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aro, Vitor Henrique aiucago como exereicio do poder critica a0 senso comum ‘em educasto / Vitor Henrique Paro, ~ 2. ed. ~ Si0 Paulo Cortez, 2010. (Coleedo questdes da nossa 6poca ;. 4) Biblograa, andi ISBN 978-85-249-1595-6 Angndice.1 1. Fdueae8o Filosofia 2 Poder (Ciénciassociais) 3. Senso ‘comum I. Titulo, I. Série. A escola publica que queremos* (Palestra) 10288 epps06.43 ey Minha fala sobre o tema “a educacao publica que que- remos" consistird numa modesta contribuigao para a refle- xo a respeito do conceito de educagdo. Fazer propostas reivindicagdes para os futuros governantes, em defesa da escola publica, como o sindicato esté se propondo, é um trabalho gigantesco. Nés temos que pensar em construir uma escola publica de verdade. Quanto a isso, minha con- -vicgao é que, de todos os problemas que temos para enfren- tar, existe um que sobressai: a falta, em nossa luta, de uma perspectiva pela qual nos guiemos, um conceito mais rigo- roso, mais geral, universal, de educagdo, que embase oriente os nossos caminhos e lutas para uma escola melhor. * Palestraproferida na Conferéncia Estadual de Educacio: “Proposta dos ‘Trabalhadores da Bducacdo para o Proximo Governo’ realizada em Curitiba (PR), Se nao tivermos explicito esse conceito, podemos estar fa- zendo um grande esforgo para conseguir uma educacao Tuim e autoritéria, pela qual nés jé passamos assim como ‘05 nossos pais e avos. ‘Tenho pensado muito sobre as reflexdes que se fazem na academia, nos movimentos sociais, nos sindicatos, na escola, na politica em geral, solicitando mais verbas para educacio, reivindicando melhores prédios, mais saldrio, telagdes dignas de numero de alunos por professor. Temos qne lutar por tudo isso. Temos que lutar para o professor ganhar mais, Temos que lutar por melhores condigoes de trabatho dentro da escola. Porque, afinal, é na escola que se dé a atividade-fim para a qual trabalhamos. Mas me pa- rece que tudo isso deve ser articulado com 0 pensamento sobre 0 que € essa educagao que perseguimos, e o que ela realmente pode. Estou convencido de que educar nao € preparar para ganhar dinheiro ou preparar para trabalhar. Isso ndo basta. A minha contribuigdo modesta, parcial e inicial hoje aqui € instigélos a refletir um pouquinho sobre esse conceito to dbvio que € 0 de educacao. Algumas pessoas podem ter educagdo como algo muito tranquilo e acharao que con- ceituar a educagao é algo sem relevancia, Mas eu acho que € extremamente relevante pensar sobre esse conceito. Va- ‘mos falar coisas bvias: Paulo Freire, nosso maior educador, 44 se dizia um peregrino da obviedade. Mas outro grande cientista do século passado, Albert Einstein, dizia que o de ser percebido. Vamos, entdo, falar sobre esse Obvio chamado educacao. ‘Vou comegar por dizer 0 que ndo é educagao, ¢ que exatamente aquilo que est mais presente no senso comum, DUCAGKO COMO EXERCIODO PODER E esse senso comum nao esta restrito as pessoas do povo, como nosso viés autoritario pode nos levar a pensar. Nao. Esse senso comum impregna toda a sociedade, perpassa a imprensa, entra pela academia afora, est presente na pra- tica ¢ no discurso de muitos politicos € muitas pessoas que falam sobre a escola € 0 ensino, € que tém um conceit de educacdo extremamente pobre. Que conceito ¢ esse? Para 0 senso comum, educagao é 0 seguinte: existe alguém que sabe e alguém que nao sabe; alguém que detém conhecimentos ¢ informagdes ¢ alguém que nao detém. E esse alguém que sabe passa esses conhecimentos e infor- ‘mag®es