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INTRODUGAO MATRIZES DO NEOCONSERVADORISMO RELIGIOSO NA AMERICA LATINA Juan Marco Vaggione, Maria das Dores Campos Machado e Flavia Biroll as ultimas quatro décadas, temos observado o fortalecimento politico de atores coletivos com agendas conflitantes na América Latina: os movi- mentos feministas e LGBTQI, por um lado, ¢ os segmentos catélicos carismé- ticos ¢ evangélicos pentecostais, por outro, Enquanto os primeiros atuam para promover a igualdade de género ¢ pela extensio dos direitos sexuais ¢ repro- dutivos, os setores pentecostal ¢ catélico também adotam uma politica de identidade e representagio, mas com uma agenda de defesa da liberdade rel giosa, da familia da moral sexual ctista, Sem desconsiderar a heterogencidade existence nos dois lados, quando se trata das disputas em torno do género ¢ da sexualidade, é possivel detectar o antagonismo entre uma agenda marcada pelo pluralismo ético ¢ outra orientada por concepgées morais unitérias. O conservadorismo, assim como suas configuragdes atuais que, como defendemos neste livro, permitem falar em neoconservadorismo, nao se res- tringe a atores, agendas c linguagem de caréter religioso, Eneretanto, religiosos conservadores ¢ seu apelo a uma “maioria cristé” sio centrais aos processos € disputas de que tratamos aqui. Eles tém reafirmado, em diversos espagos, uma petspectiva moral que serviria de base para a regulagio da vida social e repro- dutiva de toda a populacio. Longe de ser um remanescente do passado, a politica estabelecida por esses atores religiosos projeta e impacta os debates pliblicos na maioria das socieda- des latino-americanas. Isso demanda uma avaliagio cuidadosa da relagio entre 1 ¢ politica, compreendendo seus padres atuais. ‘Aanilise que apresentamos aborda essa relacio numa temporalidade espe- cifica, a da reagio dos atores religiosos conservadores & agenda da igualdade de género ¢ da diversidade sexual, pauta incorporada ao sistema internacional de di 6s Unidas (ONU) a partir dos anos 1990. No inicio deste século, essa reagio se intensificaria, com maior mobilizagio no ambito do Judicidrio, do Legislaivo 10s humanos e, mais especificamente, is diretrizes da Organizagéo das Na- r JenyaDoniso # DEMOCRACIN 14. GtNENO, NEOCONSERVA! da familia’ ¢ contra © géNer0. A nogi g. gem nos anos 1990, Seria, nese process, ikea que fucltou a atuagio conjune g, ¢ de protestos de rua em “defesa ideologia de género", que tem or égia pol transformada em uma estratég vemuadores ¢forneces nOVOS FECUISOS PALA 2 mobilzacs, 0 ¢ pol diferentes atores con: : aiden popular Asim, an crtarmos das rages ete eligi ¢ pais «do scrvadorismo, vltamos nossa atengao a um conjunto especfic de agées, asim somo aos ators ele engajados, com um olhar regional para Amética Lain, ‘em desconsidera,é claro, 0 que foi produzido nas décadas anteriores, ym novo conjunto de problemas passou a ser analisado, Isso se dew & medida que as novas democracias latino-americanas, constituidas a partir dos anos 1980, formaram-se em um espaco de disputas de movimentos feministas ¢ cae do neocon. trans LGBTQI contra movimentos de carater conservador. Ao mesmo tempo, nos anos 2010, 0 impacto politico das agdes contra o género ultrapassou 0 escopo das disputas em tomo de legislagio e de politicas piblicas especifica, sendo notado em diferentes processos na regiéo, como o acordo de paz entre o governo colombiano e as Forgas Armadas Revoluciondrias da Colombia (Farc) em 2016, as eleigées na Costa Rica ¢ no Brasil em 2018 e, nesse mesmo ano, a oposi¢io & paridade de género na participagéo politica no Paraguai. Em grande parte, o interesse pelo assunto veio do ativismo, que encontrou josos um dos principais obstéculos ao reconhe- ¢ reprodutivos'. Académicos do campo da socio- logia ¢ da antropologia da religiio tém participado intensamente do debate com coletivos feministas e LGBTQI e produzido estudos importantes sobre 8 desafios que os grupos religiosos colocam para