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PATRIMONIO CULTURAL EM. DISPUTA: CONSIDERACOES ACERCA, DAS PRATICAS COLONIZADORAS NOS PROCESSOS DE PATRIMONIALIZAGAO Patricia Rangel* Joao Paulo Amaral** Resumo: O campo patrimonial € flanqueado por incessante disputa politica e contribuigdes das mais diversas dreas de conhecimento. As tiltmas décadas testennmharam a ampliagdo da nocdo de patrinénio cultural, tendo por base, por wm lado, uma definigao de cultura como mods de vida e representagées de mundo e, por outro lado, o principio do relativismo cultural de respeito as diferemes formas culturis, 9s valores e referéncias de cada grapo, que devem ser compreendidos a partir de seus contextos. Neste trabalho, buscamos lancar um olhar critica as préticas eurocéntricas e masculinas no processo de patrimonializacdo, explorando proposias possibilidades a partir de metodologias articipanivas que tictuam a perspectiva dos grupos subaiternizados, inspirados pelas iniciativas de co- labor, de pesquisa-acio participativa e pesquisa descotonizada militante levadas a cabo por Chenira ‘Mohanty, Mercedes Dominguez ¢ Levva Solano Xochitl. Como exemplo, analisamos brevemente a ‘implamacao do INRC da viola de cocho a partir dessa perspectiva Palavras-chave: Patrinvonio cultural. Teoria decofonial. Pesquisa-acao participariva, Abstract: Cultural heritage is a field flanked by Political dispute and contributions fromseveral subject areas. In the last decades, the notion of cultural herltagehasbeen increasingly expanded on ‘one hand based on a broader definition of culture as *Universidade de Sa0 Paulo - USP, ways of life and world representations, and, on the ‘Sao Paulo, SP. Brasil. other, due to the cultural relativism principle, and Faculdade dle Filosofia, Letras e Cigncias Humans its starements about respecting different cultural (FFLCHIUSP) e Lateinamerika-Institut/Freie Universitat Berlin, forms, values andreferences, which should be Pesquisadora Fapesp de pos-doutorado understood rom their specific contexts. In this E-mail: rangel@zedat.fu-berlinde paper, we seek to lunch a critical glance at Eurocentric and patriarcal practices in * Universidade Federal do Espitito Santo -UFES, _patrimonialisation process, inspired by iniratwes af Vitoria, ES, Brasil co-labor, participatory research and Mestre em Preservagao do Patriminio Cultural decolonialresearch carried out by Chandra (PEP/Iphan) Mohenty, Mercedes Dominguez and Leyva Solano Pesquisador colaborador no Organon: Nucleo de chit. 4s an example, we briefly analyze the INRC Estudo, Pesquisa e Extensto em Mobilizagies Sociais. implementation of the viola-de-cocho from this E-mail: joaoppdoamaral@gmail.com perspective. * Revista Memorare, Tubarao, SC. v. 4, 1, p. 19-44 jan/abr. 2017, ISSN: 2358-0593. | Keywords: cultural heritage, decolontal theory, participatory action research, 1. Introdugio Este artigo apresenta reflexdes desenvolvidas em uma dissertagao de mestrado' e algunas colocagdes feitas pelos autores em trabalho anterior”. © objetivo aqui é, com base na revisao bibliogrifica realizada na mencionada dissertag4o, explorar propostas e possibilidades de construgio do Patriménio Cultural a partir de metodologias participativas baseadas em teorias anti-patriarcais e que incluam a perspectiva de grupos subalternizados, inspiradas pelas iniciativas de co-fahor, de pesquisa-agiio parti e pesquisa descolonizada ativista (DOMINGUEZ, 2012; XOCHITL, 2008), Para tanto, foi necessario discutir a constituigdio do campo patrimonial no Brasil a partir de uma perspectiva critica, atentos ao fato de que este é um tervitorio flanqueado or incessante disputa politica e constante transformagao, tendo as titimas décadas testemunhado uma prolifica aproximagao com as Cigneias Sociais, observada ua ampliagao da nogao de patriménio cultural (BRASIL, 1988; UNESCO, 1989: BRASIL. 2000; UNESCO, 2005), tendo por base, por um lado, uma definigao de cultura como modos de vida e representagdes de mundo (0 que inelui o reconhecimento da dimensio material dos bens culturais) e, por outro lado, o prineipio do relativismo cultural de respeito as diferentes formas culturais, aos valores e referéncias de cada grupo, que deve ser compreendidos a partir de seus contextos. Cientes de que © Patriménio Cultural é ademais, um campo disciplinar recipiendario de contribuigdes das mais diversas areas de conhecimento, buscamos revisar algumas narrativas oficiais e alguns dos valores basilares que sustentam e reproduzem hierarquias, silenciamentos. e opressdes, dimensdes especialmente probleméticas do Patriménio Cultural aos olhos das teorias feministas € dos estudos subaltemos e de-coloniais (LANDER, 2003; CASTRO-GOMEZ; GROSFOGUEL. 2007; LEYVA; SPEED, 2008; MIGNOLO, 2010). Nesse diapasio, organizamos este artigo em trés sees: 0 primeiro momento trata de um rapido esclarecimento sobre os pressupostos que orientam nossa reflexdi a segunda parte compreende a etapa inicial da pesquisa descolonizada (a desconstrugao), reunindo trés questionamentos que nos + Amaral 2015) > Rangel ¢ Amaral (2014). > Revista Memorare, Tubarao, SC, v. 4,u, 1, p. 19-44 jan/abs. 2017. ISSN: parecem os mais urgentes ao nosso campo de conhecimento. A iiltima parte representa um esforgo em avangar para a segunda etapa da pesquisa descolonizada (constrnir conhecimento em outros moldes), tratando das possibilidades que nos parecem relevantes para repensar 0 Patriménio Cultural. Como exemplo, analisamos brevemente a implantagio do Inventério Nacional de Referéucias Cultais - INRC da viola de cocho a partir dessa perspectiva, Apesar de o foco do trabalho ser uma critica mais ampla (e, a0 mesmo tempo, preliminar) sobre os processos de patrimonializagao do geral, consideramos titi ilustrar a problematizagdo a partir de um caso conereto. Por fim, ofereceremos algumas consideragdes e concludes A proposta, obviamente, no se esgota aqui. Espera-se, contudo, que © artigo seja til e que novas reflexdes sejam feitas e acumuladas, de forma a enriquecer os entendimentos e fomentar novas formas de gestiio das politicas piiblicas sobre os patriménios culturais. Registramos, como fizeram Leyva&Speed (2008) a seu tuo, que a ctitica decolonial nao é nova, Nosso artigo pretende somar argumentos ao projeto de produgao de conhecimento a partir