para alguém que nao sabe. Nessa concepoio, edu- cagao é simplesmente essa passagem. Esse concei lizmente, perpassa toda nossa historia, em que a educagao consiste em passar determinado ‘contetido’, restrito a co- nhecimentos e informagdes. Observem que o problema nao € 0 fato de haver contetido, mas o fato de que, para essa concepgio, o contetido se restringe a isto: conhecimentos ¢ informacées. Para essa visdo, como 0 que importa so esses conhecimentos ¢ informagbes, o método pedagégico 6 extremamente simples: basta organizar, da melhor forma possivel, esses contetidos, de modo que sejam palataveis para quem os engole. E muito comum vermos intelectuais, 10s, administradores de educacao, autoridades gover- namentais € até tedricos da educagao trabalhando dessa forma, e dizendo: “fi preciso dar educacao porque 0 conhe- cimento é importante”. E 56. ‘A pergunta (6bvia) que quero fazer 6 a seguinte: sera que basta a passagem de conhecimento? E mais: passar 0 conhecimento sem se importar como? & isso que nés temos feito. Ou pior: 6 isso que nds temos ndo feito; porque uma forma impossivel de se passar conhecimento é pretender a ‘TOR HENRIQUE PARO passar sd conhecimento. Para essa concepcao vulgar de educagao nao importa o educador nem o educando: impor- ta 0 conhecimento, ow as informagées. O educando tem a obrigagao de aprender aquele monte de conhecimentos que se Ihe apresentam sob a forma de livros, exposigdes orais, tarefas para casa etc, ¢ ao educador compete, com 0 pouco que ganha, deter bastante daquele contetido e passé-lo. A escola que adota essa concepedo de educagao tem, pois, um papel muito simples: selecionar e fiscalizar. Seleciona, como fazia a chamada “boa escola publica de antigamente, que de boa nao tinha nada, ela era t4o ruinzinha quanto a de hoje; com a diferenga de que hoje temos, em geral, profes- sores mais democraticos e menos arrogantes. Aquela “boa” escola de antigamente s6 aceitava aluno das camadas mais ricas; era uma escola publica elitista. Quem ia para a escola, aprendia apesar da escola, porque esta 86 fazia vomitar co- nhecimentos, como faz a escola de hoje. Mas eram criangas que vinham de casa alimentadas, que j4 tinham em casa jornal, revista, o pai e ame eram letrados, tinham professor de musica, de Iinguas, 0 professor particular para corrigir os erros da escola... A escola nao precisava ser boa, ela podia dar-se ao luxo de ser ruim, porque ela nao era para as mas- sas. Mais ou menos 0 que fazem hoje as chamadas “boas* escolas privadas, que também continuam selecionando os seus alunos. E ndo selecionam apenas pelo valor da mensa- Tidade: mesmo voce pagando muito nessas escolas famosas, se o seu filho nao forbem, ele vai ser convidado a sair. E tio ruinzinha quanto a piblica. Além de que, muitas vezes, 0 mesmo professor que dé aula na escola privada a tarde, da aulas na escola pablica de manha, da mesma disciplina. Além de selecionar, essa escola fiscalizava. De que forma? Fazendo exames e reprovando aqueles que fracas- DUCAGKO COMO EXERCIIO DO PODER ss savam. O fracasso é sempre jogado para a vitima. Essa uma forma de nao assumir a culpa do trabalho que ¢ feito. ‘Sabemos que o ensino depende de um conjunto de recursos, de métodos e de pessoas, de um sistema inteiro. Mas, na- quela concepgao de educagao, quando uma coisa sai errada, a culpa é $0 do aluno, Daf a estupidez da reprovacao. Essa palavra “estupidez” referindo-se a reprovagdo nao é minha. E de um dos maiores educadores brasileiros, Anisio Teixei- ra, que ha mais de cinquenta anos ja denunciava 