a agenda dos direitos sexuais € reprodutivos na América Latina”, na influéncia politica dos r cimento dos direitos sexu: Ver Yury Puello Orosco,"Mulheres, ads ereligio, Cadermos de Calica pelo Direito de Dei, 1 10, 2002, dsponivel em: , aeeso em: 12 maio 2020; Mara Vaallo, “Fundamentalism religiosos r Estado lace", em Defensa de los derechos rus en contexte fundamentalias (Buenos Ares Cisloba, CDDIIGLHRC, 2006); Sonia Cort e Richard Parker (orgs) Sealidae e politica na A ‘ict Latina bist, interes parades (Rio de Jani, Aba/Sexualty Policy Watch, 2011) Alisponivel em: , acesso em: 17 jan. 2020; Marco Aurelio Maximo Prado e Sonia Corté, “Re ‘watostransnacionalsenacionais das cuzadas ancigénero", Revita Picoegia Politica, Sio Paulo 18, 0.43, set-det, 2018, p. 44-8, disponive em: chutp://pepsic bysalud.orp/scelophp?scpt =sc_areext&pid=S1519-549X20180003000036¢h qe Maia Jou FRosadoNunes Regina Soares Jakewic, "Aborto: urgent do grupo Ca = pee Die ‘de Decidic’, em Blisabete Aparecida Pinto ¢ Ivan Aneénio Almeida (orgs) Re ides: tlenincia« iqualdade no exparo da diversidade, Sio Paulo, Fala Pretal Organizasio 4& &trm=iso>,acesso em: 17 jan. 2020. | MATRIZES DO NEOCONSERVADORISHO RELIGIOSO NA AMERICA LATINA 1 Apesar do impacto politico dessa questio nas democracias que se organizaram 1as décadas ¢ em processos politicos recentes, na area de ciéncia politica «specificamente, ainda sio poucos os estudos que assumem tal enfoque’. Consi- nas ti deramos, no entanto, que as relagbes hi 10 € politica sio incon- tornaveis para a andlise do Estado na regio, assim como para o entendimento das disputas ¢ das formas correntes de polarizacio. Um olhar atento a esses processos pode contribuir para uma melhor compreenséo da relagio entre religiio ¢ demo- cracia, assim como das clivagens politicas atuais. Estudos recentes tém também reposicionado essa discussio, abordando suas conexées com o neoliberalismo'. Este livro se insere no debate em questéo a partir de reflexdes realizadas em diferentes ircas disciplinares, levantando algumas quest6es que perpassam todos 0s capitulos. Séo elas: * Qual 0 contexto em que se definem as disputas entre movimentos femi- nistas ¢ LGBTQI, de um lado, e movimentos conservadores que se opdem 3 agenda dos primeiros, de outro? * Quais arores estdo engajados nessas disputas ¢ quais sio as principais agendas em que a controvérsia publica se estabelece? * O conservadorismo contra o género que ganhow expressio mundo afora—e, especificamente, na América Latina —no inicio do século XX1é uma continuidade de fendmenos anteriores ou estamos lidando com um fenémeno de novo tipo? ‘Mulheres Negras 2, 2004, p. 251-83; Luiz Femando Dias Duarte, Marcelo Natividade, Edi- laine Gomes e Raquel A. Menezes (orgs), Vlore religions lgilaao no Bras ramiuaio de _projetos deli sobre temas moras comtroverso (Rio de Janeiro, Garamond, 2009); Juan Esquivel, “Religion and Politics in Argentina: Religious Influence on Legislative Decisions on Sexual and Reproductive Rights", Latin American Penpecives, 22 fex. 2016, p. 133-43: Macarena Sicz.¢ José Manuel Morin Faiindes, Seo, delitosy pecados:interccones entre reign, sexualidad y el derecho en América Latina (Washington, DC, Center for Latin American & Latino Seudies ~ ‘American University, 2016); Ana Cristina Gonzdler Véle al. (orgs), Develando la retria del miedo de los fundamentaimar: ls campaia “Con mis hij note meta” en Colombia, Eewadery Peri (Lima, Cencto de la Mujer Peruana Flora Tristin, 2018); entre outros, > Mala Heun, Sex and the State: Abortion, Divorce, and the Family under Latin American Dictaor- ‘hips and Democracies (Camibidge, Cambridge University ress, 2003); Joanildo Burt, “Acena da rligito pblica: contingéncia dspersio ¢ dinamica relacional’, Nowws Estudos Cebrap, Sao Paulo, n,102, un. 2015, p. 89-105 + Flévia Biol, “O recesso da democraciae a dsputas em tomo da agenda de género", Bla da Boitempo, 24 malo 2019; Elbicta Korolcak e Agnieszka Gralf,"Gender as ‘Ebola from Brussels “The Anti Colonial Frame and the Rise of liberal Populism’, Signs: Journal of Women in Culture and Soir, 43, 4, 2018; Conny Roggeband e Andrea Krzsin, “Reversing Gender Policy Progress: Patterns of Backslding in Central and Eastern European New Democracies, European Journal of Gender and Politics. 