contestagdo por parte do estudante, 0 que a fez sentir seu poder ameacado. Daniel, porém, nao se cala, demonstra resisténcia e continua participando da troca de conhecimento e, dessa vez, fornece a informagao esperada pela profes- sora, 0 que é por ela motivo de consentimento. Madalena, porém, da sequéncia & aula, em conformidade com o mesmo formato inicial, sugerindo que no esté predisposta a revisao dos padrées que definem as suas praticas de letramento. Além dessa hipdtese de que o aluno Daniel, ao fornecer a res- posta a professora, estava, na verdade, desafiando-a, contestando um letramento baseado no ensino de carater mecAnico, pode-se também pensar na alternativa de esse aluno estar apenas fazendo uma tentativa de resposta. Contudo, evidenciando a posigaéo da professora, ao considerar essa segunda hipétese, é possivel dizer que Madalena nao aceita o aluno arriscar-se, fazer suas tentativas, cometer equivocos. De qualquer modo, porém, Madalena, com a troca “Vocé ta de graca?”, expressa sua atitude, construindo o campo de significado do julgamento (Martin, 2000; White, 2004) por meio do qual condena o aluno Daniel pela sua posigao, sua conduta. Este excerto explicita que a professora Madalena nao percebe que o ensino de lingua pautado na anilise de frases e oracbes deslo- cadas de textos extraidos de seus contextos sociais de uso é irreal e afuncional, pois, como defende Neves (2006, p. 125), “a gramatica de uma lingua em funcionamento nao se faz de regras absolutas, com condig6es auténomas de aplicagao”. Tal excerto, portanto, apre- senta uma professora que esta presa a sentidos tradicionais e, além disso, posiciona-se legitimando seu poder na sala de aula, restrin- gindo as trocas com as/os estudantes, néo admitindo contestagGes, por exemplo. A sequéncia que se segue, a exemplo da anterior, indica um evento de letramento desencaixado das priticas sociais cotidianas. pIscCURSOS, IDENTIDADES E LETRAMENTos 247 ‘Ana: Professora, a senhora explicou e eu nao entendi Professora: Isso € pra vocé vé que tem que prestar at , 6 Plicando todo dia, todo dia... Srebegie (Pausa. Conversa entre as/os estudantes.) Professora: As Orages podem ter predicativo do sujeito, objeto direto, objeto indireto, Sujeito, que 6 o subjetivo, né? O comple- mento nominal que é a completiva nominal e a apositiva, que € 0 aposto. (As/os estudantes falam ao mesmo tempo.) Professora: Qual é a classificacéio dessa oracéo aqui, da primeira ora- 40? Ela é a principal, mas dentro da principal ela tem um sujeito? Estudantes: Nao. 1 Professora: Nao, nao tem sujeito. Tem verbo? Bernardo: Nao! Professora: Nao? Bernardo: Tem. Professora: Pra ser orac4o tem que ter verbo. Como é que vocé dé uma resposta dessa? (Aula: 9° ano, professora Rosa) Esta sequéncia faz parte de um evento de letramento em que a professora Rosa faz com as/os estudantes revisao de atividades pro- postas pelo livro didatico. S40 atividades estritamente formais, abor- dando principios da graméatica tradicional da Lingua Portuguesa. Nesse sentido, Rosa constréi um contexto de situagao desvinculado ‘a SO i so, justifica-se um am- vi i estudantes. Por isso, pen: da vida social dos/as } : di biente atravessado por constante conversa Se epee compreensao das/os alunas/os a respeito da “ma! bronca da professora. is especificamente no decorrer 8 Fo que pude notar durante a observasso das aulas, mais Me 4o evento a que esse excerto se vincula. a OTTONI « LIMA Aaluna Ana abre 0 turno, dizendo: “Professora, a senhora ex- plicou e eu nao entendi”. Embora parega tratar-se de uma declaragao, © que acontece aqui é uma troca de atividade, pois se trata de uma aco estratégica, que consiste em dar a uma troca de atividade a apa- réncia de uma (mera) troca de conhecimento (Fairclough, 2003, p. 106). Assim, ao dizer a professora que nao havia entendido o que ela explicara, Ana, na verdade, esta solicitando o seu servico: que a professora explique novamente o contetido em discussao na aula. Porém, a professora reage de forma negativa ao pedido, condenan- do a estudante pelo suposto descumprimento de uma atividade: prestar atengdo. Com esse julgamento (Martin, 2000; White, 2004), a professora isenta-se da sua responsabilidade com um letramento que acolhe as dtividas, atende as necessidades. Ela da a entender que a estudante pede ajuda porque nao presta atengao as suas ex- plicagdes e, com uma modalidade de obrigagio (“tem que”), chama a atengao da aluna para o comprometimento para com essa atividade. Ao atribuir a estudante a caracterfstica de desatenta, Rosa estabele- ce um contraponto em que, do outro lado, esté o seu comprometi- mento com a a¢ao, que é expresso na troca de modalidade deéntica (Fairclough, 2003): “eu té explicando todo dia, todo dia...”