0 “sistema estiipido das repeticdes de série" (Teixeira, 1954: 55). Essa chamada boa escola de antigamente era tao boa ¢ tao com- petente que — até inicios da década de 1960, quando ainda era a elite que ia para a escola, mesmo selecionando os alunos, que aprendiam apesar da escola — de cada 100 alu- ‘nos que entravam no primeiro ano do ensino primério, apenas 45 passavam para o segundo ano; 55 eram teprova- dos ¢ chamados de culpados. Que escola (publica) compe- tente era essa de antigamente? Que escola (privada) com- petente é essa de hoje? Ambas baseiam-se num conceito de educacdo em que nao existe compromisso de quem educa, nao existe compromisso do Estado, dos educadores. Estes vaio a escola para se desincumbirem do seu papel de “vomi- tadores de contetido’ e os contetidos se restringem a conhe- cimentos. E a chamada educacao “bancaria’ tao criticada por Paulo Freire: depositam-se conhecimentos, como se fosse um banco, do qual depois se saca por meio das fami- geradas provas e testes (Freire, 1975). Para reverter essa funcdo n6s precisamos pensar numa educacao diferente disso, porque a escola publica de hoje nao pode dar-se ao luxo de ser incompetente. Educacao ¢ conhecimento, sim, mas nao se restringe a isso. Acontece que essa visio tem permeado nossa vida por séculos. Esse conceito ndo funciona. Se nés estivermos perseguindo melhores saldrios, melhores condigdes de trabalho, mais verbas para educagao, melhores condigdes das escolas, melhores gestdes, para fazer 86 isso, é melhor desistir. Nos sabemos que a escola que procurou passar s6 conhecimen- to nunca 0 conseguiu. Consegue apenas fazer com que tespondam essas coisas chamadas testes do Saeb ou do Enem. Mas, mesmo aqueles que sio aprovados nesses testes, ndo significa que se educaram. Eu desafio as pessoas aqui presentes a um dia sentarem-se para tentar responder tais testes. Atencdo, nao estranhem se forem reprovados, ois esses testes ndo servem para medir sequer conheci- mentos; eles medem aquilo que vocé reteve naquele mo- mento, Depois as pessoas esquecem, Entdo, essa 6 a escola que temos, pela qual passamos € que no nos proporcionon grande conhecimento. O que ¢ educagao, entao? Para pensar sobre um con- ceito rigoroso de educacao, partiremos de uma ideia una- nime: todos concordam que a educagao visa ao ser huma- no. Mas que humano? ‘Todos aqui, trabalhadores na educagao, temos como ideal 0 homem nao apenas como um animal racional, mas pensamos 0 homem como um ser historico. E 0 homem como ser histérico tem uma ca- tacteristica basica; ele nao é apenas natureza, ele transcen- de o animal, ele transcende o natural. Ele aponta para a liberdade, nao apenas para a necessidade. Ele aponta para arealizagao de algo como sujeito. O que nos identifica como seres humanos, o que nos diferencia de qualquer outra espécie € 0 fato de nés nos pronunciarmos diante do real € criarmos valores. A natureza — aquilo que necessaria- mente existe — ¢ 0 que independe da ago humana. O ‘homem nio; ele cria algo que ndo existe. E a primeira coi- sa que ele cria é um valor O homem se faz humano na medida em que se pronuncia diante do real, dizendo: “isto € bom, isto nao ¢", ou seja, criando um valor, fazendo-se ético, Para dar um exemplo: 0 homem poderia continuar, necessariamente, andando sobre as suas duas pernas, mas, em determinado momento ele diz: ‘Nao! & bom chegar depressa ¢ sem fazer forga’, Quando ele diz isso, ele cria um valor, coisa que nao existe naturalmente. Ai, ele esta- belece um objetivo: domestica o cavalo e pode optar entre