1, n. 3, 2018, p. 367-85. 16. GENERO, NEOCONSERVADORISNO F DEMOC! «+ Considerando que género, situado nessas disputas, se transformou em ; icica ¢ elcitoral, quais sio as consequéncias da reacig J, quais sio seus efeitos em um contexto de que se tem falado no fortalecimento dy uma nova clivagem po que aqui analisamos? Em especial crescente polarizagio politica, em iliberalismo ¢ na erosio das democraci , : Nesta introdugao, oferecemos uma moldura conceitual ¢rebrica para esas ora nao seja nosso objetivo esgoti-las; néo pretendemos dar conta neste livro de tudo 0 que envolve a reagao 2 igualdade de género ¢ j diversidade sexual na América Latina nas iltimas décadas, mas sim colaborar para a compreensio dos padres atuais dessa reagao. Sabemos que as disputas em toro de direitos relacionados & posigio das mulheres na sociedade e, em especial, & reprodugao ¢ & sexualidade, nao sig propriamente novas. Nosso entendimento, no entanto, é de que hi algo novo assim, de uma andlise da tempo- questdes, emb que precisa ser descrito e explicado. Partimo ralidade do fendmeno para, em seguida, definir conceitualmente nosso objeto explicar por que mobilizamos a nogéo de neoconservadorismo, Temporalidade Embora venha sendo discutida no meio académico desde os anos 1980, a nogio de género levou certo tempo para se cornar comum em documentos internacionais e, principalmente, em debates parlamentares, campanhas elei- toraise protestos na América Latina. A temporalidade das disputas em torno do conceito de género esta diretamente relacionada a diferentes moralida- des ~ mobilizadas por atores diversos e, em alguns casos, até antagénicos ~ no que se refere as desigualdades entre mulheres ¢ homens ¢ a0 controle da sexualidade. Esti também relacionada ao processo de ressignificagio da agenda de direitos humanos e da prépria nogio de cidadania, em um perio- do de consolidagio das democracias liberais em diversas partes do mundo. O fato de que tenha dimensoes académicase politicas é revelador da posigio ‘ocupada pela produgo tebria feminista, Essa producio tem, simultaneamente, registrado, revelado e colocado em xeque fundamentos das desigualdades e das violéncias relacionadas a estruturas € ’imicas patriarcais heteronormati- vas, Em tal campo de produgio intelectual, que se expandiu justamente ness Periodo, 0 didlogo com agendas ¢ lutas politicas dos movimentos sociais ¢ © horizonte de intervensio pablica estiveram sempre presences Na década de 1970, intelectuais feministas comegaram a recorrer 20 ter™0 _sénero para catar das telagbes entre os sexos, compreendendo que as distingdes — que definem 0 feminino ¢ 0 masculino séo fundamentalmente sociais’. A abordagem histérica dessas diferengas e a compreensio relacional dos papéis € das identidades se tornariam matrizes relevantes para as pesquisas académicas. Citada com frequéncia em documentos religiosos e por atores conservadores de diversos paises que mobilizam a nogio de “ideologia de género”, Judith Butler publicaria, em 1990, um livro que teria grande impacto nesse debate, Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. Nele, questionava frontalmente obinarismo ea nogio de que ha um fundamento sexual natural que possa ser con- traposto A construgao cultural dos papéissociais, “A categoria] sexo 6 ela propria, ‘uma categoria generificada’ e nio uma realidade prévia na qual a culeura se inscre- ve’. Quando a segunda edigéo do livro foi publicada pela editora estadunidense Routledge em 1999, a nocio de género jé havia sido mobilizada em conferéncias, da Organizacio das NagGes Unidas, incorporada a documentos internacionais e mencionada em textos de intelectuais catdlicos e documentos da Igreja. E interessante