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Maria Gabriela Llansol ia Gabriela Llansol ari «. E.a minha casa? Visitantes sobre visitantes, em busca da pe~ chincha. Partiam, murchos. Havia um contrato de aluguer regis- tado. Com a renda que pagava, s6 se a casa Ihes safsse de graga. De outro modo, que investimento fariam? Voltarfamos ao inves- ‘timento erdtico, tanto mais que o belo conjunto se prestava a um projecto arquitecténico inovador, para uma residéncia secunds- W ria rodeada de amplissimas zonas verdes, culminando com um belvedere magnifico, construfdo no topo dos dez metros de altu- ra da granja. Isto, claro est, no texto realista, Vi-o claramente nos ofhares de sonho de um gru- Bo de arquitectos que nos deu o prazer da sua visita. A questo prética, além de ameagas de projectos de despejo, era 0 contra- to. E se fizéssemos um negocio por fora? Ah, Busébia, esta ndo € a histéria que o meu texto The conta tia. Pode crer que no. Esta é a histéria da casa de que me fala nas suas cartas. Porque sé a literatura que usa para me falar dos seus Teceios, como se cu tivesse deixado atrés de mim um rasto 4 Ledo Daudet, me obriga a responder-Ihe no dnico tor n- tende. Quando cheguei aquela casa dificil, nao escrevi a ninguém a queixar-me dela, como se ela fosse um inexistente erguido ti- jolo a tijolo. Nao, era a minha planta. Era com ela que eu tinha’ de conversar, mesmo que longamente. Entender-me com ela de vontade a vontade, de linguagem a linguagem, tomando 0 risco ‘que me passasse por cima. Compreende, era preciso instaurar ali uma outra literatura, uma que ndo tendo sido escrita antes nos criassé um territGrio de entendimento e de encanto, Fora ensina- da a desprezar. Voltara as costas & aldeia, tudo o que guardava era a expectativa de um éptimo rendimento irrecusével, em épocas de carestia, sugando aos vizinhos as-parcas poupancas, nio amealhadas para os tempos nefastos, mas para 0 caso de uma doenga madrasta ou para 0 casamento dos filhos. E como ela sa- bia cheirar no ar a aproximago desses tempos. Verdo em que as telhas ficassem no lugar, era verdo de orgulho e de exploracao. O vento ndo teria soprado em rajadas, as breves chuvas de vero no teriam sido trazidas ao lugar, nos campos instalar-se-ia a se- ca, com a seca viria a falta de prados ligeiros e de palha, e, um a um, 08 criadores de vacas apresentar-se-iam a sua porta, de boné na mao. Os precos subiam todos os dias, alguns céntimos. O lei- te, todos os dias, seria vendido abaixo do seu prego. As vacas 18 perderiam peso. As carcagas deixavam de ter valor. Haveria me- nos estrume. Seria necessério converter-se aos adubos. Nio era, no entanto, uma casa rica de aparéncia. Os belos ob- jectos urbanos guardava-os no trajecto que, da porta, conduzia & sala onde estava instalado o escritério do Senhor de Herbais. Um interior cossu, pesado, ostentatorio. Era ali, de boné na mio, que os outros desciam & cidade. O Senhor levantava-se. Oferecia uma cerveja preta. Propunha o seu prego do dia. Apagada a es- puma que a cerveja deixara nos bigodes, os homens partiam com os fardos de palha. Pesados de mais pobreza, levando na alma uum 6dio ao tempo e as vacas maior do que aquele com que ti- nham vindo, Esse 6dio ia abrir-Ihes os ouvidos as prédicas dos veterinérios sobre 0 melhoramento das ragas, enquanto néo se conseguisse uma maneira de melhorar o tempo. Imagina a Busé- bia que a casa ndo via? Que os belos objectos de factura urbana eram inertes? Nao se iluda. H4 estranho por toda a parte, mas, ‘nfo o estranho inerte de Gauthier. Se, um dia, falar em Flaubert, no se esqueca da falar igualmente em Pe. facto 6 que quando o Senhor de Herbais morreu, os objec- tos urbanos jé tinham conquistado os filhos para a sua beleza de aparato. E sabe qual foi o negécio em que investiram? Adivinhe. Faca um esforgo. Leu Apollinaire? Nao leu, néio é verdade? Se tivesse lido, teria sabido que investiram numa rede de talhos. ‘A casa conhecia o negécio rendoso do feno. Os objectos sabiam © valor da vida urbana. Tinham nascido entre os camfvoros da cidade. A came provinha necessariamente dos campos. Era feno transformado. As carcagas compradas em tempo de carestia, um fenémeno excepcionalmente rentabilizado. Quando nao podia pagar, a gente da aldeia entregava as vacas. Sem vacas, abando- navam a terra. Mas, durante séculos, vinham sempre outros substitui-los, convencidos de que dariam a volta & lotaria do mundo, que esta a eles niio enganava. J4 reparou na afinidade en- tre estragos e estrategos? 19 soube que a casa finalmente se aliara comigo quando, nas vésperas do leilo, um pequeno tomado se abateu sobre Herbais, deixando a descoberto quase todo 0 telhado da granja e uma grande parte do telhado da prépria casa, Ntio pode imaginar co- mo, vista da Praga, ficara esteticamente desoladora e, vivida por dentro, to abertamente consoladora. Fora o seu Beijo Dado | Mais Tarde, Subia vingar.se. Sabia respeitar. Espero que com- |preenda o alcance. De repente, todos os compradores desapare- \cetam. Nem sequer safam dos carros, Para qué? O golpe no ima. ‘gindrio fora certeiro e excepcionalmente rude. As gentes da al- \deia encararam a Tatalidade como um sinal evidente de sorte. | Mais um pouco, e teriam mudado de literatura. O mundo nao pa- recia xcoisa>, Por vezes, parécia «genter. E foi como gente que se comportaram. No dia do leiléo, ninguém ofereceu um lance sequer por qualquer courela alheia. Os lances eram to baixos que 0 juiz ameacava suspender, a qualquer momento, a opera. do. A propria massa falida parecia atacada de faléncia, Nin- guém, no entanto, desobedeceu ao tornado que viera tomar tudo mais fécil. Ap6s um século de explorago dos ciclos altos e bai- Xs, a pechincha calhara finalmente aos cabisbaixos, Demasiado tarde, infelizmente. Existiam novas variedades de feno, 0 gado fora «enriquecido», 0 uso das hormonas instalara-se, o peso das carcagas como a matéria seca dos legumes eram pura aparéncia, a voragem ha muito se instalara, a reposigdo da justica fizera-se com um tal atraso que, na prética, no eram os homens que se vingavam entre si, mas os campos que se vingavam de todos os homens. Onde houver Bem e Mal, a justica nunca ser reposta. As courelas eram agora, de facto, deles, mas cxangues de hit- mus. Apenas a casa parecia ter emergido, si e salva, da voragem, aberta a leitura de «O Livro das Comunidades». Sentados & mesma mesa de café, a beber cerveja apés cerveja, tantas quantos os presentes, a lei, eu via 4 minha frente 0 outro final da batalha de