andar a pé ¢ andar a cavalo. E assim que ele constréia sua liberdade: antes, ele necessariamente andava a pé, agora ele tem a liberdade de optar. E assim que nos nos fazemos hu- manos, é assim que 0 homem constréi a sua humanidade. Construgiio que nasce de um valor e que se realiza pela ago articulada ao objetivo. A isso chamamos de trabalho humano, Mas o trabalho nao existe no ar, ele existe articu- lado a um valor, £ uma expressao de vontade, uma afirma- do de sujeito, Esse é 0 sentido de sujeito: sujeito nao apenas como agente, mas como autor. Essa é a condigao humana, é a marca registrada do homem: ele constréi tudo © que compde sua historicidade por ser autor, Além disso, 0 homem nio se faz, ndo se constroi his- toricamente, sozinho. E impossivel construirmos sozinhos a nossa existéncia. A nossa existéncia material é por nés produzida, mas nao diretamente. O que produz a nossa existéncia material? E 0 que 0 homem faz para produzir-se materialmente: sua comida, sua bebida, seu lazer, sua mo- radia, sua educagao, ¢ assim por diante. Mas ele nao produz tudo isso diretamente. Ele tem acesso a producao do outro ron HeNQUE PRO pela divisao social do trabalho. Ele precisa do outro para se produzir. Por isso, o homem s6 pode ser pensado no plural. A segunda condigio do humano é, pois, esta: 0 homem é necessariamente plural. Vejam, se ele ¢ necessariamente plural, ele se articula com outros: entao, ele é necessaria- ico. O conceito de politico aqui nao se restringe a luta politica. Politico aqui é tomado no sentido mais amplo e geral: a necessidade que todos temos de convivéncia com BTupos € pessoas. Se sou humano, portanto sujeito, posso pensar numa relagao de verticalidade com 0 objeto. Agora, quando eu sei que s6 existo na relacdo com outro, existe um outro que também tem interesses, tem desejos, e eu tenho que conviver com ele. Existem duas formas de convivéncia com o outro, Pos- 80 conviver com 0 outro autoritariamente, reduzindo-o a objeto, impondo meus interesses: essa 6 a forma autoritaria, Nao preciso dizer que essa forma é desumana, que nega a caracteristica fundamental do humano — sua condigao de sujeito — reduzindo-o a condicao de objeto. Mas eu ndo existo sem ele. Reduzi-lo a condigao de objeto ¢ reduzir-me junto com ele, Entretanto, existe uma segunda forma, que € a seguinte: em vez de abafar os interesses do outro, vou dialogar com ele, e pensar, trabalhar pacificamente, livre- mente, construir com ele a liberdade. E aqui vejam como 0 conceito de liberdade nao ¢ 0 mesmo do senso comum: li- berdade nao ¢ meramente estar solto, nao é poder fazer coisas; nao. Liberdade ndo se ganha, liberdade nao se da e liberdade também nio se conquista, porque a liberdade conquistada € sempre & custa da liberdade do outro. Liber- dade se constr6i; com o outro. E essa construgao da liberdade com 0 outro se da no didlogo. f 0 que chamamos de demo- DUCAGAO COMO EXERCICIO DO PODER cracia, com um sentido mais rigoroso e amplo do que sim- plesmente democracia como elei¢ao, democracia burguesa, vontade da maioria etc. Esses componentes sio todos im- Portantes, mas esto todos subsumidos a esse conceito mais amplo de democracia como convivéncia pacifica e livre entre seres e grupos que se fazem sujeitos. A palavra funda- ‘mental é sujeito. N6s nos fazemos humanos na medida em que nos tornamos sujeitos. Todo momento de felicidade ovorre porque vocé esta exercendo sua condigio de autor, realizando algo como uma agao orientada pela vontade. Sabemos que a educacao visa ao homem. Vejamos, entao, uma terceira