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@s Jogadores de Xadrez Fragmentos de uma dramaturgia' PEDRO AMARAL Sabio deveras 0 que ndo procura, Que encontra 0 abismo em todas as coisas Ea diwida em si mesmo2 Os Jogadores de Xadrez3, de Ricardo Reis, constituiu uma das primeiras descobertas poéticas que marcaram a minha ado- lescéncia. Quis o acaso que fizesse parte, com dois outros poe- mas emblematicos do universo pessoano (Tabacaria, de Alvaro de Campos, ¢ 0 poema VIII de O Guardador de Rebanhos), da magra cultura literaria que me acompanhou naqueles anos ini- ciais. O fascinio que estes poemas exerciam sobre mim, para- doxalmente, nao estimulava a minha curiosidade em procurar novos autores, nem mesmo outras paginas de Pessoa, mas obce- cava-me a ponto de os saber de memGria e de os dizer em pabli- co, em numerosos recitais de liceu. E provavelmente um traco fundamental da minha natureza essa necessidade de aprofundar ao mximo um objecto, até ao ponto de o resolver em mim, ¢ me sentir livre de passar ao seguinte. Recordando hoje esse comeco da adolescéneia — esse comego do fascinio pela poesia e, em particular, pela obra impar de Pessoa — creio que a ode de Reis me interessava pelo sentido alegérico mais imediato da narrativa: a serenidade impertur- bavel daqueles obcecados jogadores, absortos no prazer da sua batalha psivolégiva, indiferentes a tragédia que Ihes destrufa a cidade, Ihes matava as mulheres ¢ as filhas, e em breve lhes traria inevitavelmente a morte e, pior, © proprio fim prematuro relAmpago n°19 10/2006 1. O presente texto refere-se a obra Os Jogadores de Xadrez, de Pedro Amaral, baseada na ode homénima de Fernando Pessoa/Ricardo Reis (Ricardo Reis, Poesia, edigio de Manuela Parreira da Silva, Assirio & Alvi, Lisboa, 2000, pp. 59-63.). Encomendada pela Fundacio Calouste Gulbenkian, esta obra teve a sua estreia naquela Fundacio, em Dezembro de 2004, na interpre- tagio do Coro Voces Coclestes, sob a direccio do autor. 2. Ricardo Reis, op. its, p. 102, 3. Na maioria das edigdes, 0 poema aparece sem titulo. 79 4. Fernando Pessoa, carta a Adolfo Casais Monteiro (Lisboa, 13 de Janeiro de 1935), in Fernando Pessoa Corresponsdéncia 1923-1935, edigio de ‘Manuela Parreira da Silva, Assitio & Alvim, Lisboa 1999, p.340, 80 PEDRO AMARAL e inconclusivo do jogo. Na sua indiferenca estdica, no seu deleite epicurista, puramente narcisico, aquelas_personagens alegéricas travavam, através do simbélico jogo do xadrez, uma batalha intima primordial que me seduzia, e ao lado da qual, efectivamente, se relativizavam as mais nefastas contingéncias do mundo exterior. Tal a leitura do adolescente que era entao, no fascinio das primeiras descobertas. S6 mais tarde, quando a aprendizagem da composigio des- pertou o meu interesse pelas questdes formais, me dei progres- sivamente conta da extraordindria obra-prima que este poema representa como construgao poética, pela acuidade da formu- lacio, pelo equilibrio da prosédia, pelas evocagdes simbiélicas da estrutura silabica, pela magistral arquitectura estr6fica que ora expande ora contrai o fluxo da narrativa. E se o sentido da narracio, por amplo que seja, uma vez absorvido esgota no leitor e resolve os mistérios da significagio imediata, a arquitectura poética que os veicula, nao apenas exponencia os sentidos tiltimos da obra como lhe confere uma transcendéncia estética inesgotavel, na multiplicidade possivel das suas pro- jeccées. A obra torna-se um labirinto vasto, atravessado por intimeros fios de Ariana e secretas salas de espelhos, onde cada leitor, incauto ou experiente, se perde de cada vez com a mesma jubilosa surpresa das primeiras visitas. eee Diz Pessoa a Casais Monteiro, na célebre carta de 13 de Janeiro de 1935, onde disserta sobre a génese heteronimic: (...) pus em Ricanto Reis toda a minha disciplina mental, vestida da misica que Ihe & propria (...)4 Primeiro atributo de Reis, a heranca de toda essa “disciplina mental” pessoana manifesta-se a priori na sua constituigio hete- ronimica, que, sendo ideal, é mais concisa, mais coerente, mais meticulosa que o humanamente possivel, Se € certo que cada um dos trés heterdnimos principais - mesmo Campos, com todas as suas contradigGes intimas ~ se caraceriza apenas pelas dimensoes necessérias ¢ suficientes ao seu plano existencial, 0 evocador das trés musas, Cloe, Neera e Lidia (aguda, grave ¢ esdrixula, por relAmpagpo n°19 10/2006 (08 JOGADORES DE XADREZ exemplar completude prosédica) é, de entre eles, o menos “huma- no”, por nele se concentrarem, numa harmonia quase inverosimil, as quialidades, e apenas elas, de uma racionalidade modelar. (..) Reis lescrevia] methor do que eu, diz. Pessoa, mas com um purismo que considero exagerado.5 Como homem e como poeta, Reis ¢ todo um sistema: in- carna 0 paganismo (dele diz Campos que “é um pagio por cardcter”6), sintetiza permanentemente as visdes estdica e epi- curista do mundo, reinventa no estilo, como na forma, a ode horaciana e a solenidade ética, universalista, dos seus temas. ‘Toda essa “disciplina mental”, evocada pelo proprio Pessoa, geneticamente exacerbada neste discipulo de Caeiro, condu-lo 4 adopcao de formas rigorosas de escrita — ou nao fossem 0 rigor, a concisio, a coeréncia os alicerces fundamentais da sua existéncia imaginada (“Abomino a mentira”, diz Reis, e antes ainda de uma qualquer maxima ética que evocasse, 4 maneira de Horacio, uma sentenga universal, acrescenta, num radicalismo lapidar: “porque é uma inexactidao””). Esse pensamento formal ricardiano, que fundamentalmente marca Os Jogadores de Xadrez, constituity umas das bases ele- mentares no meu trabalho composicional a partir deste poema; nessa medida, gostaria de comegar por comentar alguns aspec- tos da sua mecanica interna. “Latinista por educacao alheia, (,..) semi-latinista por edu- cacao propria”, Reis modela a sua escrita — e quase poderfamos dizer o seu ser ~ a partir das odes horacianas, sem porém se servir directamente das soluges, de resto linguisticamente irrepetiveis, do poeta romano, Na grande maioria das suas odes, Reis adopta sucessbes de decassilabos ¢ de hexassilabos, rein- ventando, em cada poema, estruturas combinat6rias prdprias, pela métrica como pela prosédia’. A fixacdo do heterdnimo nessas duas estruturas particulares de versificagao incita-me a especulagdes diversas. Por um lado, a sucessao, ainda que relativamente rara na sua obra, de trés versos de arte maior, seguidos de um verso de arte relAmpago n°19 10/2006 5. ibidem, p. 346. 