. Enfatiza aqui que a realizagao da atividade é continua. Portanto, nessa troca de atividades entre Ana e Rosa, Rosa posiciona-se legitimando 0 po- der do/a professor/a na sala de aula, pois desqualifica a necessida- de, a demanda da estudante, atribuindo-lhe descomprometimento com a obrigagao, que supostamente lhe é devida, e se identifica como um sujeito que se compromete com as ofertas. Além disso, est ex- pressa nessas trocas a concepgao do saber centralizado na professo- ra, 0 que posiciona as/os estudantes como meros receptaculos das explicag6es da professora. Na continuagao desta sequéncia, Rosa, na busca do conhecimento do que ha “dentro” de uma oracao principal, faz perguntas e o aluno Bernardo responde. Contudo, como a primeira tentativa do aluno nao corresponde a resposta esperada pela professora, essa reage negati- vamente, dizendo: “Pra ser oragao, tem que ter verbo, como é que pISCURSOS, IDENTIDADES E LETRAMENTOs Dessa maneira, mais uma vez, sala de aula e desqualifica }ernal da sal uw ca a participacao do estudante B di fi do. Vale ressaltar que, na sentenca “ ta dessa”, o termo “dessa”, rae idence cn odes ae valorativo em relag&o a resposta que o aluno Bemardo soenow Fazendo cose uso, a professora indica sua atitude de en in 2000; White, 2004), julgando de modo negativo a conduta do a dante Bernardo no evento de letramento, ou seja, a professora omnes, sa um. juizo de condenacao a intervenco do aluno, questionando a sua capacidade. 4, Consideracées finais O modelo auténomo de letramento (Street, 1984, 1993) implica a concepgao da escrita como uma entidade auténoma, compreendida como um produto em si mesmo, independente, portanto, das deter- minacées socioculturais. Assim, a escrita e a leitura séo consideradas habilidades neutras desencaixadas do contexto de producao. ‘olares que estao, ainda, voltados para essa pers- letramento orientadas para a mera fun- cionalidade da lingua. Isso, na verdade, vai abrindo um distancia- mento entre estudantes e professoras/es, como se fizessem parte de diferentes mundos. E isso que s€ pode notar nos eventos protagoni- zados pelas professoras Madalena e Rosa. Jé com relagdo aos ventas, cujas professoras sao Patricia e Renata, é possivel pereeer aes ° eles mediados por textos que cumprem © papel de a orn ce estudantes a pratica social, de forma a nelas/es sen eae tido de critica no que se refere a0s problemas soc! Pessoas no mundo. Os contextos esc pectiva tém suas praticas de 250 OTTONI « LIMA Com a atenc&o voltada para o que se faz com os textos na sala de aula, notei que as professoras Patricia e Renata focalizam a linguagem como pratica social, o que implica uma visdo sécio-histérica e discur- siva desse objeto. Elas privilegiam a natureza funcional e interativa da lingua, contrariando um letramento que pde em foco o aspecto formal e estrutural, que, tradicionalmente, vem orientando o trata- mento dado a linguagem e que estd evidenciado nos eventos em que as professoras Madalena e Rosa estao situadas. A lingua, pelo viés das professoras Patricia e Renata, é compreendida como uma forma de agao sociocultural e constitutiva da realidade. Essas professoras en- volvem-se na construcao de significados na sala de aula, representan- do-se com consciéncia dos géneros sociais e refletindo de forma criti- ca sobre questées identitarias e outros problemas sociais. A didatizagao dessas profissionais indica que elas rompem com uma pratica peda- gégica tradicional que ainda sustenta, em muitos contextos escolares, 0 letramento em Lingua Portuguesa. Elas adotam um letramento como pratica social, dando lugar, no espaco escolar, a leitura de textos, mo- bilizando um estudo como pratica comunicativa socialmente situada e contribuindo, dessa maneira, para o desempenho das/os estudantes no que se refere @ leitura e 4 escrita, instrumentalizando-as/os a (inter) agir discursivamente no curso das praticas sociais. Referéncias BARTON, D. Literacy: an introduction to the ecology of written language. Oxford /Cambridge: Blackwell, 1994. HAMILTON, M. Local literacies. London/New York: Routledge, 1998. IVANIC, R. (Orgs.). Writing in the community. Newbury Park, London/ New Delhi: Sage Publications, 1991. BAYNHAM, M. Literacy practices: investigating literacy in social contexts. 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