condi¢do do humano. Na produgao de sua existéncia, o homem produz conhecimentos, informa- ‘es, valores, ciéncia, arte, tecnologia, crengas etc., tudo 0 que nao existe naturalmente ¢ a que chamamos de cultura, Cultura, aqui, nao € tomada, portanto, no sentido restrito — cultura tupiniquim, por exemplo — mas como tudo aqui- lo que ohomem produz em seu fazer-se historico. Ohomem tem uma particularidade que é decorréncia das duas con- digdes anteriores: ele nao precisa, a cada geracao, ficar in- ventando tudo isso de novo; ele tem a condigao, a possibi- Tidade, de passar tudo para a outra geragao. Cada nova geracao se apropria da cultura historica e essa apropriagao da cultura tem um nome: chama-se educagdo. Vejam que agora a coisa é muito mais ampla, mais grave, mais com- plexa e também mais dificil. Se a educagio visa ao homem © a educagao é a apropriagao da cultura, é pela educacao que nés nos fazemos humanos. Humano no sentido hist6- rico. Mas essa passagem da cultura nao se da pelo sangue, nao est nos genes. As criangas que nascem hoje nascem iguaizinhas as criangas que nasciam ha 15 mil anos. Quan- donascemos, somos zero, natureza pura, Comecamos a nos diferenciar a medida que nos atualizamos com aquilo que a humanidade fez na historia. Atualizar aqui indo se refere apenas a informagdes. Atualizar significa apropriar-se da cultura como ela se encontra no momento em que nascemos ¢ ir-se fazendo humano por sua apropriacao, Por exemplo, a criancinha que nascia analfabeta ha 15 mil anos, jé nascia \da a esse respeito, porque todo mundo era analfa- que a escrita ainda nao tinha sido criada. Mas ela 44 podia se atualizar, por exemplo, com relagao a fala, ou seja, ela jé podia aprender a falar; nao precisava esperar séculos para o homem inventar a fala, Hoje, nossas criangas tém muito mais que isso. Mas continuam nascendo iguai- zinhas aquelas. E, olhem que dbvio, elas s6 aprendem se alguém ensinar, mesmo que nascam genios. (Alias, ha sérias vidas quanto a isso de nascerem génios.) A Psicologia, a Antropologia, a ciéncia em geral, tem demonstrado que todos nés nascemos com potenci der absolutamente tudo, com rarissimas excegoes de alguns portadores de deficiéncias mentais graves, Nos so nao aprendemos quando nao nos ensinam. Por exemplo, se hoje um génio como Aristoteles ressuscitasse, ele ficaria mor- rendo de inveja, pois uma crianca de sete, oito anos iria explicar a ele que 6 a Terra que gira em torno do Sol. O Einstein, se ressuscitasse hoje e fosse conversar com um Jovem de 13 ou 14 anos, ficaria fascinado de ouvir coisas sobre o genoma que ele nunca imaginou. Por que ele nao sabia? Porque nao Ihe foi ensinado; nao porque ele nao ti- vesse condicées intelectuais de aprender. Entdo, nao vale dizer que a crianga nao aprende porque ¢ bagunceira, por- que 0 pai é bébado, a mae é prostituta, ou porque ela é DUCAGAO COMO EXERCIOO Do PODER lenta, porque “tem problema’, como se ouve de muitos educadores escolares. Se ela nao sabe, provavelmente nao € culpa sua. Pode haver muitos problemas, inclusive exter- nos a escola, mas nao é culpa da crianga Abeleza da educagao esta precisamente em que o edu- cador é tanto mais importante, tanto mais educador, quanto mais ele for meio para propiciar o fim educativo. pela mediacdo da educagao que as criangas aprendem. E elas aprendem se n6s levamos em conta esse objetivo na hora de ensinar. Vejamos como se da esse processo educativo. Educagdo é um trabalho humano, é uma atividade adequada a um fim, Esse ¢ 0 conceito de trabalho humano, que é diferente