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Do amor e sua natureza

“Nenhum destino biológico, psíquico,

econômico define a forma que a fêmea

humana assume no seio da sociedade; é o

conjunto da civilização que elabora esse

produto intermediário entre o macho e o

castrado que qualificam o feminino”

O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir

Há quem hoje afirme que leis que regem o mercado, o consumo, a mais-valia;

apriorismos que coisificam e valoram tudo, que dispõem tudo em uma prateleira a ser

catalogado, posto e reposto enquanto servir; verdades que fazem de algo útil ou inútil a

despeito do que foi ou é – leis que descartam o que hoje, apenas hoje, serventia não possui,

e que dão ao ter, ao possuir valor hierárquico e identitário. Pessoas, de suas caixas de

onde observam outras caixas, afirmam que essas leis, esses apriorismos, essas verdades,

que regem o latifúndio, a manufatura, a indústria e a tecnologia: elas passaram a reger o

amor.

Para alguns, pior!, amor é coisa criada: coisa humana criada por humanos e para

humanos. Para eles, nasceu de um desejo por controle e segurança, ou da necessidade de

que mentiras universais se legitimassem. E nasceu de medievas e cordiais histórias entre

príncipes e princesas, valentes cavaleiros e frágeis donzelas. E nasceu para que o bicho

que em mim há não acordasse. E nasceu para que ervas daninhas não crescessem sobre

meu caráter. E que, hoje, esse produto criado, produto da dor de outrora, tornou-se

material plástico, sintético. Uma vez que toda a sujeira é retirada, tem-se amor enlatado,

livre de riscos, amor de belos rótulos e longas bulas.


Mas há algo que esqueceram, senhores possuidores de panorâmicas visões de uma

parte. Amor, em sua natureza, é coisa orgânica: húmus, lava, plasma, esperma e placenta.

É planta hera em arquitetura bauhaus ou busto de Vênus.

Amor é uma figueira.

Não maldizem essa árvore à toa. Antes de histórias de enforcamentos ou de tesouros

escondidos, imprimem-lhe cruel natureza.

Descobriu-se que algumas espécies de figueira tem seus frutos comidos por algum

pássaro ou mamífero ou inseto, que, por sua vez, defeca suas sementes em qualquer árvore

ou ser do qual possa apropriar-se. Assim, a vida se dá tanto quanto a morte: lenta a figueira

envolve-o, e anos e décadas e até séculos passam, até o dia em que apenas a figueira

restará.

Quem sabe, somente assim, ambos se tornariam um: júbilo da morte, redenção, o

bom fim por amor.

Mas eu, eu, eu... não nego a crueldade que lhe está impressa. Se há tempos eu

rompera de qualquer visão romântica, não negaria a crueldade da vida viva nesse ato.

E sei que cruel é meu juízo. É humano juízo. A natureza apenas é. E é possível

delimitar o ser a partir da ciência de o que eu, humana, não sou. Uma inteireza natural

revela meu vazio, o nada que me infesta, que me é. Isto se me revela: hoje luto contra

uma figueira que se apossara de uma das paredes dos fundos de minha casa. Não consigo

matá-la entrelaçada às calhas do telhado.

O que faço é, quando em vez, cortar suas raízes, que se ramificam, formam caules

menores e crescem e se multiplicam lentas, silenciosas enquanto durmo, enquanto durmo

para essa viva realidade, enquanto durmo no escuro e no nada de meu humano juízo.
Se quisesse, bem poderia livrar-me. Contrataria empresa especializada a fim de

redimir-me e viver sem culpa, ou eu mesmo, se homem e viril fosse, juntaria escada,

machado e certeza e extirparia de mim planta que se apropria de meu lar – que se apropria

de mim. Não o farei. Por quê: se por medo ou comodismo ou covardia, por ser fêmea,

fraca, incerta, ou pelo conforto de pertencer, de ser cadeia, ciclo, de ser parte de uma cruel

natureza que me tomará e fará de mim e do que é meu outra coisa: outra.

Assim, com o tempo, vejo raízes maiores e maiores e sei o que pretendem. E a

liberdade e o tempo me ataram.

É que natureza é tempo. Ouvi que há, em densas florestas da América Central, uma

espécie de palmeira que, uma vez que é adulta, inicia o crescimento de uma haste, metros

acima do solo e à frente direcionada. Esta, após seu tempo, alcançará o chão e, assim,

centímetros adiante, formará sua raiz. Sempre que uma nova raiz estiver fixada, a antiga

apodrecerá, assim, nova haste começará a apontar ao chão.

Árvores podem andar e basta acelerar meu tempo para vê-las caminhar entre a mata.

Houve quem dissesse, que em humano tempo, ela chegasse a percorrer até vinte metros

em vida. Que vida? Que vida? A natureza tem seu tempo. A vida tem seu tempo – tempo

no qual, aqui, não estou.

Por isso, sei que em seu tempo secretas conspirações se dão.