das margens e tem como ambigao contribuir para desafiar a ciéncia ¢ a politica colonialista que ainda sio hegeménicas em nossas percepgdes, reflexdes e praticas no campo patrimonial, 2. Pontos de partida: pressupostos centrais de nossa reflexiio critica Neste artigo, buscamos nos aproximar de perspeetivas que muito tém a oferecer a reflexo sobre patriménio cultural, mas que ainda nao foram. satisfatoriamente exploradas e apropriadas pelos especialistas. Acompanhando o esforgo de superagao do ewocentrismo e celebragao da pluralidade e da diversidade cultural, preocupamo-nos em compreender alguns elementos nos quais o Patriménio Cultural se sustenta e que sao perpassados por relagdes de poder, reafirmagao de hierarquias, subaltemidades ¢ pelo silenciamento da polissemia sob um discurso homogeneizador de nagao. Como assinalam Anibal Quijano (2014) e Enrique Dussel (1994), colonialismo se refere ao processo de constituigiio de uma estrunura de poder que implicou na formagao de relagdes socais intersubjetivas, findamento de um novo tipo de poder que daria as bases da sociedade como a conhecemos. Ainda que intimamente vinculado ao colonialismo, a colonialidade, por sua vez, ¢ apresentada por Quijano como wn conceito PROG Nebo oa mee eva Menor, Toba, SC, 6-41 ,p 1844 jane, 2017 SN aS8E95 distinto, baseada na imposigao de uma classificago social, notadamente de base racial/ética (¢ a qual acrescentamos, de género), como findamento de um sistema de relagdes de poder que opera nas mais diversas dimensdes da vida (Quijano, 2014), Enquanto o colonialismo denotaria uma relagdo politica e econémica de dominagao colonial de um povo ou nagio sobre outro, a colonialidade se refere a um padrdo de poder que nao se limita as relagdes formais de explorag3o ou dominagao colonial, mas envolvem também as diversas formas pelas quais as relagdes intersubjetivas se anticulam a partir de posigdes de dominio e subaltemidade. Neste sentido, a colonialidade sobrevive ao colonialismo, podendo ser observada nas relagdes de aprendizagem, no senso comum e na alto-imagem dos povos (Ballesteros, 2003, p. 131). A partir destas questdes, entendemos que aos patriménios cutturais subjazem discursos construidos em tomo da meméria e do esquecimento e a partir dos quais podemos refletir sobre as relagdes de poder ao longo do tempo e 0 proceso de 10, entretanto, coustrugao e preservagio de marcos simbélicos destas relagdes. Tal qu. nao nos parece apenas cognitiva ou discussiva, sendo que também epistemolégica e politica, dizendo respeito a legitimidade atribuida aos diferentes discursos € memérias sobre os bens culturais, Desta forma, o patriménio cultural nao é neutro € tamponco é meramente técnica a atividade preservacionista - afinal, nada que ¢ social pode ser compreendido por uma légica exdgena ao fimcionamento da sociedade, como aponta Moutfe (2000) Até bem recentemente, a politica patrimonial brasileira nos parecia um lugar privilegiado para novas praticas de gestio e organizagao e para que o saber académico acoplasse o saber popular na geragao de couhecimento sobre as manifestagdes culturais. Neste sentido, pretendemos refletir sobre a aproximagao da questao patrimonial com uma nova relagao epistemolégica ¢ de poder, incluindo os chamados detentores das manifestagdes culturais na gestio das politicas piblicas e na construgao de conhecimento sobre suas priticas e saberes, 3. A primeira etapa da pesquisa descolonizada: deseonstruindo o Patrimonio Cultural PROG Nebo oa mee eva Menor, Toba, SC, 6-41 ,p 1844 jane, 2017 SN aS8E95 Isto posto, passemos a empreitada desta seco, que comesponde a primeira etapa da pesquisa descolonizada, nos termos de ChandraMohanty (2008), Segundo a autora, este tipo de investigacio possui dois momentos: 0 primeiro & negative (de desconstrugao © desmantelamento da légica de pesquisa eurocéntrica) € 0 segundo, positive (de coustrugio e criagdo). A epistemologia cientifica e a légica modema ewrodescendentes so limitadas em fungao de, tomando de empréstimo as reflexdes de Boaventura de Sousa Santos (2008), serem dominadas pela razio metonimica, ineapaz de aceitar que a compreensio do mundo ¢ muito maior do que a compreensio eurocéntrica dele. b ste sentido, € necessiio propor outro modelo de construgio de conhecimento que descentralize a propria razio como a concebemos, quigé algo como a sociologia sentipensante de que falava Fals Borda (2009) ou, como apresenta Catherine Walsh (2009), na possibilidade de considerarmos os sentimentos, artes, saberes ¢ priticas populares ocultados ¢ subalternizados como aparato politico e existencial nao 86 legitimo, como central parapensarmos novos modelos de construgao de saber e pritica politica Antes, porém, € como primeiro momento, elencaremos trés problemas que nos parecem centrais 4 compreensao do Patriménio Cultural no Brasil em outros moldes: um é de ordem epistemolégica, 0 segundo é histarico e 0 ‘iltimo, institucional. Todos, obviamente, so problemas politicos ¢ imbricados, tratados aqui separadamente para fins analiticos. Primeira critica: 0 problema etimolégico do uso de “patriménio” para falar da cultura que queremos viva A ctimologia, como bem escreven Cléudio Moreno (2013, p. 52), ao estudar significado inicial das palavras, diz menos sobre uma suposta “verdade originaria que ficou encoberta sobre 0 manto do tempo”, e mais sobre as concepgdes de mundo € crengas de nossas/os antepassadas/os e sobre nés mesmasios, quando nos debrugamos sobre voedbulos ainda em uso. Destarte, 0 esforgo de realizar uma anélise critica do que se pensa, produz e escreve no campo do patriménio cultural tem como primeiro desafio refletir sobre 0 termo Parriménio. Como se sabe, sua origem é o latim parrimonium,que significa heranga patema (Vogt, 2008) ou tudo o que pertence ao pater, pai (FUNARI: Biliion 5 mee Revista Memorare, Tubarao, $C. v. 4, n. 1, p. 19-44 jan./abs. 2017. ISSN: 2358-0593, PELEGRINI, 2009). Pater, neste caso, nao se refere ao genitor (palavra que € grafada da mesma maneira em portugnés e latim), mas a uma figura juridiea definida pelo antigo direito romano: 0 senior, aquele cuja vontade pessoal é lei, o que tem poder de vida e morte sobre todos os que formam seu dominio (CHAUI, 2001). Patria e patriménio, portanto, referem-se etimologicamente ao poder pattiarcal