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Continuidade dos parque Tinha comecado a ler o romance uns dias antes. Abandonou-o por causa de negécios urgentes, voltou a abri-lo ne comboio de regresso herdade. Deixava-se envolver lentamente pelo enredo, pelo perfil das personagens. Naquela tarde, depois de escrever wma carta ao seu procurador € de discutir com 0 administrador uma questo de parcerias, voltou ao livro na tranquilidade do escritério com vista para o parque de car valhos. Recostado na sua poltrona favorita, de costas viradas para a porta que 0 incomodava devido a irritante possibili- dade de sofrer invasdes, deixou que a sua mio esquerda acari- ciasse uma ¢ outra vez 0 veludo verde da poltrona e comecou a ler os dltimos capitulo, A sua memdria retinha sem esforco fos nomes € as imagens dos protagonistas. A ihisiio romanesca conquistou-o quase de imediato. Gorava do prazer quase per verso de se deixar levar, desprendendo-se linha a linha do que 6 rodeava, ¢ de sentir a0 mesmo tempo que a sua cabeca des cansava comodamente no veludo do encosto alto da poltrona, que 08 cigarros continuavam ao alcance da mao, que para la das vidracas dangava 0 ar do entardecer por sob 0s carvalhos. Palavra a palavra, absorvido pela s6rdida separacio dos herds, deixando-se conduzir pelas imagens que se concertavam adquiriam cor ¢ movimento, foi testemunha do siltimo encon- tro na cabana do monte. Aparecia primeiro a mulher, receosa. Agora chegava 0 amante, ferido 0 resto pelo golpe de um ramo. De modo admiravel, ela estancava o sangue com beijos, mas ele declinava as caricias, nao viera para repetir as ceri ménias de uma paixao secreta ¢ protegida por um mundo de JULIO CORTAZAR folhas secas e de trilhos furtivos. O punhal temperava-se con- tra o seu peito € debaixo latejava a liberdade encapotada. Um didlogo ansioso corria pelas paginas como-um ribeiro de ser- pentes ¢ pressentia-se que estava tudo decidido desde sempre. Até aquelas caricias que enredavam o corpo do amante, como que querendo reté-lo ¢ dissuadi-lo, desenhavam abominavel- mente a figura de outro corpo que era necessario destruir, Nada fora esquecido: alibis, acasos, possiveis erros. Doravante, cada instante tinha o seu emprego minuciosamente atribuido. A dupla e impiedosa revisao era interrompida apenas para que uma mao acariciasse uma bochecha. Comecava a anoitecer. Sem se olharem ja, rigidamente sujeitos a tarefa que os esperava, separaram-se a porta da cabana. Ela devia seguir pelo trilho que ia para o norte. No trilho oposto, ele virou-se por um instante para vé-la correr com o cabelo solto. Correu também, protegendo-se nas drvores e nos arbustos, até distin- guir na bruma malva do creptsculo a alameda que conduzia a casa. Nao era suposto que os cies ladrassem, e nao ladraram. O administrador nao deveria estar em casa Aquela hora, e nao estava. Subiu os trés degraus do alpendre e entrou. Através do sangue, galopando nos ouvidos, chegavam-lhe as palavras da mulher: primeiro uma sala azul, depois um vestibulo, uma escadaria atapetada. No cimo, duas portas. Ninguém no pri- meiro quarto, ninguém no segundo. A porta da sala, e entao fo punhal na mAo, a luz das vidragas, o encosto alto de uma poltrona de veludo verde, a cabega do homem apoiada na pol- trona lendo um romance. Nao se culpe ninguém © frio complica sempre as coisas, no Verio esté-se to perto do mundo, tao pele contra pele, mas agora, as seis e meia, a sua mulher espera-o numa loja para escolher uma prenda de casa- mento, ja € tarde e apercebe-se de que o dia arrefeceu, é neces- sario vestir 0 