da atividade do simples animal, pois este nao desenvolve um “trabalho” O tatu, por exemplo, faz um buraco e inclusive muda a natureza, mas faz isso natural- mente, necessariamente. A atividade humana é guiada por um desejo, um sonho, uma vontade, um fim. A educagao é um trabalho que tem como fim produzir um ser humano- hist6rico. A atividade orientada a esse fim é 0 processo pedagégico. Esse processo, como todo trabalho, supde a existéncia de um “objeto de trabalho" O conceito de objeto de trabalho nao se confunde com o de mero objeto. Objeto de trabalho ¢ tudo aquilo que, no processo de trabalho, se transforma no produto. Por exemplo, se vou produzir uma mesa de madeira, uso tébuas, transformo as tabuas em mesa, AS tabuas so 0 objeto de trabalho. Na educagao, 0 objeto de trabalho é 0 educando, porque é ele quem se transforma durante 0 proceso, Nao se trata simplesmente de sua trans- forma¢ao fisica, pois ndo nos interessa o conceito de homem como um ser simplesmente fisico. O educando se transfor- ma em sua personalidade viva, se faz humano-histérico na medida em que se apropria da cultura. Ele se diferencia de um simples animal na medida em que se apropria da cul- tura, em que se educa. Educar-se-é transformar-se, assimi- lando conhecimentos, crengas, valores, condutas, informa- bes, habilidades. E assim que nds transformamos o educando, no processo pedagégico. Entio, ele ¢ 0 objeto de trabalho. Mas vejam a diferenga: no caso da mesa é simples, Porque 0 objeto de trabalho ¢ um mero objeto. Uma basica da administragdo 6 a seguinte: os meios tem que se articular aos fins, Eu nao vou pescar com uma metralhado- ra, nem vou para a guerra com uma vara de pescar: Entao, na produgao de uma mesa, tenho como fim produzir um objeto. Portanto, 0 objeto de trabalho, a tabua, necessaria- mente, é um mero objeto. No caso da producao pedagégica, nds temos como fim a construcdo de um sujeito; 0 objeto de trabalho tem necessariamente de ser sujeito e ele s6 se educa como sujeito, sendo sujeito. Ser sujeito significa ser senhor de vontade. A educagio, que visa a produgao de um ser humano-hist6rico, 86 se da se 0 educando for um ser de vontade. Significa que 0 edu- cando so aprende se quiser. Iss0 6 Sbvio, mas 6 algo negado na nossa pratica didria, Ser sujeito nao significa uma mera atividade como pregam alguns métodos ¢ algumas escolas. Nao € disso que estamos falando. Estamos falando de ser sujeito, senhor de ago. Ninguém ¢ sujeito se nao reflete, no se faz autonomo, cidadao. Quantas vezes ouvimos dizer que a escola é boa, que tudo esta muito bem, mas que 0 aluno nao aprendeu “porque nao quis": Como se levar 0 aluno a querer aprender nao fosse a fungdo da educagao, Quem quer aprender, aprende em qualquer lugar. Levé-lo aquerer aprender € 101% da Didatica. Dizer ‘a escola ¢ boa, EDUCAGAO-COMO EXERCICODO PODER, 3s mas a crianga ndo aprendeu porque nao quis" é 0 mesmo que dizer que a cirurgia foi um sucesso mas o paciente morreu. Se ndo houve aprendizado, nao houve ensino. Co- nhecimentos ¢ informagées qualquer computador tem, € nao precisa de uma relagao pedagégica para isso. Se quere- mos levantar a bandeira da dignidade e da importancia da educagio, ndo podemos aceitar que educadores desempe- nhem papel de computador. Os educadores devem fazer 0 seu papel de um ser humano que propicia condigao de sujeito aos educandos, para que estes se facam sujeitos ¢ aprendam. Essa é a condigo educativa, Mas é justamente ai que a educagao se mostra em toda io porque é muito mais complexa do que pretender simplesmente passar conhecimentos e informa- es. E passar as informagées ¢ 08 conhecimentos, porém de uma forma que as criangas e os jovens se facam sujeitos ©, por isso, aprendam. Em qualquer profisso, vocé pode pensar numa relagdo que ignore a condigao de sujeito do outro. Por exemplo, um médico pode dizer “Eu curo fulano’ € ponto. Em educagao, dizer “eu educo fulano” s6 pode ser entendido como uma forga de expresso, como uma licen- ¢a poética, pretendendo significar: “Eu propicio condigées para que fulano se eduque.’ O verbo educar-se ¢ reflexivo, 'S6 existe educago se o educando concorre como sujeito da educacao. Nao estou dizendo isso por ser bonzinho ou s6 Porque € bonito. A ciéncia demonstrou isso: nao ha condi- Ges de aprender se alguém nao quer. Por isso, para que 0 outro aprenda, eu preciso correr o risco de ele nao aprender. Nao depende s6 de Depende de eu buscar condigoes para cativé-lo, seduzi-lo democraticamente. £ um ato de democracia, na medida em que eu dialogo com ele, em que eu corto 0 risco de néo convencé-lo, inclusive de ele me convencer do contrario. Mas, para fazer isso, ele tem que estar no exercicio de sua condicao de sujeito. O contradite- rio disso € que o caréter de necessidade, ou melhor, de imprescindibilidade do educador aparece precisamente no momento em que sua necessidade desaparece, ou seja, quando 0 educando, cativado pelo educador, decide apren- der e realiza ele sua aprendizagem que, todavia, s6 se fez possivel pela mediacaio do educador. ‘Tem gente que morre de medo da palavra sujeito, acha que 6 subjetivismo. Tudo o que diz respeito a fazer o estu- dante ser sujeito ja chamam de “psicologismo", Vejam 0 tanto de asneiras que se falou a respeito da Escola Nova Foi um dos primeiros momentos, com todos os erros que houve, em que se reconheceu que o estudante nao pode ser um ser passivo, deve ser um ser que atua. E nao basta a simples ago, é preciso uma ago auténoma, Quando fa- zemos isso, temos que levar em consideragdo a condigao do educando. Se entendo 0 educando como sujeito, s6 pos- so trabalhar com uma coisa chamada motivagao intrinseca. Por exemplo, cu nfo preciso explicar para um garoto de oito anos que jogar bola € gostoso. Eu dou a bola ¢ ele ja sai jo- gando, porque isso é intrinsecamente gostoso. Na escola tradicional, invertemos tudo. Em vez de uma educagao intrinsecamente gostosa, prazerosa, fazemos 0 contrario. No affi de s6 passar contetidos, 0 que nés fazemos? Utilizar ‘mos a motivagao extrinseca: um prémio (‘estuda que voce vai ganhar um presente”) ou um castigo ("se vocé nao es- tudar, vai ser reprovado"). E 0 que a crianca faz para nao ficar mais neurética do que nés somos? Ela estuda para ficar livre do estudo, ¢ nao aprende: finge que aprende. DUCAGKO-coMo PxERCICIO BO PODER Responde as provinhas que nés damos. Estuda na véspera da prova, assimila muito mal uns tantos rudimentos para realizar a prova ¢ passar, mas educagao mesmo, formagio da personalidade, nao hé, porque o ensino tem sido uma coisa chata, Devemos compreender que a crianga se faz sujeito de modo diverso do adulto. Crianga de sete, oito anos se faz sujeito brincando e, se nao tivermos uma escola que brinca, nao teremos uma escola. Este é um retrato do carter ab- surdamente anticientifico do nosso ensino. Vocé entra numa primeira série do ensino fundamental ¢ vai a um curso de POs-graduagao e vé que o processo pedagogico é o mesmo. Alguma coisa esta muito errada, porque o adulto ja tem sua personalidade formada, e até pode fazer-se sujeito apenas sentado numa carteira durante