Frankénhausen, Todos tinham sido vencidos, 20 ipes. O mundo, Eusébia, p io. Mas eles nao o sabiam, a dora. camponeses ¢ prin tenc vante a outra descri alvo que, mes- mo de cabega levantada, os seus olhos estavam irremediavel- mente tristes. Queriam psicologia? Ali, a tinham. A psicologia do homem triste, depois de se ter vingado. Compreendi, ento, por que gostavam tanto de cerveja, por que no podiam viver sem bebidas fermentadas, Aliés, tudo fermenta Seria preferivel que tudo fervesse. ‘Busébia respondeu & minha carta. Entretanto, tocou o telefone. Era um jomalista francés & procura de Maria Gabriela Lansol. Lhansol, disse-Ihe, «sou eur, Queria entrevistar-me para um evento em Paris, Respondi-lhe que nio indo, néo valia a pena. In- sistiu, acentuando a insisténcia do editor francés, na minha pre- senga. Respondi-Ihe que o editor nunca me havia contactado. quanto mais insistido! Ab, sim? Sim. O tom, Eusébia, era comi- natério. E falo consigo porque o telefonema da literatura veio in- terromper a Ieitura da sva carta. Depois, Ihe direi. Como era pos- sivel que eW OUSASSe faltar a uma tal chamada? Seria eu irrespon- sivet, vivemkr fora deste mundo, chegando ao ponto de ignorar onde se encontrava 0 seu centro umbilical? Ele viera, de propé- sito, & periferia «entrevistar-nos». Todos haviam aceitado falar com ele. Para conversar, disse-Ihe, a minha porta esta. sempre aberta. Roda facilimente sobre as suas dobradigas, sem ranger. Entrevistar, é outra entrada. Range. Ranger, c'est justement ca, diz-me ele na sua lingua. Ce n'est justement pas ca , respondo- Ihe eu na minha. Na dele, era arrumar, colocar no seu lugar, por em ordem, arranjar, dispor, ordenar. Na minha, era fazer barulho, distrair, ctiar fricgo, incomodar, desordenar. LA estvamos nés na questao-dos investimentos. Poupanga, erético-publicitério ou junk bonds? Questo semfintica & parte, queria conversat... e perguntou-me se Herbais ficava muito longe de Sintra. Ri-me. Uns milhares de quilémetros, respondi-lhe. Ah, sim? Sim, fica nas suas costas, na terra do beefteack-frites. Na Bélgica, quer di- zer? Sim. Um didlogo & Devos. Nao tinha lido nada, Havia pas- 21 ido os olhos por cima do mapa, lera-o certamente as avessas € tomara o comboio errado. Se as minhas memérias ndo me eng: nam, confundira a Gare de 'Est com a Gare du Nord. E ficémos por ali, entre Gares. Ou, mais exactamente, sem entrega. Ler Bouvard et Pécuchet ser-Ihe-ia muito itil, pensei. E continuei a ler a sua carta, Diz-me, entlo, que é médica, mas gue neste momento no exerce. Que, na realidade, nio é pr prietéria da casa, nem inquilina, Num momento de indecisao, respondera a um antincio onde era proposto o lugar de uma es- Pécie de dama de companhia. Q dono da casa, jdentificado co- de Herbais, desejava uma senhora de meia-idade que Ihe tratasse das coisas, tagao € de um pe- queno saldrio. Fora ver ¢ aceitara. A casa agradara-the imenso, mas no Vira 0 proprietério. Tudo fora tratado com uma vizinha Colocava a comida, a horas certas, numa marmita. Sempre na Gl: tima diviséria do coredor. Nao via ninguém. A marmita era in- variavelmente devolvida impecavelmente vazia. Nem pareceria suja, nao fosse o brilho abafado da gordura. Nunca tinha tido re clamagdes. Uma vez por semana, havia um embrulho com rou- pa para lavar. Roupas de homem, j bastante gastas. O cheiro inconfundivel. Eu sei-o, porque vivi com homens quanto baste, diz-me vocé. Por que aceitara, entao? Olhe, estava precisada de mudar de ares. Se bem entendo, saltara, sem dar por isso, de uma intriga & ‘Simenon para os bragos de Emily Bronte. Repare, pergunto por perguntar, Confesso-lhe que o telefonema me esté a distrair. De repente, a banalidade das nossas hist6rias, a sua, a minha e a do Jjornalista, entrecruzam-se numa breve expresso: Sinira-sur- -Herbais. Vai-se firmando como 0 nome de um lugar desconhe- cido. Duas periferias & procura de jumelage. Passando ao lado do talicentro umbilical do mundo, onde a minha lingua, um dia, flu: tuaré ao vento da modernidade como lusofonia. Parece que est 22 serito nos astros, Nao sabe o que €7 Desculpe, tem razéo. O que a «minha» lusofonia, ao lado da «sua» francofonia? Trés v. zes nada, nao é verdade? Voltemos, pois, a Emily Bronte ¢ ao Monte dos Vendavais, em que se transformou a casa onde agora habita. Demorei a agradecer-lhe os informes que me facultara. A lite raturg realista é assim feita que fala de tudo com naturalidade. © mundo pertence-Ihe, dir-se-ia, & cxcepedo do que nfo canse-| ‘gue apropriar-se. Entio, chama-Ihe mistério, estranho, segredo. De repente, muda de tom, deixa de ser prolixa, surgem esses substantivos mortiferos, instalando no seu cere uma morte} anunciada. Tudo se passara naturalmente, o inapropriavel estava | por vir. O curioso € que usébia fora & procura da felicidade. Bu traduzo: pouco trabalho, amplos espagos verdes, um salério, c sa propria, tranquilidade, um minimo de incémodos e de recl magoes, um quantum satis de proximidade com a vizinhanga. ‘Tudo isso tivera, € indiscutivel, se percebo os dizeres da sua car- ta, Intuia, inclusivamente, que, durante um tempo, tivera igual- mente o seu Beijo Dado Mais Tarde. No entanto, com 0 rolar dos dias, ocorrera provavelmente um excesso de dons ou, melhor pensando, aos dons esperados tinham-se vindo associar dons jesperados e incompreensiveis. E comecei a perceber por que me escrevia. Vinha-me pedir, com delicadeza, é certo, uma ex- plicago para 6 €xCeSs0 que o realismo nio he dava. O bom sen- 80 Catrathe das mos, eacUlpe ‘de algoém, podia ser even- tualmente mina, Por que na07; ‘A.casa de Herbais nffo Ihe estava a ensinar o que me havia en- sinado. E evidente. Herbais, compreendi, desde que aceitara habité-la, ndo sabia (ou nfo quer edagogicamente Alids, Eusébia, 0 meu proprio marido nao queria mudar-se para 14, Acompanhou-me em todos os trabalhos e arranjos, mas sem- pre arrastando os pés. Nao o forcei, no entanto. Ele procurava um retiro, um lugar de meditago. Eu desejava espagos amplos, 23 um lugar compésito de fungdes que, todas junta tempo, Sedimentos de vérias épocas que, em vez de soterrados, estivessem todos ao mesmo nivel, A vista desarmada, desdizen- do-se uns 20s outros. Se me perguntar, um dia, por que desejei esse lugar, respon- der-Ihe-ei, na linguagem que entende: Herbais s6 sabia ensinar Por tentagdo. Havia um profundo, profuso e inextinguivel pe do no seu habitat. Compreende-me? Atraiu-me a excepcional qualidade do seu bom senso. Os seus proprietérios haviam agi- do com uma maestria tal como