6. Alvaro de Campos, Notas para a Recordagio do Mew Mestre Caeiro, textos organizados por Teresa Rita Lopes, Estampa, Lisboa 1997, p. 42. 7. ibidem, p. 48. (Alvaro de Campos, a quem Reis teria exprimido este pei ainda: “Todo 0 Ricardo Reis ~ passa do, presente ¢ futuro ~ est nisto.”) 8, Fernando Pessoa, op. cits, p. AS. 9. De entre as vinte odes publicadas na revista Athena, em Ontabro de 1924, por exemplo, apenas uma das variantes métricas se repete, embora de modo rei- rerado (surgindo em sete poemas): a tripla sucessio do encadea- mento de um par de decassflabos com um par de hexassflabos (10/10/6/6), embora as estruturas internas de acentuacio sejant diversas em cada um detes. 81 10. Ricardo Reis, op. cit. p. 33. 11, O magnifico sitio hnps/wwwthelatinli- brary.com faculta acesso directo a grande parte da obra do poeta latino. 12. Ricardo Reis, op. Cit, p. 66, 13, Ricardo Reis, op. cits, pe 13, 14, “Tivesse Ricardo Reis saido nessa noite € encontraria Fernando Pessoa na Praca Lis de Camées, sentado num daqueles bancos como quem vem apanhar a brisa (-). Quis Fernando Pessoa, na ocasiio, recitar mentalmente aquele poema da Mensagem que ests dedicado a Camées, ¢ Ievou tempo a perce- ber que nio ha na Mensagem nenhum poema dedicado a Camées, parece impossivel, 96 indo ver se acredita, de Ulisses a Sebastido nao Ihe escapou um, nem dos profetas se esqueceu, Bandarra e Vieira, € nio teve uma palavri- nha, uma s6, parao Zarolho, ¢ esta fala, fazem tremer as mos de Fernando Pessoa (a)? in José Saramago, O Ano da 82 PEDRO AMARAL menor (como em “Vem sentar-te comigo, Lidia, a beira do rio”!9) parece-me poder ser interpretado como uma mais direc- ta transposigdo formal horaciana (veja-se, por exemplo, Carminum T1118: “Faune, nympharum fugientium amator”!!). Muitas outras odes de Reis - como de Horacio - assentam em variagdes deste tipo de estrutura. Na mesma filiagdo, poder-se-ia mais remotamente especular, numa primeira leitura, se as seis sflabas do lacénico hexassilabo ricardiano nao evocam — por uma espécie de redugao ritmica, puramente simbélica, a0 minimo denominador comum — os seis pés do vasto hexametro das Sdtiras (cujas raizes se estendem de Homero aos poetas latinos), onde Horécio explora com para- digmatico virtuosismo os limites das suas possibilidades for- mais. E conhecido o fascinio de Pessoa pelas abstracgdes sim- bélicas, a simbologia dos niimeros e das proporcées conviria sem diivida ao heterénimo em que deposita toda a sua “disci- plina mental”... No entanto, o interesse desta especulacio, embora confortado pelos exemplos em que cada grupo de seis unidades ritmicas formula uma ideia propria (¢ 0 poema “Segue o teu destino, / Rega as tuas plantas, / Ama as tuas rosas. / O resto € sombra / De arvores alheias”!2 € um caso extremo por apenas conter hexassflabos) perde a sua forca quando se com- preende que, na sucesso continua de decassilabos e hexassila- bos, é em cada par de versos que a ideia se completa (“Assim na placa o externo instante grava / Seu ser durando nela.”!3). Elucidativas, estas estruturas pares que, na realidade, compoem um verso tinico, graficamente desdobrado em dois membros sucessivos de diferentes métricas, aproximam-nos mais ainda, pelas dimensoes, pela extensdo das suas dezasseis silabas como pela insisténcia na evocacdo do “seis” (a acentuagdo do herdico reforcada pelo hexassilabo que Ihe sucede), do hexametro greco-latino que, de facto, na sua composicéo mais comum (cinco dactilos e um espondeu), contém, no nosso modelo de escansdo, um minimo de dezasseis silabas. Por outro lado, 0 decassilabo ~ e, em particular, 0 decassflabo herdico, predominante nas estruturas métricas de Reis ~ ndo pode deixar de evocar essa grande presen ia de Camées na obra de Pessoa (presenca-auséncia amplamente explorada por José Saramago, com a ironia inteligente que sempre o caracteriza, em O Ano da Morte de Ricardo Reis'4). A predominancia do decassilabo herdico, nas estrofes de Os Lusiadas como nas odes relAmpagpo n°19 10/2006 (08 JOGADORES DE XADREZ ricardianas, nao pode assim deixar de aparecer, nestas tiltimas, como simbilica, inscrevendo-se numa tradi¢o poética de que Camées, antes de Pessoa, constitui o vulto maximo. E se conside- rarmos que a estrutura prosdédica do herdico se caracteriza pela acentuagio das sexta ¢ décima silabas, no parece abusivo pensar que Pessoa, no seu gosto pelas abstracgdes simbélicas, tenha molda- do a poesia de Reis de modo a que a sucessio de versos projectasse, na sua estrutura sildbica, o préprio ritmo interno do emblematico decassilabo (como alias j4 Camées o fizera, € precisamente nas Odes e Cangdes Clissicas). Dir-se-ia que, em coeréncia com a acentuagio interna do heréico, Reis se fixa em sucessdes de versos de seis e de dez silabas que projectam, no plano métrico, a estrutu- ra de proporgdes que regula o plano prosédico. Admiravel coesio dos elementos, nas categorias mais bisicas da composigio poética. eae Em Os Jogadores de Xadrez, a mais vasta ¢ complexa das odes de Reis, a unidade de versificacdo é constituida por um par de versos: um decassilabo e um hexassilabo!. Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia Tinba ndo sei qual guerra, Quando a invasdo ardia na Cidade E as mulheres gritavam, Dois jogadores de xadrez jogavam O seu jogo continuo.'6 Cada par, formando uma unidade, corresponde ao mesmo tempo a uma estrutura pros6dica reiterada (com diversas va- riantes ao longo do poema) e, tendencialmente (embora com muitas excepg6es), a uma clara reparti¢ao sintictica. ‘Ao longo do poema, varia o mimero de unidades por esirofe, enquadrando a evolugio da narrativa alegérica e da reflexdo ontolégica que the subjaz, As quatro primeiras estrofes corre- spondem a uma expansao progressiva das suas dimensoes (trés pares de versos na primeira, quatro na segunda, cinco na terceira, seis na quarta!”), expansio essa que acompanha o aumento da io das atrocidades exteriores 4 tensio descritiva na evocac: 19, 10/2006 relampago Morte de Ricardo Reis, Caminho, Lisboa 1985, p. 351. ‘geogratia do romance E constantemente atravessada pela pre: senga do autor de Os Lustadas, ¢ se, para lé de Pessoa orténimo, heterénimo hf onde essa presenca parece fazer sentido, ser certamente Ricardo Reis, nto seguramente do porto de vista temitico, mas sem diivida do ponto de vista formal. Por outro lado, embora como observa Saramago, nfo figure nna Mensagent nenhum poema explicitamente dedicado a Camées, Jo haverd talvez. uma a pagina da obra que niio seja atravessa da pela presenca do sprande épico por- tugués — que, como Reis, embora de modo totalmente diverso, desenvolve a sua arte (ou 0 seu engenho) a partir da tradicao ‘greco-latina. 