Como quando contei uma pequena mentira a uma menina: sabia que a planta que

está no canto da sala cresce apenas quando ninguém olha para ela? Os seus olhos de

fascínio contrastaram com os meus – de espanto. A inocente brincadeira me causou

arrepios e, naquela noite, não dormi; com a mentira veio o susto de que há um secreto

intento que poderia se fazer: vi o objetivo de algo poder me tomar. Vi que intenções

maiores estariam submersas às minhas, que há um rio subterrâneo e maior que tudo, cujo

curso se faz ao arrepio de mim.


E vi algo que a figueira entre as calhas de minha casa queria de mim.

Quando criança, meu pai e eu costumávamos ter aves em gaiolas. Tínhamo-nas de

muitas espécies também em um imenso viveiro. Alguma culpa me invade por, naquela

época, dividir com ele esse prazer. O segredo se encontrava no aprendizado e em suas

razões imersas: tanto aprisionar quanto compactuar disso com meu pai se me mostravam

como ações de amor. E foi durante uma certa visita que, talvez, mais que submersa ciência

tivesse se revelado.

Visitamos um dos amigos de meu pai. O homem há tempos não mais tinha pássaros.

Se por arrependimento ou drástica de transformação, sua atitude fora a de, simplesmente,

abrir os viveiros e as gaiolas. De fato a maioria debandara. Mas no amor nos medos nas

fés, as exceções não falam: gritam. E só elas são ouvidas.

Restou um casal. Permaneciam como se o viveiro ainda estivesse fechado. O dono,

surpreso e orgulhoso, alimentava-os. Ainda assim, qualquer estranha aproximação,

humana ou não, o casal os agitava: o que não lhes era, contra eles estava.

Ficavam tensos pela nossa presença e as portas do viveiro abertas perturbavam não

pela liberdade, mas pela insegurança.

O demiurgo anfitrião nos relatou que uma cobra devorara a última ninhada do casal.

Desde então, seu Éden tem estado à mercê do inferno que toma o mundo. O diabo

os espreitava.

O mal infesta a terra: um desejo malevolente impera mesmo na menor das criaturas.

Tanto vermes quanto flores guardam vontade de devorar tudo, de comungar, de fazer do

corpo de outro seu. Engolidos inteiros, abraçados por maxilares ou raízes. Lento, lento

digerir: o tempo.

O tempo os faz um, tal qual quando se é envolvido por serpente ou figueira ou terra.
Do lado de lá da porta do viveiro, residia o mal. O mal lá reside em tudo que é vivo.

Ele jaz em profundidades, esconde-se no escuro, sob lama. Olhos espreitando para atacar

enquanto se dorme, enquanto se está desatento, enquanto se está feliz. O mal sempre está

lá, longe, no outro, lá fora: serpente que comera teus filhos, que lhe dera a maçã.

Não esqueço: possuíamos canários belgas. Era uma espécie ainda mais bela. Aves

como que criadas em laboratório. As cores eram realçadas como que por pigmentação

sintética. O canto equalizado e coeso. E eram frágeis e, assim, totens da perfeição. No

mundo, a perfeição é frágil: perene iminente declínio.

É que a pureza sempre cedo ou tarde é deflorada.

Vi um desses canários decapitado por um gato, que o atacara à noite. O felino

permeara as sombras, entre mistérios, entre o escuro de cada um, entre o escuro que se

revela à noite. E o pássaro estava cativo, a serviço, pois, do mal que povoa o escuro do

mundo. Enjaulado, debateu-se de um canto a outro da gaiola, até o gato enfim capturá-lo

e lhe devorar os olhos, a cabeça, a alma. Na aurora do dia, prostrava-se, no fundo da cela,

o corpo morto sem topo do pássaro.

É que o mal povoa a tudo que nos escapa aos dedos. O diabo vive entre raízes, na

lama e entre as garras e os dentes de um gato. Ele corrompe perfeições produzidas em

tubo de ensaio.

E cedo ou tarde. Cedo ou tarde.

Por ser fêmea que sou, do agouro de Eva, sou maculada por pecado, suja pela minha

natureza, pelo meu desejo, pelo bicho, pelo pássaro, pela serpente que em mim vivem.

De milenares entranhas nasce o que desconheço.

Sou a fêmea de canário que usa das penas do filhote já crescido para construir o

abrigo da próxima ninhada. Sou esse bicho a mercê de cruel natureza, de cruel amor.

Pois é: amor é coisa de bicho.


Mas, para ela, amor era uma frágil bolha de sabão. E não sei se lembro ou crio suas

mãos tateando o ar e contando sobre como eram protegidas as bolhas dos percalços que

as fariam estourar. Para ela, amor era coisa frágil que se cuida. Ela era coisa frágil – minha

coisa frágil.

É próprio da natureza criar o que é frágil, raro e perecível e efêmero, como ela,

como bolhas de sabão, como preciosas, exóticas e gigantescas flores que fedem.

Amor é busca por o que fede? É busca por entranhas, lama e sangue, centro escuro,

úmido, quente e vivo? É bicho que cheira o cu de outro bicho?

