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Há quem hoje afirme que leis que regem o mercado, o consumo, a mais-valia;
apriorismos que coisificam e valoram tudo, que dispõem tudo em uma prateleira a ser
catalogado, posto e reposto enquanto servir; verdades que fazem de algo útil ou inútil a
despeito do que foi ou é – leis que descartam o que hoje, apenas hoje, serventia não possui,
e que dão ao ter, ao possuir valor hierárquico e identitário. Pessoas, de suas caixas de
onde observam outras caixas, afirmam que essas leis, esses apriorismos, essas verdades,
amor.
Para alguns, pior!, amor é coisa criada: coisa humana criada por humanos e para
príncipes e princesas, valentes cavaleiros e frágeis donzelas. E nasceu para que o bicho
que em mim há não acordasse. E nasceu para que ervas daninhas não crescessem sobre
meu caráter. E que, hoje, esse produto criado, produto da dor de outrora, tornou-se
material plástico, sintético. Uma vez que toda a sujeira é retirada, tem-se amor enlatado,
parte. Amor, em sua natureza, é coisa orgânica: húmus, lava, plasma, esperma e placenta.
Descobriu-se que algumas espécies de figueira tem seus frutos comidos por algum
pássaro ou mamífero ou inseto, que, por sua vez, defeca suas sementes em qualquer árvore
ou ser do qual possa apropriar-se. Assim, a vida se dá tanto quanto a morte: lenta a figueira
envolve-o, e anos e décadas e até séculos passam, até o dia em que apenas a figueira
restará.
Quem sabe, somente assim, ambos se tornariam um: júbilo da morte, redenção, o
Mas eu, eu, eu... não nego a crueldade que lhe está impressa. Se há tempos eu
rompera de qualquer visão romântica, não negaria a crueldade da vida viva nesse ato.
E sei que cruel é meu juízo. É humano juízo. A natureza apenas é. E é possível
delimitar o ser a partir da ciência de o que eu, humana, não sou. Uma inteireza natural
revela meu vazio, o nada que me infesta, que me é. Isto se me revela: hoje luto contra
uma figueira que se apossara de uma das paredes dos fundos de minha casa. Não consigo
O que faço é, quando em vez, cortar suas raízes, que se ramificam, formam caules
para essa viva realidade, enquanto durmo no escuro e no nada de meu humano juízo.
Se quisesse, bem poderia livrar-me. Contrataria empresa especializada a fim de
redimir-me e viver sem culpa, ou eu mesmo, se homem e viril fosse, juntaria escada,
machado e certeza e extirparia de mim planta que se apropria de meu lar – que se apropria
de mim. Não o farei. Por quê: se por medo ou comodismo ou covardia, por ser fêmea,
fraca, incerta, ou pelo conforto de pertencer, de ser cadeia, ciclo, de ser parte de uma cruel
natureza que me tomará e fará de mim e do que é meu outra coisa: outra.
Assim, com o tempo, vejo raízes maiores e maiores e sei o que pretendem. E a
É que natureza é tempo. Ouvi que há, em densas florestas da América Central, uma
espécie de palmeira que, uma vez que é adulta, inicia o crescimento de uma haste, metros
acima do solo e à frente direcionada. Esta, após seu tempo, alcançará o chão e, assim,
centímetros adiante, formará sua raiz. Sempre que uma nova raiz estiver fixada, a antiga
Árvores podem andar e basta acelerar meu tempo para vê-las caminhar entre a mata.
Houve quem dissesse, que em humano tempo, ela chegasse a percorrer até vinte metros
em vida. Que vida? Que vida? A natureza tem seu tempo. A vida tem seu tempo – tempo
Como quando contei uma pequena mentira a uma menina: sabia que a planta que
está no canto da sala cresce apenas quando ninguém olha para ela? Os seus olhos de
arrepios e, naquela noite, não dormi; com a mentira veio o susto de que há um secreto
intento que poderia se fazer: vi o objetivo de algo poder me tomar. Vi que intenções
maiores estariam submersas às minhas, que há um rio subterrâneo e maior que tudo, cujo
muitas espécies também em um imenso viveiro. Alguma culpa me invade por, naquela
época, dividir com ele esse prazer. O segredo se encontrava no aprendizado e em suas
razões imersas: tanto aprisionar quanto compactuar disso com meu pai se me mostravam
como ações de amor. E foi durante uma certa visita que, talvez, mais que submersa ciência
tivesse se revelado.
Visitamos um dos amigos de meu pai. O homem há tempos não mais tinha pássaros.
abrir os viveiros e as gaiolas. De fato a maioria debandara. Mas no amor nos medos nas
humana ou não, o casal os agitava: o que não lhes era, contra eles estava.
Ficavam tensos pela nossa presença e as portas do viveiro abertas perturbavam não
O demiurgo anfitrião nos relatou que uma cobra devorara a última ninhada do casal.
Desde então, seu Éden tem estado à mercê do inferno que toma o mundo. O diabo
os espreitava.
O mal infesta a terra: um desejo malevolente impera mesmo na menor das criaturas.
Tanto vermes quanto flores guardam vontade de devorar tudo, de comungar, de fazer do
corpo de outro seu. Engolidos inteiros, abraçados por maxilares ou raízes. Lento, lento
digerir: o tempo.
O tempo os faz um, tal qual quando se é envolvido por serpente ou figueira ou terra.
Do lado de lá da porta do viveiro, residia o mal. O mal lá reside em tudo que é vivo.
