You are on page 1of 93
Dee Lie Scanned with CamScanner ppesene rte rth cee Cd Sener ents cca rca) Rn cunt nD Pra tcs-cer Rn n moc Cia Re tau ne Msc) Pentre ecu ern k (Ree eRe oC CMO Ar nas) CORSO rice ec COR Rede Pree cece ke cise Esctitor poderoso, ¢ poderoso porque pensa PEE On Con CO iS Ree ene eter CMa) POC CRT Cte cue ec oa) Cer ee Na COR ca) Qo citerueeR coce Or Ug Ta) ‘da literatura que se mostra incapaz de responder, '20 desafio de ecoar seu tempo, este em que os hu- Carne ey em one nice Reece (rete Re eek Mau ue ened Cc ca em Deer) Cite Ne RODS ony Gooeeem Pensa cece nen tear) ‘converte o presente numa prisao onde os corpos (Cin ade tere Cane ad CPi eu Cec een MTR Conta ee tivos e criadores escritores desta época, parte (ew eC ee ence RCO ny Geers eter one Ont aetna nt) ‘global visto de seu lugar de partida: a populosa Scanned with CamScanner O GRANDE DESATINO mudangas climaticas eo impensavel AMITAV GHOSH tradugao Renato Prelorentzou quina Net Scanned with CamScanner i Para Mukul Kesavan, } em meméria do tornado de 1978 Scanned with CamScanner sumério Parte I: Histérias ++ 7 Parte II: Histéria «+ 97 Parte III: Politica ++ 129 Agradecimentos ++ 177 Notas «+ 181 Posfacio a edicdo brasileira +- 209 Scanned with CamScanner parte I Historias Scanned with CamScanner Quem consegue esquecer aqueles momentos em que uma coisa que parecia inanimada se revela viva de uma maneira repentina e até mesmo perigosa? Aquele instante, por exemplo, em que perce- bemos que 0 arabesco na trama de um tapete era, na verdade, 0 rabo de um cachorro e que, se o pisarmos, podemos levar uma mordida no tornozelo? Ou quando tocamos aquilo que parecia uma inocente trepadeira e descobrimos ser uma lagarta ou uma cobra? Ou quan- do um inofensivo tronco a deriva revela-se um crocodilo? Foi um choque desse tipo, imagino, que os criadores de O im- pério contra-ataca tinham em mente quando conceberam aquela cena em que Han Solo pousa a Millennium Falcon no que ele acreditava ser um asteroide - para entao descobrir que havia passado pela garganta de um monstro espacial adormecido. Recordar essa cena hoje, mais de 3s anos apés a realizagao do filme, é reconhecer que ela deixou de ser possfvel. Pois, se por acaso existir algum Han Solo em um futuro préximo ou distante, suas ideias sobre objetos interplanetérios com certeza serao di- ferentes daquelas que prevaleciam na California quando o filme foi feito. Os humanos do futuro certamente compreenderao, em relacdo a histéria de seus antepassados na terra, que apenas por um perfodo muito curto que durou menos de trés séculos, um numero significativo de seres da sua espécie acreditou que pla- netas e asteroides eram inertes. Meus ancestrais foram refugiados climaticos muito antes de o termo ser inventado. Eles vieram do que hoje é Bangladesh e seu vilarejo ficava as margens do Rio Padma, um dos mais importantes da regiao. A Scanned with CamScanner histéria, como meu pai contava, era mais ou menos assim: um dia, em meados da década de 1850, 0 grande rio de repente mu- dou de curso, inundando a aldeia; apenas alguns habitantes con- seguiram escapar para uma regido mais alta. Essa foi a catdstrofe que desterrou nossos antepassados: depois dela, eles comegaram ase deslocar para o oeste e nao pararam até 1856, quando se estabeleceram mais uma vez as margens de um rio, o Ganges, em Bihar. A primeira vez que ouvi essa historia foi durante uma nostalgi- ca viagem em familia, quando estévamos descendo o Rio Padma a bordo de um barco a vapor. Ainda era crianca e, olhando para aquelas 4guas turbulentas, imaginei uma grande tempestade, com coqueiros se curvando até suas folhas tocarem o chao. Vi mulhe- res e criancas correndo dos ventos uivantes e as 4guas subindo atrds delas. Pensei nos meus ancestrais amontoados em cima de um afloramento, vendo as 4guas levando seus lares. Até hoje, quando penso nas circunstancias que moldaram mi- nha vida, eu me lembro da forca destruidora que arrancou meus ancestrais de sua terra natal e os langou na série de jornadas que precederam — e possibilitaram — minhas préprias viagens. Quan- do olho para o pasado, o rio parece encontrar meus olhos, me fitando de volta, como se perguntasse: sera que vocé me reconhe- ce, onde quer que vocé esteja? Reconhecer é, como se sabe, passar da ignorancia ao conhe- cimento.' Nao se trata, portanto, de uma iniciagao. Nem exige troca de palavras: na maioria das vezes, reconhecemos em silén- * cio. E reconhecer nao é de forma alguma compreender aquilo que os olhos encontram; a compreensao nao precisa fazer parte do instante de reconhecimento. Oaspecto mais importante da palavra “reconhecimento’, por- tanto, estd na sua primeira silaba, que remete a algo anterior, uma consciéncia jé existente que possibilita a passagem da ignorncia ao conhecimento: o instante do reconhecimento ocorre quando Scanned with CamScanner um saber prévio lampeja diante de nés, promovendo uma mu- danga instantanea em nossa compreensao daquilo que é con- templado. Mas esse lampejo nao aparece espontaneamente; ele nao consegue se revelar sendo na presenca de seu outro perdido. Assim, o saber que resulta do reconhecimento nao é do mesmo tipo que resulta da descoberta de algo novo; ele surge sobretudo de uma confrontagao renovada com uma potencialidade que jé existe dentro de alguém.? Imagino que foi isso que meus antepassados viveram naquele dia em que o rio subiu para invadir sua aldeia: eles despertaram para o reconhecimento de uma presenca que tinha moldado suas vidas de tal modo que eles a consideravam um fato da realidade, como o ar que respiravam. £ claro que o ar também pode ganhar vida com uma violéncia