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Hg esmn ace akeyats Ces DNS ee aN nae ot ea) PAISES POBRES CONTINUAM POBRES © ErcikS. Reinert. 2008 “Titulo orignal: How Rich Countries Got Rich san Why Poor Corti Por Diretos para a lingua portuguesa reservados para Contra ett total ow parca deste NT pacio 6a Editor onto Editora Ltda. Vedada, nos termos da lei, ep" por quaisquer meios, sem autor Contraponto Editora Ltda. ‘Av Franklin Roosevelt 23 / 1405 Centro, Rio de Janeiro, RI Cep 2021-120 “Tels (9521) 2544-0206 17215-6148 Site: er wcontrapontoeditor2.com- Pr aie i contato@contrapontoedor® com. br yento iticas para o Desenvol felso Furtado de Po Edificio Ventura Centro internacional Cs dar, Torre Oestes dv. Replica do Chile m330 9° 2" Centro, Rio de Janciros RI ep 20031-170 ‘Tle (5521) 2172-6312 / 6313 Shes werncentrocesofartado ore somal entro@eentrocesofurtade.orE br “Associados patronos S)BNDES CAIXA /- ngs ADECE @ = Acordo Ortogrifico da Lingua Pt ‘Texto revisado segundo 0 novo rortuguesa Jefferson Boechat Revisto de originais: César Benjamin Revisto tipogrifica: Tereza da Rocha Projeto grific.c diagramagio: Regina Ferraz CuP-BRASIL CATALOGAGAO NA PUBLICACAO SINDIGATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, 8) ase Reinert Bk. 199: mo os paises ricos ficaram ricos...e por que 0s pal nam pobres Erik S Reinert; Tradus Caen ora pe ode Janeiro : Contraponto, 2016. bo Castano Fen, ed “Blok 435 p.:23.cm ‘Tradugio de: How rich countri i ike rich countries got rich... and why poor countries ISBN 978-85-7866-122-9 1. Politica econdmica.2. Desenvo heeaateca a econdenlcni ae nvolvimento econdmico. J. Centro Inter- liticas para 0 Desenvolvimento. Il. Titulo. 16-357: 7 CDD: 338.9 (CDU: 338.1 Digitalizado com CamScanner 1. Os diferentes tipos de teorias econémicas Um paradigma pode isolar a comunidade de problemas social- mente importantes que nao podem ser reduzidos a forma de enig- ma, pois nao podem ser enunciados nos termos das ferramentas conceituais e instrumentais que o paradigma proporciona. ‘Thomas Kuhn, A estrutura das revolugdes cientificas, 1962 Mesmo depois de muitos anos — nao obstante 0 fato de que eu ainda nao havia lido Voltaire -, posso lembrar com precisao o dia em que comecei a trabalhar neste livro. Foi no inicio de julho de 1967, durante férias de verdo. Eu estava no topo do maior aterro sanitério de Lima, no Peru. La, um homem havia construido um abrigo com velhos tambores de ago, com uma boa visio do aterro em sie da favela vizinha. O exterior era alegremente decorado com bandeiras coloridas que tremulavam ao vento. O proprietdrio havia convidado o nosso pequeno grupo de visitantes para um ché, Eu viajara ao Peru a convite de uma organizacao de desen- volvimento comunitario. Naquele mesmo outono eu promove- ria uma campanha de arrecadagao de fundos entre os alunos do ensino secundario na Noruega para a construgao de escolas nos Andes, Estudantes da Noruega, da Suécia e da Finlandia ganha- ram um dia de folga, e o dinheiro que levantamos foi doado para comprar material de construgao. Muitas pequenas escolas seriam construidas pelos préprios moradores dos Andes. Por que eles sao tao pobres? Eu s6 estava ha dois dias no Peru e essa questdo j4 me provocava. A maioria das pessoas que eu via trabalhando — carregadores de bagagem no aeroporto, motoristas a Digitalizado com CamScanner ‘ e por qu 0s Bases PoPres continuam ga como os ptses 0s FOE ~ ——s regados do hotel, barbeiros, vendedores nas lojas nos eficiente que © pessoal que exercia as meg. ga. A pergunta amadureceu gradualmente até chegar d seguinte formulagio: “Come funciona esse ‘mercadg’ que recompensa 0 mesmo nivel de pro intivic lade com remune. desiguais em diferentes paises?” No dia seguinte ag ch, quando o cheiro de lixo desaparecera da pele e das roupas, meus colegas — estudantes da Suécia da Finlandia — e eu fomos os convidados do presidente Fernando Belatinde em um almogo no palacio presidencial. Era claro para todos que construir escolas era uma boa coisa, mas ninguém conhecia as eventuais causas da po- breza. Quando retornei para casa procurei a explicagao em uma enciclopédia, sem sucesso. Minha curiosidade havia sido agucada. Por que 0 salario real de um motorista de énibus de Frankfurt é dezesseis vezes maior que 0 salario real de um motorista de énibus igualmente eficiente na Nigéria, segundo célculos do Banco Mun- dial? Eu saf em busca de uma resposta. Este livro ¢ 0 resultado disso. Depois da minha graduagao na Suica e de um MBA em Har- vard, abri uma empresa industrial na Italia. A pergunta formulada no aterro sanitario de Lima, no entanto, persistia. O mais curioso era que poucas pessoas pareciam se interessar por ela. Em 1967, como agora, economistas proclamavam que o livre- -comércio aumentaria a igualdade econémica, nivelando os salé- rios de ricos e pobres no mundo. Desde entao, a confianga deles nessa teoria s6 fez crescer. O livre-comércio é visto como um sis- tema em que todos vencem e ninguém perde. Por que essa convic- Oe surge em determinados periodos histéricos (nas décadas de tes ae que ela é supostamente “comprovade ver de Beaton de date oe jfrmam que se engenheiros ¢ lavas ae tresitendetio a eee iferentes comegarem a comercializat oe significati er 0s mesmos salirios reais? Problemas s0°? gnificativos ¢ até mesmo revolugGes surgitam no rastro d¢ tals teorias — nas décadas de 176 3 . ae e outras teorias, menos abstrat 0, 1840 ¢ agora — antes qu‘ 7 ‘as € mais prdticas, dominassem 4 cena a de dnibus, emP mas fungo ragoes reais ta0 42 Digitalizado com CamScanner 1.08 jerentes tipos de teorias econdmicas démica, atacando os males sociais. O economista americano Paul Krugman demonstrou grande perspicdcia quando defendeu que, em determinados perfodos histéricos, esquece-se 