15, De entre as quase duas ceneenas de odes © poemas publicados nna mais recente edigio (Ricardo Reis, op. cit,), cerca de tura semelhante — embora variem 0 miimero de estrofes € as estruturas estr6fi cas de cada um, 83 16, Ricardo Reis, op. cits, p. 59. © espacamento entre cada par de versos foi colocado por razses de clarificagio da ideia de unidade que Ihe esta associada, 17, Fazendo assim corresponder 0 “seis” da acentuacio mé preponderante (a sexta sflaba), a0 “seis” da ‘acentuagio formal, ou sea, ds dimensdes da esrofe que contém um indimero maximo de unidades de versif- cacao (seis unidades), antes da estrofe que conclu 0 poema (essa derradeira estrofe, na medida em que nos leva a0 sentido iiti- mo do poema ~ e da propria existéncia ~te- +4, excepcionalmente, sere pares de verso) 18, Esta sexta estrofe contém, no seu quar to verso, um erro de conjugacto (que se perpetua incompreen- sivelmente em todas as edigées do poema), devendo ler-se “Aram” em vex de “Ardem”, Trata-se provavelmente de tuma dificuldade de decifragio do manus- risticas da caligrafia pessoana (em particu lara indisting%o recor rente entre as letras “a ere’), 84 PEDRO AMARAL placidez dos protagonistas. Nas quatro estrofes seguintes, em que © poema nos afasta progressivamente dessas atrocidades € nos aproxima do significado da alegoria, assistimos a uma contraccao das proporgées (cinco, quatro, quatro, trés — pares de versos). As quatro tiltimas, onde esse afastamento se eleva a uma ponderacio ontolégica mais vasta, sio marcadas por uma derradeira e apotedtica expansio formal que, partindo do numero de tunidades da estrofe anterior (trés) passa por uma estrofe irregular (trés unidades € meia, ou seja, sete versos) até alcancar 0 dobro dessa irregularidade (sete unidades, catorze versos). Por outro lado, a ode divide-se claramente em duas partes simétricas, correspondendo as primeiras seis estrofes 4 enuncia- cao directa da alegoria, com as suas contingéncias terrenas, ¢ as seis iiltimas, que comegam no verso “Caiam cidades, sofram povos...”18, 4 enunciagio de um pensamento ético universal. Desenha-se assim um interessante contraponto formal entre a variagao tripartida das proporgées estroficas - expansao / con- traccio / expansio ~ e a divisio do poema em duas partes simétri- cas correspondendo aos dois niveis de enunciacio: enunciagio da alegoria, enunciagio do pensamento ético que dela se retira, Narrativa alogérica +7 Enunciacao ética Ry ee eecp ES ee eS eponeso oration ‘onesie eevaice ‘apanets wot atos Fica porém um curioso detalhe por esclarecer: por que razo a décima estrofe quebra, nos seus tiltimos versos, a unidade for- mada pelo par decassilabo-hexassflabo? Trata-se de uma excepgio — a iinica deste género, num poema tio sistematico, e aliés em toda a lirica ricardiana — que, embora alterando pontualmente 0 ritmo, se justifica sem divida pela formulacao poética: O que levanos desta vida instil ‘Tanto vale se é A gloria, a jama, 0 amor, a ciéncia, a vida, Como se fosse apenas relAmpagpo n°19 10/2006 (08 JOGADORES DE XADREZ A meméria de um jogo bem jogado E uma partida ganha A um jogador melhor! No entanto, ainda que a formulagdo seja — nao seria Reis se © nfo fosse — de uma acuidade perfeita, ndo deixa de constituir uma quebra excepcional na estrutura global de versificagio, ¢ parece-me legitimo que nos perguntemos porque ocorre uma tal excepc&o, porque decide o poeta romper a sua unidade métri- ca, € porqué nesta € nao noutra estrofe. Poder-se-ia especular se essa excepgio no estaria ligada A propria evolugio ao mesmo tempo formal e simbélica do poema, a procura de uma coeréncia entre, por exemplo, as dimensées estréficas ¢ 0 sentido filosofico subjacente: assim como a conclusao ética enunciada nas quatro tltimas estrofes nos afasta ¢ eleva definitivamente, ndo apenas da alegoria inicial mas também da sua primeira sublimagao ontolégica, também as proporgées destas tiltimas estrofes nos afastam definitivamente (clevando-nos, nas dimensoes da tiltima estrofe) da progressao métrica que regula as anteriores. Por outras palavras: a um deslocamento do ponto de vista do leitor, que passa de uma observacao literal para uma leitura figurada e, depois, para uma meditacao sobre o sentido da prépria existéncia, corresponde- ria um deslocamento formal, de uma progressio continua para uma quase estabilizagdo das proporgoes, seguida de uma pro- gressio drastica na sua descontinuidade. E uma explicagao razodvel, mas néo responde directamente a questao da excepc&io, que nesse caso tanto poderia situar-se na décima como em qualquer outra das dltimas quatro estrofes. Num poeta de tal modo obcecado pelo simbolismo das pro- porgées, parece-me incontorndvel uma leitura precisamente simbélica do acidente, Todo 0 poema é regulado por dois va- lores simbélicos: 0 scis ¢ 0 dez, que estipulam as proporgées métricas elementares (0 decassilabo, predominantemente acen- tuado na sexta silaba, ¢ o hexassilabo, com a mesma acentua- do); ¢ simbélica é também, desde logo, a sua adopeao na globa- lidade da lirica ricardiana, pela genealogia histérica que acima evocamos. Ao situar a excepeio métrica na décima estrofe, Reis como que assinala, no seu tltimo verso, 0 ponto preciso que corresponde, na macroestrutura da ode, a um dos dois elemen- tos métricos fundamentais de toda a construgao. Do mesmo 19, 10/2006 relampago 19, Ricardo Reis, op. Git. pp. 62-63. 20. A edigio da Assirio & Alvim Ricardo Reis, op. ie), magaitico inserumento de tra- batho, constitu infe- liamente uma das ito raras excepgdes a0 no inserir esta variante no de: do poems (assina como nota de rodap. cequiparando-a as outras variantes, 20 0 asso que me parece, cesta, de uma natureza essencialmente diver- sade todas as outras). 