e ao que est sob seu dominio A partir deste detour etimol6gico, atentos a0 fato de que todas as ideias, palavras € coisas témn significado ¢ histéria, como alertou Joan Scott (1990), levantamos duas questdes: ndo seria problematico que as representagdes culturais que herdamos e que pretendemos transmitir as geragdes futuras sejam vinculndas a um temo exclusivamente associado ao masculino? E adequado falar de um bem publico (e, portanto, coletivo e indivisivel) no sentido de heranca, legado material, propriedade privada e senhorial? Apontaremos em seguida algumas ponderagdes. As ‘eorias feministas certamente responderiam 4 primeira pergunta negativamente, discorrendo sobre a naturalizagio dos paddies institucionalizados de valores culturais que privilegiam as masculinidades (FRASER, 1986 ¢ 1997). Por ser a cultura expresso das formas de vida, das associagies soviais, associd-la patrimoniun, a0 pater e a0 universo masculino desencadeia consequéncias que ndo podem ser ignoradas. A capacidade destrutiva da concepgio androcéntrica (no sentido de invisibilizar as existéncias @ experiéneias nio-masculinas) esta justamente em seu exercicio cotidiano e nos processos de socializagaio mais basicos de um sistema de crengas que naturaliza 0 masculino como universal Esse referencial tem impactos ditetos sobre a distribuigdo de recursos de poder e sobre as formas em que homens e mulheres sao representados coletivamente. Nao foi a toa que a semidtica politica dedicou mmita atengao a0 recurso narrative como instrumento de poder: parte-se do principio que ¢ necessario narrar para existir, defender e representar algo para que esse algo adquira existéncia (AVELAR, 2001). A universal referéncia androcénttica situa 0 feminino em posigao de inferioridade, o que obviamente se desdobra na utilizagao de palavras e reforga assimétricas relagdes de poder, em un processo de retroalimentaco. A supremacia masculina se materializa nos recortes dados a Historia, nos papéis ¢ padrdes sociais, no trato cotidiano entre as pessoas e, obviamente, na linguagem, PROG Nebo oa mee eva Menor, Toba, SC, 6-41 ,p 1844 jane, 2017 SN aS8E95 Raramente se questiona o uso do masculino em plurais que englobam substantivos biformes, heterdnimos ¢ uniformes, assim como poueo se problematiza a regra de registro dos verbetes em dicionérios de lingua portuguesa, nos quais os adjetivos sao definidos tnicamente em sua forma masculina (encontra-se, por exemplo, as palavras “alto”, “bonito” e “rapido”, nunca “alta”, “bonita” e “rapida”). Nesse sentido, Carole Pateman (1988) adverte sobre o uso da palavra htomem para fazer referéneia a Jnmanidade ¢ providencia exemplos de como as mulheres foram deixadas de lado na historia das instituigdes sociais e culturais - historia essa que pertence ao campo da retérica e da politica, A mesma autora registra que mulheres silo ensinadas a nao se sentirem ofendidas pelo uso de uma linguagem masculina (*homem” significando “ser humano”, “pattiménio” significando “propriedade” ou “legado”, ‘hombridade” significando “cariter integr * ou “coragem”, sé para citar poucos exemplos), mas que no devem usar palavras femnininas para fazer referéncia a coisas universais’. A supremacia masculina se materializa também no apagamento das experigncias das mulheres ¢ na desvalorizagao do conhecimento por elas construido em detrimento de uma ciéncia positivista, androcéntrica e colonial com presungdes de objetividade. Por nao reconhecerem 0 patriarcado como elemento estruturante da sociedade, as teorias ¢ metodologias tradicionais dificultam a realizagao de estudos que busquem compreender a participagaio das mutheres na vida social e as atividades que sio determinadas pelo género (HARDING, 1987). Por outro lado, vertentes do feminismo (principalmente a teoria do ponto de vista - szandpointiheory, como Donna Haraway) argumentam que apesar de toda versio da realidade poder ser considerada verdadeira, grupos ¢ individuos subaltemos acabam tendo uma visao privilegiada no sentido de perceber e problematizar as estruturas de dominagao (como o patriarcado e © racismo) que Ihes ; SPEED, 2008). Dai a relevancia das teorias feministas: elas revelam distorgdes, exclusdes, oprimem, 0 que nao ocorre com os grupos dominantes (LEYV. contradigdes e transcendem as fronteiras das “teorias verdadeiras”, focando em tensdes/desigualdade se privilegiando os estudos sobre a coletividade feminina como ‘um grupo politicamente relevante (MACHADO, 1994). Tal campo seria orientado por 2 A autora Jembra que quando sufiagistas inglesas utilizaram a palavra “unulher” significando “ser Jnumano” para defender @ lei de sufiaaio feminino, em 1867, 0 mesino argumento foi rejeitado. PROG Nebo oa mee eva Menor, Toba, SC, 6-41 ,p 1844 jane, 2017 SN aS8E95 ‘uma légica denominada por Haraway de “objetividade feminista” ou “saberes situados” uma objetividade possivel, nao transcendente, como aquela proposta pela ciéneia positivista, que trata do real enquanto objeto fixo. Ou seja, 0 foco & a possibilidade de um didlogo localizado, onde 0 sujeito fala e explicita a posigdo de onde observa o mundo e rete informagdes para analisar realidades ou discursos, Trata-se de um didlogo entre um sujeito situado e um objeto que possui fronteiras delimitadas a pautir daquele com quem se dialoga Retomando a segunda pergunta (“8 adequado falar de um bem piblico no sentido de heranca?”), cabe enfatizar que a nogao original de pattiméuio nao é publica: © dono do patrimonium é o senhor, 0 chefe (pater) que detém a propriedade absoluta da terra, das plantagdes, do gado, dos edificios e de tudo mais que nela exista (CHAUI, 2001). Neste sentido, como se daria a apropriagao dos patriménios culturais vinculados as memérias do poder por parte dos que mmea tiveram patriménio ou poder? Para refletir sobre estas questdes, valendo-nos ainda do mote etimol6gico, vale lembrar que 0 pensamento social brasileiro, notadamente nas figuras de Raymundo Faoro, Sergio Buarque de Holanda, Oliveira Vianna ¢ Florestan Fernandes e a partir de uma tipologia weberiana das formas de dominagao (no interior da qual se conceitua o patriarcado € o patrimonialismo) destacam como o patriarcado e a dominagio patrimonial se mantiveram praticamente inalterados por un periodo da histéria brasileira que vai, pelo menos, até 0 