0 conhecimento anterior e a ignorancia passa a predominar. Com 0 passar dos anos, percebi que existem diferentes tipos de teorias econédmicas e que a razio pela qual a minha questao nao fora levantada era que a teoria econédmica dominante trabalhava com hipéteses que nao sé produziam respostas erradas, mas tam- bém formulavam questoes erradas (figura 1). Na teoria econdmi- 5 mH ede & RARD VER UMA NESTA EPOCA BO AND A MENOS, & CLARD, QUE GLA TENHA VOADO DESDE O ‘BRASIL... APOSTO QUE € ISSO! ORA, VEIA S61 UMA ENORME BORBOLETA ELAS FAZEMISSO \/_ ISTO NAO E ALGUMAS VEZES, | BORBOLETA VOCE SABE... ELAS. | COISA NENHUMA.. VOAM RUMO ACIMA | ISTO GUMA DESDE O BRASIL, BATATA ELAS. ‘CHIPS! ORA, & MESMO! QUE ASSIM SEA! PERGUNTO-ME COMO UMA BATATA CHIPS PERCORREU TODO ESSE CAMINHO ATE AQUI DESDE O BRASIL? Figura 1. Premissas inadequadas geram perguntas erradas. Tal como na economia, premissas inapropriadas nao apenas resultam em respos- tas erradas; também produzem perguntas erradas. Premissas irrealistas tém sido a maldigao da teoria econémica desde a teoria do comércio de Ricardo (1817), pas- sando pela teoria do equilibrio geral posterior a Segunda Guerra Mundial, afetando tanto o liberalismo quanto as economias planificadas. Fonte: Tirinha do Peanuts, por Charles Schulz. © 1960, United Feature Syndicate, Inc. Re- produzido com permissao. 43 Digitalizado com CamScanner cara ricos.€ POF qUE OS PASS PObTES continday pp _ ‘Obres 0 os paises ricos Com’ nada semelhante a uma teoria do desenyo se conjunto de problemas me fascinoy, ie teieme por um tempo da minha pequens empresa para procury uma posstvel resposta cm um doutora lo em economia nos Esta. Unidos. Intuitivamente, esquivel-me das abstragées tedricas que carateristicas que, na vida pratica, Poderiam ser decisivas para a criagdo de riqueza ou. pobreza. Bem mais tarde eu descobri que Goethe jé expressara 1sso muito bei meu amigo, é 86 teori ‘Anos depois me dei gocios de Harvard uma te extinta, que se mant ca padrio nao exis yimento desigual. Es dos ‘ pareciam excluir “O cinza, a, Verde é a arvore dourada da vida” i conta de que conhecera na Escola de Ne- tradicdo econémica alternativa, atualmen- 6m muito mais préxima da real arvore da vida do que a ciéncia econémica corrente. A metodologia dos estudos de caso das escolas de negécios baseia-se no método da escola histérica alema de economia. Em doze anos de estudo em universidades de lingua alema, Edwin Gay (1867-1946) — fun- dador e durante mais de dez anos o primeiro reitor da Escola de Negécios de Harvard — inspirou-se na abordagem histérica da economia do alemao Gustav Schmoller (1838-1917).! A economia neoclassica, com demasiada frequéncia, treina as pessoas para ve- rem o mundo através de uma série de lentes metodolégicas e ma- teméticas. Esses métodos criam importantes pontos cegos- Em contraste, a abordagem histérica retine dados e considera que sua relevancia € 0 nico critério vélido para que sejam inclufdos na teoria. Este livro analisa a globalizagio como um estudo de caso da Escola de Negécios, mas com o objetivo de maximizar 08 salirios iniece, lucros, Um documento da Escola ae Negocios curiosidade que impulsiona uma boa investigas®?* ropes Depoi * pois de observar, estudar e refletir continuamente, voc’ ttOP" incl Sean “Eu nao entendo isso, Hé alguma dissont fake tite mina observagao da eldade, NB st ae lesa £ importante, Das duas, uma: ou eu entendi errado ram, Eu quero descobrit?” 4b Digitalizado com CamScanner 1. 0s diferentes tipos de teorias econémicas Essa situagao contrasta com a maneira como a investigagao na economia do manual-padrao — limitada por ferramentas e pre- missas — se move, usando o caminho da menor resisténcia mate- miatica? em vez de procurar a maxima relevancia. No inicio, estudei paises pobres para compreender sua pobreza. Mais tarde percebi que a pobreza é 0 estado normal das coisas, ¢ isso se relaciona com a visdo de mundo dos economistas. Tradicio- nalmente, riqueza e pobreza eram explicadas reconhecendo-se que diferentes atividades econémicas eram qualitativamente distintas como portadoras de riqueza — uma perspectiva que se perdeu na teoria hoje dominante, embora as economias dos paises pobres correspondam muito mais fielmente as condi¢ées assumidas pela economia do manual-padrao do que as economias dos patses ri- cos. Neste ponto, é necessdrio introduzir e explicar dois conjuntos de termos-chave que descrevem as diferencas entre as atividades econdmicas que predominam nos paises ricos e as que predomi- nam nos paises pobres: concorréncia “imperfeita” e “perfeita’, de um lado, e rendimentos “crescentes” e “decrescentes’, de outro. “Concorréncia perfeita’, ou “concorréncia em bens primarios (commodities)”, significa que 0 produtor nao pode influenciar 0 preco dos artigos que produz. Ele se depara com um mercado “perfeito” e lé nos jornais 0 prego que o mercado esta disposto a pagar. Normalmente, encontra-se essa situa¢io em mercados de produtos agricolas ou de minera¢do. Com a concorréncia per- feita ocorre uma situagao designada por “rendimentos decrescen- tes”: na medida em que a producao se expande, apés certo ponto, mais unidades de um mesmo fator — capital e/ou trabalho — pro- duzirao quantidades adicionais cada vez menores do produto. Em outras palavras, se vocé adicionar mais e mais tratores ou mais trabalhadores a um mesmo campo produtor de batatas, apés cer- to ponto cada nova pessoa ou cada novo trator produziré menos do que a tltima unidade acrescentada antes. Concorréncia perfei- ta e rendimentos decrescentes sio considerados como o estado normal das coisas na economia do manual-padrao. 