stbita e mortal — como aconteceu no Congo em 1988, quando uma imensa nuvem de didxido de carbo- no irrompeu do lago Nyos e tomou as aldeias vizinhas, matando 1.700 pessoas e intimeros animais. No entanto, é mais comum que ele ganhe vida com uma insisténcia silenciosa — como os habitantes de Nova Délhi e Pequim sabem muito bem —, quan- do pulmées e seios da face inflamados provam mais uma vez que nao existe diferenga entre o fora e o dentro, entre usar e ser usado. Esses também sao instantes de reconhecimento, nos quais percebemos que a energia que nos rodeia, que flui sob no: sos pés e pelos fios internos das nossas paredes, que impulsiona ‘, nossos veiculos e ilumina nossas salas, é uma presenga abrangen- 4 w 7 te que talvez tenha seus propésitos particulares, sobre os quais nada sabemos. Foi assim que também eu tomei consciéncia da premente por meio de instantes de reconhecimento que me foram impostos pelo am- biente. Na época, eu estava escrevendo sobre Sundarbans, 0 vasto manguezal da Baia de Bengala, onde 0 fluxo de 4gua e lodo é tao grande que processos geolégicos que geralmente se desenvolvem proximidade de presencas nado humanas, ou sej Historias Scanned with CamS wee canner Sn SP no “tempo profundo” parecem ocorrer a uma velocidade na qual é possivel acompanhé-los semana a semana, més a més.? Trechos inteiros das margens do rio desaparecem da noite para o dia, as vezes levando consigo casas e pessoas. Mas, em outros lugares, surgem bancos de areia e, dentro de semanas, a costa se alarga varios metros. £ claro que muitos desses processos sio ciclicos. Porém, ja naquela época, nos primeiros anos do século 21, era possivel ver sinais de uma mudanga acumulativa e irreversivel no recuo das linhas costeiras e na constante intrusdo da 4gua do mar em terras que até entao eram cultivadas. Trata-se de uma paisagem tio dinamica que sua prdpria mu- tabilidade proporciona inimeros instantes de reconhecimento. Capturei alguns deles em minhas anotacdes daquela época, como nestas linhas escritas em maio de 2002: “Acredito que seja ver- dade que a terra aqui estd viva; que ela nao existe apenas, nem mesmo incidentalmente, como palco para a encenagao da histéria humana; que ela é [ela mesma] protagonista” Em outro lugar e em. outra anota¢ao, escrevi: “Aqui até uma crianga come¢a a contar uma historia sobre sua av com as palavras: ‘naquela época o rio nao passava aqui e a aldeia nao estava onde esta.” Ainda assim, no conseguiria falar desses encontros como epi- s6dios de reconhecimento se eu jé nao tivesse alguma consciéncia prévia do que estava testemunhando, talvez por experiéncias de infancia (como sair em busca da aldeia ancestral de minha familia), por memérias pessoais (como a de um ciclone em Dhaka, quando © pequeno acude que ficava atrés de onde moravamos de repente se transformou em um lago e invadiu nossa casa), pelas historias que minha avé contava sobre crescer as margens de um rio im- portante ou simplesmente pela insisténcia com que a paisagem. de Bengala se impe aos artistas, escritores e cineastas da regiao. Entretanto, quando chegou a hora de traduzir essas percep- gdes para o Ambito da minha vida imaginativa — isto é, para a ficgéo -, me vi enfrentando desafios de uma ordem totalmente Scanned with CamScanner diferente daqueles com os quais tinha lidado nos meus trabalhos anteriores. Naquela época, esses desafios pareciam se referir a0 livro que eu estava escrevendo, Maré voraz, mas agora, muitos anos depois, quando os impactos acelerados do aquecimento global comecam a ameacar a prépria existéncia de areas baixas como Sundarbans, parece que esses problemas tém implicagdes muito mais vastas. Acabei reconhecendo que os desafios que as. mudangas climaticas impdem ao escritor contempordneo, embo- ra especificos em alguns aspectos, se originam de um fenémeno mais abrangente e antigo: em iltima andlise, derivam das formas _ e convencoes literarias que moldaram a imaginacao narrativa : a ——eee ele periodo em que o lo de carbono na atmosfera estava reescrevendo o destino da Terra. 3. Nio é dificil demonstrar que as mudancas climéticas langam uma sombra muito menor no cenério da ficcdo literaria do que na discussdo publica. Basta dar uma olhada nas paginas de al- gumas resenhas de livros e periddicos literdrios conceituados ~ por exemplo, London Review of Books, The New York Review of Books, Los Angeles Review of Books, Literary Journal e The New York Times Review of Books. Quando o tema das mudangas cli- miaticas surge nessas publicagdes, quase sempre esté ligado 4 nao ficc4o; romances e contos raramente aparecem nesse horizonte. Na verdade, pode-se até mesmo dizer que a ficgo que trata das mudangas climaticas nao é, quase por definicdo, do tipo que os periédicos literérios respeitados levam a sério: a simples referén- cia ao assunto muitas vezes é suficiente para relegar um conto ou romance ao género da ficgao cientifica.