representantes embleméticos do senso comum que a mola do mundo era visfvel a vista desarma- da, Nao eram eles que iam considerar estranha essa mola, néo. ‘Nao tinham lido Bernanos mas sabiam desde o bergo que quem €rico explora, quem explora torna-se esperto, esperto € explora fundem-se em experto, perito, quem se torna perito no acede ao conhecimento mas as tripas dos pobres, quem as tiver na mao tem praticamente todos os valores que contam, com esses valores € um jogo de oportunidades transformé-los em bens onde niio € visivel qualquer raste de sangue. Nao faltam profissées de peritos para transformar esse elo em elo perdido. Desaparecem rastos provas. As relagdes de causa a efeito transformam-se em causas que inexplicavelmente deixam espa- Ihados pelo tempo feitos (perfeitos), defeitos e desfeitos. E nao creio que essa reparticao seja aleat6ria, embora o realismo da li- teratura ainda nao tenha encontrado uma boa explicagao para es- sa estranha heteronimia dos efeitos. quebrassem 0 Sabe, cu nunca vi a granja repleta de palha, Nunca vi o boné dos pobres na sua mao. Nunca vi as vacas a serem entregues co- ‘mo pagamento de dfvidas. Olhei apenas a altura da granja © comiparei-a com a exiguidade dos estabulos. Olhei a pequenez do pomar e do jardim, nfo me esquecendo de a relacionar com 24 as dimensées senhoriais do pétio interior. Liguei, num répido olhar, a porta principal fechada e a beleza discreta e inegdvel do porto que unia esse pétio a rua lateral da humilhagdo. Estébulos de passagem. Recanto de mulher, Ressentimento dos pobres. As serventias estavam perfeitamente arquitectadas. As subalternid: des, como eles hoje dizem. $6 depois enfrentei a casa, desafian: do conscientemente a tentagdo. | Poder4, Busébia, achar que, da minha parte, foi um gesto irre- flectido. Nao pense. Limitei-me a ler A escrita j4 me havia en- sinado a sua inco Pe ibilidade, nfo com o mundo, como pen- saiirus imbecis, mas com 0 medo, Q medo? Sim, medo_O.me- do de encarar sas estéticas do mundo. O mundo é pura- stético. Mas raramente é santo. Era af que eu queria atin- gir a sobriedade da casa, a pureza das suas linhas, a sua modés- tia. Meras aparéncias para armadilhar as almas. Quando entrei nela, senti imediatamente que fora modificada, Maquilhada, seria a palavra exacta. Fora construida uma cozi nha, um pequeno hall, um vao. Havia férmica a mais. Os tectos cram falsos. Avancei ¢ entrei na grande sala, Olhei para o meu lado direito. Coloquei a mao na parede, Alisei-a. Depressa dei com o vio. Outrora, tinha havido uma outra entrada. Mais baixa, certamente mais fria, que ligava por um corredor 0 patio a0 sa Io, transposta 2 porta de entrada. Se assim fosse, teria sido um curro. Entrei na cozinha. Nao passei as méos pelas suas paredes, Era indtil. As paredes eram falsas. Placas em contraplacado a imitar azulejos, Saf para o patio, Pedi para entrar na granja. A vi- zinha que me acompanhava acedeu, embora nio entendesse a curiosidade da citadina. Empurrou a grande porta de madeira ¢ abriu-me passagem. Entrei. Lé estava ainda na parede mei, mum a casa e A granja, o lugar de uma porta. Os tijolos estavam menos usados; rente a0 chao, ainda existiam os dois degraus. E compreendi. Aquela porta ligava o saldo & granja. Imaginei 0 25 trajecto, Transposta a pequena porta, embutida na grande, o boné-na-mJo subia aqueles degraus, empurrava a porta me, passava por debaixo da escadatia que dava acesso ao primeiro andar, acedia ao corredor que conduzia, esse, sim, & outra porta do saldo. A Eusébia nio precisa de imaginar. V4 a granja. Des. culpe, esqueci-me dos seus receios. Nao faz mal. Olhe bem pa- ra.a traga da actual cozinha, Repararé que as suas dimens6es fo- ram alteradas. Outrora, 0 boné-na-mio passava em frente da sua porta, bastava langar um olhar de raspao para ver a sua abun- dancia sébria. Mais adiante, um outro olhar teria bastado para ver os belos objectos da sala de visitas. Estou disposta a apostar em que as portas eram como janelas altas com vitrais. Recorda- -se? Os dos motivos florais, a enlagar corpos femininos alados, figuras icOnicas das Quatro EstagSes do ano. O ciclo nefando do tempo, e o seu fiar, era obra exclusiva de mulheres, E de mulhe- res esteticamente aladas. E s6 ento batia com 0 né dos dedos na Porta que dava acesso ao escritério, Uma tinica vez. Precisava de Pigarrear. Ouviria, enfim, a voz do Senhor de Herbais: — Entre. Parece literatura, Eusébia? Nao parece. B, de facto. A hist6ria amaldigoada dos Simples. Nos escassos metros daquele trajecto a Verlaine, 0 boné-na-mao vira a granja. A altura que atingiam 0s fardos empilhados. A estética da abundancia indicava-the imediatamente 0 prego do dia. Enquanto passava debaixo da es- cadaria, fazia contas. Ainda estava a langar contas a vida, quan- do seu olhar podia calcular de raspdo 0 valor das vitualhas, man- timentos e provisdes & mostra na cozinha. Mais dois passos e, sem custo algum, podia ver através dos vitrais os belos objectos. Era, em grande parte, naguilo que os anos de azar haviam trans- formado a sua pobreza. Aguilo era biblica «redugéo a pé». Quan- do entrava no escrit6rio, jé estavam concluidas as contas da for- tuna e estabelecida a sua estética. Ver’, Eusébia, como essa es- (ética € uma estética de cinza, Nao hé outra mais comum. Nao hé ‘outra mais terrivel, Nenbiliia se esconde to bem como ela pré- 26 pria. Propriamente escrevendo, colou-se & pele humana. Er cil vé-la levitar e descer sobre a criada. Fécil?, pergunta-me. Tao fécil, respondo-Ihe. A criada havia entrado com as cervejas prontas a ser servidas. Sei que nfo po- de lembrar-se dos versos de Rimbaud, mas eu vou lembrar-lhos: Bienheureux, j'allongeai les jambes sous Ia table Verte; je contemplais les sujets trés naifs De la tapisserie. — Et ce fut adorable, z Quand la fille aux tétons énormes, aux yeux vifs —Celle-Ia, ce n' est pas un baiser que I'épewre! Rieuse, m’ emplit la chope immense, avec sa mousse Que dorait un rayon de soleil arriéré 1 mas garanto-Ihe que, logo atrés, surgia a Dona da Casa, para que toda a humilhaco tivesse a sua dignidade. Dir-se-ia que os ver~ sos «dizem» apenas o pensamento do Senhor de Herbais, obvia- mente satisfeito, a que ela viera dar a necesséria compostura, Porque a nko fermentago do belo uae 7 Meu pensamento, no entanto, no se atardou na cena. Eo re lismo que prolonga com detalhes os golpes répidos do estilete da dor humana, Preferi sair dali (eu sei que vou ter de 14 voltar!), Fui sentar-me no recanto do pomar. Diga-me, quando me escre- ver, se as