pullover azul, qualquer coisa que combine com 0 fato cinzento, © Outono € um vestir e despir de pullovers, um ir-se fechando e alheando, Sem vontade, assobia um tango enquanto se afasta da jancla aberta, procura © pullover no armario e comeca a vesti-lo em frente ao espelho. Nao é facil, talvez por causa da camisa que se cola a li do pullover, eustaclhe Passat 0 bra¢o, pouco a pouco vai avangando a mo até que Por fim assoma um dedo fora do punho de la azul, mas a luz do entardecer o dedo tem um aspeclo como que enrugado e dobrado para dentro, com uma unha negra que termina em ponta. De chofre arranca a manga do pullover e olha a mao como se nao fosse a sua, mas agora que est do lado de fora do pullover vé-se que € a sua mio de sempre e deixaa cair no extremo do braco frouxo, e ocorre-lhe que o melhor sera meter 0 outro braco na outra manga para ver se dessa forma é mais facil. Parece que o nao €, pois mal a la do pullover fica de novo colada ao tecido da camisa a falta de habito de comegar pela outra manga dificulta ainda mais a operacdo ¢, embora tenha comecado a assobiar de novo para se distrair, sente que 4 mao quase nao avanca € que sem uma qualquer manobra complementar jamais conseguira que esta chegue A saida, Talvez se fizer tudo ao mesmo tempo, baixando a cabeca para vestila a altura da gola do pulloverao mesmo tempo que enfia JULIO CORTAZAR o braco livre na outra manga, esticando-a e forcando-a simul- taneamente com os dois bracos e 0 pescocgo, Na repentina penumbra azul que 0 envolve parece absurdo.continuar a asso- biar, comeca a sentir uma espécie de calor no rosto, embora parte da cabeca ja deva estar de fora, mas a testa e todo o rosto continuam cobertos, ¢ as maos avangcam apenas até meio das mangas, por mais que insista nao consegue, e agora ocorre-lhe que talyez tenha cometido algum erro no meio daquela espé- cie de colera irénica com que reatou a tarefa, e que talvez tenha feito o disparate de meter a cabeca numa das mangas ¢ uma mao na gola do pullover. Se assim fosse, a sua mao teria de sair facilmente, mas, ainda que insista com todas as suas for- cas, nao logra fazer avancar nenhuma das duas mios, embora por outro lado pareca que a cabeca esta a beira de abrir cami- nho, pois a la azul aperta-Ihe agora com uma forca quase irri- tante 0 nariz e a boca, sufoca-o mais do que poderia imaginar, obrigando-o a respirar profundamente enquanto a 1a vai humedecendo contra a sua boca, provavelmente desbotando e manchando-lhe o rosto de azul. Por sorte, nesse preciso momento, a sua mao direita aflora no ar, no frio de fora, pelo menos ha ja um fora, embora a outra continue presa na gola do pullover, ¢ & por essa razio que 0 que ele julgava ser a gola lhe esta a apertar daquela forma 0 rosto, sufocando-o cada vez mais, ao passo que a mao conseguiu sair facilmente. De qual- quer modo, e para nao haver dtividas, a tinica coisa que Ihe resta fazer € tentar continuar a abrir caminho, a respirar fundo ¢ a deixar escapar 0 ar pouco a pouco, embora seja absurdo porque nada o impede de respirar perfeitamente, excepto 0 facto de o ar que engole estar misturado com a penugem de 1a da gola ou da manga do pullover, e além disso ha 0 sabor do pullover, esse sabor azul da la que deve estar a manchar-the o rosto, agora que a humidade da sua respiracdo se mistura cada vez mais com a la e, embora nao possa vé-lo, porque se abrir os olhos as pestanas tropecarao dolorosa- mente na la, tem a certeza de que 0 azul Ihe vai envolvendo a boca molhada e as cavidades do nariz, que avanc¢a nas suas bochechas, e tudo aquilo aumenta nele a