Estado Novo (1937-1945), momento em que se finda o SPHAN‘. O patriarcado e o patrimonialismo conformaram uma estrutura de poder sobre a qual se delineow a cultura politica e 0 Estado brasileiro, desenvolvendo “atavismos ¢ arquétipos institucionais tipicamente patriarcais” (SILVEIRA, 2006, p. 7). A parte as adaptacdes a que cada autor submeteu 0 conceito weberiano original, em virtude da interpretagao que davam as. singulatidades do. processo historieo brasileiro de formagao do Estado e da nagao, em geral destaca-se as implicagdes transformagoes da ordem estamental e das relagdes de dominagao patrimonial existentes em Portugal e as implicagdes deste processo histérico para a cultura politica brasileira, notadamente no que se refere a relagao da populag4o com os que controlam o poder local ¢ do acesso ou vineulos da populagdo com o Estado. Em linhas gerais, gragas a * Servigo do Patriménio Historico ¢ Astistico Nacional, fimdado em 1937, atual IPHAN, Instituto do PatrimiOnio Historico e Artistico Nacional. Biliion 5 mee Revista Memorare, Tubarao, $C. v. 4, n. 1, p. 19-44 jan./abs. 2017. ISSN: 2358-0593, essa composigao estrutural, a populagao brasileira nao participaria diretamente na vida politica, tendo acesso a ela apenas em atividades subordinadas. A cultura politica brasileira seria mareada, por um lado, pelo alheamento e desinteresse pela politica por parte da populagaio em geral e, por outro lado, pela crenga de que 0 exercicio do poder politico seria parte de privilégios inaliendveis de detenminados setores. As origens de tal estrutua datam do inicio da empreitada colonizadora de Portugal, cuja base foi a familia patriarcal centrada na unido do homem branco ¢ da mulher indigena (SOUZA, 2006). A familia entdo reunia em si a totalidade da sociedade, agrupando tanto o elemento dominante — o senor ¢ sua familia — quanto os subaltemos ~ bastardas/os, dependentes e escravasos. A partir deste modelo definiram- se as bases da politica e da cultura da sociedade colonial, na qual 0 pater era a autoridade maxima, e onde os grupos politicos foram constituidos 4 imagem da familia patriarecal, na qual os vinculos biologics e afetivos uniam o chefe a seus/suas descendentes ¢ colaterais, fonmando wn todo (HOLANDA, 2006). A colonizagao portuguesa ~ a mais duradoura empreitada colonial europeia — trouxe especificidades a0 caso brasileiro. Seja em termos do proceso de constituigéo do Estado independente, seja no que diga respeito ao eurocentrismo e colonialidade em nossa cultura, como veremos, © Brasil se constitui como um pais virado ao mar Apesar de nao ser possivel realizar uma anilise histérica profimda neste artigo, consideramos essas questdes centrais 4 medida que auxiliam a interpretar a conformagdo de um universo seméntico por meio do qual, por sua vez, parte de nossa sociedade tem interpretado a si mesma ao longo do tempo, além de nos possibilitar refletir sobre as implicagdes das representagdes de cidadania (para usar wm tenmo anacrénico) historicamente institucionalizadas no Brasil. Nao se trata, portanto, de retérica ou embasamento histérico superficial, mas sim de uma breve recuperagao da historia e da forma como nogao de “patrimonium” foi (e ainda é empregada), indicando © quao problemitico é o uso do termo quando nos referimos a um bem piiblico, dado seu sentido de heranga”.Conhecer os processos ¢ interpretagdes sobre a formagio das instituigdes e da cultura politica brasileira contribuird para o entendimento das contimuidades e descontinuidades, potenciais e obstaculos a una politica piiblica tanto mais participativa e democratica Biliion 5 mee Revista Memorare, Tubarao, $C. v. 4, n, 1, p. 19-44 jan/abs. 2017. ISSN: 2 Segunda eritica: a invencdio de um passado cofonial europeu e catolico como um problema politico e histérico A década de 30 do século passado foi paleo de uma ampla reforma do Estado brasileiro que, iniciada durante o govemo coustitucioual, teve seu dpice a partir da instawagdo do regime autoritério, em 1937. Um conjunto de medidas, como a introdugao, em 1934, da obrigatoriedade do concurso piblico para cargos de carreira ou a elaboragdo do estatuto dos fimeionsrios piblicos, em 1939, so exemplos de uma reestruturagdo institucional e de uma reconfiguragao das estruturas de poder — com forte centralizagao em detrimento das oligarquias regionais ~ no bojo das quais se identifica, para além de um modelo de Estado, um projeto de nagio (SCHWARTZMAN, 2000; BOMENY, 1999: BARBALHO: RUBIM, 2007). Neste contexto, 0 Ministério da Educagdo e Satide (que abrigou o Servigo de Protegio do Patriménio Histérico e Axtistico Nacional), sob © comando de Gustavo Capanema de 1934 a 1945, tem lugar de destaque. Os primeiros anos de sua gesto so tempos de elaborago do Plano Nacional de Edueagai , langado em 1937, € no qual a educagdo aparecia como o meio de criar uma cultura nacional comum ¢ diseiplinar as sgeragdes, a fim de “produzir una nova elite para o pais. Uma elite catélica, masculina, de formagio clissica e disciplina militar”, segundo coloca Schwartzman (2000, p. 218). Neste projeto que Helena Bomeny (1999, p. 139) chama de a “criagao de um homem novo para um Estado Novo”, nas décadas de 1930 e 1940 surgem diversas instituigdes culturais que, por um lado, projetardo a nagdo e, por outro, construirdo para ela a ancestralidade que a justifique, como o Servigo Nacional de Teatyo, o Instituto Nacional do Livro, © Instituto Nacional do Cinema Educative, além do Departamento de Imprensa ¢ Propaganda que coordenava diversas areas, como radiodifusao, teatro, cinema, turismo ¢ imprensa (BARBALHO, 2007) Considerando-se os estudos de Chuva (2009), Rubino (1991) e Motta (2000), pode-se dizer que o periodo inicial de atuagio do SPHAN foi o periodo mais significativo na construgao e disseminagao de uma imagem e uma significagao sobre o patriménio histérico ¢ artistico nacional e sua gestio e que mio houve alteragdo nos critérios © na tipologia de bens tombados ao longo dos anos. Segundo a sintese > Revista Memorare, Tubarao, SC, v. 4,u, 1, p. 19-44 jan/abs. 2017. ISSN: proposta por Faleao (1984), ao analisar os bens tombados em nivel federal nas primeiras décadas de atuagao do drgao: indica tata-se de: a) momumento vinculado a experiéneia vitoriosa branca; ') monumento vineulado a experiencia vitoriosa