45 Digitalizado com CamScanner Como os paises ri .s ficaram ricos... € por que os paises pobres Continuam pop ee res, Quando se expande a produgao na industria manufatureira, evolugao dos custos caminha na diresao oposta ~ Para baixo, vez de para cima. Uma vez que a producio foi mecanizada, quan. to maior o volume produtivo, menor serd 0 custo por UNidade produzida. A primeira c6pia de um produto de software tem ate custo, mas cépias posteriores tém custos muito baixos. Em indis.. trias manufatureiras e de servicos nao ha insumos imediatos for. necidos pela natureza: nao ha terra, minas ou zonas de pesca limi. tadas em quantidade ou qualidade. Essas atividades tém Custos decrescentes — ou rendimentos crescentes de escala ~ na medidg em que os volumes de produ¢ao aumentam. Para empresas in. dustriais e prestadores de servicos avancados, é muito importante conquistar uma grande fatia do mercado, pois, gracas aos rendi- mentos crescentes, esse maior volume também lhes Proporciona menores custos de produgao. Rendimentos crescentes garantem poder de mercado: essas empresas sao capazes de influenciar, em grande parte, os pregos daquilo que vendem. Isso se denomina “concorréncia imperfeita”. Esses quatro conceitos estdo intimamente ligados. Geralmente, rendimentos crescentes acompanham competicao imperfeita, pois © custo unitério cadente ¢ uma das causas do poder de mercado em situagdes de concorréncia imperfeita. Rendimentos decrescen- tes —a incapacidade de estender a produgao (além de certo ponto) com custos cadentes — combinados com a dificuldade de diferen- Giar 0 produto (trigo é trigo, enquanto marcas de carro sdo bem diferentes) sao elementos fundamentais para criar condi¢oes de concorréncia perfeita na producao de mercadorias primérias. AS &xPortagdes dos paises ricos se aproveitam dos efeitos “bons” ~ rendimentos crescentes e concorréncia imperfeita —, enquanto & StPortasoes tradicionais dos paises pobres contém 0 opost®: ° efeitos “ruins” Durante séculos, o termo industria (ou manufatura) foi sin mo de mudanga tecnolégica, rendimentos crescentes € conco™ réncia imperfeita. Ao se dedicarem a indtstria, algumas nagoes S° nit 46 Digitalizado com CamScanner 1. Os diferentes tipos de teorias econdmicas apossaram dos tipos “bons” de atividades econémicas. Meu ar- gumento é que esse foi o modelo de sucesso, comegando com a Inglaterra sob o reinado de Henrique VII, passando pela indus- trializagao do continente europeu e dos Estados Unidos, até os mais recentes sucessos de Coreia e Taiwan. Ao longo das tltimas décadas, no entanto, mais e mais servicos operam com rapida mu- danga tecnoldgica e rendimentos crescentes, de modo que a dis- tingao entre manufaturas e servi¢os deixou de ser clara. Ao mesmo tempo, produtos industriais fabricados em grandes quantidades adquiriram muitos atributos das mercadorias primdrias — mas nao os rendimentos decrescentes — que caracterizavam a atividade agricola. Os paises ricos exibem, em geral, concorréncia imperfeita e ati- vidades sujeitas a rendimentos crescentes de escala. Todos se tor- naram ricos exatamente da mesma forma: por meio de politicas que os afastaram da exploracao de bens primarios € das atividades com rendimentos decrescentes e os langaram em diregao as ativi- dades manufatureiras, em que as leis opostas tendem a operar. Os principais termos da teoria econémica parecem ter mudado de significado ao longo do tempo. Cerca de trezentos anos atrés, 0 economista inglés John Cary (1649-1720) recomendava 0 “livre- -comércio”, mas ao mesmo tempo se indignava tanto com a ideia de que comerciantes exportassem la nao processada, que ele e seus contemporaneos analisaram a proposta de “punir o exportador com a morte”, “Livre-comércio” significava entao a auséncia de monopélios, nao a auséncia de tarifas. Foi o “culto 4 manufatura’, de Cary, que firmou os alicerces da riqueza da Europa. Tornou-se cada vez mais claro para mim que durante diversos periodos histéricos os mecanismos por tras da riqueza e da pobre- za eram muito mais bem compreendidos do que 0 sto hoje. Mi- nha tese de doutorado, de 1980, procurou verificar a validade da teoria de desenvolvimento € subdesenvolvimento de Antonio Ser- ra (século XVII). Serra é muito importante nessa histéria, pois foi 0 primeiro economista a produzir uma teoria do desenvolvimento 47 Digitalizado com CamScanner Como os paises ricos ficaram ricos... € por que 0s paises pobreg connua, ob desigual, em 1613, em seu Breve trattato [Breve tratado].4 Poucg sabe a respeito da vida dele, além do fato de que era um j tion escreveu um livro quando estava na prisio em Napoles, Ele ea va explicar a razao pela qual Napoles, sua cidade natal, permar cia tdo pobre, a despeito de seus generosos recursos natura, ab passo que Veneza, construida precariamente em um brejo, ny centro da economia mundial. O segredo, ele argumentava, era . os venezianos, impedidos de cultivar a terra como os Napolitanos tinham sido forcados a desenvolver a industria para ganhar avide passando a aproveitar os rendimentos crescentes de escala oferec}. dos pelas atividades industriais. Na visdo de Serra, a chave Para o desenvolvimento econémico era ter grande numero de diferentes atividades, todas sujeitas a custos cadentes e rendimentos crescen. tes. Paradoxalmente, ser pobre em recursos naturais seria a chave para se tornar rico, Usando paises andinos da América do Sul como estudos de caso, descobri que o desenvolvimento da Bolivia, do Equador e do Peru correspondia as afirmagées de Serra. No final da década de 1970 comecei a recolher o “material genético” de teorias e pré- ticas do crescimento desigual dos tiltimos séculos, sob a forma de livros, panfletos e revistas. Ainda que muitos mecanismos por trés da riqueza e da pobreza tenham sido identificados e descri- tos na Grécia antiga, o ponto de partida légico parecia sero final do século XV, por ocasiao da invengao das patentes, em