ansiedade e tudo o 10 NAO SE CULPE NINGUEM due descja € acabar de vestir de uma ver por todas 0 pullover, Jd para nao falar de que deve ser tarde que a sua mulher deve estar 4 porta da loja e Prestes a perder a paciéncia. Diz para si mesmo que o mais sensato é concentrar a atencao na sua mao direita, porque essa mao, que se encontra fora do pullover, esta am contacto com 0 ar frie do quarto, como que anunciando que ja falta pouco, e além disso pode ajudi-to, subindo pelas Costas até agarrar o limite inferior do pullover com aquele movimento elastico que ajuda a vestir qualquer pullover puxando energicamente para baixo. O problema é que mesmo (ue a mao tacteie as costas procurando 0 limite da la, parece Aue o pullover ficou completamente enrolado perto do pescoco © @ Unica coisa que a mao encontra é a camisa cada vez mais enrugada ¢ em parte ja fora das calcas, e de pouco serve bran- dir de novo a mao e querer puxar pela parte da freate do pullo- ver, porque sobre 0 peito nao se sente mais nada a nao ser a camisa, € 0 pullover devera ter passado apenas pelos ombros ¢ estar para ali enrolado e tenso como se ele tivesse os ombros demasiado largos para o mesmo, o que definitivamente prova que realmente se enganou e meteu uma mao na gola e a outra Ruma manga, pelo que a distancia que vai da gola a uma das mangas € exactamente metade da que vai de uma manga a outra, e isso explica por que razio ele tem a cabeca um pouco inclinada para a esquerda, do lado onde a mao continua pri- sioneira da manga, se é que éa manga, ao Passo que a sua mao direita, que ja esta de fora, se movimenta no ar com inteira lberdade, embora no consiga puxar o pullover que continua enrolado na parte superior do seu corpo, Ironicamente ocorre-lhe que se houyesse uma cadeira por perto poderia des- cansar © respirar melhor, até yestir totalmente 0 pullover, mas perdeu a orientacdo depois de ter girado tantas vezes com aquela espécie de ginastica euférica que inicia sempre a colo- cacao de uma peca de roupa e que tem qualquer coisa de Passo de danga dissimulado, que ninguém pode censurar por ave tesponde a uma finalidade utilitéria e nao a culposas ten. déncias coreograficas. No fundo, a verdadeira solucao seria despir o pullover, visto que no conseguiu vesti-lo, e comprovar I JULIO CORTAZAR a entrada correcta de cada mao nas mangas e da cabeca na gola, mas a mao direita continua a ir e a vir desordenada- mente, como se fosse ridiculo renunciar naquela fase ds coisas, ea certa altura até obedece e sobe a altura da cabeca e puxa para cima sem que ele compreenda a tempo que © pullover se lhe colou ao rosto com aquela gomosidade himida da respira- cao misturada com o azul da la, e quando a mao puxa para cima sente uma dor como se lhe rasgassem as orelhas ¢ quises- sem arrancar-the as pestanas. E nesse caso mais devagar, nesse caso é necessario utilizar a mao enfiada na manga esquerda, se € que 6 a manga e nao a gola, e para tal ajudar com a mao direita a mao esquerda para que esta possa avancar pela manga ou recuar e escapar, embora seja quase impossivel coordenar os movimentos das duas maos, como se a mao esquerda fosse uma ratazana presa numa jaula e da parte de fora outra ratazana quisesse ajuda-la a escapar, a nado ser que em vez de ajudar esteja a mordé-la, porque de stbito lhe déi a mao prisioneira € ao mesmo tempo a outra mao se crava com todas as suas forcas naquilo que deve ser a sua mao ¢ que Ihe ddi, Ihe déi a tal ponto que renuncia a tirar o pullover, prefe- rindo fazer um Ultimo esforco para tirar a cabeca para fora da gola e a ratazana esquerda para