Arvores ainda existem. Por mim, nunca o tratei. Nunca podei ramos secos, nem colhi um tinico fruto. Minto, Nesse Iu- gar, colhi muita da linguagem que havia cultivado em Geografia de Rebeldes. Sentei-me & sombra de uma velhissima cerejeira, Decidira dar a Olo e as suas galinhas o pomar. O verde, a som- bra, a sflica, o esgaravatar. Mas fora nele, todavia, que a Dona da Casa se sentara muitas vezes com as duas ctiadas que tinha, néio 6 a das «mamas enormes>, mas ainda uma outra, as quais edu- 7 cava na subm 2 da roupa por coset, da substituico dos punhos e dos colarinhos, € do vestido anual para a quermesse aldea. Como vé, sentei-me a imaginar, ciente de que Rimbaud jamais fora lido naquele lu- gar. Nem Mintzer, nem Rilke, nem Nietzsche, nem Spinoza, nem Jodo da Cruz, nem Musil, Nenhum dos «meus» ali passara, excepto inc6gnito, nem Hadewijch ali estivera. Sc ali houvesse vivido, ou seja, abertamente lida, teria sido queimada como bru- xaherética. Aliés, 0 Senhor, tal como os camponeses de Herbais eram meros restos dessa hist6ria, compromissos efémeros de ‘uma guerra social que apenas lhes havia deixado simbolos e es- ttagos. Na religifo da cruz que tinham em comum, e no édio que insanavelmente os separava, Ou seria que esse 6dio, amorosa- mente, 0 cultivavam? sto do crochet, das pequenas t A historia dos pomares ¢ dos jardins é das mais misteriosas. Exprimem com uma tal violéncia contida os sentimentos mais {fntimos dos homens, que eu nunca quis ter um jardim, nem um omar. Quando jé no era preciso queimé-las como bruxas, as mulheres submissas, em geral tendo a Dona da Casa como mes- tre da submissao, passaram a cultivar, numa subaltermnidade da casa, um recanto de beleza, com drvores de fruta, com arbustos baixos € flores, com buxos a cifcunscrever uns e outros, como penhor da sua honestidade. O abandono’a que votei o jardim e 0 pomar desagradou as minhas vizinhas. Nunca tive uma dalia, luma rosa ou um crisdintemo para lhes oferccer. Alias, nio ofere- ciam, Era muito raro, salvo em caso de morte. Costumavam tro- 2 car entre si pés e bolbos, e comparat a arte dos cuidados. Mas 0 que mais espécie thes fazia era o meu interesse por um triangu- lo selvagem de terra, que também me ficara alugado, embora si- YY tuado na margem do caminho de terra batida que separava uns . : escassos metros da granja. Quando o fui ver, pela primeira vez, =| x eu nio podia saber que essa breve separacdo iria selar o seu des- tino. Chamei-the 0 jardim que 0 pensamento permite. As vizi- (28 has passavam. Creio que, ao principio, queriam discretamente controlar 0 cultivo de alguma planta proibida, Alids, houve sem- pre plantas proibidas. Ora para envenenar, ora para alucinar. Imagino que elas teriam um secreto pendor pelas que envene- nam, como me imagivavam Com Um secreto pendor pelas-que alucinam. Mas foi sol de pouca dura. Nesse triéngulo, eu nada cultivava, Busébia. Era tudo selvagem, renovando-se ¢ comba- tendo, conforme a forga que possuissem. Expressamente, tudo inttil. Nem para um ché, havia ali planta que prestasse. E, se houvesse, eu ndo o saberia. Nao voltaria ao tempo das bruxas, como nao regressaria jamais ao género feminino. Nem seduzit, nem envenenar, nem alucinar. Exactamente a imagem escrita do que procurava. Por que o fiz?, pergunta-me. Para fazer frente & tentag4o da casa. Pecado, alma, santidade, cruz, amor, 6dio, jé no eram termos dessa escrita. Refiro-os apenas para responder a0 seu problema. Esto 14. Nao os aboli. Nao so meus mas do realismo estético que a casa me oferecia generosamente, O seu cere, feito de palha, viria parar-me as mos pelo caminho que cu havia escolhido. E apenas por esse. Razio por que nao Ihe contei a inica mancha que veio sujar a folha branca do leiliio das courelas da casa. ] Hoje, esse triangulo selvagem nao Ihe pertence. Creio mesmo que, se for ao caminho de terra batida que passa ao lado da gran- ‘ja, jf nem sequer dard por ele. Hoje, deve ser um jardim. Um rel- vado como os citadinos, apesar dos imensos campos verdes que rodeiam as suas residéneias secundérias, no desistem de cot truir, Servem apenas para ver. Servem ainda para alimentar a praticamente inttil indtistria dos jardins. Bancos, mesas, péra- -s6is, méquinas de cortar relva, eu sei 14. Rudo que abafa o pen- samento que por ali passa. Mas, como Ihe dizia, houve uma man- cha. Conto-Iha para que a Eusébia se dé conta da forga dessa ca- sa. Quererei eu dizer que hé um estranho a solta? Jé lhe disse, es tranho seria que o estranho néo existisse. (29) Gur Aueite Chegado o momento de licitar, o casal que, vindo da cidade, Comprara a casa ao lado (esté a ver, aquela que ainda hoje deve a diltima da aldeia!), decidiu oferecer pela boca da mulher um lance por esse tridngulo que ficava mesmo ao lado do seu jardim Urbano. As sementes selvagens «estragavam-lhe» o relvado, To. dos olharam para o meu marido, esperando que ele iniciasse a “inica guerra que ali ainda poderia existir. Nao ofereceu lance Pediu ao juiz. uma suspenso da hasta. No recato do seu gabine- te, lembrou-lhe que o arrendamento cobria essa parcela. Que nfo seria legal separé-la da casa. O juiz mostrou-se intratével, apesar dos testemunhos dos aldedes. Que vai fazer?, perguntou ele 20 meu marido. Nada! E nada fez. Nao ops qualquer lance e, quan- do chegou 0 momento da casa, ofereceu por ela 0 mais irris6rio dos pregos. Um quase nada mais e seria de graca. O juiz aver- melhou-se, Espumou, Fermentou. Ameacou. A oferta foi manti- da. A guerra tinha de acabar ali, disse-me, depois, quando me deu a noticia. E 0 que setd feito do jardim selvagem? Nem nés 14 voltaremos, nem ela, a honestissima mulher dos jardins, Id po- 14 08 pés, enquanto aqui vivermos. Como sabes? Disse-Iho & saf- da do tribunal, e assim ser4, Durante anos, apenas as borboletas # de Nabokov e da sua amada Ada lé pougaram livremente, de fac to, Exactamente como ele diz. nesse «ardor», ha lugares inabita- dos. Porque sobre eles se falam duas ou mais linguagens que se no entendem. Pairam. Foi, entio, que decidi que, na granja, onde outrora fora guar- dada a palha humana, floresceria 0 mais selvagem dos jardins, Causa Amante, © nio casa. Foi o desafio que Ihe lancei, © que hé mais, Eusébia, so linguagens destinadas a nunca se entenderem. Pela minha parte, intui que seria mais pratico atacd- -la pelo flanco. A sitga. Leia, se puder, Le Bateau Ivre, de Rim- baud. E um poema belissimo, ¢ nao muito longo. Ser-lhe-4 ttil Porque, mais & frente, Ihe contarei a histéria de Un Train Ivre. A histéria de um comboio