Veneza, € do nascimento da moderna politica industrial, com a ascensio de Henrique VII ao trono da Inglaterra (1485). Compreender e des- Crever os mecanismos que criaram riqueza e pobreza passou a set © meu projeto desde entio, Minha pesquisa recomecou em 1991, logo depois da queda do Muro de Berlim, evento que Francis Fukuyama viu como o “fim da historia” As economias centralmente planificadas haviam fra- cassado. Generalizou-se a ideia de que o livre-comércio ¢ 4 co nomia de mercado tornariam todos os paises igualmente 11S: © modo como essa léogica do “fim da hist6ria” se desenvolveu pode 48 Digitalizado com CamScanner 1.0s diferentes tipos de teorias econémicas ser mais bem compreendido a luz da visio de mundo da Guerra Fria que predominou entre os principai: terica majoritaria, Por ra mo capitulo, a Guerra Fria suprimiu nao apenas questées tebricas consideradas importantes no passado, mas também os eixos logi- cos que dividiam consensos e dissensos. Questées antes considera- das essenciais para a compreensio do desenvolvimento desigual desapareceram sem deixar vestigios em nosso discurso contem- poraneo. Por isso é importante sair da légica da visio de mundo da Guerra Fria e reconsiderar teorias econémicas passadas: por exemplo, na visdo da Guerra Fria, Karl Marx e Abraham Lincoln ocupam posi¢des nos extremos opostos do eixo politico, Marx re- presentando a esquerda, com um grande Estado e uma economia planificada, Lincoln representando a direita, com liberdade e mer- cados. No entanto, cada qual em seu préprio tempo, Lincoln e Marx estavam no mesmo lado da linha diviséria em economia. Ambos se opunham a teoria econdmica inglesa, que deixava de lado o papel exercido pela produsao, ao livre-comércio imposto prematuramente a uma nacao’ ea escravidao. Existe uma educada troca de correspondéncia entre os dois. Entre 1851 e 1862, de ma- neira coerente com isso, Karl Marx contribuiu regularmente com uma coluna semanal no New York Daily Tribune, 0 6rgio do Par- tido Republicano, de Lincoln. Isso nao quer dizer que Marx e Lin- coln concordavam em tudo — mas eles concordavam que 0 que cria nagoes ricas so a industrializagdo e a mudanga tecnoldgica. No século XX, 0 economista austrfaco-americano Joseph Schum- peter (1883-1950), ultraconservador, demonstrou que identidade politica e compreensio econdmica nio necessariamente coinci- dem, No preficio A edigo japonesa de seu livro A teoria do desen- volvimento econdmico, Schumpeter ressalta as semelhangas entre a sua compreensao da dindmica do mundo ea de Marx, mas obser- va que essas semelhangas sao “obliteradas por uma grande dife- renga no panorama geral”. » provavelmente, a melhor politica industrial surge quando marxistas e schumpeter economistas da corrente rio aprofundadas no proxi- es que NOS se UNeM ao 4“ Digitalizado com CamScanner Como os paises ricos ficaram ricos...@ por que os palses pobres continua pobre, Jongo do mesmo eixo politico, como 6 possivel argumentar que ocorren no Japao depois da Segunda Guerra Mundial, O livro de maior sucesso na historia do pensamento econg. mico é Os grandes economistas,* de Robert L. Heilbroner (1969), Na tiltima edigaio publicada em vida do autor (1999), ele termina © livro com a triste perspectiva de que esse importante ramo da economia — baseado na experiéncia, nao exclusivamente em nu- meros ¢ simbolos — estava em via de extingao. Esse € 0 tipo de economia que tornou a Europa rica e que também deu origem ao método dos estudos de caso da Escola de Negécios de Harvard. $6 depois entendi que me tornara um economista necr6filo, inte- grante da tradi¢ao descrita por Heilbroner. A maioria daqueles que pensavam como eu — ¢ eram muitos — havia morrido fazia tempo. Hoje, cerca de trinta anos depois, minha biblioteca parti- cular contém aproximadamente 50 mil volumes que documentam a historia do pensamento econdmico e politico dos ultimos qui- nhentos anos. Mas esse pendor para ideias do passado se combina com uma ampla observagao das realidades atuais. Ao longo de minha carreira, estive a trabalho em 49 paises, em todos os conti- nentes habitados, além de ter visitado outros como turista. Nesses trinta anos, ficaram fora de moda as ideias que se dis- tanciavam da interpretagio predominante da histéria e da poli- tica no espectro direita-esquerda da visio de mundo da Guerra Fria, Logo se tornou evidente que o grupo dos economistas s° enquadra na velha definigio europeia de nagdo: um conjunte de pessoas unidas por um equivaco comum sobre 0 proprio pas- sado e por uma antipatia comum pelos vizinhos (neste 0, cam pos vizinhos, como a sociologia ¢ a ciéncia politica). A seque” cia convencional da histéria do pensamento econdmico ¢ muito diferente da sequéncia dos livros de economia mais estuslades © mais influentes em cada época, A cuidadosa lista elaborada por * Titulo da edigao brasileira No original, o livro se chama The Worldly Philosophers Cuja traducdo literal seria “Os fildsofos mundanos”, IN. 50 Digitalizado com CamScanner 1. 