da. religito eatolica: ©) monumento vineulado 4 experiencia vitoriosa do Estado (palacios, fortes, forums, etc) e na sociedade (sedes de grandes fazeudas, sobrados wibanos ete.) da elite politica e econdmica do pais. (FALCAO, 1984, p. 28 apud CHAGAS, 2008, p. 106). A constituigdo politica sobre os patriménios culturais no Estado brasileiro pode ser entendida, entao, desde 0 ambito mais geral de sua vinculagdo a uma estrutura de cultura e poder, apresentada acima, até seu atrelamento a politica educacional/cultural de formagao da nagao, levadas a cabo na primeira metade do século XX. Tendo em vista que a identificagao de valores culturais em determinados bens nao é automética, auto-evidente ou natural, quando uma expressio é eleita como patriménio cultural, nao se pode esquecer-se de quem o elegeu como tal, a partir de que valores, em nome de que interesses e de que grupos (FONSECA, 2003; CARSALADE, 2012). Silvana Rubino afirma que © SPHAN legen um Brasil antepassado que exclui alguns atores contemporineos a0 delimitar claramente de quem “descendemos”. Nao ¢ um discurso da superioridade branca, lusitana e crista conferido pela detragio do outro e simn pela sua exclusto, por meio da construgao de umn elo de ligacao com 0 passado que remete bisavés, antepassados ¢ ancestrais dignificados (RUBINO, 1996, p. 103), Neste sentido, vale notar que o esforgo de construcao de um passado colonial que se coadunasse com o projeto civilizatério modemo teve seguimento ao longo da historia do Instituto do Patriménio Histérico e Artistico Nacional - IPHAN e assim, décadas de priticas de preservagao patrimonial em tomo de um determinado sistema de classificagio significa mais que a disseminagio e popularizagio de categorias classificatérias, mas a sedimentago de concepgdes e de valores. Como coloca Alfonso Tones Carrillo, € a partir das verses do passado e do controle sobre a meméria que se estruturam identidades e se (re)definem relagdes de poder e possiveis visdes de futuro que perpassam a sociedade (CARRILLO, 2003, p. 199). E preciso, portanto, rever 0 passado para que escrevamos o futuro, sobretudo quando o passado colonial construido denota a colonialidade do patriménio, ocultando sujeitos primordiais da histéria e limitando os devires possiveis Terceira critica: 0 problema do personalismo na formagtio e desenvolvimento institucional do Iphan Lélia Coelho Frota — Foi 0 prestigio do Dr. Rodrigo, na realidade, que implantou o IPHAN de uma maneira definitiva... Judith Martins ~ Exato. Ele misturava amizade com trabalho, ¢ a gente, entdo, fazia por amor. Ganhava-se muito pouco, mas trabalhava-se com muito amor. E foi uma verdadeira alfabetizagao no setor, porque ninguém conhecia nada. © que os arquitetos recém-formados conheciam desse trabalho de restaurago de obras? Foi tudo aprendido aqui, na pritica, na propria execugio. Fazendo e aprendendo, (Entrevista a Judith ‘Martins, em Thompson, 2009, p. 31 e 34) Se toda teoria é feita para alguém e com algum propésito (Cox, 1981) ¢ a historia € escrita pelos vencedores, como afirmou George Orwell, a forma como é narrado © percurso de uma instituigdo diz muito sobre ela. As narrativas tradicionais sobre o desenvolvimento do IPHAN sugerem que a instituigdo foi coustruida com base nos feitos de gestores e intelectuais vanguardistas como Gustavo Capanema, Mario de Andrade e Rodrigo Melo Franco de Andrade. Excluem-se nessas natrativas a trajetoria de muitas pessoas que, ocupando diversas fimgdes (principalmente as desvalorizadas e corriqueiras), viabilizaram e estruturaram 0 rgio e sua rotina institucional. Produzir herois para protagonizar a histéria e apagar priticas e atores cotidianos é um mecanismo coerente com a légica do patriarcado. Basta observar a historia oficial da humanidade. que teve como narrador principal a coletividade masculina e, como objeto, os feitos de alguns homens considerados sublimes, para dar-se conta de que nossos relatos sao pautados pelas estruturas de poder hegeménico, atribuidas a elites masculinas ewropeias As equipes da fase inicial do érgio eram formadas por pessoas indieadas, majoritariamente intelectuais influenciados pelo Movimento Modemista ou ideologicamente afinados com as concepgdes vigentes. Desta forma, o instituto foi, ao mienos neste periodo inicial, idealizado e comandado por pessoas proximas a Rodrigo PROG Nebo oa mee eva Menor, Toba, SC, 6-41 ,p 1844 jane, 2017 SN aS8E95 P| (amigos e convidados), como Manuel Bandeira, Litcio Costa, Oscar Niemeyer. Carlos Drummond de Andrade, Alcides Rocha Miranda, José de Souza Reis, Luis Saia, entre tantos outros’. Dr. Rodrigo, como era chamado, é amplamente reconhecido pelo esforgo de organizar a atuagao do Servigo “sem esperar compensagdes ou reconhecimento”®, a ponto de ter inspirado termos como “rodriguismo” Gilberto Freyre) e “a ligdo de Rodrigo” (Liicio Costa), sindnimos de mérito e trabalho arduo. Nas primeiras décadas de existéncia, a estrutra € 0 projeto do org de preservagao patrimonial no Brasil foram instrumentalizados como propriedade pessoal, ‘uma vez que seus recursos” eram distribuidos segundo a vontade do pater ou chefe entre sua rede de vinenlos pessoais e com base em relagdes assimétricas de poder pautadas pelo apagamento de subaltemos, i.e., elementos intermediatios (os profissionais que se encamegavam das atividades menos prestigiosas) e mulheres — estas, ainda que ndo sejam exeluidas do mundo piiblico, sao inseridas nele com um status inferior. Ao interpretar as figuras protagonistas da chamada fase heroica do PHAN como patriarcas, faz sentido entender 0 apagamento de figuras, como Judith Martins, L yeia Martins Costa, Alda Pinto Menezes, Hanna Levy, Héleia Dias, Heloisa Alberto Torres, das quais pouco se ouve falar, apesar de terem contribuido consideravelmente para que © IPHAN se tomasse a instituigao que é hoje. Nas palavras de Carlos Drummond de Andrade: “Nada para D. Judith Martins, algm da ridicnla aposentadoria? Nem a medalhinha de mérito, concedida a tantos? Sera isto maneira de estimular novas Donas Judiths?” (1971). Nao pretendemos, com 0 exposto, realizar uma critica anactonica, mas sim colocar em perspectiva alguns lugares-comuns de nosso campo, que mexem com sentimentos de lealdade e com o imaginério sobre a instituigao. Ademais, como se pode ler em citagao feita por Schwartzman (2000), o ocultamento das mulheres, dos quais 0 mencionado acima é eufemistico, ainda que ilustrativo, fandamenta-se numa concepgao maior vigente época e cuja ancestralidade os patriménios consagrariam. 