sereno, atacado de ebriedade pela lei- 30 tura de um artigo que inopinadamente me veio cair as mos. De repente, no meio de uma viagem de retomno, a linha foi obstraf- da por uma espécie de teologia do mundo. Uma imprevista chu: va de granizo vinda dessas paragens. E dei comigo a pensar que muitos eram 0s que continuavam a crer que, com um pouco de habilidade ¢ de inteligéncia, seria possivel conceber uma estra- tégia de transformagao do mundo, voltar a colori-lo por instan- tes, torné-lo encantado com algumas probabilidades de éxito. Na altura, serei mais especifica, apesar do enjoo. Quer esperar até 16? Nao quereria, no entanto, acabar esta minha carta sem confessar uma hesitagdo, Antes de receber a sua carta, tive noti- cias do jornalista de que Ihe falei. Recorda-se? Hesitei em falar- -Ihe no assunto. Acabei por pensar que Ihe seria itil para enten- der a estranheza que, agora, sente em Herbais. De volta ao cen- ‘ro umbilical do mundo, escreveu 0 seu digest de Crime e Cas tigo (como esses que os mitidos léem nas escolas, ignorando que se trata de um resumo!). Coloquei-o em nota 2, junto de outro texto que o comenta as mil maravilhas. E passemos adiante. ‘Concorda? NOTAS: 1. Sentindo-me rei, estendi as pernas por debaixo da mesa Verde: fiquei a contemplar os motivos mais que nails Da tapecaria. — E foi mais que agradével, Quando a criada de mamas enormes, ¢ olho vivo — Aquela nao € um beijo que the mete medo! — Risonha, me encheu caneca enorme com uma espuma Que dourava um raio de sol que por mim se atardara no poente. (in O Rapaz Raro, trad. de Maria Gabriela Llansol, «Au Cabaret- -Vert, cing heures du soir», ed. Reldgio d’Agua, pag. 175). 31 2. Lansol. MGL (nascida em 1931) nfo vir (...) apesar da in seu editor (...): para qué? Nao considera atil receber-nos: para qué? Escreve uma prosa na confluéncia da poesia e do misticis- mo, atravessada por «cenas fulgor» que sio momentos de inten- sidade fulminante. Ocupa-se de animais, de arvores e de lingua. gem. No seu dirio, Um Falcdio no Punho, pode let-se: «levo co mida & gata preta, e vou-me embora. Regresso. Ela assusta-se mas logo sossega.— Nao é nada —falo-the. —E 0 nada que eu sou». (Herbais, 6 de Dezembro de 1982) ncia do Desta vez, 0 Beijo Nao Foi Dado Mais Tarde. O texto jé tra- duzido no foi publicado. Nao se faz!, diz voo8. Faz-se, faz-se. Eu preveni-a. Que outro desfecho havia a esperar de uma estéti- ‘ca que descende directamente das Histérias Trégicas, escritas na €poca da caga as bruxas? Essa noticia (como tantas da mestia escrita), borbota ininterruptamente de textos como este: Jeanne de Louvitre ¢ considerada relapsa, apesar dos esforgos efectuados pela Santa Igreja. Nao quis confessar as préticas ne- fandas a que se entregou, recusando g tiltima oportunidade de se redimir. Escreveu textos misticos, inspirados pelo deménio, sob a forma de uma gata preta, apesar de incompreensiveis. Fa lava numa linguagem prépria com os animais ¢ com as drvores. Por diversas vezes, foi encontrada em éxtase, no meio do bosque perto da sua aldeia. Quando veio a si, declarou a varias teste- munhas: «Eu ndo sou nada», negando assim a obra do préprio Criador. Seja, pois, queimada, depois de exposta para exemplo dos bons cristaos. (redigido no século xvu, no muito longe de Herbais) E foi mesmo queimada? Foi-o de facto, Eusébia, perto de Tir- Jemont, a dez quilémetros de Herbais, em 15 de Agosto de 1634, 32 A acta judicial do Santo Tribunal foi cumprida & risca, Riseou para sempre do mundo dos vivos essa Jeanne Louvitre, de tri. s. Comerciara com o deménio. Aliés, a marca diabélica fo- a encontrada por escrivées e meirinhos do tribunal numa das pregas da sua vulva. Consta da acta. i Se tive pena? Mas que pergunta, Eusébia! Ninguém fez mal nenhum. Limitaram-se a fazer o que essa estética hes ordenou que fizessem, A tiltima estocada € sempre da literatura, O que no impede que, por vezes, 0 estilete se quebre, como aconteceu a Rimbaud. Serd assunto para depois. Aolisu de nian taan 0 gute nialinby © SENHOR DE HERBAIS Breves ensaios 1i sobre a reproducao estética do mundo, as tentagbes Capftulo TE CONTOS DO MAL ERRANTE Havia 0 c&o. Jovem, vinha a saltitar em tomo da dona, através dos campos, cheios de caga. De repente, uma perdiz Ievantara Yoo, sem que se ouvisse 0 esperado estalido seco de um tiro. Apenas se ouvira na planfcie um bater de asas. A mulher avanga pelo estreito carreiro de terra, aberto entre as searas. Seu passo € firme e ritmico, em compasso binario. O centro do seu corpo apoia-se no pé direito, que deve ter mais gasto. f Beste que dirige a marcha. Ainda ¢ relativamente jovem. Deve ter a idade que eu tinha quando morri. Quarenta e poucos anos, apesar de ter morrido por tanto me sentir «gastay — Jade! — grita a mulher. E, realmente, jovem. Ela ja me viu, aqui, no alto da breve colina que, no entanto, Ihe fecha horizonte. De onde est4, no pode ver ainda a clare- za stibita do povoado. Mantenho-me imével. Espero que chegue & minha beira, dentro da minha histéria. Eu estou imével. Praticamente, nfo existo. O cio corre, chega primeiro e fareja- -me. Dé pequenos latidos. Nao ladra. Saltita em torno da minha sombra, tomando-a por alguém cle bem, enquanto espera que 2 dona chegue e aprove a sua avaliacdo farejante, — 014, Austen — diz-me. 16, Lian — Vais a Herbais? — Sim, vou preparar a casa E passa adiante, ‘Nada mais acrescento. Penso que Jane Austen me tomou por Catarina Morland, como € possfvel que eu tenha tomado Eusé- bia por Jane. Sinto apenas que é um momento de graca, como se a literatura estivesse, neste instante, a romper as amarras com as hist6rias de horror 1. B, contra o meu hébito, nfo desejo por ago- ra desfazer o mal-entendido. Sinto apenas nas minhas costas que ela me continua a escrever. Nao me volto para trés para lhe dizer que pare. Mesmo caminhando pelo declive que me conduz a Herbais, pego no meu lépis imaginal, decidida a retomar a via- gem desde o seu principio. Jane viu-me simplesmente num mo- mento em que meu espirito vagueava. — Jane, eu no sou Morland! Sei que nao me ouviu. Hi quase quinze anos que deixei Herhais_ Quase tudo 0 que. tenho conversado com Eusébia foi apenas a mim queo dissec ag legente, meu companheiro desconhecido, A nossa correspon. déncia escrita tem sido Tenta. Cartas de poucas linhas. Prudentes e sem confidéncias, além das necessérias para circunscrever 0 problema. Algo se passa em Herbais. Tudo o mais € um discur- so interior silenciado. O que em literatura (e nfo s6) se presta a equivocos. Nao € grave. Um