0s diferentes tipos de teorias econémicas Kenneth Carpenter, bibliotecdrio de Harvard, dos 39 textos de economia mais vendidos antes de 1850° contém uma série de obras influentes que siio negligenciadas por historiadores do pen- samento econdmico. Na realidade, os fundadores da economia, segundo a histéria-padrio do pensamento econdmico — os fisio- cratas franceses -, tiveram pouquissima influéncia sobre politicas econémicas. A fisiocracia nunca chegou a Inglaterra, por exemplo. Curiosamente, as criticas a ela foram traduzidas para o inglés muito antes das obras dos préprios fisiocratas. Suas ideias tiveram curta existéncia mesmo na Franca, onde foram derrubadas pelas consequéncias calamitosas — escassez de alimentos e fome— que se seguiram A sua aplicacao. As ideias alternativas dos antifisiocratas — que quase nunca sio mencionadas na histéria do pensamento econdmico — logo se impuseram. A fagulha que desencadeou a queda da Bastilha foi a difusao, em Paris, da not{cia de que o anti- fisiocrata Jacques Necker (1732-1804) fora substituido como mi- nistro das Finangas. Necker, por sinal, é 0 tinico economista que tem trés obras na honoravel lista de Carpenter. Para mim tornava-se cada vez mais claro que se perdera a fun- damentacao econémica usada pelos atuais paises ricos, durante sua transicdo da pobreza a riqueza. A falta de interesse geral pelo assunto que escolhi, bem como a ajuda de uma pequena rede de negociantes de livros especializados, facilitou a coleta do material acerca dessa hoje extinta — mas ainda muito relevante — légica eco- némica. Nao apenas as teorias que predominaram nos paises ricos haviam desaparecido dos livros-texto modernos e da pratica da economia; também os textos que produziram as politicas econd- micas bem-sucedidas do passado estavam desaparecendo das bi- bliotecas do mundo. Era como se 0 material genético da sabedoria do passado estivesse sendo lentamente destruido. Pelo menos uma das grandes bibliotecas universitdrias americanas deve manter uma cépia de cada livro, mas essa nao é uma estratégia sem riscos:” mui- tas vezes a Biblioteca do Congresso “perde” seu exemplar. Quando 51 Digitalizado com CamScanner ses ricos ficaram rico: Como 08 pi € Por que os paises pobrescontinuam Pobres a tinica c6pia conhecida de um livro escrito Por Johann, Frig cick von Pfeiffer (1718-1787) — um dos mais importantes €conomista da Alemanha do século XVIII — sumiu da biblioteca da Univers, dade de Heidelberg durante a Segunda Guerra Mundial cone rou-se que nenhum outro exemplar seria encontrado na Alans nha.* Fiquei muito gratificado ao achar um alguns anos atris, No sinistro ano de 1984, a Biblioteca Baker, da Universidade Harvard, desfez-se de todos os livros que nao haviam sido empres. tados nos cinquenta anos anteriores. A maior parte deles era Sobre Friedrich List (1789-1846), um importante te6rico alemio da p. Iitica industrial e do crescimento desigual. Um livreiro de Boston logo me informou que adquirira livros da Biblioteca Baker que “praticamente tém seu nome escrito neles”, conforme disse, Dez anos depois, eu visitei um professor de Harvard que estava fazen- do um estudo comparativo entre Adam Smith e Friedrich List, Quando ele se queixou da falta de material sobre List na Biblioteca Baker, eu pude explicar a razio. Como prova, enviei-lhe Por fax as paginas de rosto dos livros de que ele precisava, com o carimbo “descartado”, de Harvard, nitidamente im presso. Outro caso a apontar é 0 da Biblioteca Publica de Nova York, que, em algum momento da década de 1970, decidiu microfilmar toda a sua colegao de folhetos,? descartando os originais como papel para reciclagem. Por milagre, o material foi salvo pelo cole- cionador Michael Zinman e Teapareceu em seu galpao em Ardsley, Nova York, cerca de vinte anos depois. Um revendedor de livros em Londres me informou a Tespeito. Em duas visitas distintas, minha esposa, bibliotecaria, e eu Passamos quatro dias quase lite- ralmente nos arrastando no meio de 170 mil folhetos que tinham tido as lombadas cortadas para facilitar a microfilmagem. Trouxe- Mos cerca de 2.300 Para casa. Lé estava toda a hist6ria da politica econémica norte-americana nas primeiras décadas do século XIX centenas de discursos na Camara eno Senado (todos publicados SeParadamente) e milhares de textos documentando 0 que #2 ‘mente aconteceu quando os Estados Unidos passavam da pobre? 52 Digitalizado com CamScanner 1.0 diferentes tipos de teorias econémicas a riqueza. Folhetos valiosos ~ as primeiras edigdes de David Ricar- do, que também tinham sido enviadas para reciclagem — ja esta- vam perdidos, mas nao eram de interesse para mim, pois os textos estao disponiveis. Os verdadeiros tesouros eram os textos obscu- ros que documentavam os debates sobre politica econdmica s6 nos Estados Unidos, mas em uma diizia de outros patses e idio- mas. Esse debate nao se reflete nem na histéria econdmica dos Estados Unidos — muitas vezes escrita na tradigao da histéria do “destino manifesto”"° — nem na histéria do pensamento econémi- co. Mas pequenas porgées do debate encontram-se no estudo do pensamento politico dos Estados Unidos. Em grande medida, os americanos tiveram a sua prépria histéria ocultada de si mesmos sob um véu de retérica e ideologia. A histéria revela como os paises ricos tornaram-se ricos usando métodos que hoje esto proibidos pelas “condicionalidades” do Consenso de Washington." Aparecendo em cena em 1990, ime- diatamente apés a queda do Muro de Berlim, o Consenso de Washington exigiu, entre outras coisas, a liberalizagao do comér- cio e dos fluxos de investimento direto estrangeiro, a desregula- mentacao dos mercados e a privatizacao de empresas publicas. As reformas, da forma como foram realizadas, tornaram-se sin6nimo de neoliberalismo e fundamentalismo de mercado. No infcio da década de 1990, as teorias de Joseph Schumpe- ter estavam se tornando moda. Felizmente, 0 curso que segui em Harvard sobre a histéria do pensamento econdmico em meados da década de 1970 havia sido ministrado por Arthur Smithies, provavelmente o melhor amigo de Schumpeter em Harvard." Foi, praticamente, um curso sobre Schumpeter e suas teorias. Embora © préprio Schumpeter nao estivesse interessado em pobreza, suas teorias pareciam descrever a pobreza em estado-padrao, podendo fornecer uma teoria explicativa de por que os principios do Con- senso de Washington mostraram ser tao nocivos para tantos pai- ses pobres. 