fora da jaula, e tenta-o lutando com todo o seu corpo, atirando-se para a frente e para tras, girando no meio do quarto, se é que esta no meio, porque agora lembra-se de que a janela ficou aberta e que é perigoso continuar a girar as cegas, e prefere deter-se, embora a sua mio direita continue a ir e a vir sem se ocupar do pullover e a sua mao esquerda lhe doa cada vez mais, como se tivesse os dedos mordidos ou queimados, e no entanto essa mao obe- dece-lhe, e contraindo pouco a pouco os dedos lacerados con- segue agarrar através da manga uma ponta do pullover, que esta enrolado no ombro, e puxa para baixo, quase sem forca, déi-lhe demasiado e seria preciso que a mao direita ajudasse em vez de trepar ou descer inutilmente pelas pernas, em vez de lhe beliscar a coxa, como esta a acontecer, arranhando-o e beliscando-o através da roupa sem que possa impedi-lo, por- que toda a sua vontade acaba na mao esquerda, talvez tenha 12 NAO SE CULPE NINGUEM caido de joelhos e sente-se como que dependurado da mao esquerda, que tenta puxar uma vez mais o pullover, e de stibito € 0 frio nas sobrancelhas e na testa, nos olhos, absurdamente nao quer abrir os olhos, mas sabe que esta do lado de fora, aquela matéria fria, aquela maravilha é 0 ar livre, e nado quer abrir os olhos e espera um segundo, dois segundos, deixa-se viver num tempo frio e diferente, o tempo do lado de fora do pullover, e encontra-se de joelhos e € belo estar assim, até que pouco a pouco entreabre agradecido os olhos, livres da baba azul da la de dentro, entreabre os olhos € vé as cinco unhas negras suspensas apontadas aos seus olhos, vibrando no ar antes de saltar contra os seus olhos, e s6 tem tempo de fechar as palpebras e de atirar-se para tras, cobrindo-se com a mao esquerda, que é a sua mo, que é tudo o que lhe resta para se poder defender a partir do interior da manga, puxando para cima a gola do pullover enquanto a baba azul lhe envolve outra vez 0 rosto € se endireita para fugir para qualquer lado, para chegar por fim a qualquer lado, sem mao e sem pullover, onde exista apenas um ar fr so que o envolva e o conduza e o acaricie e doze andares. Axolotl Houve um tempo em que eu pensava muito nos axolotl. Ta vé- -los ao aquario do Jardim das Plantas e ficava horas a olhar para eles, observando a sua imobilidade, os seus obscuros movimentos. Agora sou um axolotl. O acaso levou-me até eles numa manha de Primavera em que Paris abria a sua cauda de pavao depois da lenta invernia. Desci pela avenida de Port-Royal, continuei pela St. Marcel e pela LHopital, vi o verde entre tanto cinzento e lembrei- -me dos ledes. Era amigo dos ledes e das panteras, mas nunca tinha entrado no himido e escuro edificio dos aquarios. Deixei a minha bicicleta encostada as sebes e fui ver as tuli- pas. Os ledes estavam feios e tristes e a minha pantera dormia. Optei pelos aquarios, olhei de soslaio os peixes vulgares, até dar inesperadamente com os axolotl. Fiquei uma hora a olhar para cles ¢ sai, incapaz de fazer qualquer outra coisa. Na biblioteca Sainte-Geneviéve consultei um dicionario € soube que os axolotl sao formas larvais, munidas de brénquios, de uma espécie de batraquios do género ambystoma. Que eram mexicanos sabia-o ja pelos proprios, por causa dos seus peque- nos rostos rosados de astecas e do cartaz no cimo do aquario. Li que em Africa foram encontrados exemplares capazes de viver em terra durante os periodos de seca e que prosseguem a sua vida na agua ao chegar a estacao das chuvas. Encontrei 0 seu nome espanhol, ajolote', e a informacao de que sao comes- tiveis e que o seu 6leo se usava (dir-se-ia entao que ja nao se usa) como 0 Gleo de figado de bacalhau. 