pouco de enigma alegra a viagem A tiltima carta que Ihe enviei continha apenas estas linhas: «Mas, antes, queria que compreendesse. Eu no sabia. Estou a escrever-Ihe muitos anos depois. Senti a tentagio e aceitei-a. Nao por aposta, nem por estratégia, apenas por acto. Um acto que se 35 do. Nao mudei de repente, mas aos poucos. Ia de Jo- doigne a Herbais esvaziar méveis e Lixo, mudar os papéis das pa- redes, pintar grades e caixilhos, deixar alguns objectos meus € voltar & casa onde vivia. Saboreava o gosto da prudéncia.» Este ensaio podia assim chamar-se «Llansol delicia-se com a prudéncia», Mas no terd esse titulo. Tem 0 que lé vem escrito no topo — o que me aproxima de Austen e dela me afastaré sem re- toro. Apenas porque a literatura tem de continuar a destringar os mundos no mundo 2. Se assim a vejo a escrever sobre mim atras de mim (por exemplo, neste momento, escreve que «Catarina desce a colina de Bath, as fitas do seu chapéu agitando-se com 0 vento, Etc.»), € natural que o reflexo luminoso que regressa &mi- nha escrita seja o seu primeiro personagem, Catarina Morland, Depois, explico, apesar de caminhar com a cabega a descoberto de nunca ter ido a Bath. E um mero pressentimento, Hé horas em que a literatura se decide, cara Eusébia. Se og factos me ofe- recem, hoje, apenas um mal-entendido como folha, é sobre ela que escreverei o que passo a dizer-lhes, a sie a Austen, Vem, Jade! E aescrita dispara o seu bater de asa. Apenas se ouve o esta. lido do lépis sobre a escrita. OQ que_de facto, aconteceu hd mais de vinte anos. Deixei Jodoigne, scr edirigi-me para a clareza sibita do povoado de Hetbais, Sao trés quilémetros a pé, que eu percorro para ter a certeza do que é a distancia. Mas continuo a viver de onde venho, a casa-nave de Julho e Agosto. Como sempre, meu corpo era transportado pel: meméria anterior, a meméria desenhava-me, Passo a passo, a meu lado, enquanto eu caminhava e alguém me escrevia no ho- rizonte, Habituei-me a amé-la como figura inovadora, a escrever © futuro em cima do passado, como fago agora escrevendo estes apontamentos sobre Northanger Abbey, aberto sobre o meu re- ago. 36 0 caminho esté orvalhado. A saia molha-se entre inclinadas para a terra batida. A minha mente esclare o andar apoiado no meu pé direito. F ele o primeiro a envelhe- cer 0 sapato que o protege. ele que fende o vento, trazido pe- las &rvores adversas, O sentido contrério € excelente para a cla- reza do pensamento, Jade abeira-se; quer entender a novidade gue esconde esta marcha relativamente matinal: — Entio, vamos para Herbais? — Sim, para o interior, para uma espécie de serto de plani- cies. — Porqué este povoado ignoto a trés quilémetros? —Porque ha nele uma casa que vamos pintar e tomar habitivel —O cheiro que me vem dela nao me agrada, Nao respeita {qualquer contrato, — Vai ser bom, verds. Exercitaremos os pés por entre ima- gens, ¢ as mos sobre a escrita —0 que vejo € que 0 céu se me nublou por instinto. Aquela mulher simpética continua atrés de nés. — Qual delas? — Eu $6 vejo uma, — Estis quase cego. O teu faro confunde-as, jé nfo consegue distinguir entre visiveis e invisiveis. — Nesse caso, hd uma visivel ¢ outra invisivel. E, se forem duas, vém a falar uma com a outra. pigas se com ‘Abro a porta das traseiras com a chave que tenho entre 0 indi- cador e 0 polegar. Sei que a porta principal, para além de uma fresta estreita, nfo poderd abrir-se. Vim limpar e tomar clarifi- cével a casa do Senhor de Herbais — o que 6 sei hoje porque, nto, eu nio o sabia, Mas fiz sempre o que me restava, como se j4 0 soubesse. Comego pela cave — A visivel e a invisfvel entraram no patio — diz Jade com acauda, 37 mpreendo 0 porqué de tanto contentamento — espondo-Ihe sem o olhar. S6 depois reparo que ele nfo falou Yolto-me e vejo-Ihe na boca uma carta que me chegou a Sintra, | ausse dus décedas mais tarde. E tenho 0 pressentimento de que _ \ vai brotar naquele patio uma estética de fogo Abro a missiva. 6 a resposta de Eusébia & que Ihe havia en. viado uns dois meses antes. Pouso a vassoura contra a grande porta da granja. A medida que meus olhos a percorrem, devem ter-se desenhado inconscientemente no meu rosto todos os tra- cos ¢ ricto préprios de um riso franco e aberto, —Por que ri? — pergunta-me Eusébia, — Estou a rir? Nao reparei. Mas, mal mo disse, compreendi. Vejo nitidamente Austen, en- costada As grades, a tomar notas sobre a cena. 6, uma mulher jo- vem, quase uma rapariga. Pelo modo como segura a pena, con- cluo que tem um carécter indomével. Tanto melhor, que escreva, Eusébia. O mundo... que ¢ 0 mundo senfio um descanhecida que 5 acompanha? Se tivesse dito a clareza stibita do povoado no ‘teria dito outra coisa, embora néo fosse isso que teria dito. O meu espirito esté a pensar noutra imagem, uma imagem que tarda em clarear. — Por que ri? — volta a perguntar, —Estow a rir? Nio, ainda nfo estou a rir pelo verdadeiro motivo. Estou ape- nas a pensar. Penso, de facto, muitas vezes no perfil moeda des- se mundo. No verso, € um ganho de enganos. No reverso, uma perca de encantos, Jane é assim que o v8. E se tivesse dtividas de que assim 6, bastar-me-ia, por exemplo, vé-la dar uns tantos pas- sos no interior do patio para vir dizer ao ouvido de Eusébia «Se- Ja qual for a sua escolha, perde sempre!». Eis por que, em parte, me estava a rir. O meu espirito estava suspenso do rosto al6nito de Eusébia. Agora, que 0 espanto Ihe ocupa o rosto inteiro repa- 38 ro, ento, que estou a rir. Pe no bolso do avental e dirijo-me para a cave. — Espere! — diz-me ela. — Que vai fazer? — Vou ver com as minhas pr6prias maos como o mundo é ri- gido e volatil — Espere! — repete. — Leu a minha carta? Volto-me para ela e reparo no outro motivo do meu riso, Diz. -me ela nas poucas linhas que me esereve que nasceu em Char- leroi (no fica muito distante de Charleville, terra de Rimbaud) que conhece quase todos os poemas desse rapaz raro, nomea- damente, 0 que eu transcrevera. Fora-the facil detectar as con- torsdes a que o submetera. Sim, é um soneto. Sim, é verdade que co escreveu em Charleroi, num dia ndo especificado de Outubro de 1870. Sim, foi as cinco da tarde, que 0 soneto, por puro en- canto verbal, descobriu os mamilos apetitosos da criada daquele café, Sim, € verdade, hé versos sobre presunto, como os ha so- bre a cerveja, Nao transcrevi os primeiros, néo por pudor femi- nino (Eusébia, jé imaginou Jane a ler aquele soneto?), nem por arbitréria liberdade de escrita, mas porque, como se recorda, foi nesse preciso instante que entrou