5 No mesmo sentido, aposentando-se em 1967, Rodrigo indicou seu auxiliar imediato para a Diresao do Patrimenio:o arqiteto Renato Soeiro, que lt permimesen por doze anos e manteve 4 politin que Dr Rodrigo imprimira ao orgao (Oliveira, 2008, p. 28). $"Trecho da Ata da 12* sesso ovdiniria do Conselho Consultivo do Sphan ‘Usamos 0 termo “recursos” ao longo do texto para fazer referéncia nao s6 ao sentido econémico, mas tambénn a elementos simbolics, cargos, capital socal Os poderes piiblicos devem ter em mira que a educagao, tendo por finalidade preparar 0 individuio para a vida moral, politica ¢ econémica da nagao, precisa considerar diversamente 0 homem e a mulher. [..] Assim, se 0 homem deve ser preparado com témpera de teor militar para os negécios e as Iutas, a educagio feminina tera outra finalidade que é 0 preparo para a vida do lar. [...] Ora, € a mulher que fianda e conserva a familia, como é também por suas maos que a familia se destréi. Ao Estado, pois, compete, na educagao que Ihe ministra prepara-la conscientemente para esta grave miso (CAPANEMA apiid SCHWARTZMAN, 2000, p. 123). A preservagiio do patriménio histérico ¢ artistico no Brasil nasce em contexto autoritério e aparece como estratégin estética de construgio de sentido e identidade. pritica qual subjaz um padrao eurodescendlente e que redundara ao longo das décadas em ocultamentos de memérias e seus sujeitos, situagdio que se expressa concretamente nas dificuldades encontradas no que diz respeito ao estabelecimento de uma politica participativa na gestao dos patriménios culturais no Brasil de hoje. Diferentemente da concepeio de politica patrimonial norteada pelo interesse piiblico entendido sob o ponto de vista do Estado, como subjaz ao Decreto 25/1937, que inaugura a pratica preservacionista no pais, a Constituigao de 1988 (ainda em vigéncia) referencia a perspectiva da politica pattimonial a partir dos div sos segmentos componentes da sociedade brasileira e apresenta a pau ago dos individuos e grupos que compéem uma manifestagao cultural como essenciais as diferentes etapas da politica patrimonial. O artigo 216 da atual Constituigao Federal define como patriménio cultural os bens materiais e imateriais “portadores de referéncia a identidade, a agio, a memoria dos diferentes grupos fonnadores da sociedade brasileira” Essa perspectiva de aprender a cultwa a partir de uma dimensao valorativa e referencial pode ser vista também como uma transigao do conceito de patriménio histérico e artistico para 0 coneeito de patriménio cultural, de forte eunho antropologico e que enfatiza a diversidade nao s6 da produgdo material, como também dos sentidos e valores attibuidos pelos diferentes sujeitos a bens e priticas sociais (GONCALVES, 2007), Nio obstante, sabe-se que nao sio todos os grupos sociais que possuem condiges de tansformar em patrimdnio os bens culturais que sejam referenciais para si, uma vez que é necessério mobilizar recursos para acessar as fervamentas das politicas piblicas sobre os pattiménios cultwrais. Por exemplo, além de PROG Nebo oa mee eva Menor, Toba, SC, 6-41 ,p 1844 jane, 2017 SN aS8E95 y 2 érgios piblicos vinculados 4 cultura, apenas associagdes formais da sociedade civil podem solicitar o registro de determinado bem cultural como patriménio do Brasil, © que exclui grupos que se associem de modo diverso do formato juridico eurodescendente, como populagdes tradicionais ou grupos diversos de matriz africana ou amerindia, cujos patriménios permanecerio periféricos A patrimonializagao de um objeto ou manifestagao cultural pode ser entendida como o processo de selegao e sistematizagao de um determinado aspecto da cultura, atvibuindo-lhe um valor diferenciado e sobre o qual se coustréi um diseurso do género técnico-cientifico. Aquela manifestagdo cultural, agora patrimGnio, passaria a ter, entdo, um sentido e valor novo, por um lado e, por outro, “subiirbios”, discursos/sentidas nao oficiais, nao sistematizados, oriundos do senso comum e da cotidianeidade da pritica cultural (GEERTZ, 1997). Como bem lembra o argumento da perspectiva social, de Iris Marion Young (2006), soviedades desiguais impdem experiéncias diferenciadas associadas & posigdo que as pessoas ocupam, Todas elas possuem uma perspectiva nica, fruto de suas experiéncias®. A perspectiva dos grupos dominantes, por sua vez, é tida como uma ndo perspectiva, como universal. Seria necessério, portanto, prezar pela presenga dos chamados derenores em todos os espagos de deliberagao para evitar a homogeneizagio de suas expressdes ¢ representagdes, visto que stias perspectivas so podem ser por eles oferecidas. Ao basear a politica de preservagio na nogio das referéneias culturais dos segmentos detentores dos bens, considerando que estas devam ser compreendidas a partir de seus contextos, a questdo patrimonial no Brasil de hoje suscita aquilo que Foucault (1999) chamou de a insurrei¢do dos saberes submetidos: a valorizagao de saberes que haviam sido desqualificados frente ao saber cientifico. Esta, por sua vez articula-se com a nogio de ecologia dos saberes (SANTOS, 2010), que parte do principio de que nao ha nogdes absolutas ¢ universais de ignorancia e conhecimento: todos os conhecimentos ignoram algo e todas as ignoréncias tém algo a ensinar. Segundo Mercedes Dominguez (2012), é buscando a combinagao de tipos distintos de conhecimentos que se pode encarar a ciéneia de forma contra hegeménica * Inseridos nela, estao opinides ou interesses — que podem ser representados — e perspectivas — que nao podem ser representadas por outros. Desia forma, Anne Phillips (2001) sugere que determinadas demandas sf mais bem protegidas quando sdo represeutadas por quem compattilha das mesinas experiencias Por fim, vale lembrar que a efetividade da ideia de “direitos culturais” pressupoe “a vigéncia de outros direitos (nao sé direitos politicos, os de primeira gerag4o, como os direitos econdmicos e sociais, de segunda geragtio) e a consciéueia da cidadania como valor” (FONSECY (idem) depende, desta founa, de uma cultura politica democratica, © que