* E como se, na imaginacao literdria, as mudangas climéticas fossem de alguma forma seme- lhantes a extraterrestres ou viagens espaciais. Scanned with CamScanner 1 Ha algo confuso nesse peculiar ciclo de retroalimentagao.5 Pois, sem dtivida, é muito dificil imaginar uma concepgio de se- riedade que nao consiga enxergar as ameagas que tém o poten- cial de mudar nossa vida. E, se a urgéncia de determinado tema realmente fosse critério para sua seriedade, entao, considerando ‘© que as mudangas climaticas de fato pressagiam para o futuro da Terra, elas com certeza deveriam ser a maior preocupacao dos es- critores do mundo todo — e creio que estamos muito longe disso. Mas por qué? Serd que as correntes do aquecimento global sao violentas de- mais para que possamos navegé-las nas barcas habituais da nar- ragao? A verdade, como agora se sabe muito bem, é que entramos em uma época na qual esses extremos se tornaram a norma: se certas formas literdrias nao conseguem enfrentar essas torrentes, entao elas estdo fracassando ~ e seus fracassos terao de ser to- mados como um aspecto do fracasso mais amplo da cultura e da imaginacao em geral, que esta no cerne da crise climatica. E claro que o problema nao surge da falta de informacao. Nos dias de hoje, decerto sio pouquissimos os escritores que con- tinuam alheios aos atuais disturbios nos sistemas climaticos de todo o mundo. Ainda assim, nao deixa de ser curioso que, quando 0s romancistas decidem escrever sobre as mudancas climaticas, quase sempre o fazem fora da ficcdo. Um bom exemplo é a obra de Arundhati Roy, que além de possuir um dos melhores estilos da prosa de nossos tempos, também é muito interessada e pro- fundamente esclarecida sobre o tema das mudangas climaticas. Todos os seus escritos sobre 0 assunto se encontram, porém, em varias formas de nao ficcao. Ou pensemos no exemplo ainda mais notavel de Paul Kingsnorth, autor de The Wake (O despertar], um romance historico muito admirado que se passa na Inglaterra do século 11. Kingsnorth dedicou varios anos de sua vida ao ativismo das mudangas cli- maticas antes de fundar o influente The Dark Mountain Project, * Scanned with CamScanner a “uma rede de eserltores, artistas € * pensadores ue pafaram Embora Kingsnorth ten tenha produzido um poderoso relato nao fic- cional sobre movimentos de resistencia globais, até a escrita deste livro, pelo menos, ele ainda nao publicou um romance no qual as mudangas climaticas desempenhem um papel importante. ‘Também venho me preocupando com as mudangas climaticas h4 um bom tempo, mas é verdade que, em meu préprio trabalho, © tema aparece na minha ficgdo apenas indiretamente. Ao pensar sobre o descompasso entre minhas preocupacées pessoais e 0 contetido de minhas obras publicadas, acabei me convencendo de que a discrepancia nao resulta de predilecdes pessoais: ela surge das formas peculiares de resistencia que as mudangas climaticas impéem aquilo que hoje se considera ficcao séria. 4, Em seu ensaio seminal “O clima da historia’, Dipesh Chakrabarty* observa que os historiadores terdo de revisar muitos de seus pres- supostos e procedimentos fundamentais nesta era de mudancas climaticas induzidas pelo homem, na qual “os seres humanos se tornaram agentes geolégicos, mudando os mais basicos processos_ fisicos da terra’? Eu iria a mais. Tonge e acrescentaria que o Antro- Poceno traz um desafio nao apenas para as artes e humanidades, mas também para os habitos de nosso senso comum e, mais do que isso, para a cultura contemporanea em geral. Nao hd duvida de que esse desafio surge, pelo menos em parte, das complexidades da linguagem técnica que serve como nosso principal meio de acesso para entender as mudangas climéticas. Mas tampouco pode haver divida de que esse desafio decorre também das praticas e dos pressupostos que not © as humanidades. Penso que identificar como isso acontece Historias 15 Scanned with CamScanner tarefa da maior urgéncia; pode ser a chave para compreender- mos por que a cultura contemporanea tem tanta dificuldade em lidar com as mudangas climaticas. Alids, talvez essa seja a questo mais importante que hoje confronta a cultura em sentido mais amplo — pois nao nos enganemos: a crise climética é também uma crise da cultura e, portanto, da imaginacao. ‘A cultura gera desejos — por veiculos e eletrodomésticos, por certos tipos de moradias e de jardins — que estao entre os princi- pais motores da economia do carbono. Nao é por amor ao metal ou ao cromo que um carro conversivel veloz nos cativa, nem por alguma compreensao abstrata de sua engenharia. O carro nos seduz porque evoca a imagem de uma estrada cortando a paisa- gem longinqua; pensamos na liberdade e no vento em nossos ca- belos;!° imaginamos James Dean e Peter Fonda acelerando rumo a0 horizonte; pensamos também em Jack Kerouac e Vladimir Nabokov. Quando vemos uma propaganda associando a imagem de uma ilha tropical A palavra “paraiso”, os anseios que se agitam em nés tém uma cadeia de transmissao que remonta a Daniel Defoe e Jean-Jacques Rousseau: a companhia aérea que nos levari ailha é s6 uma brasa dessa fogueira. Quando vemos um gramado verde regado com Agua dessalinizada em Abu Dhabi, no sul da California ou em alguma outra regido onde as pessoas tinham de gastar sua pouca 4gua com parciménia para cultivar uma tnica videira ou arbusto, estamos diante da expresso de um anseio que talvez tenha sido gestado nos romances de Jane Austen. Em certo sentido, os artefatos e mercadorias que esses desejos conjuram so, a0 mesmo tempo, expressdes e ocultagdes da matriz cultural que deu origem a eles. E claro que essa cultura esta intimamente ligada as historias mais abrangentes do imperialismo e do capitalismo que mol- daram o mundo. Mas saber de tudo isso ainda é saber muito pouco sobre as maneiras especificas pelas quais a matriz inte- rage com diferentes modos de atividade cultural: poesia, arte, Scanned with CamScanner arquitetura, teatro, ficgéo em prosa e assim por diante. Ao lon- go da histéria, esses ramos da cultura responderam a guerras, calamidades ecolégicas e crises de varios tipos. Por que, entdo, as mudangas climéticas se mostram tdo peculiarmente imunes as suas praticas? Sob essa perspectiva, as questées que confrontam os escritores e artistas hoje nao pertencem apenas a politica da economia do carbono; muitas delas também tém a ver com nossas préprias prdticas e com as maneiras pelas