no escritério a Dona da Casa. ‘Nao quis que ela deparasse de chofre com os pensamentos mais, intimos do Senhor de Herbais. Como Ihe digo, o momento e a, frase no dependeram de mim. Na escrita de cinza, nao se m te propriamente. Faz-se o que se pode. A paleta € curta — Podia ter escolhido outro — diz-me ela —E verdade. Em tese, nada me impedia. Ha mundos que co- megam onde o de Jane chega ao fim da pagina. Compreende? Vi que nao entendeu. Senti necessidade de Ihe dizer em pensa- mento: , girava luminoso 0 desconhecido que nos acompanha. Peguei na vassoura e na pd. Voltei as costas a0 pé- tio. O Senhor no podia dizer (mas porqué?, gemia Rimbaud) © Senhor nao podia dizer abertamente ao camponés que se pu- sesse a jeito nem, aliés, & criada. A esta, sim, mas no meio dos fardos, naquele lugar onde eu agora punha meus passos, apesar dos ind{cios do pecado que se colavam as saias. Eu ia-me afastando. J4 no ouvia tdo nitidamente 0 poema a debitar férus de paille, brindilles, restos secos de flores dani- nnhas, sementes sinais iniludiveis do pecado cometido. Era um entrar e sair répi- dos no éden, um vai e vem incontrolével e prudente. Quando pus o pé no primeiro degrau da escada que me leva- va cave, pensei, lembro-me nitidamente, que h mais manha na luta de classes do que caos nas previses atmosféricas. Mas faltou-me coragem para colocar o pé direito no segundo degrau, 4L No patio, o jovem raro iniciara 0 seu acto de a langar fogo a todas a: uxtiria ldcida. Co: aras do poema, «Ninguém mente?», perguntou. Eu ouvi-lhe a voz. «Todos sabeis, ndo sabeis?» O Senhor nfo respondeu. Nunca acreditara que as searas do poema fossem as suas. No que se en- ganava, Eram exactamente as mesmas. «Por que € impossivel verbalizar 0 gume de navalha que o ti rano espeta docemente no coracdo dos submissos?» Sim, poe- mas, pot que é impossivel? Ele disse-o, Bus¢bia. «Por delicadeza!» Coloquei, por fim, © pé no segundo degrau, Aquele em que aprendemos com a morte dos poetas. E fiquei & escuta. Iria até 0 fim, sem ditar uma lagrima & escrita, fossem quais fossem os sons que me chegassem do patio. No terceiro degrau, quase que me desequilibrei, naquele em que aprendi que a estética de fogo estilhaga a palavra. As frases comecavam a falhar ao rapaz raro. Arima degenerou em ameaca, ‘Tomava-se nojenta, ouvida de longe. O soneto, meu Deus, era latim. Uma condenagéo & morte em Iingua estranha. Quando cologuei o pé no quarto degrau, as palavras comega- ram a pigarrear, Ninguém, no entanto, the disse «entre!». Que Senhor, alis, queria acabar com o mundo daqueles sabores? Nenhum. Por is- 80, 0 quatto degrau me ensinava que «era preciso pegar no mun- do pelo volétil». Nao ia eu ao encontro dos sabores do mundo naquela cave? Cheiré-los com o lixo que viera limpar? Do patio chegavam-me ecos de palavras reduzidas a monossi- labos, a meras sflabas, a vogais apenas. Ouvi, ento, «saia deste 42 wabe que se fora. Passou como uma sombra por Jan \dio que ateara. Disse-me que nem su coragao ia pition. E deixando atrés de si o inc um olhar deitou para trés. Romantismos, Eusébia transformado em pura perda de encanto, em pedemneira adorme- cide. Quando colouei o pé no cho da cave, eu sabia que iria mos. trar esse incéndio mais & frente. Eu sabia que, um dia, escreve- ria sobre Hélderlin que «todas as outras imagens haviam sido, longe, hermeticamente fechadas. Até hoje». Mas foi no lixo que meti as mios. Nao 0 iria varrer. Iria apenas inventaris-lo, Hoje, olho pa: 4s e dé-me vontade de sorrir. Cho para as minhas mios ¢ acho leve o lépis, Ieves as teclas ‘da méquina de escrever. Como ¢ tio leve atravessar as varias téticas do mundo... fazendo apenas ateneo para nfo tropegar em certezas, escolhos ¢ quimeras, ‘A cave est escura. Procuro um ponto de luz. Tacteio e en- contro um postigo (imagino) e, depois, um interruptor, Abro o postigo e a luz. Procuro um banco ¢ sento-me. Quando nao ests, em toda a parte, desconhecido que nos acompanhas, onde esté © qué? © que contemplas? O lixo humano. E noite € noite», escreve Jane nos seus apontamentos Mas nao é a mesma noite 3. NOTAS 1. Em 1956, Gentil Marques, na introdugao a ediggo portu- guesa de Northanger Abbey, publicada na colecgao de «Obras Escolhidas de Autores Escolhidos», que dirigia na edigio Ro- mano Torres, escreveu: «Jum dia escrevemos e, agora, aqui repetimos sinceramente: De estilo facil, fluente, sem exibicionismos nem arabescos, im: primindo a tudo um cunho de profunda verdade, Jane Austen Jegou-nos um maravilhoso tesouro literdrio: tesouro que encerra toda a grandeza, toda a imperfeigao, toda a caricatura da alma humana». Precisamente, caricatura! Eis 0 que este romance de Jane Aus- ten, intitulado no original «Northanger Abbey», ¢ ao qual prefe- rimos por em portugués o titulo bem justo de «O Mistério de Northanger», nos oferece pagina a pagina, figura a figura, epi- s6dio a epis6dio. [...] A luz da verdade coada pelos olhos sorri- dentes da juventude, Foi este, afinal, o primeiro romance escrito por Jane Austen. Escrito as escondidas, a medo, [...] o {seu] maior mérito [6] a franqueza com que o escreveu. [...] Imaginado ¢ desenvolvido, af por'volta de 1796 (tinha ela vin- te e um ano apenas), somente foi editado em 1817, 0 seu tiltimo ano de vida, porque a autora se atreveu a satirizar a literatura que entdo estava na moda: @ chamada literatura de terror. [...] E, contudo, nao foi logo compreendido. Calmamente, Jane Aus- ten, guardou-o, de novo, na gaveta da sua escrivaninha e, sem se desiludir, continuou a escrever, Ela aproximava-se do fim. Nova ainda, Nascera quarenta e dois anos antes, Mas como as flores que murcham, is vezes, sem bem se saber porqué, ela ia murchando, Talvez Ihe faltasse 0 ca- lor de uma paixio forte. Talvez... De qualquer modo, esse ano de 1817 foi o tiltimo da sua vida. E, por bizarra coincidéncia do Destino [...], os editores vieram 44 Duscar-lhe entdo 0 romance que tinham rejeitado, Northanger Abbey. Jane Austen publicou o seu primeiro romance aos trinta e seis anos, em 1811, a que dew o titulo Razdo Sensibilidade. Nos seis anos subsequentes, os que Ihe restavam de vida, publicou Orgu- Iho e Preconceito (1813), O Parque de Mansfield (1814), Ema (1816) e Sangue Azul (1817). Foi talvez uma circunstincia feliz 0 facto de o seu primeiro ro- mance escrito ter sido o iiltimo a ser publicado. Nos breves seis, de produgo mais intensa, Austen conseguiu criar um ptiblico capaz de compreender a diferenga entre realismo e horror, ¢ de aceitar que fosse deslocado 0 eixo central da