21, Ricardo Reis, op. it, p. 61 86 PEDRO AMARAL modo que 0 decassilabo, como o hexassilabo, € omnipresente na ode, e a acentuacio na sua ultima silaba é invariavelmente recorrente, Reis como que projecta essa acentuagao sildbica numa simbélica acentuagao formal, produzindo um acidente métrico que, para o leitor atento, funciona como sial. Para que esta explicacao tivesse um sentido completo, no entanto, conviria que, de algum modo, a sexta estrofe fosse também ela sinalizada, contendo um género semelhante de aci- dente. E, de facto, assim acontece. Como a maioria dos poemas de Reis — de que se exceptuam, naturalmente, as vinte odes pu- blicadas em 1924 na revista Athena — Os Jogadores de Xadrez contém uma série de variantes manuscritas de palavras ou ver- sos (por exemplo “Ouvi dizer que outrora” em vez de “Ouvi contar que outrora”), Essas variantes sio, por vezes, indicadas em notas de rodapé, porque Pessoa ter4 hesitado entre uma ou outra solug4o; mas uma tinica de entre elas, a da sexta estrofe, surge, na grande maioria das edigdes?°, integrada no texto: Mesmo que, de repente, sobre 0 muro Surja a sanhuda face Dum guerreiro invasor, e breve deva Em sangue ai cair O jogador solene de xadres, O momento antes desse (E ainda dado ao cdleulo dum lance Pra a efeito horas depois) E ainda entregue ao jogo predileto No manuscrito, os versos entre paréntesis aparecem, de facto, na sucessio do poema ¢ nao como uma variante posstvel, como as restantes, em que Pessoa tivesse hesitado. Nao creio que se trate de uma hesitacao entre duas conclusdes da estrofe, mas sim de uma excepeao transcrita, de um acidente que, quase 4 maneira de uma forma aberta (salvo 0 anacronismo do termo), assinala claramente nesta sexta estrofe, a omnipresenga do “seis” como acentuagdo predominante em toda a estrutura métrica, Nestes termos, ¢ na minha andlise, a ode contém duas claras excepgées na sua construgio formal ¢ méurica: a primeira, na sexta estrofe, rompe a progress4o nas proporgées estrdficas € acrescenta-Ihe um par de versos que lhe atribuem duas con- relAmpagpo n°19 10/2006 (08 JOGADORES DE XADREZ clusées poéticas possiveis; a segunda, na décima estrofe, quebra a unidade formada pelo par de versos, concluindo com uma sucessio inesperada de dois hexassilabos. Estes dois acidentes, voluntariamente colocados nos respectivos finais da sexta e décima estrofes, sio sinalizantes, reproduzindo na sucessio do poema, pela acentuacao formal que deles resulta, a acentuagio silabica, amplamente predominante, do decassilabo herdico € do hexassflabo. Como veremos em seguida, a minha leitura destes dois aci- dentes tem consequéncias no modo como procurei traduzir musicalmente a ode de Ricardo Reis. Antecipo que, contraria- mente a todas as outras variantes, em que escolhi sempre ape- nas a que me parecia poeticamente mais interessante, a da sexta estrofe é, ela, musicalmente enunciada. Na medida em que, por outro lado, procurei manter as proporcées temporais do poema, através da progressio nas dimensdes estroficas, € como me parece legitimo considerar que esta sexta estrofe contém quatro unidades de versos mais uma, mantive a proporcionali- dade global e desdobrei as vozes de modo a enunciar ao mesmo tempo, em vozes diferentes, ambos os pares de versos. eae © pensamento formal que profundamente marca a lirica ricardiana, torna-a particularmente propicia a uma apropriagao musical em que 0 compositor pretenda - como o fiz na minha obra — nao apenas exprimir o contetido imagético ou narrativo do poema, mas também, tanto quanto possivel, reproduzir a ritmica ¢ a temporalidade préprias da sua leitura. Os elementos formais do poema, reduzidos a sua expressao mais abstracta, tornam-se assim um minimo denominador comum entre as instancias poéticas e as categorias musicais, veiculando nas segundas determinados aspectos arquitecturais das primeiras. Os desafios iniciais e mais imediatos, no entanto, ao procu- rar na misica uma correspondéncia possivel do poema, situam- © a um nivel bem mais global, com um vasto universo de escolhas necessdrias entre tantas possibilidades abertas: feita a andlise do poema, que tipo de obra compor em fungao dele? Desejamos que a miisica enuncie directamente os versos ou, como por vezes em Boulez ou em algumas obras do roman- 19, 10/2006 relampago 87 88 PEDRO AMARAL tismo germanico, em particular, os evoque sem a presenga li- teral das palavras? Que tipo de vozes e/ou instrumentos esco- Iher? Que tipo de escrita adoptar ~ mais solistica on mais mas- siva? E no caso de haver enunciagao directa do poema, deverd ela ser mais silabica ou mais melismatica - a palavra mais inteligivel ou mais simbolicamente diluida na sua correspon- déncia musical?... S40 questées fundamentais, aprioristicas ¢ determinantes no modo como nos iremos orientar na com- posicéo da obra. Questdes que, de resto, nao podem desligar- -se de uma outra, primordial: como traduzir a sonoridade propria ¢ global, a tonalidade do poema (ou a impressio subjectiva que dela temos)?... A primeira etapa do meu trabalho consistiu na escolha de uma modalidade basica de representagao: a obra musical deve- ria veicular o poema cantando-o ~ em sentido literal e figurado. Para tal, necessitava de uma presenga efectiva da voz. Por outro lado, apesar da presenca na ode de uma voz exterior & alegoria (um narrador nao participante), que dela retira um pensamento ético universal, essa voz pode ser tomada como colectiva. Desde logo por ser ao mesmo tempo uma voz ¢ uma sombra implicita (Pessoa/Reis), com todos os ecos genealégicos que anterior- mente evocdmos; mas sobretudo por sintetizar, nas suas formu- lagoes éticas, um pensamento ontolégico colectivo, com uma marca filos6fica e civilizacional cujas rafzes se estendem, numa pluralidade de autores, desde a antiguidade clissica, Por estas razées, escolhi cantar 0 poema de modo colectivo, através de um coro, embora desde 0 inicio me parecesse funda- mental salvaguardar um desdobramento desse coro que me per- mitisse distinguir, ao longo da obra, graus diversos de enunci- agio, entre uma expresso mais massiva e uma formulac&o mais individualizada, Para tal, decidi adoptar uma escrita a oito vozes reais, abrangendo a totalidade do ambito vocal (sopranos [S], contraltos [C], tenores [T], baixos [B]), mas dividindo-as em trés grupos, separados na escrita ¢ no espaco actistico: & esquerda de cena coloquei os sopranos I, os contraltos I ¢ os tenores I; a di- reita de cena os sopranos II, contraltos II e baixos Il; ao centro, perfazendo um eixo de simetria, os tenores IT € os baixos I. relAmpagpo n°19 10/2006 (08 JOGADORES DE XADREZ Aeestas oito vozes (que, na realidade da