quais essas praticas nos tornam ctimplices do que fica oculto na cultura em sentido mais amplo. Por exemplo, se as tendéncias contemporaneas da arquitetura, mesmo neste periodo de aumento das emissées de carbono, favo- recem torres reluzentes de vidro e metal, seré que nao precisamos perguntar quais sao os padrées de desejo alimentados por esses gestos? Se eu, enquanto romancista, decido usar nomes de marca como elementos da descricao de personagens, sera que nai re ciso me perguntar em que medida isso me torna cumplice das manipulagdes do mercado? - Da mesma forma, acho que também € preciso perguntar: 0 que hé nas mudangas climéticas que faz com que sua simples meno leve & sua proscrigao daqueles territérios reservados & ficgao séria? E 0 que isso nos diz sobre a cultura em geral e seus padrées de evasio? Em um planeta consideravelmente alterado, quando a eleva- ¢40 do nivel do mar tiver engolido Sundarbans e deixado cida- des como Calcuté, Nova York e Bangkok inabitdveis,"" quando os leitores e visitantes de museus se voltarem para a arte ea literatura de nosso tempo, serd que eles nao procuraréo, pri- meiramente e com mais urgencia, os vestigios e os pressdgios desse mundo modificado que receberam de heranga? E, ao nao conseguir encontra-los, o que eles deverao - poderao — fazer sendo concluir que, em nosso tempo, a maioria das formas de arte e literatura se deixou atrair por modos de ocultagao que im- Historias ” Scanned with CamScanner pediam as pessoas de reconhecer a realidade de suas situagdes deploréveis? Muito possivelmente, entéo, esta época que tanto se congratula por sua autoconsciéncia sera conhecida como a época do Grande Desatino."* 5. Na tarde de 17 de marco de 1978, o tempo virou de um jeito estra- nho no norte de Délhi. Meados de margo costuma ser uma época agradavel nessa parte da India: 0 frio do inverno vai embora e 0 calor escaldante do verao ainda nao chegou; o céu fica claro e as moncées estéo bem distantes. Mas, naquele dia, de repente, apareceram nuvens escuras e rajadas de chuva. Logo depois veio uma surpresa ainda maior: uma tempestade de granizo. Na época, eu estava fazendo mestrado na Universidade de Dé- Ihie trabalhava meio perfodo como jornalista. Quando a tempes- tade de granizo caiu, eu estava dentro de uma biblioteca. Tinha planejado ficar até tarde, mas a virada no tempo me fez mudar de ideia. Decidi ir embora. Estava voltando para 0 meu quarto quando, por algum impulso, tomei outro rumo e passei na casa de um amigo. Mas o tempo continuou piorando enquanto con- * No original em inglés, Great Derangement, titulo que se conserva na versao francesa (Le Grand Dérangement), mas passa por um certo deslocamento nas edigdes alema (Die grofte Verblendung) e italiana (La grande cecita), ambas as quais poderiam se traduzir por “A grande cegueira’ Segundo o Cambridge Dictionary, a palavra derangement descteve o estado de quem se encontra “completamente incapaz de pensar com clareza ou se comportar de maneira controlada, sobretudo por causa de alguma condicéo mental’. Assim, 0 con- ceito que o autor cria para definir nossa época parece expressar ndo apenas tum desarranjo na percepgio (uma cegueira, uma falta de orientacao), mas também um transtorno no juizo (uma imprudéncia, uma insensatez). A opgo Por “desatino” visa manter algo da ideia tanto de desorientacdo quanto de desvairo, (N.T) Scanned with CamScanner ee penne yersavamos, entdo, depois de poucos minutos, resolvi voltar por um caminho que raramente pegava. Tinha acabado de passar por um cruzamento movimenta- do chamado Maurice Nagar. do ouvi um estrondo no céu. Olhando para trés, vi um! cinza se formando na parte de baixo de uma nuvem escura: ela foi crescendo rapidamente (U~* oe enquanto eu assistia e, de repente, bateu no asfalto feito uma chicotada, vindo na minha direcao. Do outro lado da rua ficava um imenso prédio administra- tivo. Saf correndo para o que parecia ser uma portaria, mas as portas de vidro estavam fechadas e uma pequena multidao jé se amontoava do lado de fora, sob o abrigo de uma marquise. Nao tinha espaco para mim, entao corri para a frente do pré- dio. Avistando uma pequena varanda, pulei o parapeito e me agachei no chao. O barulho cresceu rapidamente e atingiu um nivel frenético, 0 vento comegou a puxar minhas roupas ferozmente. Olhando de relance por sobre o parapeito, percebi, para minha surpresa, que © entorno havia escurecido sob uma nuvem de poeira-agitada. Na luz turva que vinha do céu, vi uma sstacdlnt pandplia)de objetos voando ~ bicicletas, patinetes, postes de luz, chapas de metal e até barracas de ché inteiras. Naquele instante, a pré- pria gravidade parecia ter se transformado em uma roda girando na ponta dos dedos de alguma forca desconhecida. Enterrei a cabeca nos bracos e fiquei imével. Momentos de- pois, o barulho diminuiu e deu lugar a um siléncio aterrador. Quando finalmente saf da varanda, fui confrontado por uma cena de devastacdo que nunca tinha visto, Onibus tombados; scooters empoleiradas nas copas das drvores; paredes arrancadas dos edi- ficios, expondo interiores nos quais ventiladores de teto pareciam tulipas de tao retorcidos. O lugar onde tinha pensado em me abrigar, a entrada com porta de vidro, se reduzira a um monte de estilhacos. As vidracas tinham se partido e ferido muitas pessoas. Historias Scanned with CamScanner use eas Jone 19 Percebi que também estaria entre os feridos se tivesse ficado ali, Sai andando, atordoado. Muito tempo depois, nao sei exatamente quando ou onde, procurei a edi¢do de Nova Délhi do Times of India do dia 18 de marco. Ainda tenho as fotocépias que fiz. “Trinta mortos’, dizia a manchete, “e