narrativa, do mis- terioso para o domfnio das relagdes sociais ¢ de poder, enquanto locus para a estratégia dos afectos. Para tanto, teve de «inventar> a psicologia dos personagens, abandonando os tipos ideol6gicos a narrativa de horror. Em termos de técnica narrativa, creio que as vantagens e os li- miles de cada pénero se compensam mutuamente, Na realidade, qualquer deles foi (¢ €) incapaz de «mostrar» a simultaneidade e a interaccio de mundos estéticos diferentes no seio de um 86 mundo fisico. — 2. Jd este capitulo estava, hé uns tempos, escrito, quando Ii as entrevistas que, a propésito do seu livro de poemas — Teatros do Tempo —, Manuel Gusmio deu ao ExpressolCartaz e ao Pii- blico/Mil Fothas. Maravilhou-me vé-lo «pensar literatura», que € aquilo que fa- zemos, oposto dquilo (os objectos de poder) em que O Senor de Herbais transformava, ano aps ano, a vantagem competitiva que havia conquistado sobre os seus vizinhos criadores de gado, Destaco 0 que mais me interessou. Se é verdade que 0 mundo é feito de mundos estéticos — ¢ es- se é 0 ceme deste livro—, que destino dar & frase de Walter Ben- 45 fiamin (citada por Manuel Gusmao): «O mundo € a nossa tare. | fa». Creio que Benjamin ainda acreditava na distinggo entre g comes ender € transformar, que herd4mos dos Gregos. Nao 8 3 as creio que tenha chegado a «ver» que o transformavel 6 o esteti- camente desdobrével, que 0 farramento estético e cognitive da literatura é central nessa operagdo e que a sua utilidade mais pre- ciosa consiste na destringa interactiva dos mundos, Pelo meu lado, desejaria pér a claro uma minima parte da in- finidade dos mundos — uma s6 fisica hipotética desdobrando- -se activamente em varias possiveis estéticas. Nesse sentido, aceito que exista um poderoso ponto de equivaléncia entre esié- tica ¢ ética. Como opgdes pensadas, e nunca como corolérios de um qualquer dever moral. Excepto no dia em que a moral perder , qualquer memsria do ressentimento de que est sempre a borbo- \ tar. Quando afirmo: «legente, © mundo esi prometido a0 | Drama=Poesia», no me tomo por uma vendedora de apélices-d de Seguros, estou apenas a peTsar que na Finalidade ow n0sv0% is ‘que na finalidade dos noss0s ins- Jtfumentos existe a possibilidade de abrir esse resse caminho. Jaas afirmagoes de Maria Velho da Costa, umas semanas an- tes, creio, me deixaram perplexa. Nao por dizer que hd em mim. um pendor para seguir som, em detrimento do sentido, E per- feitamente verdade. A linguagem esiética também «sabe». Pot que nfo segui-la, e «ver onde nos leva a escrita?». O sentido & um resultado conceptual, embora produzido por «canceitos esté. ticos» que crio ad hoc em funedo da finalidade desdobrativa que ‘me é sugerida pelas imagens com que trabalho. Na realidade, tra- balho pouco com emogGes, Reparo ainda que o sentido apontado pelos conceitos de tipo filos6fico ou cientifico raramente abrem caminho ao legente. Regra geral, e no melhor dos casos, dao-lhe apenas perplexidade. Estou @ pensar num filésofo que, posto pe- rante a morte sGbita do filho jovem de uma amiga comum, me di- zia que a morte era, para a filosofia, um «impensdvél». Nao, 0 que me deixou perplexa foi a insisténcia nos «meus» objectos in- s6litos. Quando desdobramos o mundo, que podemos esperar. 46 dada a sua no evidéncia, senfo a produgdo de insdlito? Teria | préferido ver desdobrados sobre a mesa os contetidos da minha | escrita. Af; sim, terlamos Uni principio de wabalho, o inicio de uma interpelagdo entre estéticas praticadas. Também no aprecio ser comparada a Agustina, unicamente por nfo me parecer uma comparacao produtiva, Té-lo-ia sido hd cento ¢ cinquenta anos. Respeito 0 seu trabalho gigantesco (que se vem acrescentar a0 edificio gigantesco do realismo mais ou menos sapiencial ou mo- ral que hé praticamente dois séculos nos procura impor a sua imagem de um s6 mundo, o do poder), mas acontece que nem sempre ocupamos 08 éxtfemos do mesmo espectro. Somos con- tempor que Austen também o é, A sua estética adensa.o mundo, nio 0 | desdobra, toma-o demonfaco ¢ inabitével, hermeticamente fe-| chado a qualquer esperanca ponderada. Nao deixa de ser sinto- mético que aUtOfes que se dizem cristos insistam numa estética de cinza, quando outros, como € 0 meu. caso, fabertamente-nae crentes, procuram caminhos de «ressuscitag#o> (0 termo € de Rui Nunes) para o mundo humano, Algures, na linguagem esté- tica humana, pode existir 0 espago edénico («contra todas as evi- ? Sim, reparei na arca. Voos viu-a, Eusébia. Ouvi-a, vérias vezes, tentar abri-la, enquanto cescolhia no lixo alguns objectos para os examinar mais tarde. Mas porque vasculhar no lixo, e néo na arca? Nao faz sentido. Porque era no lixo que um poeta em lama se encontrava a en- louguecer. Recorda-se do que Ihe disse sobre o jardim selvagem que perdi? ‘Vagamente. Nessa altura, segui o poeta na sua loucura, Precisava de ouvir rumor da lama, A lama brama? Sim, Eusébia, é o seu bolor. Como o poeta, escreve sem nada limpar. O ‘nico risco a loucura, uma forma de cérebro que, aos poucos, se desfaz.e se amiba. Mas sto esplendorosas as imagens dessa fragmentacio, Fez como ele? Nao, Eusébia, fiz com ele, para no acabar como ele. 51 E, mudando bruscamente, perguntei-Ihe: jé ouviu o que ela es. td a escrever sobre si? E Jane leu em vor alta: Examinou de perto a arca. Nao era de ébano e ouro, mas de chardo preto ¢ amarelo, da methor qualidade. A chave estava na fechadura e Eusébia, como Catarina Moreland, sentiu-se presa de grande curiosidade, no que lhe interessasse o que estivesse 14 dentro, mas por achar estranho o encontré-la ali, depois do que ouvira sobre os dramas terriveis que se haviam desenrolado na- quela casa, Trémula, pegou na chave e tentou dar-lhe a volta; mas esta resistia a toda a sua forga, Assustada, mas néo desco- rogoada, experimentou dar a volta ao contrério; um ferrolho sal- tou e pensou que tinha conseguido o seu intento 1 Ouviu? Sente-se retratada? Nao exactamente, E como ditia voce? Eu ndo vi nada. Tinha a alma acocorada na lama. Nio seria mais prudente varrer? Que havia para varrer? Todo aquele lixo Mesmo se com ele se perdessem os ltimos fragmentos do poema? E isso est escrito na velharia que trouxe? Jane nao me deixou responder. Pés-se a ler em voz. alta e num tom algo escarninho um texto que eu escrevera: « o jardim triangular passou», ¢ interrompen, dizendo a Eusébia que o texto comegava com um tra- ¢0 longo, absolutamente desnecessério. O que me irritou. Fla leu: ‘

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