1 Gonforme se pode observar, o emprego do nome latino axolotl, em detrimento do corres- pondente portugués (axolote ou axalotle) respeita a opcao do autor. (N. do T) 128 AXOLOTL Nao quis consultar obras especializadas, mas voltei_no dia seguinte ao Jardim das Plantas. Comecei a ir lA todas as » € as vezes de manha e a tarde. O seguranca dos aqua- ris sorria perplexo ao receber o bilhete. Eu apoiava-me na barra de ferro que bordeja os aquarios e ficava a olhar para cles. Nao ha nada de estranho nisto, porque compreendi logo desde © primeiro momento que estivamos vinculados, que qualquer coisa infinitamente remota ¢ perdida continuava, nao obstante, a unir-nos. Para percebé-lo fora suficiente ficar parado naquela primeira manha diante do vidro onde algumas borbulhas cor- riam na agua. Os axolotl amontoavam-se no diminuto e estreito {apenas eu sei quao diminuto e estreito) piso de pedra e musgo. do aquario. Havia nove exemplares, ¢ a maioria apoiava a cabeca contra 0 vidro, observando com 0s seus olhos de ouro OS que se aproximavam. Turvado, quase envergonhado, senti como que uma impudicicia ao aproximar-me daquelas figuras silenciosas ¢ iméveis aglomeradas no fundo do aquario, Isolei mentalmente uma, situada a direita ¢ um tanto ou quanto sepa- rada das demais, para estudé-la melhor, Vi um Pequeno corpo rosado € de algum modo transhicido (pensei nas estatuetas chi. hesas de vidro opalino), semelhante a um pequeno lagarto de quinze centimetros, que terminava numa cauda de peixe de uma extraordinaria delicadeza, a Parte mais sensivel do nosso corpo. Pelo dorso corria-the uma barbatana transparente que se fundia com a cauda, mas foram as patas que me obceca- ram, de uma finura subiilissima, que acabavam em mindsculos dedos, em unhas minuciosamente humanas, E entao descobri os seus olhos, a sua cara. Um rosto inexpressivo, sem qualquer outro taco A excepgao dos olhos, dois orificios semelhantes a cabecas de alfinete, inteiramente feitos de um ouro transpa- rente, totalmente desprovidos de vida mas olhando, deixando- “se penetrar pelo meu olhar que Parecia passar através do ponto. adureo e perder-se num diafano mistério interior, Uma finissima auréola negra circundava o olho e inscrevia-o na carne rosada, na pedra rosada da cabeca vagamente triangular mas com lados curvilineos ¢ irregulares, que faziam com que se assemelhasse totalmente a uma estatueta corroida pelo tempo. A boca estava 129 JULIO CORTAZAR dissimulada pelo plano triangular da cara, apenas de perfil se adivinhava 0 seu consideravel tamanho. Vista de frente, era como uma fina fenda que subtilmente rasgava uma pedra sem vida. Em ambos os lados da cabe¢a, onde deveriam estar as ore- lhas, trés raminhos rubros cresciam como se fossem de coral, uma excrescéncia vegetal, os bronquios, suponho. E era 0 tinico clemento vivo nele, a cada dez ou quinze segundos os raminhos aprumavam-se rigidamente ¢ voltavam a tombar. As vezes, uma pata movia-se ligeiramente ¢ eu via os diminutos dedos poi- sando com suavidade no musgo. E que nés nado gostamos muito de movimento, e 0 aquario é tao mintsculo. Mal andamos um pouco damos de caras com a cauda ou com a cabeca de outro individuo igual a nés. Surgem contrariedades, lutas, fadiga. O tempo sente-se menos quando estamos quietos. Foi a sua quietude que fez com que me inclinasse fascinado a primeira ve, que vi os axolotl, Por algum obscure motivo, pare- ceu-me compreender a sua vontade secreta de abolir 0 espaco € © tempo com uma imobilidade