setecentos feridos em ciclone que atingiu 0 norte de Délhi’ Aqui vao alguns trechos da reportagem: Délhi, 17 de marco: pelo menos 30 pessoas foram mortas 700 ficaram feridas, muitas delas gravemente, quando um furacio em forma de funil, acompanhado de chuva, deixou um rastro de morte e devastacao esta noite em Maurice Nagar, parte de Kingsway Camp, Roshanara Road e Kamla Nagar: Os feridos foram levados para vé- rios hospitais da capital. O redemoinho percorreu uma linha quase reta [..). Al- gumas testemunhas disseram que o vento atingiu o Rio Yamuna e levantou ondas de até dez metros. A Maurice Nagar Road era um cendrio impressionante. Estava cheia de postes caidos,[..] arvores, galhos, fis elétricos, tijolos das paredes externas de varias instituigdes, tetos de zinco dos alojamentos dos funcionétios, dhabas e dezenas de scooters, énibus e alguns carros, Nao restou nenhuma drvore em pé. A reportagem abre aspas para uma testemunha: Vi minha scooter, que tinha abandonado no meio da rua naqueles momentos terriveis, ser levada pelo vento como se fosse uma pipa. Estavamos vendo tudo isso aconte- cer, mas ficamos pasmos. Vimos pessoas morrendo, nao Scanned with CamScanner conseguimos ajudar. As duas barracas de ché na esquina da Maurice Nagar simplesmente desapareceram. Pelo menos umas 15 pessoas devem ter sido soterradas pelos escombros. Quando aquela firia infernal acalmou, s6 quatro minutos depois, vimos morte e devastagdo por todo lado. O vocabulirio da reportagem é uma evidéncia de como o desas- tre nao tinha precedentes. Era um fendmeno tao estranho que os jornais nao sabiam como chamé-lo, literalmente. Sem saber que palavras empregar, recorreram a “ciclone” e “furacao em forma de funil” S6 no dia seguinte se encontrou a palavra certa. As manchetes de 19 de marco diziam “Um fenémeno muito, muito raro, diz 0 Departamento Meteoroldgico”: O que atingiu a regiao norte da capital ontem foi um tornado ~ o primeiro desse tipo [...]. De acordo com 0 Departamento Meteoroldgico da India, o tornado tinha cerca de 50 metros de largura e percorreu uma distdncia de aproximadamente cinco quilémetros no periodo de dois ou trés minutos. Era, de fato, o primeiro tornado a atingir Délhi - na verdade, a re- giao ~ conforme a série histérica dos registros meteorolégicos.” E, de alguma forma, eu, que quase nunca pegava aquele caminho, que raramente visitava aquela parte da universidade, tinha me colocado em seu trajeto, S6 muito mais tarde percebi que o olho do tornado tinha pas- sado bem em cima de mim. Achei que havia algo insolitamente certeiro naquela metdfora: 0 que acontecera naquele momento era, estranhamente, uma espécie de contato visual, de ver e ser visto. E, naquele instante de contato, algo se instalou profunda- Historias Scanned with CamScanner * a1 mente em minha consciéncia, algo irredutivelmente misterioso, bem distinto do perigo que corri e da destruicao que testemunhei; algo que nao era uma propriedade da coisa em si, mas sim da maneira como ela havia cruzado minha vida. 6. Como costuma acontecer com pessoas emboscadas por eventos imprevisiveis, por muitos anos depois daquele dia, minha mente continuava voltando ao encontro com 0 tornado. Por que eu ti- nha escolhido uma rua que quase nunca trilhava, pouco antes de ter sido varrida por um fendmeno sem precedentes hist6ricos? Pensar em termos de acaso e coincidéncia parecia empobrecer 0 | que eu vivera: era como tentar entender um poema s6 contando as palavras. Em vez disso, sempre me pegava buscando a extre- midade oposta do espectro do significado — 0 extraordinario, 0 inexplicdvel, o desconcertante. Mas nada disso fazia justica & mi- nha memoria daquele acontecimento. E inevitavel que os romancistas escavem sua propria experién- cia enquanto escrevem. Como episédios incomuns sao limitados em numero, nada mais natural que os examinemos seguidas ve- zes, na esperanga de descobrirmos um veio ainda desconhecido. Assim como qualquer outro escritor, também vasculhei meu passado sempre que escrevia ficgao. Tinha, portanto, todo o direi- to de transformar meu encontro com o tornado em uma dadiva, uma mina de ouro a ser explorada até a ultima pepita. E verdade que tempestades, inundagdes e eventos climaticos incomuns sao frequentes nos meus livros - 0 que pode muito bem ser uma heranga do tornado. Ainda assim, por incrivel que parega, nenhum tornado jamais apareceu nos meus romances. Nio foi por falta de esforo da minha parte, De fato, a razdo pela qual ainda guardo esses recortes do Times of India & que voltei a Scanned with CamScanner eles com alguma frequéncia ao longo dos anos, na esperanga de aproveitd-los em algum romance, mas, a cada tentativa, s6 me deparava com o fracasso." A primeira vista, néo deveria haver motivo para tanta dificul- dade em traduzir esse evento em ficcio, afinal, muitos romances esto repletos de acontecimentos estranhos. Mas, entao, por que; apesar dos meus melhores esfor¢os, nao consegui fazer uma per- sonagem trilhar um caminho que est prestes a ser atingido por um tornado? Refletindo sobre essas questées, eu me pergunto: o que pensa- ria de tal cena se a encontrasse em um romance escrito por outra pessoa? Suspeito que minha reacao seria de incredulidade; ficaria propenso a achar que a cena era um artif{cio desesperado. Sem diivida, somente um escritor cujos recursos imaginativos estives- sem totalmente exauridos pensaria em recorrer a uma situacao de improbabilidade tao extrema. “Improbabilidade” é a palavra-chave aqui, entao temos de per- guntar: o que ela significa? “Improvavel” nao é 0 oposto de “provavel’, mas sim uma in- flex4o, um gradiente dentro de um continuum de probabilidade. Mas 