53 Digitalizado com CamScanner Como 0s palses ricos ficaram ricos... © por que os palse: 5 pobres Continua, a Meu trabalho envolvia combinar diversas disciplinas Acad, cas, sobretudo economia evoluciondria (schumpeteriana), econ mia do desenvolvimento, histéria do pensamento eco; histéria econdmica. Era como se uma compreensiio do to econdmico desigual precisasse de dois novos pon académicos: uma teoria néo marxista do crescimento desigualy uma histéria das politicas econdmicas. Ambos os temas itera. tiam, apesar de interligados. A histéria do Pensamento econdmico ensina o que Adam Smith disse que a Inglaterra deveria ter feito, mas nenhum ramo da academia parecia se Preocupar muito fm, © que a Inglaterra efetivamente fez — algo bastante diferente da. quilo que Smith havia aconselhado. Um trecho de uma carta de Nicolau Maquiavel, de 10 de dezembro de 1513,"* descreve o meu humor Por muitos anos; No. NOmico ¢ rescimen, tos de Vista Volto para casa ¢ entro no escritério; na soleira, tiro minha Toupa de trabalho, coberta de lama e sujeira, e visto meus trajes da cor- tee palacianos. Devidamente vestido, adentro 0 venerdvel palacio dos antigos, onde, solicitamente recebido, nutro a mim mesmo com 0 alimento que sé meue para o qual nasci; onde eu niio te- ho vergonha de conversar com eles e perguntar a eles sobre os mo- tivos de suas agdes,¢ eles, em sua bondade humana, me respondem [grifos meus]. Por quatro horas ininterruptas, nao sinto qualquer aborrecimento, esqueco todos os meus problemas... me absorvo neles por completo, Agora, algumas palavras direcionadas especialmente aos leitores dos paises do Terceiro Mundo, A primeira vista, este pode parecet um livro etnocéntrico, europeu. Ele nao comega, por exemplo. com a visio do economista noruegués-americano Thorstein Ve- blen (1857-1929), que considerava 0 capitalismo como um siste- ma avangado de pirataria, embora a histéria nos diga que et € também uma Perspectiva legitima, Em vez disso, aponta comoa Europa criou o poderio econdmico que tornou possivel sua hes® monia, com suas “economias de escala no uso da forga’ © a "40 considera os crimes e injustigas cometidos por brancos:e™ Digitalizado com CamScanner 1.08 diferentes tipos de teorias « ndmicas. peus ¢ outros no Te iro Mundo. Ele destaca os efeitos de teorias econdmicas ¢ sociais que deixam de fora fatores clementares da- quilo que gera pobreza ¢ riquey em longo prazo, ainda mais pi ~ efeitos muito mais sutis, mas, ‘judiciais. O livro nao focaliza a escravidao em si, mas as herangas da escraviddo para os sistemas produtivo, social e agrario que bloqueiam 0 desenvolvimento eco- ndmico até hoje, Quero compreender 0 capitalismo como um sis- tema de produgao, destacando politicas econdmicas apropriadas e inapropriadas. A mnaioria das civilizagdes passadas nao era europeia, ¢ parte importante da histéria europeia trata da apropriagao de tecnolo- gias e competéncias de outros continentes, do mundo mugulma- no, da Asia e também da Africa.'* Em 1158, 0 bispo Otto de Frei- sing repetia o que h4 muito se sabia: “Todo poder e aprendizado humano tem origem no Oriente.” Contribuic6es recentes mostra- ram quéo semelhantes eram a China e a Europa em 1700.'* Ha muito tempo a visio da Europa e do Ocidente sobre o resto do mundo tem sido filtrada pelo preconceito eurocéntrico contra ou- tros povos e suas culturas.'” Recentemente, argumentou-se que a Eurasia teve condi¢ées melhores em termos de clima, germes e animais domesticdveis.'* Ganhou destaque o papel da vaca como um protétipo de maquina produtora de leite, carne e estrume. Contudo, é possivel ver a Europa de outro Angulo, o de um continente “retardatério” que nao consolidou suas fronteiras até depois do cerco de Viena pelo Isli em 1683. Durante mil anos, entre a época de Maomé e 0 cerco de Viena, a Europa precisou defender continuamente suas fronteiras orientais e meridionais contra os mongdis ¢ o Isla!” — em parte, é claro, como resultado da agressao da prépria Europa. A invasio mongélica havia chegado a costa adridtica na Dalmacia ¢ adentrou o que é hoje quando a morte do Grande Khan levou os mongois a retornar para casa em 1241, Constantinopla sucumbiu ao Isla em 1453, marcando o fim do Império Romano do Oriente e do tinico impé- rio milenar que o mundo ja viu, o Bizantino. O Isla passou a con- 55 Digitalizado com CamScanner Como os paises rico ficaram ricos...e por que os palses pobres continua pobre, trolar os Balcas ¢ 0 leste do Mediterraneo. Venera, defensora dy flanco sudeste da Europa, perdeu progressivamente seus direitos comerciais na regido leste do Mediterraneo, Uma reviravolta em favor dos desunidos europeus veio apenas em 1571, coma Batalha de Lepanto, em que as principais forgas curopeias uniram-se Por um curto perfodo, O que, depois de tudo isso, tornou a Europa tao forte? E, olhan- do as enormes disparidades de renda no mundo atual, como ¢ por que o desenvolvimento se espalhou téo uniformemente pela Europa em torno do século XVIII, desde o norte da Suécia até o Mediterraneo? Por que parece ser impossivel repetir a mesma experiéncia na Africa? Muitos fatores contribuiram para o salto a frente da Europa, como a posi¢ao geogrdfica de suas fontes de energia (carvao) e, depois, a disponibilidade de alimentos, ma- deira e mercados nas coldnias. Mas também houve a sua brutali- dade, seu zelo religioso, a capacidade organizacional, a criativida- de institucional (por exemplo, a contabilidade de dupla entrada) ¢a curiosidade intelectual. O mais importante, a meu ver, foram os diversos mecanismos que surgiram a partir da diversidade e da fragmentagio (geogri- fica, climética,” étnica e politica) da Europa. Ausentes nos grandes impérios asidticos, tal diversidade ¢ fragmentagao geraram uma ampla comunhao de ideias ¢ abordagens alternativas no “mer- cado” de ideias. Foram o ponto de partida para a rivalidade que criou uma continua emulagio entre diferentes