quatro ou cinco horas ¢ ouvindo a exposicao do professor, mas a crianga tem sua personalidade em formagao e, portanto, exige formas mais sofisticadas de ensinar, fundamentadas na ciéncia ¢-que leve em conta seu desenvolvimento biopsiquico e social. Em vez.disso, até se costuma supor que é necessario conhe- cer mais para ensinar adultos no ensino superior do que criangas no fundamental e que o professor do fundamental pode ganhar menos do que o da universidade, talvez basea- do na suposicao de que este tltimo precisa deter mais contetidos, Que fundamento pode haver em achar que 0 professor de criangas vale menos em termos profissionais do que o professor de ensino superior? Isso s6 pode ter por base um conceito equivocado de que para se educar basta repetir contetidos. Nos nos fazemos humanos ¢ hist6ricos na medida em que nos apropriamos da cultura inteira. En- to por que é que a crianga vai a escola para estudar as disciplinas tradicionais e no para aprender a dancar, a cantar, a ser companheiro, a votar, a apreciar a arte, a ser artista, a ter tolerancia? Como vamos ter cidadaos revolu- ciondrios? Apenas mudando contetidos? Isso esta falido. Em educagao, forma é contetido, método é contetido. Nao adian- ta ensinar materialismo hist6rico proibindo a crianga de ser gente. Vocé esta ensinando a violéncia quando impede que a crianga se desenvolva brincando. Vocé esta ensinando violéncia quando nao quer que ela converse com o seu amigo. A crianga na escola ¢ proibida de brincar! No entan- to, a Pedagogia, no século XX, produziu coisas maravilhosas em termos de instrumental tedrico e pratico que a crianga ser levada a aprender Matematica, Fisica, Biologia, Portugués etc,, ao mesmo tempo que exercite sua condicao de ser que brinca, ¢ se faz sujeito brincando. Na pesquisa para 0 meu livro Reprovagéo escolar: re- ntincia @ educagiio (Paro, 2001), tivemos o cuidado de obser- var a primeira aula do primeiro ano do ensino fundamen- tal, para ver como a escola recebe as criangas. Uma coisa Presente nas primeiras aulas de todas as classes: quando as criangas entravam, a professora falava: ¢as! Aqui nao é brincadeira, nao. Aqui -escola: aqui é sério’ Se nao é brincadeira, entao fecha a escola! Se vocé quer formar, quer preparar para a vida, nao pode impedir de viver! Preparar para a vida exercitando a nao vida!? Parece que temos que pensar seriamente nisso. Sera que nao estamos lutando por uma escola quadradinha? Esta na hora de parar de se apoiar nas desculpas de que isso é “psicologismo” ou “escolanovismo’ Sera que nao esté na hora de a gente pensar — a exemplo do que foi feito em DUCAGAO COMO ExERCIIO Do PODER relagdo a discriminagao dos negros, das mulheres, dos de- ficientes fisicos, dos homossexuais — sobre a discriminagao das criangas? Proibimos, desde cedo, que elas sejam sujeitos. Com a desculpa de thes ensinar a viver e de ensinar conhe- cimentos ¢ informagdes Ihes proporcionamos um ensino chato € omitimos o mais importante, que € ensinar aos alunos a se apropriarem da cultura inteira ¢ se fazerem humano-historicos. Referéncias bibliogréficas FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 2. ed, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975. PARO, Vitor Henrique. Reprovagao escolar: renincia a educagao. Sao Paulo: Xama, 2001, TEIXEIRA, Anisio S. Nota preliminar. In: KESSEL, Moysés 1. A evasao escolar no ensino primério. Revista Brasileira de Estudos Pedagdgicos, Rio de Janeiro, v. 22, n, 56, p. 53-55, out./dez. 1954,

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