0 que a probabilidade - uma ideia matemitica — tem a ver com ficgao? A resposta é: tudo. Pois, como diz Ian Hacking, um proemi- nente historiador do conceito, a probabilidade é uma “maneira de conceber o mundo constitufdo sem que estejamos cientes disso”"* Allds, a probabilidade e o romance moderno so gémeos, nas- ceram mais ou menos na mesma época, entre as mesmas pes- soas, sob uma estrela comum que os levou a funcionar como receptéculos para abrigar 0 mesmo tipo de experiéncia. Antes do nascimento do romance moderno, onde quer que se contas- sem histérias, a ficgdo se deleitava com o inaudito e o inesperado. Narrativas como As mil e uma noites, Jornada ao oeste e O decamerdo vao saltando alegremente de um evento excepcional Historias 23 Scanned with CamScanner a outro. Afinal, é assim que a narracao de histérias deve proceder, na medida em que é um recontar “daquilo que aconteceu” ~ e tal interesse s6 pode surgir a respeito de algo fora do comum, que é apenas uma outra maneira de dizer “excepcional” ou “inacredita- vel”. Em esséncia, a narrativa avanca ligando momentos e cenas que sao de algum modo diferentes ou distintivos: sao, € claro, nada mais que exemplos de excecao. Os romances também procedem dessa maneira, mas o que € caracteristico da forma é precisamente a ocultagdo daqueles mo- mentos excepcionais que funcionam como motor da narrativa- Consegue-se esse efeito por meio da insergao daquilo que Franco Moretti chama de “enchimentos’ De acordo com o teérico litera- rio, os enchimentos funcionam como “aquela civilidade das boas maneiras tao importantes no mundo de [Jane] Austen; e é l6gico, as boas maneiras servem justamente para conferir certa regula- ridade, certa forma a existéncia. Gracas a ela, a vida cotidiana se mostra elevada, estilizada’.'* £ por meio desse mecanismo que os mundos sao evocados, por meio de detalhes do cotidiano, que funcionam “como 0 oposto da narracao” E assim que o romance assume sua forma moderna: “desloca 0 inaudito para o fundo e traz 0 cotidiano ao primeiro plano”!* Assim, 0 romance nasceu e se propagou mundo afora por meio da proscri¢do do improvavel e da insergao do cotidiano. Pode-se observar esse processo com clareza excepcional na obra de Bankim Chandra Chatterjee, escritor e critico bengali do século 19 que cons- cientemente adotou o projeto de abrir um espaco no qual a ficcao. realista de estilo europeu pudesse ser escrita nas linguas vernéculas da India. A iniciativa de Bankim, realizada em um contexto que esta va muito distante do mainstream da metrépole, é um daqueles casos em que uma circunstancia de excegao revela a verdadeira vida de um regime de praticas e pensamentos.” Com efeito, Bankim estava tentando substituir diversas formas antigas e muito poderosas de ficgao, desde os épicos indianos e as Scanned with CamScanner historias Jataka budistas até a tradi¢ao islamica imensamente fe- cunda dos dastaans urdus. Com 0 tempo, essas formas narrativas haviam acumulado grande peso e autoridade, estendendo-se para muito além do subcontinente indiano: sua tentativa de reivindi- cat territério pata um novo tipo de fico foi, & sua maneira, um esforgo heroico. £ por isso que as exploragdes de Bankim sao de particular interesse; seu mapeamento desse novo territério da um relevo cada vez mais nitido aos contrastes entre o romance ocidental e outras formas mais antigas de narrativa. Em um longo ensaio sobre a literatura bengali escrito em 1871, Bankim langou uma ofensiva aos escritores que modelavam seu ) trabalho a partir das formas tradicionais de narragao: seu ataque | Achamada escola sanscrita se concentrou precisamente contra a ideia de “mera narrativa’, O que ele propunha, ao contrario, era um estilo de escrita que desse primazia a “esbogos de personagens | eretratos da vida bengali”'* etna teen O que isso significa, na prética, fica muito bem ilustrado no pri- meiro romance de Bankim, Rajmohan’s Wife [A esposa de Rajmohan], que foi escrito em inglés no inicio da década de 1860.” Aqui vai uma passagem: ‘Acasa de Mathur Ghose era um genuno espécime da mag- nificéncia mofussil (provincial, rural] unida a um deslei- xo mofussil. Dos longinquos campos de arroz dava para avistar por entre a folhagem suas paligadas e paredes escurecidas. Mais de perto se viam pedacos de gesso de uma antiguidade venerdvel, prontos para darem adeus & sua velha e sofrida morada. Compare a passagem com as seguintes linhas de Madame Bovary, de Gustave Flaubert: Historias Scanned with CamScanner 25 Sai-se da estrada principal (...] de onde se descortina o vale, [...] A pradaria se alonga sob almofadas de colinas baixas para se juntar por tras aos pastos da regido de Bray, en- quanto, do lado leste, a planicie, subindo suavemente, vai se alargando e espalha a perder de vista as suas loiras manchas de trigo.” Em ambas as passagens, 0 leitor € conduzido por uma “cena” através do olhar e daquilo que se vé: somos convidados a “avis- tar’ “ver”. Em relacao a outras formas de narrativa, é de fato uma novidade — em vez de nos contarem 0 que aconteceu, ficamos sabendo o que foi observado. Em certo sentido, Bankim foi di- retamente ao cerne da “ambicao mimética” do romance realista: descrigées detalhadas da vida cotidiana (ou “enchimentos”) sao, portanto, centrais para seus experimentos com essa forma nova. Por que a retérica do cotidiano haveria de aparecer exatamente no momento que um regime de estatisticas, regido por ideias de probabilidade e improbabilidade, estava comecando a dar novos contornos ao mundo social? Por que os enchimentos de repente se tornaram tao importantes? A resposta de Moretti é: ( Porque eles propiciam um prazer