execugio, podem ser oito cantores ou oito grupos), acrescentei, por razdes que desenvolverei mais adiante, quatro instrumentos; uma harpa [Hp], um piano [Pn] e duas percussdes [P1 ¢ P2]. Eis a disposigio dos grupos vocais ¢ conjunto instrumental, tal como aparecem em cena e se distinguem na partitura: T2|[B4 EE - =) Ke P4 p2 Esta configuracio global potencia intimeras combinatérias € reparticdes simbolicas na enunciacdo — quase poderia dizer na encenagao musical do poema, porque se tratou para mim, efectivamente, de recriar na musica uma dramaturgia possivel da obra poética. Neste sentido, a combinagao e a distribuigio das palavras e dos versos pelas vozes €, desde logo, um dos planos mais basicos, mais amplos e mais fundamentais ao dispor do compositor. De entre as diversas configuragées especificas que colo- quei ao servico da dramaturgia, sublinho o desdobramento contrapontistico no par de vozes central — tenores II, baixos I — que, por vezes, em determinadas estrofes, assume um certo protagonismo na enunciacao. Porqué? — sio dois os tipos de verso (hexassilabos, decassflabos), duas as partes do poema (alegoria, ensinamento), dois os autores (orténimo e heter6nimo), dois os protagonistas da alegoria (os jogadores de xadrez). Do mesmo modo, duas sio também, na misica, as vozes (masculinas como os autores e as personagens centrais) que simbolicamente protagonizam a enunciagio de determi- nadas partes da narrativa. Como o final da primeira estrofe, por exemplo, quando surgem pela primeira vez os dois impavidos jogadores de xadrez, por drdstica oposigio aos versos precedentes, que evocam 0 mundo exterior e a guerra que o consome. Nesses quatro versos iniciais, utilizei ora uma 19, 10/2006 relampago 89 90 PEDRO AMARAL escrita tendencialmente homofénica, ora uma dispersio de determinadas palavras pela totalidade das vozes; nos dois iiltimos, a chegada dos placidos protagonistas € inteiramente confiada as duas vozes centrais, baseadas num contraponto sinuioso mas extremamente calmo e claro, que evoca os mean- dros da sua tranquila batalha intelectual, diametralmente oposta, pela sua natureza, a batalha fisica que devasta a cidade. Talvez seja itil analisar com mais detalhe a distribuigio do poema pelas vozes nesta primeira estrofe. A mtisica comeca por uma enunciacio silébica (nio ornamental) da primeira parte do primeiro verso (“Ouvi contar que outrora”), que coloquei nas vozes femininas, reforcando-as, na primeira acentuagio do herdico (sexta silaba), pela entrada das vozes masculinas. Depois desta homofonia inicial, distribui por quatro vozes mistas, num registo mais grave e num tempo mais lento, as palavras seguintes do primeiro decassilabo (“quando a Pérsia” que, na sua escansio poética, tem apenas quatro silabas métricas — terminando a contagem do verso na antepentiltima). © verso seguinte, que completa a unidade do anterior (“Tinha nao sei qual guerra”) constitui a primeira evocagio da tragédia real, exterior aos jogadores de xadrez: massacre, violacao, destruicéo do mundo envolvente. Com o aparecimento da “guerra”, d-se uma primeira dispersio ritmica, espalhando-se a palavra, desordenadamente (em aparéncia), pela totalidade das vozes; totalidade que se rea- grupa, por fim, na enunciagao homofénica do decassilabo subsequente: “Quando a invasao ardia na cidade”. A evo- cacao das mulheres (“E as mulheres gritavam”), no hexas- silabo que se Ihe segue, é figurada apenas pelas vozes femini- nas, salvo uma intervencao tinica e fugaz (a de um observador impotente face ao terror) das vozes masculinas. As palavras do verso aparecem dispersas, figurando a dispersio latente das personagens secundérias na narrativa, e precipitam-se no extremo agudo das possibilidades vocais, figurando o grito. Subitamente, a miisica para, 0 andamento torna-se sereno, € os dois tiltimos versos, que introduzem no poema os dois pro- tagonistas e as tranquilas encruzilhadas intelectuais do seu jogo, sdo exclusivamente enunciados por um contraponto a duas vozes. Essas duas vozes sio as que acima evocdmos: 0 simbélico par central — tenores II baixos I. relAmpagpo n°19 10/2006 (08 JOGADORES DE XADREZ O tipo de repartigio dos versos ¢ respectivas configuragdes vocais que descrevi nesta primeira estrofe, sempre em funcio de uma dramaturgia possivel, revela 0 modo como trabalhei a globalidade da partitura, com todas as variantes que fui explo- rando ao longo daquilo a que chamo a minha encenagdo musi- Primeira estrofe 31 G1) cre cm ters Pea: Tia ip al gra sowie % ond ropes bhatt 2 ——— rel 5 ‘om ow 83 saan h}owconrave carom Peat Tena ao squat overa sane Es om Femoral o _— sis ream somata sisse erat) se cco cm i eee ee erie ees ee Sore! n = v= owner ae oe a0 cue rst rca las 2 soars oe eens Slowm outta ouminsaizenssae || }omer toate mosce Fe om nossa ee = st 3)¢$—___»— ? a 2 eee ma | 5 Fo aap aa ad eee Be ones cal do poema. Se a misica veicula a palavra, cantando-a, essa veiculagao deve assentar ao mesmo tempo numa enunciagdo imediata ¢ numa figuragio simbolica do contetido poético, exprimindo © significante, interpretando o significado. Por raz6es dramatirgicas ¢ também por uma necessidade de equi- Ifbrio formal — inclusive ao nivel da propria formulacao -, a inteligibilidade do significante torna-se, em determinados momentos, prioritéria; noutros, por oposigdo, a imterpretagio do significado conduz a sacrificar na inteligibilidade do verbo 0 que se prodigaliza na figuragdo do sentido, ¢ a obra musical torna-se assim a busca permanente de um equilibrio possivel na traducio dramatica de um texto poético que, no seu estado 19, 10/2006 relampago OL 92 PEDRO AMARAL acabado, jé é tudo ao mesmo tempo e de modo consubstancial o objecto ea sua metafora, o contetido e a sua forma, a narraga0 ea ética que dela se retira. Inevitavelmente, uma tal tentativa de tradugio apoia-se numa dispersio inicial das categorias ao nivel da génese, dis- persio essa que 0 compositor se aplica incansavelmente a tentar resolver na unidade maxima do seu objecto final. Porque se torna de facto incontornavel separar as varias instancias arqui- tecturais, de forma a trabalhé-las individualmente, mas traba- Ih4-las de modo tal que, 3 medida que se avanca na piramide da construcio, se encaixem umas nas outras, se fundam e pro- duzam uma sintese, tornando o objecto final mais do que a sim- ples soma das suas componentes. eee Um aspecto fundamental, ja acima