Todos os anos, neon tomava conta do centro da pequena cidade onde eu vivia. Era

natal e, todos os anos, as árvores da praça central eram vestidas por luzes em led e o lugar

tomado por tendas de cachorro-quente, de churrasquinho, de bebidas alcoólicas e de

doces. Era uma festa que revivia um nascimento com placas luminosas, multidões, música

popular norte-americana e exóticos artefatos trazidos da China.

Havia uma manjedoura em luzes e laminado, um bebê branco e, há alguns

metros, santa claus de alva barba, vestes rubras e pele escura. E imponentes, ao centro da

evento, hasteavam-se o pinheiro natalino, com mais de dez metros, e um alto letreiro da

Câmara de Dirigentes Lojistas da cidade, anunciando os patrocinadores de sagrada

celebração.

Viam-se crianças com tiaras em luz, simulacros de chifres do diabo, ou com

artefatos de borracha que, uma vez agitados, acendiam verde fluorescente.

Fluía uma felicidade plástica e pueril, de luz intermitente e em neon. As pessoas,

tomadas como que por fluorescente hipnose, aglomeravam-se e celebravam seu amor por

o que é fugidio e breve como as luzes de brinquedos a pilha. E se uniam à multidão na


esperança de serem únicos: o único desejo de serem únicos estava em todos, e todos

faziam uso de único meio para isso.

Foi nessa atmosfera que exótico mecanismo made-in-china se me expôs para. Uma

criança segurava um golfinho, que emitia intermitente luz, esculpido em plástico e em

posição como a de um revólver – no centro de sua cauda encurvada, um gatilho. De sua

boca, uma vez o gatilho acionado, saiam bolhas de sabão, muitas bolhas, dezenas. Uma

máquina executava, então, com presteza o que antes tão raramente se dava: uma bolha de

sabão.

E ela? E seu amor? A bolha de sabão e sua estrutura frágil e carente?

Por um momento, algo naturalmente raro e efêmero e precioso, multiplicou-se no

ar e se esvaeceu, dando lugar a outros e outros que, por sua vez, multiplicaram-se e se

esvaeceram, dando lugar a outros e outros. Que natureza é essa?

Leis demasiado humanas se fizeram. Uma capa humana reifica essa natureza e que,

nas profundezas de uma bolha, estrutura que clama por cuidado e unidade é engolida.

Mas o que chamam de amor é não ter natureza ou estrutura ou tempo.

É que assim não dói. E, se assim decerto fosse, ela não me doeria tanto.

Teria sido mais fácil se, tal qual arma de bolhas, amores se multiplicassem e me

saciassem e me fizessem alma errante que à toa quer preencher, mas abre sulcos e sulcos

no espírito.

Ainda que amor nestes tempos deslize entre dedos, liquidifique-se entre corpos, sua

natureza e estrutura são maciças, porque a morte é maciça, o medo é maciço, a vida é

maciça. É que amar lhes está aquém do inorgânico: coisa viva que abre pseudópobos e

nos toma.
Já, sim, encabecei discussões sobre origens e apriorismos, sobre sentidos ônticos e

ontológicos, sobre materialismos, idealismos e existências. E, como nunca, hoje, vejo fim,

sentido ou natureza alguma nisso. É que há um fim que não exige sentio, uma natureza

que nada exige senão a si. Sua razão nos escapa aos dedos porque nos próprios dedos

está, e os próprios dedos ela é. Sentido de que nos serve? Nesse vortex, desce-nos goela

abaixo a própria cauda – a cauda do bicho primeiro que fomos.

Nesse vortex, sou ínfimo sentido de um sentido maior que quer me devorar. E meu

medo é ser figueira ou incipiente árvore; meu medo é ser o gato ou o canário. Meu medo

é – ser.

E se já me mergulhei em convenções? Por uma vida sentei de pernas bem fechadas,

sonhei em ser salva, tive meus pés em carne viva e casei. Possuir-se é, pois, dolorido.

Assim, tornei-me pedaço de algo, porque ser inteira exigia-me abrir, cheirar e beber de

mim. Ofertei-me e segui os passos de minha civilização. Eram meus nortes dos nortes.

Era o ponto a partir do qual minha vida e minha identidade se formaram. Era substrato

sobre o qual eu me construí.

Se ela soubesse: ela fora meu fungo, minha erva daninha, a poeira da sala. Ela era

o que contra, diariamente, eu lutava. A organicidade entre os azulejos e embaixo da pia.

O mofo junto ao chão na parede da cozinha. A figueira entre as calhas dos fundos.

Eu pensava, ao tirar o pó da sala, que tempo custaria até que toda a poeira se

acumulasse e, enfim, surgisse sobre o porcelanato mesmo visível aparente débil forma de

vida, que superasse os limites do que é vivo e se nutrisse da esterilidade do chão da sala.

Eu jamais teria ousado.

Por fim, ousei e ela nasceu em mim quando eu já era tão limpa e fria e uniforme

quanto aquele porcelanato. Todos os dias, eu o desinfetava e os móveis e só e rente ao

chão, olhava o inacessível escuro embaixo da geladeira e da pia. Lá, sabia que a vida se
rompia tal qual o que há no caldeirão de um diabo, tal qual a lava viva de um vulcão, tal

qual o enlevo de um orgasmo.

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