E tados-nagao. Acima de tudo, a histéria da Europa é uma historia de como a politica econdmica foi capaz de superar os formidaveis obsticulos a riqueza que haviam sido criados pela geografia, o clima ¢ tam- bém a cultura, Vi; antes que visitaram lugares tio distantes come a Noruega ha duzentos anos nao podi r que, no futuro, o Pais viria a se desenvolver tanto, A estratégia fundamental que tornou a Europa tao uniforme- mente rica foi o que a economia do Huminismo chamou de “emt M previ 56 Digitalizado com CamScanner 1.0s diferentes tipos de teorias econdmicas lagio’" bem como a vasta caixa de ferramentas que foi desenvol- vida com a finalidade de sustentar essa emulagao. O Diciondrio Oxford de Inglés* define “emulagio” como “esforgo para se igualar ou ultrapassar outros em qualquer feito ou qualidade; também o desejo ou a ambicao de se igualar ou exceder”, Emulagao era es- sencialmente um esfor¢o positivo e ativo, a ser contrastado com inveja ou citime.” Em termos modernos, emulagao encontra um equivalente aproximado na terminologia do economista america- no Moses Abramovitz (1912-2000), cujas ideias de “emparelha- mento” e “salto a frente” esto presentes no conceito de concor- réncia dinamica. A economia moderna recomenda uma estratégia de “vantagens comparativas” baseada na teoria do comércio de David Ricardo, segundo a qual uma nacio deve especializar-se na atividade eco- némica em que seja relativamente menos ineficiente (ver Apén- dice I). Em 1957, apés o choque do Sputnik, a Unido Soviética, armada com a teoria ricardiana de comércio, poderia ter argu- mentado que as vantagens comparativas dos Estados Unidos esta- vam na agricultura, nao na tecnologia espacial. Os Estados Unidos deveriam produzir alimentos, enquanto a Uniao Soviética deveria empenhar-se em tecnologias espaciais. Mas o presidente Eisen- hower escolheu a emulagio em vez das vantagens comparativas. A criagio da Nasa, em 1958, foi uma politica no melhor espirito do Iluminismo — uma instituicdo que foi criada a fim de emulara Unido Soviética -, mas contraria ao espirito de Ricardo. Como a dinamica que cria a necessidade de emulagio foi eliminada da teoria, o estado de espirito ricardiano leva a diretrizes politicas contraintuitivas, Em Ricardo, inexistem os elementos dinamicos da mudanga tecnolégica e do progresso. E tiva da emulagio, nao a espe es ler intui- md logic: Jaco estat * O Diciondrio Houaiss da lingua portuguesa assim defi leva o individuo a tentar igualar-se a ou superar autre corréncia (ger, em sentido moralmente sadio, sem sent (N.T.] cemulagao: “1, sentimento que competigao, disputa, con- wentos baixos ou violencia)” 57 Digitalizado com CamScanner ss ricos ficaram rico: Como os pai: @ POT QUE 05 paises pobres continua pop res Para os leitores do Terceiro Mundo, é importante Rotar qui os economistas europeus continentais que sao os “heréis” dese livro foram essencialmente nao etnocéntricos. Giovannj Botero (c. 1544-1617), que explorou com éxito as razGes pelas quais 56 as cidades eram présperas, escreveu um famoso livro sobre Seografia mundial, Relazioni Universali (Relac6es universais]. Ele descreye com entusiasmo a diversidade das culturas do mundo: os sami (ou lapées), naturais do norte da Escandinavia, sao celebrados por suas habilidades na constru¢ao de barcos sem 0 uso de Pregos ¢ por terem o mais rapido meio de transporte: o trené de neve com renas. Dois dos mais importantes economistas alemaes do século XVIII, Christian Wolff (1679-1754) — também importante filésofo —e Johann Heinrich Gottlob von Justi (1717-1771), escreveram livros louvando a civilizacao chinesa. Justi também elogiou os in- cas.” Ambos argumentaram que a Europa devia aprender com instituices nao europeias. Em 1723, Wolff foi obrigado a deixar a Universidade de Halle — entao dominada pelo pietismo, um mo- vimento protestante — em 48 horas, sob pena de ser enforcado por ter comentado que a filosofia e a ética chinesas eram admirdveis € mostravam que podiam existir verdades morais fora da Cristan- dade. Salvo pela rivalidade entre os pequenos Estados alemaes, Wolff mudou-se para um Estado vizinho, cujo governante jé vi- nha tentando recruté-lo para a Universidade de Marburg. Pode-se argumentar que o etnocentrismo europeu, um importante ingre- diente do colonialismo e do imperialismo, sé se fortaleceu duran- tea década de 1770, quando antigas “nagdes étnicas” ficaram 9 caminho dos Estados-nacao e dos impérios emergentes- (alts Uzo Passei a andlise dos economistas do passado pelo filtro 4° Politicamente correto” contemporaneo. Quando Marx € oT sereferem a barbérie” e ‘civilizagaio” da mesma forma como hh « > smantive intact® $e faz referencia a “pobreza” e “desenvolvimento”, mantive int a reda¢ao original.) Este livro Sugere que, i : tag i a partir de diversidade, fragme™ emulasao e rivalidade, o ¢ n° aia eer compre! apitalismo europeu pode ser Co™P! 58 Digitalizado com CamScanner 1.05 diferentes tipos de teorias econdrmicas dido como um sistema de consequéncias nao intencionais, depois observado de forma sistematica ¢ entéo disciplinado em insti- tuigdes ¢ instrumentos de diretrizes politicas. Esta mancira de ver © capitalismo como um fendmeno de certo modo “acidental” re- vive a tradi¢ao analftica do economista alemao Werner Sombart (1863-1941), seguida por Schumpeter. Adam Smith (1776) obser- you que obtemos 0 pio dirio nao pela benevoléncia do padeiro, mas por seu desejo de ganhar dinheiro. Somos alimentados como ‘um subproduto nao intencional da ganancia do padeiro. Ali4s, um dos principais debates do século XVIII girou em torno de saber se vicios privados poderiam ser confidveis na criagao de beneficios publicos. Durante séculos os europeus ofereceram uma enorme diversidade de abordagens tecnologia e as instituigdes. A