evocado, é aquilo a que podemos chamar a sonoridade do poema — ligada ao plano fonético, mas insepardvel da coeréncia morfolégica, da dispo- sigio sintactica e da prosédia. ‘Ao compor, procurei recriar a minha impressio dessa sonoridade. Fi-lo através da instrumentacao, do tipo de escrita vocal, das modalidades ritmicas de enunciagio, de uma coerén- cia intrinseca entre os planos vertical ¢ horizontal. Empreguei ainda um artificio que se sobrepusesse aos varios planos da escrita ¢, em tltima andlise, homogeneizasse a sua individua- lizacio: um cantus firmus harmOnico, a quatro vozes, constitui- do por uma sucesséo de quarenta e seis acordes com caracteris- ticas comuns, entre as quais a presenga reiterada de um mesmo intervalo, uma terceira maior (quatro meios tons — quatro unidades — ¢ sempre a quatro vozes), que estipula uma espécie de wnidade de consondncia transversal a toda a morfologia. Estabeleci assim um universo harménico que, de certo modo, no corresponde a minha sonoridade mais natural (que também forcei, de um modo tecnicamente préximo, no meu Quarteto de Cordas), mas que me pareceu susceptivel de me aproximar da sonoridade do poema. Os elementos deste cantus firmus regulam a enunciagdo vocal, mas de um modo incompleto que apenas se perfaz na sua interacg4o com os instrumentos. Por outras palayras, a enuncia~ relAmpagpo n°19 10/2006 (08 JOGADORES DE XADREZ gio vocal contém apenas uma parte da harmonia, e esta apenas se preenche, ganha um sentido completo, através do tecido instrumental. “cantus firmus” (coosguracie signa nto rapt) 12.345 67 8 9 101 1213 14 15 16 17 18 19 10 21 2 29 Trata-se de um pensamento que procede por pura e simbéli- ca analogia entre categorias. Como se, na propria génese da composi¢ao, estabelecesse um didlogo com o meu leitor mode- lo, numa linguagem ticita, ¢ lhe dissesse: “Do mesmo modo que a enunciagao da palavra apenas se completa quando a partir do significante se desvenda o significado, também a enunciacio do som se consuma quando a vocalizagdo da palavra se completa através da escrita instrumental”, ‘A adopeao de um cantus firmus harménico € um dos as- pectos técnicos estritamente respeitantes 4 obra musical. A leitu- ra de um obra literdria é passivel de ser figurada em mtisica, 0 objecto artfstico, na abstracc4o dos seus elementos, € parcial- mente passivel de ser como que transposto ou iraduzido de uma arte para a outra, Mas uma tal traducdo passa inevitavelmente por contingéncias técnicas especfficas que permitam recriar na linguagem artistica de destino determinadas caracteristicas do objecto primeiro. Menos indirecta pode sera tentativa de projectar na miisica © espago formal do poema, na sua temporalidade prépria, uma vex que a mésica, mais ainda que a poesia, se inscreve numa sucesso temporal continua endo regressivel. A enunciagio de 19, 10/2006 relampago 93 22, Wassily Kandinsky, Do Espiritual na Arte, pref. Anténio Rodrigues, trad. Maria Helena de Freitas, D. Quixote, Lisboa 1987. 23. Philippe Sers, Preficio a sna edigio cde Wassily Kandinsky, Du Spirituel dans Vart et dans la peinture en particulier, rad. francesa de Nicole Debrand ¢ Bernardette du Crest, Denodl/Folio Essai, Saint-Amand 1993, p. 21. 94 PEDRO AMARAL um verso, ou de uma melodia, tem lugar entre um momento ini- cial x € um momento final y do tempo cronolégico, ¢ 0 inter- valo temporal da enunciagio perfaz uma unidade significante. O significado, esse, na espessura e na polifonia do texto, desli- ga-se do tempo em qualquer forma de arte (Kandinsky22 fala, por exemplo, na temporalidade — necessariamente reversivel — do sujeito naquilo a que poderfamos chamar a sua elaboragdo da obra pictérica enquanto objecto: 0 “véu-desvendado”, na expressio feliz. de Philippe Sers23). Na obra musical tratava-se, para mim, de recriar uma imagem tio fiel quanto possivel do intervalo temporal da enun- ciacdo poética. Esta tiltima, no entanto, ainda que inscrevendo- se numa continuidade cronolégica nao regressivel, nao esté, como a misica, sujeita a intervalos temporais absolutos: mesmo. dois versos prosodicamente semelhantes podem exigir dife- rentes velocidades de enunciagio. Esta dissociagio entre a duragio relativa na enunciagao poética e a duragao absoluta na enunciagio musical permitiu-me, ao nivel do verso, libertar esta iiltima das contingéncias métricas da primeira. Trabalhei, assim, cada verso de modo relativamente livre em termos ritmicos ¢ temporais. Por outro lado, ainda que os versos nao redundem na reite- racao de dez e seis unidades de duracao absoluta, tendem a con- figurar uma duragio média na enunciacso, todos os decassila- bos tendendo para determinado intervalo temporal, todos os hexassilabos tendendo proporcionalmente para outro: € na aceitagao dessa duragao média que se baseia todo o sistema de relagdes formais entre as dimensdes estrdficas. Nestes termos, pareceu-me judicioso adoptar um principio basico, segundo 0 qual as proporgées entre as estrofes deveriam, essas, projectar- se directamente nas proporgdes da enunciacao musical, ¢ assim, por exemplo, a primeira estrofe ocuparia, no seu conjunto, uma duragio 3x, a segunda uma duragdo 4x, a terceira 5x, etc., sendo x uma unidade absoluta de duragdo correspondente a unidade formada pelo par de versos. Deste modo, na minha obra, a enunciacio do verso é temporalmente livre enquanto 0 conjunto dos versos de cada estrofe preenche a duracao absolu- ta atribuida a essa estrofe na sua relacio de proporcionalidade com as demais. Nesta arquitectura abstracta ¢ apriorfstica, fica, no entan- to, um aspecto por resolver: 0 espago em branco entre as relAmpagpo n°19 10/2006 (08 JOGADORES DE XADREZ estrofes, Esse espago em branco, que na leitura tomamos por um dado adquirido, é absolutamente essencial, por ser ele que, ao separar as estrofes umas das outras, permite nao apenas a separagdo das ideias mas, sobretudo, a sua evolugao formal. Se a mtsica, apesar de reproduzir as proporg6es estréficas, fizesse suceder os versos de modo continuo e permanente, esse espago em branco nao seria tomado em conta, ¢ a estrutura de proporges, apesar de presente, dissolver-se-ia numa con- tinuidade indistinta. Por outro lado, pareceu-me que, em miisica, esse espaco entre as estrofes deveria também ser composto; que reproduzir © branco do papel com um simples espago de siléncio nao ape- nas constituiria uma simplificagao priméria da questao, como