narrativo compativel com \ a nova regularidade da vida burguesa. ...] A difusio dos enchimentos transforma o romance em uma “paixao se- rena’ [...] em um aspecto da “racionalizagéo” de Weber: um processo que comeca na economia e na administra- ‘¢40, mas acaba por transbordar para a esfera do tempo livre, da vida privada, dos sentimentos, da estética (...) Ou, enfim, os enchimentos racionalizam o universo do romance, transformando-o em um mundo com poucas surpresas, pouquissimas aventuras e absolutamente sem milagres.” Scanned with CamScanner Esse regime de pensamento se impés no apenas as artes, mas também as ciéncias. E por isso que Seta do tempo, ciclo do tem- po, o brilhante trabalho de Stephen Jay Gould sobre as teorias geoldgicas do gradualismo e do catastrofismo é, em esséncia, um estudo sobre a narrativa. Segundo Gould, o relato catastrofis- ta da historia da Terra tem seu melhor exemplo em The Sacred Theory of the Earth (A teoria sagrada da Terra), de Thomas Bur- net (1690), no qual a narrativa gira em torno de eventos de “irre- petivel singularidade’ Do lado oposto, a abordagem gradualista, defendida por James Hutton (1726-1797) e Charles Lyell (1797- 1875), ptivilegia processos vagarosos que se desdobram ao longo do tempo em ritmos constantes e previs{veis. O credo central dessa doutrina era que “nada poderia mudar a nao ser a maneira como se viam as coisas mudando no presente’ Ou, para simpli- ficar: “A natureza nao dé saltos’ problema, no entanto, é que a Natureza certamente pula, € provavelmente dé saltos. O registro geolégico testemunha mui- tas fraturas no tempo, algumas das quais ocasionaram extin¢des em massa e afins: foi uma delas, na forma do asteroide Chicxulub, que provavelmente matou os dinossauros. Em todo caso, é indis- cutivel que catastrofes se abatem sobre a Terra e seus habitantes a intervalos imprevistveis e das maneiras mais improvaveis. O que, entao, prevalece no mundo real — processos previsiveis ou eventos inesperados? Para Gould, “a tinica resposta possivel ‘ambos e nenhum”.* Ou, como afirma o Conselho Nacional de Pesquisa dos Estados Unidos: “Nao se sabe se a realocagao de materiais na superficie da Terra é dominada por fluxos mais lentos e continuos, que atuam 0 tempo todo, ou por grandes fluxos espetaculares que atuam durante eventos cataclismicos de curta durago" A geologia s6 chegou a esse consenso agnéstico muito re- centemente, Durante boa parte da época em que a geologia - € também 0 romance moderno ~ estava amadurecendo, a visio Historias an Scanned with CamScanner a| gradualista (ou “uniformitarista") manteve dominio absoluto, € 0 catastrofismo foi jogado para as margens. Os gradualistas consolidaram sua vitéria usando uma das armas mais eficazes da modernidade: a insisténcia em considerar obsoletas outras formas de conhecimento. Como Gould demonstra com tanta beleza, Lyell triunfou sobre seus adversdrios acusando-os de se- rem primitivos: Num estdgio inicial de progresso, quando um grande numero de fendmenos naturais ¢ ininteligivel, um eclipse, um terremoto, uma inundacdo ou a aproxima- Gao de um cometa, bem como muitas outras ocorrén- cias que mais tarde se constata pertencerem ao curso regular dos acontecimentos, séo considerados prodi- gios. A mesma ilusio prevalece nos fenémenos morais, € muitos deles sao atribuidos a intervengao de demd- nios, fantasmas, bruxas e outros agentes imateriais e supernaturais.” E exatamente a mesma ret6rica que Bankim emprega para ata- car a “escola sanscrita’: ele acusa esses escritores de depender de modos convencionais de expressio e de formas fantasticas de causalidade. Se o tema é 0 amor, invariavelmente se requisita a pre- senga de Madana e suas cinco flechas com pontas de flores; e 0 tirdnico rei da Primavera nunca deixa de vir Jutar em sua causa, com suas brisas suaves, seu exército de abelhas e outros séquitos antigos. Ja quando se de- vem cantar as dores da separacio, a lua ¢ imediatamente amaldigoada e anatematizada, queimando a pobre vitima ‘com seus raios frios,8 Scanned with CamScanner Flaubert segue uma linha bem semelhante ao satirizar o estilo narrativo que arrebata a jovem Emma Rouault: nos romances contrabandeados para seu convento, “{e}ram s6 amores, namorados, namoradas, damas per- seguidas a desmaiar em pavilhées solitérios, mensagei- Tos que sio mortos em todas as paradas, cavalos que se i esgotam em todas as péginas, florestas sombrias, per- i turbacées do coragao, juramentos, suspiros, lgrimas e { beijos, barquinhos ao luar, rouxinéis nos bosques Tudo isto é totalmente estranho ao ordeiro mundo burgués para o qual Emma Bovary esta prometida — essas coisas fantasticas pertencem as “regides ditirambicas” que ela quer habitar. Em um impressionante resumo de seus gostos narrativos, Emma declara: “adoro as histérias que se seguem num s6 folego, onde se tem medo. Detesto os herdis comuns e os sentimentos temperados, como existem na natureza”. “Comuns”? “Temperados”? Como a Natureza chegou a ser as- sociada a palavras como essas? A incredulidade que essas associagdes evocam hoje é um {n- dice do quanto 0 aquecimento global j4 rompeu muitos pres- supostos que se baseavam na relativa estabilidade climatica da época que sustentou a civilizagéo humana: o Holoceno. Sob a Perspectiva de nosso tempo, a confianga e a complacéncia da ordem burguesa emergente aparecem como mais um daqueles exemplos incémodos em que o planeta parece ter brincado com a humanidade, permitindo-lhe presumir que estava livre para moldar seu prdprio destino. Por mais improvével que possa parecer hoe, oséculo 1 fl o, uma época em que se parti do pressupesto, tanto ng ja, de que a Natureza