indiferente. Depois entendi melhor a contraccao dos brénquios, 0 tactear das finas patas nas pedras. A natacdo repentina (alguns deles nadam com a simples ondulacao do corpo) provou-me que eram capazes de evadir-se desse torpor mineral em que permaneciam horas a fio. Os seus olhos, sobretudo, obcecavam-me. Ao lado deles, nos demais aquarios, diversos peixes mostravam-me a simples estupidez dos seus belos olhos semelhantes aos nossos. Os olhos. dos axolotl falavam-me da presenca de uma vida diferente, de outra maneira de olhar. Colando o meu rosto ao vidro (as vezes © seguranca tossia, inquieto) procurava ver melhor os diminu- tos pontos dureos, essa entrada no mundo infinitamente lento | remoto das criaturas rosadas. Era initil bater com 0 dedo no vidro, diante das suas caras. Nunca se distinguia a menor reac- cao. Os olhos de ouro continuavam a arder com a sua doce e terrivel luz, continuavam a olhar-me desde uma insondavel pro- fundidade que me causava vertigens. E, no entanto, estavam perto. Soube-o antes disto, antes de serum axolotl, Soube-o no dia em que me aproximei deles pela primeira vez. Os tracos antropomorficos de um macaco 130 AXOLOTL. revelam, ao contrario do que julga a maioria, a distancia que ha entre eles e nés. A absoluta falta de semelhanca dos axolo- des com o ser humano provou-me que o meu reconhecimento cra valido, que ndo me apoiava em analogias faceis. Apenas as maozinhas... Mas uma lagartixa também tem maos e em nada se parece connosco, Eu julgo que era a cabeca dos axolotl, essa forma triangular rosada com os olhinhos de ouro, Aquilo olhava e sabia. Aquilo protestava, Nao eram anim Parecia facil, quase Obvio, resvalar na mi a ver nos axololl uma metamorfose que nao conseguia anular uma misteriosa humanidade. Imaginei-os conscientes, escra- vos do seu corpo, infinitamente condenados a um siléncio jabissal, a uma reflexdo desesperada. O seu olhar cego, aquele diminuto disco de ouro inexpressivo e no entanto terrivel- mente licido, penetrava-me como uma mensagem: «Salva-nos, salvacnos.» Surpreendia-me sussurrando palavras de consolo, ansmitindo pueris esperancas. Eles continuavam a olhar para mim, iméveis. De sttbito, os raminhos rosados dos brén- quios aprumavam-se. Nesses instantes eu sentia como que uma lor surda. Talvez eles conseguissem ver-me, ssim, is, itologia. Comecei talvez captassem © meu esforco de penetrar nas suas impenetraveis vidas. Nao sram seres humanos, mas em nenhum animal tinha encon- trado uma relacdo tio profunda comigo. Os axololl as vezes pareciamn ser testemunhas de qualquer coisa ¢ as vezes pare- clam ser horriveis juizes, Sentia-me pouco nobre diante deles. Havia uma pureza tao assustadora naqucles olhos transparen- es. Exam larvas, mas «larva» quer dizer «mascara» e também -fantasma». Por detras daquelas caras astecas, inexpressivas e © entanto de uma implacavel crueldade, que imagem espe- va a sua hora? Temia-os. Creio que nao prescindiria da proximidade de utros visitantes e do seguranca, que nao me atreveria a ficar zinho com eles. — Vocé come-os com os olhos — dizia-me rindo o segu- mca, que devia supor-me um tanto ou quanto desequili- ado. Nao se apercebia que eram eles que me devoravam “tamente com os olhos, num canibalismo de ouro. Longe do 131 JULIO CORTAZAR aquario nao fazia outra coisa sendo pensar neles, era como se me dominassem 4 distancia. Cheguei a ir vé-los todos os dias, € 4 noite imaginava-os iméveis no escuro, adi jantando lenta- mente uma mao que de stibito encontrava a de outro. Talvez os seus olhos vissem em plena noite e o dia se prolongasse para eles