levantaria problemas adjacentes, porque o ouvinte iria escutar um tal siléncio, e sem diivida com surpresa, a0 passo que 0 leitor nao observa o branco do papel, apesar de o ter em conta na sua leitura. E neste plano que mais directamente intervém a presenca dos instrumentos, que desempenham um papel fundamental ao abrir, entre as varias partes da enunciagao, um espaco de auséncia do poema — que pode ser um eco, uma ressonancia, ou um prolongamento, ou uma meditagio, ou um comen- tario, ou uma distanciacéo em relagao aquilo que acaba de ser enunciado. Entre a enunciagao vocal de uma estrofe ¢ a enunciacao da estrofe sucessiva, abre-se, assim, uma zona de separagao instrumental que, para mim, é determinante, ¢ que, de algum modo, deve espelhar e amplificar 0 pensa- mento activo do leitor entre uma estrofe ¢ outra. A essa zona instrumental que separa os espagos de enunciagio chamei antistrofe. Quanto tempo dura esse espago? Qual a proporcao entre a estrofe e 0 branco do papel?... No poema, esse espaco é inquan- tificdvel — e nado me consta que, como Mallarmé duas décadas antes, no admiravel Coup de dés, Pessoa tenha alguma vez pen- sado em configurar a sua composicio poética em funcao da dis- posicio das palavras e dos versos no branco da pagina. O espago que separa as estrofes é fundamental; faz, sem diivida, parte do poema; nao é inerte, por ser povoado de reminiscéncias ¢ expectativas; mas também nao € composto, como em Mallarmé, € nio sendo composto nao € quantificdvel. E, todavia, na musi ca tem forgosamente de o ser. 19, 10/2006 relampago 95 96 PEDRO AMARAL ‘Ao compor musicalmente este espago em branco, poderia ter adoptado uma escrita mais livre, independente do plano geral das proporgées, ou reproduzir a solugio grifica do poema, mantendo um espago-tempo constante na separagdo das estro- fes, A minha decisio foi, no entanto, outra: na medida em que, também nestes espagos em branco, 0 tempo psicoldgico do leitor varia ao longo da leitura com a transformacio progressi- va da relacao sujeito-objecto (e podemos admitir que varia em funcio da dimensio daquilo que é lido), quis manter uma relacio de proporcionalidade entre a enunciagio do poema e a sia auséncia sucessiva, de modo a que, antes de cada nova ‘Separate estreticaAvistote instrmental @ estrofe, se situasse uma separagao instrumental proporcional as dimensdes da estrofe anterior. E em que valores deveria basear- -se essa proporcionalidade? Nos prdprios valores da propor- cionalidade basica que se estabelece entre os pares de versos, ou seja, a relagao métrica entre o decassilabo ¢ 0 hexassilabo: a relacio dez-seis. E assim, a cada estrofe que dure x unidades de tempo, sucede, em antistrofe, um espago de escrita instrumen- tal que iré durar y unidades, sendo que x esta para dez como y esta para seis. Deste modo, estendi a relagio métrica entre os pares de ver- sos a relacio formal entre a enunciagio e a sua auséncia — entre a estrofe ¢ a sua antistrofe. Esta tensao especifica que crio entre os planos métrico e formal, nao faz parte do poema (salvo os acidentes acima evo- cados), mas procede, sem diivida, por analogia em relagao ao pensamento global no qual assenta toda a arquitectura poéti- ca na ode de Ricardo Reis. Um tal procedimento por analo- gia, constituiu a base do meu trabalho em todos os planos da composigdo. Como se, lendo € relendo os versos, entrando progressivamente no pensamento do autor, tivesse absorvido uma parte da sua metodologia, e, ao mesmo tempo que com- relAmpagpo n°19 10/2006 (08 JOGADORES DE XADREZ punha uma transposico possivel do poema, inscrevesse na propria génese da obra musical, e retratasse, as linhas mestras da sua arquitecténicé eee Um apontamento ainda a propésito do poema, do seu senti- do tiltimo, e dos jogadores de xadrez enquanto personagens simbélicas. Vimos que a primeira parte da ode € uma alegoria, mas uma alegoria que encerra uma estranha projeccio de planos: o mundo exterior vive uma batalha fisica, de carnificina ¢ destruigao, enquanto o mundo interior vive uma batalha sim- bédlica, onde as cortes e os guerreiros sao representados por pecas de marfim. A primeira vista, trata-se apenas de uma metaforica mise en abime, na qual tabuleiro significa campo de batalha, torre significa fortificagdo, pedes significa exércitos, etc,, cada elemento do jogo simbélico figurando uma parte da tragédia real. Estariamos diante de uma configuragao aparente- mente simplificada de um teatro dentro do teatro, cujo modelo maximo continua a ser a segunda cena do terceiro acto de Hamlet. No entanto, na tragédia shakespeariana, 0 espaco metaforico € mais estreito, por estarmos diante de uma repre- sentagio imediata na qual todas as personagens compreendem que o actor Rei representa efectivamente o pai do protagonista, que a actriz Rainha exprime as promessas da mae, e que Luciano assassina 0 monarca com 0 mesmo estratagema do insidioso usurpador. Apenas o nome da pega ficticia — A Ratoeira — é realmente metaforico, porque a sua representacao € de facto uma armadilha e, ao intitul4-la assim, Hamlet reduz © tio/padrasto & figura de um rato. Por outro lado, no poema de Ricardo Reis, se a batalha do xadrez constitui uma projecgio metaférica da batalha fisica evo- cada pela narrativa, essa projecc4o causa estranheza porque a t6nica da representagio € menos 0 jogo que os prdprios jogadores. Pouco ou nada nos é dito sobre o que se passa real- mente no tabuleiro, embora ao ler as descrigbes da tragédia exterior no tenhamos dificuldade em imaginar, por trans- posigio, as combinagées sangrentas arquitectadas por cada jogador para arrasar o adversario — nao é essa a realidade do jogo do xadrez? Bem vistas as coisas, a devastagio narrada relAmpago n°19 10/2006 97 24, Ricardo Reis, op. cit, pag. 29. 