ainda nao 1996, p. 163). Sua implementagao, como destaca Cecilia Londres figura no horizonte de possibilidades do Ocidente na contemporaneidade. Se a propria concepgao de um patriménio cultural mais amplamente representativo é recente na historia institucional e juridica do estado brasileiro, o transito ¢ absorpdo deste conceito pelos diversos drgios do estado e sua apropriagdo por parte das diferentes esferas do poder piiblico que se imbricam na gestao patrimonial ainda & demasiado incipiente. Quanto mais lentamente o Estado, em seus diversos segmentos, tem metabolizado estas concepgdes, mais demoradamente se tem posto em pritica politicas piiblicas devidamente abrangentes. Quigd a experiéncia acunnulada possibilite reflexes promissoras e subsidios tanto para um entendimento quanto para a concepgao e conformagao de legislagao apropriada, no sentido de que quando nao for possivel aplicar ou aperfeigoar o direito estabelecido, que seja criada jurisprudéneia sui generis adequada a gestdo de um patriménio cultural mais representativo da sociedade brasileira em sua diversidade, 4. A segunda parte da pesquisa descolonizada: construindo novas metodologias Nesta segdo, trataremos do momento positivo da pesquisa descolonizada, que corresponde a construgito de propostas e sugestdes de encaminhamento que contribuam para reconhecer contribuigdes locais ¢ as estratégias altemativas de conhecimento. Urge fazé- lo a partir de uma perspectiva decolonial, tomando visiveis as experiéncias ¢ iniciativas de movimentos alternativos ¢ grupos subalternos, dando-Ihes eredibilidade. Para tanto, esforgar-nos-emos em refletir sobre uma perspectiva, métodos e procedimentos patticipatives, colaborativos e decoloniais na _construgio de conhecimentos sobre os bens culturais e as limitagées priticas encontradas no cotidiano de sua implementago e gestao Essa etapa deve ser adepta de uma desobediéncia epistémica as regras do couhecimento cientifico como o couliecemos, colonial e euroeéatrico por exceléueia, PROG Nebo oa mee eva Menor, Toba, SC, 6-41 ,p 1844 jane, 2017 SN aS8E95 abrindo caminho para a (te)construgdo de novas estratégias metodolégicas de fazer- conhecimento que adote as experiéneias dos grupos subaltemnizados, distingnindo 0 conhecimento oficial e de base eurodescendente dos conhecimentos outros, em uma virada epistemol6gica decolonial (giro epistémico descolonial) que os afaste da retorica e da Logica coloniais (MIGNOLO apud LEYVA: SPEED, 2008, p. 9). No que toca 0 campo preservacionista, apresentaremos aqui os principios de algumas metodologias participativas, colaborativas ¢ de-coloniais, associando-os aos pressupostos da atual politica patrimonial do IPHAN, tratando-os como lugar privilegiado para a construgao de conhecimento a partir de saberes niio hegeménicos e para uma gestao participativa e emaneipatéria sobre a politica patrimonial no Brasil. Esperamos, com essa proposta, realizar um exercicio que contribua para uma reflexdo acerca de uma concepgio e gest mais integradora e inclusiva dos patriménios culturais, Em 2004, 0 IPHAN publica um ato administrativo institucional (portaria 299/2004), a fim de orientar a formulagdo, implementagdo, acompanhamento e avaliago do Plano de Preservagao de Sitios Histéricos Urbanos. Tal instrumento partia do pressuposto de estabelecer a construgao de um proceso participativo entre sujeitos piiblicos e privados para a preservagao de sitios urbanos tombados como patriménio cultural do Brasil. Tal instrumento, ainda em vigor, no foi, contudo, implementado. Anos mais tarde, em 2011, 0 IPHAN publica 0 “Método para a Coleta e Sistematizagao de Informagao, Monitoramento de Gestio e Avaliagao de Resultados da Politica de Salvaguarda de Bens Registrados” [como patriménio cultural imaterial do Brasil], no qual traz a orientagdo de que os instrumentos de avaliagao sejam desenvolvidos sob a perspectiva dos segmentos sociais e tendo em vista a especificidade de cada situagao, contendo, ainda, algumas orientagdes basicas para subsidiar uma avaliagao mais ampla € o aperfeigoamento da politica pitblica sobre os pattiménios culturais Prevista © apresentada como fundamental no referido Método, uma avaliagao patticipativa das agdes de salvaguarda nao foi, contudo, desenvolvida. Neste sentido e quanto projeto epistémico e metodolégico emancipatério, buscamos aproximar aquelas iniciativas instituecionais na gestio dos patriménios culturais no Brasil das estratégias colaborativas de um projeto decolonial. Pensadas como um conjunto de priticas miultidisciplinares e compromissos intelectuais e éticos entre investigadoras/es profissiouais ¢ uma comunidade ou grupo intencionalmente criado para esta finalidade PROG Nebo oa mee eva Menor, Toba, SC, 6-41 ,p 1844 jane, 2017 SN aS8E95 (LEYVA; SPEED, 2008; DOMINGUEZ, 2012), as reflexdes acerca da pesquisa-agao & da pesquisa de co-labor encontram nas conceppdes atuais sobre os patriménios eulturais, no Brasil e sua gestdo lugar promissor para desenvolverem-se Uma das bases da pesquisa-agiio participativa € a proposta de que investigadora/es profissionais e conmidade identifiquem coujuntamente os problemas a resolver, deliberem ages a respeito ¢ avaliem aufonomamente o proceso. Por sua vez, segundo Xochitl Leyva Shannon Speed (2008, p. 52), sta experiéneia sobre a investigagao de co-labor consistiu na realizagao de um trabalho conjunto e continuo, desde a apresentagdio do projeto at8 a busca de estratégias especificas de trabalho, mantendo-se a pesquisa sempre aberta ¢ em constante construgao e transformagao coletiva e colaborativa. E neste sentido que as autoras se referem a estas experiéncias mais como “estratégias colaborativas” que um corpus metodolégico acabado. A nogio de referéncia cultural, central a concepgio de patriménio cultural vigente no Brasil hoje, aparece como uma forma de orieutar a gestio pattimonial, deslocando © foco dos bens em si para a dindmica social de atribuig’o de valores, o que significaria busear formas de se aproximar do ponto de vista daqueles que vivenciam diretamente as praticas culturais pattimonializadas, o que significa trazer a arena novos sujeitos e suas perspectivas como especialmente relevantes nas negociagdes de limites e chancelas na gestao sobre o patriménio cultural (FONSECA, 2003). Na pritica