era ardeira e mo- derada: esse era o traco distintivo de uma visio de mundo nova Histérias 29 Scanned with CamScanner e “moderna” Bankim faz um grande esforco para repreender seu contemporaneo, 0 poeta Michael Madhusudan Datta, por seus tetratos imoderados da Natureza: co senhor Datta [...] carece de repouso. Os ventos sopram fortes quando nao haveria necessidade nem de uma brisa leve, As nuvens se juntam e caem em dilivio quando nao precisariam fazer nada do género. O mar fica terrivel de fiiria quando todos parecem inclinados a se ressentir de sua interferéncia.” A vitoria das ideias gradualistas na ciéncia se deu de maneira semelhante, caracterizando o catastrofismo como algo nao mo- derno. Na geologia, o triunfo do pensamento gradualista foi tao ‘completo que a teoria da deriva continental de Alfred Wegener, {que postulava perturbagdes de violéncia sibita e inimaginavel, foi desprezada e ridicularizada por décadas. Vale lembrar que esses habitos mentais prevaleceram até 0 final do século 20, especialmente entre o puiblico geral. “Em mea- dos da década de 1960, escreve o historiador John L. Brooke, freinava supremo um modelo gradualista da histéria e evolucao da Terra’™ Ainda em 198s, a pagina editorial do The New York ‘Times fulminava a teoria da extingao dos dinossauros pelo aste- foide: “Os astrénomos deveriam deixar aos astrologos a tarefa de buscar as causas de eventos terrenos nas estrelas”>* Quanto aos ppaleontél logos profissionais, observa Elizabeth Kolbert, eles inju- riavam tanto a teoria quanto seus autores, Luis e Walter Alvarez: “As extingdes do Cretaceo foram graduais, e a teoria da catas- trofe é equivocada, argumentou [um] paleontélogo. Mas ‘teorias implistas continuarao surgindo para seduzir alguns cientistas e jFevigorar as capas de revistas populares” Em outras palavras, © gradualismo se tornou um “par de an- tolhos” que, com o passar do tempo, teve de dar lugar a uma Scanned with CamScanner visto que reconhece “a dupla exigéncia de unicidade, que faz de cada momento do tempo algo distintivo, e de legitimidade, que estabelece uma base para a inteligibilidade"™* Os momentos distintivos sao tio importantes para os roman- ces modernos quanto para quaisquer outras formas de narrati- va, sejam geoldgicas ou histéricas. Ironicamente, em nenhum lugar isso se faz mais nitido que em Rajmohan'’s Wife e Madame Bovary, nos quais acasos e coincidéncias sao cruciais para o en- redo. No romance de Flaubert, por exemplo, a narrativa passa por uma reviravolta no momento que Monsieur Bovary tem um encontro acidental com o futuro amante de sua esposa na 6pera, logo depois de uma cena apaixonada durante a qual ela imagina que o cantor estava olhando para ela: “Ela teve vontade de cor- rer para os seus bracos, para refugiar-se em sua forca, como na encarnacao do préprio amor e de dizer-lhe, de gritar: ‘Rapte-me! Leve-me, partamos!”*° Claro que nao poderia ser diferente; se os romances nao fossem construidos sobre os andaimes dos momentos excepcionais, os es- critores iriam se depararar com a tarefa borgeana de reproduzir 0 mundo em sua totalidade. Mas 0 romance moderno, ao contrario da geologia, nunca se viu forgado a confrontar a centralidade do improvavel: a ocultacéo de seus andaimes de eventos continua sendo essencial para seu funcionamento. E isso que faz de certo tipo de narrativa um romance reconhecidamente moderno. Aqui, entdo, est4 a ironia do romance “realista’: os préprios \ gestos com os quais conjura a realidade sao, efetivamente, uma ocultacao do real. © que tudo isso significa na prética é que o célculo de probabi- lidade empregado dentro do mundo imagindrio de um romance nao é 0 mesmo que se usa fora dele — e é por isso que se costuma dizer que “se isso acontecesse num romance, ninguém iria acre- ditar”. Um evento provavel na vida real - digamos, um encontro inesperado com um amigo de infancia que nao se via hé muito Historias 31 Scanned with CamScanner tempo — pode parecer, nas paginas do romance, extremamente inverossimil: o escritor tera de trabalhar muito para fazer que pareca convincente. Se isso vale para um pequeno acaso, quanto um escritor nao teria de trabalhar para descrever uma cena extremamente im- provavel até mesmo na vida real? Por exemplo, a cena em que a personagem estd caminhando pela rua no exato momento em que ¢ atingida por um fendmeno climatico inaudito? Introduzir tais acontecimentos no romance é, de fato, ver-se despejado daquela mansio onde a ficcdo séria residiu por muito tempo; é correr 0 risco de ser banido para as moradias humildes que cercam a casa senhorial ~ aquelas construgdes genéricas que | jé foram conhecidas por nomes como “o gotico’, “o aventuresco” ou “o melodrama” e agora séo chamadas de “fantasia’, “terror” € “ficcao cientifica’. Até onde sei, as mudangas climéticas no foram a causa do tor- nado que atingiu Délhi em 1978. A unica coisa que ele tem em comum com os bizarros eventos climéticos de hoje em dia é sua alta improbabilidade. E, ao que tudo indica, agora estamos em ‘uma era que sera definida precisamente por eventos que, segun- do nossos atuais padrdes de normalidade, parecem altamente improvaveis: enchentes sibitas, tempestades histéricas, secas constantes, ondas de calor sem precedentes, deslizamentos de terra repentinos, torrentes furiosas escorrendo de lagos glaciais que se romperam e, sim, tornados insdlitos, A supertempestade que atingiu Nova York em 2012, 0 fura- Ao Sandy, foi um fendmeno altamente improvavel; a expressao “sem precedentes” talvez. nunca tenha figurado com tamanha frequéncia na descrigao de um evento climatico. Em seu 6timo Scanned with CamScanner

You might also like