25, Ibidem, pp. 66- -67. Esta ode € data- da de 1 de Julho de 1916, encuanto Os Jogadores de Xadrez tem a data de 1 de Junho do mesmo ano, 98 PEDRO AMARAL poderia ser, ela sim, uma metéfora da devastacao real no ta- buleiro. Menos convincente seria, neste caso, a postura dos jogadores, serenos como se nada tivessem a ver com 0 jogo, como se neste nio houvesse batalha e 0 xeque nao figurasse a devastagio possivel de um reino simbélico. Ao ler 0 poema, mais facilmente imaginamos que aquelas pecas de marfim rém uma vida propria e que os serenos jogadores representados mais nao fazem do que assistir, sem dor nem animo, aos seus tor- tuosos movimentos, as contingéncias da sua pequena dimensio, aos horrores do seu destino. Neste poema tudo converge ¢ tudo subtilmente se mistura, Ignorando 0 tempo ¢ as circunstancias, como se tivessem a eternidade diante de si, estes calmos jogadores de xadrez observam as suas pecas € movimentam-nas tal como os deuses que Reis canta na sua obra nos observam ¢ nos movimentam a nés, humanos. Os deuses sio 05 mesmos, Sempre claros e cabnos, Cheios de eternidade E desprezo por nbs Estes jogadores inverosimeis, serenos e indiferentes diante da tragédia humana, sio a propria representagio das divindades pagis ¢ é essa a metéfora fundamental do poema, entre tantas metaforas de circunstancia: Reis chama jogador de xadrez ao deus na sua indiferenga, ¢ incita-nos a imit4-lo. Di-lo-4 de modo mais lapidar na ode que viria a compor semanas mais tarde, em Julho de 191 (...) serenamente Imita 0 Olimpo No teu coracdo. Os deuses sio deuses Porque nao se pensam.25 E este o ensinamento. E a riqueza e a complexidade do poema, que explora ao mesmo tempo diversos niveis de leitura, reside no facto de Reis insistir, até ao fim, na realidade do jogo como coisa humana e atribuir ao jogador um desprendimento divino, incitando o Homem a imaginar esse desprendimento, a sonhé-lo ¢ a segui-lo como designio éltimo. relAmpagpo n°19 10/2006 (08 JOGADORES DE XADREZ F esta a minha leitura, que, alids, clarifica a tltima estrofe, epilogo do poema, cujo pemiltimo verso, “Sonhando, ele os parceiros e 0 xadrez” tantas diividas suscita, nomeadamente pela adop¢io do sujeito nao referencial. E, no entanto, 0 pen- samento de Reis parece-me claro, ao sugerir que, jogadores ou pecas no tabuleiro do mundo, imitemos os persas desta histéria, sonhando a sua (divina) indiferenca. Do mesmo modo que o poeta sugere que nos despren- damos da contingéncia, também o poema se vai afastando dela. Como observamos, a ode divide-se formalmente em duas metades simétricas, sendo a primeira, de facto, uma alegoria, enquanto a segunda constitui um afastamento ontolégico, uma meditagao. Por outras palavras, a forma do poema é como que uma metdfora técita do seu ensinamento ético, como se 0 poeta nos dissesse: “Assim como, no poema, 0 pen- samento se liberta da sua contingéncia alegorica, também o ‘Homem deve libertar-se da sua contingéncia humana”. A for- ma nio apenas molda intrinsecamente 0 contetido, como nos oferece uma imagem abstracta do seu sentido dltimo. Extraordinéria fusio entre as varias categorias da obra. Ao longo deste texto procurei separa-las ¢ essa separacao parece- -me essencial como metodologia analitica — ¢ também como metodologia composicional. No entanto, um tal procedimen- to por instancias constitui apenas um meio, instrumento de uma sintese possivel. Foi essa sintese que procurei alcancar com a minha obra, tentando espelhar através dela, e a todos os niveis, a obra-prima de Ricardo Reis.26 relAmpago n°19 10/2006 26, Agradecimentos: Dra. Margarida Castro Neves, Prof. Teresa Belo, Prof. Doutora Teresa Rita-Lopes. 99 @s Jogadores de Xadrez RICARDO REIS Ouvi contar que omtrors, quando a Pérsia Tinha nao sei qual guerra, Quando a invasao ardia na cidade Eas mulheres gritavam, Dois jogadores de xadrez jogavam O seu jogo continuo. A sombra de ampla arvore fitacam O tabuleiro antigo, E, ao lado de cada wn, esperando os seus Momentos mais folgados, Quando havia movido a pedra, e agora Esperava o adversario, Um pricaro com vinho refrescava Sobriamente a sua sede. Ardiam casas, saqueadas eram As arcas ¢ as paredes, Violadas, as mulheres eram posias Contra os muros caidos, Tespassadas de lancas, as eriangas Eram sangue nas rds... Mas onde estavam, perto da cidade, E longe do seu ruido, Os jogadores de xadrez jogavam O jogo de xadrez. Inda que nas mensagens do ermo vento Lhes viescem os gritos, E, ao reflectir, soubessem desde a alma Que por certo as mulheres E as tonrasfilhas violadas eram Nessa distancia proxima, Inda que, no momento que 0 pensavarn, Uma sombra ligeira Lhes passasse na fronte alheada e vaga, Breve seus olhos calmos 100 relmpago n*19 10/2006 Volviam sua atenta confianca Ao tabuleiro velho. Quando o rei de marfim esté em perigo, Que importa a carne e 0 05:0 Das irmas e das mées e das criancas? Quando a torre nao cobre A retirada da rainha alta, O saque pouco importa. E quando a mdo confiada leva 0 xeque Ao rei do adversdrio, Pouca pesa na alma que la longe Estejam morrendo filbos. Mesmo que, de repente, sobre 0 muro Surja a sanhuda face Dum guerreiro invasor, ¢ breve deva Em sangue ali cair jogador solene de xadrez, O momento antes desse (E. ainda dado ao edleudo dum lance Pra a efeito horas depois) F ainda entregue ao jogo predilecto Dos grandes indifrrentes. Caiam cidades, sofram povos, cesse A liberdade ea vida, Os haveres tranquilos e avitos Ardara! e que se arranquem, ‘Mas quando a guerra os jogos interrompa, Esteja o rei sem xeque, E 0 de marfim pedo mais avangado Pronto a comprar a torre. ‘Meus irmaos em amarmos Epicuro Eo entendermos mais De acordo com nés-proprios que com ele, Aprendamos na historia Dos calmos jogadores de xadrez Como passar a vida. Tudo 0 que € sério pouco nos imporie, O grave pouco pese, © natural impulso dos instintos Que ceda ao intitil goo (Sob a sombra tranguila do arvoredo) De jogar um bom jogo. O que levamos desta vida initil Tanto vale se é A gloria, a fama, 0 amor, a ciéncia, a vida, Como se fosse apenas A meméria de um jogo bem jogado E uma partida ganha A um jogador melhor A gloria pesa como um fardo rico, A fama como a febre, O amor cansa, porque é a sério e busca, A ciéncia nunca encontra, Ea vida passa e d6i porque 0 conbece.. O jogo do xadrez Prende a alma toda, mas, perdido, pouco Pesa, pois ndo é nada. Ab! sob as sombras que sem qu'rer nos amam, Com wn piicaro de vinho Ao lado, e atentos s6 a inttil faina Do jogo do xadrez, ‘Mesmo que 0 jogo seja apenas sonbo E ndo baja parceiro, Imitemos os persas desta hist6ria, E, enquanto por Id fora, Ou perto ou longe, a guerra e a pdtria e a vida Chamam por nbs, deixemos Que em vdo nos chamem, cada um de nds Sob as sombras amigas Sonhando, ele os parceivos, ¢ 0 xadrez A sua indiferenca. 1 Invarivelmente, cada nova edigin perpetia 0 cree no tempo verbal: Anlent em vex de Anlam. @s Jogadores de PEDRO AMARAL 3Asser Vit qa “ ¥ 1 Fara Madrez roe fH 1 relAmpago n°19 10/2006 101

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