cotidiana, porém, evidencia-se a colonialidade e subaltemidade com que nao raro so inseridos novos sujeitos e objetos na politica patrimonial, reverberando nas limitagdes & implementagao mais eficaz das diretrizes que dizem respeito a uma politica participativa e gestio colaborativa na salvaguarda dos patriménios cultuais. Pela propria logica da colonialidade, reformas constitucionais e institucionais que incluam referéncias culturais mais amplas, buscando reconhecer patriménios culnurais representativos dos mais diversos segmentos formadores da sociedade brasileira, nao necessariamente levariio conquista e/ou consolidagao de outros direitos e a uma mais profimda e substancial mudanga na estrutura hegeménica sem que reflitamos sobre as relagdes intersubjetivas de dominagao e subaltemidade nas quais estamos imersos, Um caso conereto que temos observado em relagdo 4 salvaguarda de um patriménio cultural imaterial do Brasilé a viola-de-cocho, também objeto de estudo da dissertagdo de mestrado ua qual se baseia este artigo (AMARAL, 2015), confoune PROG Nebo oa mee eva Menor, Toba, SC, 6-41 ,p 1844 jane, 2017 SN aS8E95 P36 mencionado na Introdugao. Definida pelo IPHAN como um instrumento musical de forma e sonoridade sui generis, a viola-de-cocho é produzida na regiao da bacia do Rio Paraguai nos estados brasileiros de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, destacando-se como um instrumento fundamental em génetos musicais ¢ manifestagdes culturais, ligadas a seligiosidade e a ludicidade de parte da populagao do centro-veste brasileiro (IPHAN, 2008). Diferentemente de outros instrumentos musicais de uso popular confeccionados tanto por artesios tradicionais quanto em escala industrial, a viola-de~ cocho € produto exclusivamente artesanal, confeccionada com matérias-primas extraidas da fauna e da flora do pantanal mato-grossense, maior planicie inundavel, tendo seu modo de fazer sido inscrito no Livro dos Saberes como Patriménio Cultural do Brasil em 2005 Tivemos a oportunidade de acompanhar alguns desses processos, como parte da referida pesquisa de mestrado (AMARAL, 2015) € no ambito de consultorias pontuais. A presente segiio deste artigo, portanto, & perpassada também por relatos e impresses desenvolvidos a partir dessa vivéncia, Nas reunides realizadas para a elaboragio de ages de salvaguarda do modo de fazer a Viola-de-Cocho, no estado brasileiro de Mato Grosso do Sul, nos primeiros meses de 2012, estiveram envolvidos representantes de organizagdes culturais nao governamentais, representantes da fundagao de cultura municipal e detentores do bem cultural, Foram relatadas pelos presentes as dificuldades em tomo do processo de salvaguarda na regiao, notadamente apés o falecimento de uma gestora local, apontada como figura mobilizadora e que centralizava as agdes em torno daquele bem cultural. A primeira vista pareceu-nos que os participantes das reunides estavam emi wna relativa suspensio, como que 4 espera de uma nova figura aglutinadora © mobilizadora das acdes. A partir dai, diversas reunides foram pensadas especificamente na valorizagao de agdes realizadas pelos detentores autonomamente em suas realidades ¢ na distribuigdo de responsabilidades entre os gestores. cultrais. Esperava-se que ao longo daquele processo se fosse construindo e consolidando 0 empoderamento, a gestdo auténomae patticipativa, a sustentabilidade das agdes de Salvaguarda e a consequente ecrescente vitalidade e contimuidade das manifestagdes culturaisque compdem o universo da Viola-de-Cocho, pondo em contato e buscando dinamizar © aparato ténico-burocratico ¢ a relagdo entre os detentores, reavivando miemrias e dando andamento a parcerias diversas. Como saldo observarai-se, ao longo PROG Nebo oa mee eva Menor, Toba, SC, 6-41 ,p 1844 jane, 2017 SN aS8E95 P| daquele ano de 2012, novas adesdes e um principio de organizagao promissor, crescente € constante, ainda que lento. Porém era sempre flagrante o desconforto por parte dos detentores, quando nas reunides era mencionada constituigdo de um Comité Gestor. Isso porque os grupos que vivenciam as manifestagdes culturais relacionadas viola-de-cocho seguem se reunindo especificamente para apresentagdese celebragdes religiosas, mantendo a espontaneidade e auséncia de uma organizagao formal como caracteristica. Neste sentido, a participagdo nas reunides e deliberagdes aparecia com o cardter espontineo, desinstitucionalizado e pontual com o quall se reuniam os detentores para a realizagiio de suas priticas culturais. A parte as dificuldades institucionais em lidar com pessoas fisicas, a sequéncia das agdes evidencion a colonialidade e a sutileza de seus mecanismos, Segundo 0 Dossié de Registro do Modo de Fazer a Viola-de-Cocho como Patrimonio Cultural do Brasil, publicado pelo IPHAN: observa-se que a preservacao desse bem esti diretamente relacionada a twansmissdo permanente da tradi¢ao amusical: ao estimulo as novas geragdes de apreender e apreciar musicatidades diversas e aliernativas aquelas veiculacias pela indiistria co eneretenimento.” (IPHAN, 2009, p. 83, grifo nosso). Nao obstante estas recomendagdes, so recorrentes as iniciativas de aproximagao daquele instrumento as composigdes eruditasou a untsicas associadas as veiculadas pela indistria do entretenimento, desprivilegiando as praticas dos que vivenciam a manifestagao cultural e contrariando uma recomendagao central 4 salvaguarda, citada acima, Apesar da politica patrimonial vigente orientar a busca pela perspectiva dos diversos segmentos sociais componentes da sociedade brasileira, as agdes de salvaguarda ndo tém privilegiado as referéncias culturais identificadas, apesar das muamifestagdes de diversos detentores do bem cultural sobre a unusicalidade e sonoridade associadas a viola-de-cocho. Diversos quadros da administragao piblica, nas diferentes esferas do Estado, ainda se mostram insensiveis no que diz respeito as questdes relacionadas ao patriménio cultural dos subaltemnos. Por outro lado, tanto as instituigdes quanto seus quadros sao relativamente neéfitos no que se refere as recentes diretrizes e procedimentos em relagio ao patriménio cultural, notadamente no qne diz respeito a PROG Nebo oa mee eva Menor, Toba, SC, 6-41 ,p 1844 jane, 2017 SN aS8E95

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