Ele jaz em profundidades, esconde-se no escuro, sob lama. Olhos espreitando para atacar
enquanto se dorme, enquanto se está desatento, enquanto se está feliz. O mal sempre está
lá, longe, no outro, lá fora: serpente que comera teus filhos, que lhe dera a maçã.
Não esqueço: possuíamos canários belgas. Era uma espécie ainda mais bela. Aves
como que criadas em laboratório. As cores eram realçadas como que por pigmentação
permeara as sombras, entre mistérios, entre o escuro de cada um, entre o escuro que se
revela à noite. E o pássaro estava cativo, a serviço, pois, do mal que povoa o escuro do
mundo. Enjaulado, debateu-se de um canto a outro da gaiola, até o gato enfim capturá-lo
e lhe devorar os olhos, a cabeça, a alma. Na aurora do dia, prostrava-se, no fundo da cela,
É que o mal povoa a tudo que nos escapa aos dedos. O diabo vive entre raízes, na
tubo de ensaio.
Por ser fêmea que sou, do agouro de Eva, sou maculada por pecado, suja pela minha
natureza, pelo meu desejo, pelo bicho, pelo pássaro, pela serpente que em mim vivem.
Sou a fêmea de canário que usa das penas do filhote já crescido para construir o
abrigo da próxima ninhada. Sou esse bicho a mercê de cruel natureza, de cruel amor.
mãos tateando o ar e contando sobre como eram protegidas as bolhas dos percalços que
as fariam estourar. Para ela, amor era coisa frágil que se cuida. Ela era coisa frágil – minha
coisa frágil.
É próprio da natureza criar o que é frágil, raro e perecível e efêmero, como ela,
como bolhas de sabão, como preciosas, exóticas e gigantescas flores que fedem.
Amor é busca por o que fede? É busca por entranhas, lama e sangue, centro escuro,
Todos os anos, neon tomava conta do centro da pequena cidade onde eu vivia. Era
natal e, todos os anos, as árvores da praça central eram vestidas por luzes em led e o lugar
doces. Era uma festa que revivia um nascimento com placas luminosas, multidões, música
metros, santa claus de alva barba, vestes rubras e pele escura. E imponentes, ao centro da
evento, hasteavam-se o pinheiro natalino, com mais de dez metros, e um alto letreiro da
celebração.
tomadas como que por fluorescente hipnose, aglomeravam-se e celebravam seu amor por
Foi nessa atmosfera que exótico mecanismo made-in-china se me expôs para. Uma
boca, uma vez o gatilho acionado, saiam bolhas de sabão, muitas bolhas, dezenas. Uma
máquina executava, então, com presteza o que antes tão raramente se dava: uma bolha de
sabão.
ar e se esvaeceu, dando lugar a outros e outros que, por sua vez, multiplicaram-se e se
Leis demasiado humanas se fizeram. Uma capa humana reifica essa natureza e que,
nas profundezas de uma bolha, estrutura que clama por cuidado e unidade é engolida.
É que assim não dói. E, se assim decerto fosse, ela não me doeria tanto.
Teria sido mais fácil se, tal qual arma de bolhas, amores se multiplicassem e me
saciassem e me fizessem alma errante que à toa quer preencher, mas abre sulcos e sulcos
no espírito.
Ainda que amor nestes tempos deslize entre dedos, liquidifique-se entre corpos, sua
natureza e estrutura são maciças, porque a morte é maciça, o medo é maciço, a vida é
maciça. É que amar lhes está aquém do inorgânico: coisa viva que abre pseudópobos e
nos toma.
Já, sim, encabecei discussões sobre origens e apriorismos, sobre sentidos ônticos e
ontológicos, sobre materialismos, idealismos e existências. E, como nunca, hoje, vejo fim,
sentido ou natureza alguma nisso. É que há um fim que não exige sentio, uma natureza
que nada exige senão a si. Sua razão nos escapa aos dedos porque nos próprios dedos
está, e os próprios dedos ela é. Sentido de que nos serve? Nesse vortex, desce-nos goela
Nesse vortex, sou ínfimo sentido de um sentido maior que quer me devorar. E meu
medo é ser figueira ou incipiente árvore; meu medo é ser o gato ou o canário. Meu medo
é – ser.
sonhei em ser salva, tive meus pés em carne viva e casei. Possuir-se é, pois, dolorido.
Assim, tornei-me pedaço de algo, porque ser inteira exigia-me abrir, cheirar e beber de
mim. Ofertei-me e segui os passos de minha civilização. Eram meus nortes dos nortes.
Era o ponto a partir do qual minha vida e minha identidade se formaram. Era substrato
Se ela soubesse: ela fora meu fungo, minha erva daninha, a poeira da sala. Ela era
O mofo junto ao chão na parede da cozinha. A figueira entre as calhas dos fundos.
Eu pensava, ao tirar o pó da sala, que tempo custaria até que toda a poeira se
acumulasse e, enfim, surgisse sobre o porcelanato mesmo visível aparente débil forma de
vida, que superasse os limites do que é vivo e se nutrisse da esterilidade do chão da sala.
Por fim, ousei e ela nasceu em mim quando eu já era tão limpa e fria e uniforme
chão, olhava o inacessível escuro embaixo da geladeira e da pia. Lá, sabia que a vida se
rompia tal qual o que há no caldeirão de um diabo, tal qual a lava viva de um vulcão, tal