combi- nago de diversidade e emulacao criou grande ntimero de escolas tedricas e de solugées tecnolégicas por toda a Europa. Essas mul- tiddes de ideias e seus produtos foram continuamente compara- dos, moldados e desenvolvidos nos mercados. A concorréncia en- tre cidades-estado — mais tarde, entre Estados-na¢ao — financiou fluxos de invengdes que também surgiram como subprodutos nao intencionais da emulacao entre as nag6es e os governantes, tendo em vista a guerra e 0 luxo. Aplicar recursos na solugao de proble- mas em tempos de guerra produzia invengdes e inovagdes. Logo, esse mecanismo poderia ser reproduzido em tempos de paz. Os europeus logo perceberam que riqueza generalizada s6 exi tia nas regides em que a agricultura estava ausente ou desem- penhava um papel marginal, podendo ser vista como um subpro- duto nao intencional quando diversos ramos industriais se agru- pavam em grandes cidades, A partir do momento em que esses mecanismos foram compreendidos, uma politica econdmica sabia poderia espalhar a riqueza para fora dessas poucas areas “natural- mente ricas”. As politicas de emulagdo também poderiam levar riqueza a regides agricolas pobres ¢ feudal envolviam intervengdes macigas no mercado. Para nagdes tarias, intervengdes no mercado ¢ politicas econdmicas sibias po- , Mas essas diretrizes arda- 59 Digitalizado com CamScanner © por que 0s palses pobres continua Como os paises ricos ficaram Prag deriam substituir as vantagens naturais ¢ geogrdficas We prog ziram os primeiros Estados ricos. Os impostos sobre a export ie de matérias-primas e sobre a importa¢ao de produtos finais fone usados originalmente para elevar receitas em nagdes Pobres, tha um subproduto dessas medidas foi aumentar a Tiqueza Braces ap crescimento da capacidade industrial doméstica. Essa mistura + propésitos jé era clara na Inglaterra sob Eduardo II (1312-1377) Rivalidade, guerra e emula¢ao criaram na Europa um sistem; dinamico de concorréncia imperfeita e rendimentos Tescentes, Novos conhecimentos e inova¢des difundiram-se na forma de le. cros elevados, salérios maiores ¢ uma base mais ampla para a ty, butagao governamental. A politica econémica europeia baseou-se durante séculos na convic¢ao de que criar um setor industrial po- deria resolver os problemas econdmicos fundamentais da época, criando postos de trabalho, lucros, melhores salarios, grande base tributéria e maior circulagdo da moeda.* O economista italiano Ferdinando Galiani (1728-1787) — a quem Friedrich Nietzsche chamou de a pessoa mais inteligente do século XVIII - afirmou que “com a industria pode-se esperar que sejam curadas a supers- tigdo e a escravidao, os dois grandes males da humanidade”® A economia do manual-padrao, que tenta compreender o desen- volvimento econdmico em termos de “mercados perfeitos” sem atrito, deforma essa questdo. Mercados perfeitos sao para os po- bres. Também ¢ imitil tentar compreender essa evolugao em te mos do que os economistas tratam como “falha de mercado’* Quando comparado a economia do manual-padrao, o desenvalvi- mento econdmico € uma gigantesca falha dos mercados perfeitos. _ A disseminagao da riqueza na Europa, e depois nas outras gides desenvolvidas do mundo, resultou de politicas conscientes “ ae ‘© mercado era uma forga domesticavel come ° vn Pode ge etivo era alcangar uma meta definida, ou um 4 Ee A queo enone Se esteja necessariamente indo na ae a detienden 10 mercado, esta soprando. Os fatores cum a cia da trajetéria histérica [path dependency] 60 Digitalizado com CamScanner 1.08 diferentes tipos de tearias econdmniens com que os ventos do mercado soprem na diregio do progresso somente quando um alto nivel de desenvalvimento jé foi alcanga- do, Quanto mais pobre © pais, -faire sopram na diregao cer diretrizes poltt anto menos os ventos do laissez: Por isso, 0 livre-comércio ¢ outras, 10 UMA questao de contexto e Momento certos [timing]. Na auséncia de um contexto especifico, os argumentos dos economistas, a favor ou contra, sio tao sem sentido quanto os argumentos dos médicos que discutem a medicagao sem conhecer os sintomas ou 0 diagndstico. A auséncia de contexto na economia do manual-padrao é um defeito fatal, que impede qualquer grau de compreensio qualitativa. Historicamente, as politicas bem-su- cedidas dependeram da capacidade de “reger 0 mercado” (Robert Wade) e “entortar os precos” (John Kenneth Galbraith e Alice Amsden). O colonialismo foi, no fundo, um sistema em que esses efeitos deveriam ficar bloqueados. Nossa incapacidade de com- preender as ligagées entre colonialismo e pobreza constitui uma barreira significativa para a compreensio da pobreza. A doutrina das vantagens comparativas, nascida com Ricardo, & o alicerce da atual ordem econémica internacional. Paul Krugman, um eminente economista americano, afirma que os “intelectuais” no entendem a ideia das vantagens comparativas de Ricardo, que é “absolutamente verdadcira, extremamente sofisticada — e extrema- mente relevante para o mundo moderno™* Defendo 0 contririo: ao impedir que a teoria econdmica compreenda qualitativamente a dinamica ea transformagio da economia, a visio ricardiana propos uma teoria que torna possivel que uma nag pobre. Na teoria ricardiana, a economia nao hé progresso ¢, consequentemente, nao ha nada para se emular, Com sua declarada crenga nas vantagens comparativas como solu- ao para os problemas dos pobre: biu o uso da caixa de ferramentas da emulagdo — uma caixa de fer- ramentas que tem um impressionante historico de sucesso ao longo de mais de quinhentos anos, desde o final do século XV até o Plano Marshall nas décadas de 1950 ¢ 1960. 0 se especialize em ser Jo vai a lugar nenhum, » Consenso de Washington pro 61 Digitalizado com CamScanner

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