indefinidamente. Os olhos dos axolotl nao tém palpebras. Agora sei que 0 que aconteceu nao teve nada de estranho, que era forcoso que aquilo sucedesse. Todas as manhas, ao inclinar-me sobre o aqudrio, o reconhecimento adensava- -se. Eles estavam a sofrer, e cada fibra do meu corpo enten- dia esse sofrimento amordacado, essa tortura rigida no fundo da 4gua. Velavam alguma coisa, um remoto império aniqui- lado, um tempo de liberdade durante o qual o mundo fora dos axolotl. Uma tao terrivel expressao, que chegava a vencer a inexpressividade forcada dos seus rostos de pedra, tinha obrigatoriamente de carregar uma mensagem de dor, a prova dessa condenacdo eterna, desse inferno liquido que pade- ciam. Inutilmente, queria provar a mim mesmo que a minha propria sensibilidade projectava nos axolotl uma consciéncia nexistente. Mas tanto eu como eles sabiamos. Por isso, nao houve nada de estranho no que aconteceu. O meu rosto estava colado ao vidro do aquario, os meus olhos tentavam uma vez mais penetrar no mistério daqueles olhos de ouro sem iris ¢ sem _pupila, Via muito de perto a cara de um axolotl imével junto ao vidro. Sem transicao, sem surpresa, vi o meu rosto encostado ao vidro, em vez do axolotl vi o meu rosto encostado ao vidro, vi-o fora do aquario, vi-o do outro lado do vidro. Entao o meu rosto afastou-se ¢ compreendi. Havia apenas uma coisa‘estranha: continuar a pensar como antes, saber. Quando constatei isso, num primeiro momento, senti o horror daquele que € enterrado vivo e que desperta para o seu destino. Lé fora, o meu rosto voltava a aproximar-se do vidro, via a minha boca de labios contraidos pelo esforco de compreender os axolotl. Eu era um axololl e estava no meu mundo. O horror advinha — soube-o nesse preciso instante — de julgar-me prisioneiro num corpo de axolotl, transmi- grado para ele com 0 meu pensamento de homem, enterrado 132 AXOLOTL vivo num axolotl, condenado a mover-me licido entre criatu- ras insensiveis. Mas esse horror terminou quando uma pata me rocou a cara, quando quase sem se mover se aproximou de mim e vi um axolotl olhando-me, e soube que também ele sabia, sem comunicac’o possivel mas muito claramente. Ou eu estava também nele, ou todos nés pensavamos como um homem, incapazes de expressio, limitados ao esplendor dou- rado dos nossos olhos que contemplavam o rosto do homem colado ao aquario. Ele voltou muitas yezes, mas vem menos amitide agora. Passam-se semanas sem que ele apareca. Vi-o ontem, olhou- -me durante muito tempo e depois partiu bruscamente. Pareceu-me que ja nao esta tao interessado em nés, que obe- dece a uma rotina. Como a tinica coisa que faco é pensar, pude pensar muito nele. Considero que € possivel que no inicio tenhamos continuado ligados, que ele se sentisse mais do que nunca unido ao mistério que © obcecava. Mas as pontes estao cortadas entre nds, porque o que era a sua obsessio é agora um axoloil alheio 4 sua vida de homem. Julgo que nos primei- ros tempos eu era capaz de voltar de certo modo a ele — ah, apenas de certo modo — e de manter desperto o seu desejo de conhecer-nos melhor. Agora eu sou definitivamente um axolotl, € se penso como um homem é s6 porque qualquer axo- foil pensa como um homem dentro da sua imagem de pedra rosada. Julgo que cheguei a comunicar-lhe algumas destas coi sas nos primeiros dias, quando ainda era ele. E nesta solidio final, 4 qual ele ja nao regressa, consola-me pensar que tal- vez venha a escrever sobre nés, julgando imaginar um conto venha a escrever tudo isto sobre os axolotl. 133

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