observar que, apesar disso, no preficio substantivo que escre- veu para a edigio de 1999, foco de Butler esté nos conflicos no préprio campo ferninisca, uma vez que também nele a abordagem de género foi controversa € despertou debates’. © que ela disse naquele momento serviria, no entanto, para pensar nas reag6es que foram sendo construidas, etabelecendo uma nova linguagem ¢ uma estratégia politica de novo tipo: “A vida do texto excedeu minhas intengdes, ¢ isso é, em parte, certamente o resultado de um contexto de recepgio em transformagao” Uma nova temporalidade se estabeleceria com a politizagio reativa da reproducio ¢ da sexualidade", mas também da propria nogio de géneros 0 Je Rubin, “Ihe Tilfc in Women: Notes on the "Political Economy’ of Sex", em Rayna R. Reiter (org), Toward an Anthropology af Wemen (Nova York, Monthly Review Press, 1975), 157-210; ¢ Joan W. Scott, “Gender: A Useful Category of Historical Analysis", The American Historical Review, v.91, 0.5, 1986, p: 1053-75. © Judith Butler, Gender Tube: Feminiom an the Subversion of deni (2 ed Nova York/Londes, Routledge, 1999) led. brass Problemas de genre: fominismo e suber da identidade, wad Renato Aguiar, Séo Paulo, Civlzagio Brasileira, 2003] Ibidem, p. 11 (tadugio nosss) *Toxil Moi, What fs a Woman? (Oxford, Oxford University Press, 1999), Judith Butler, Gender Trouble cit, p- VI (tadusso nose). Juan Marco Vaggione, “La Iglesia catlica frente a la politica sexual: la configuracién de una ciudadaniarcligioss, Cademos Page, Campinas, 1 50, 2017, dsponivel em , acesso em: 2 maio 2018. 18 leno, NEOCONSERVADORISMO E DEMOCRACIA ologia de genero" € importance na medida em gy sente na produsio de intelectuss agentng recurso a expressio nos ajuda a compreendé-la. Pre: f 990"', o primeiro regi c estadunidenses desde meados dos anos 1990" 0 p isto des, rej catsicavriaem 1998, coma divulge, do informe “Idea oda Mulher da Conferéncia Episcopal Peruana. O informe se baseava no lvro je Gender Agenda: Redefining Equality, publicado em 1997 pela jornalista Die O'Leary. Na IV Conferéncia Mundial sobre a Mulher, promovida pela Orga. nizagdo das Nagoes Unidas em Pequim em 1995, O'Leary havia tdo atuacig destacada como represencante de organizages da dreia catSlica estadunideng, (Os relatos feitos por Frangoise Girard e Sonia Corréa™ sobre 0 que ikima definiu como “a consttuigio paulatina de uma politica antigénero” apontam para algo que seassemelha, embora em outra dimensio, 0 que Judith Butler disse np preficio & segunda edigio de Gender Trouble, mencionado hi pouco. Aatuagio conservadora, que envolveu organizagées estadunidenses, paises da Amétia Central alinhados a Santa S¢e mesmo uma articulagdo inesperada entre Vaticano ¢ Estados islamicos, como o Sudo", consista em uma reagio que demandouno- vos posicionamentos. As feministas que participaram da Conferéncia de Pequim, rmuitas delas presentes na Conferéncia das Nages Unidas sobre o Meio Am- biente ¢ o Desenvolvimento (ECO-92) no Rio de Janeiro, em 1992, enaCon- feréncia Internacional sobre Populagio e Desenvolvimento das Nacées Unidas 1no Cairo, em 1994, encontraram pela primeira vez resisténcia expressa ao uso do termo “ginero”. Foram, assim, “provocadas a explicar género” para ela pressio em um documento da 8 logia de genero: seus petigos ¢aleances” pela Comi mesmas € para os outros, (Os debates da Conferéncia de Pequim se situam em um processo de longa duragio, no qual conttole populacional e controle da sexualidade estio em disputa. Uma das novidades de tal processo nos anos 1990 foi a atividade de "José Manuel Morin Faundes, “The Geopolitics of Moral Panic: The Influence of Argentinian Neo-Conservatsm in the Genesis of the Discourse of ‘Gender Ideology”, Intemational Soi logy, 2019, v.34, 2. 4, p 402-17 Ver Sonia Gorté, “A politica do genera ‘ ea Campi- lum comentirio genealdgico", Caderns Pag Camp! ‘as, n. 53, 2018, disponivel em: , aces em: 12 maio 2020. Ver Juan Mateo Vaggione, ¥ 2 Maria das Dores Campos Machado, “O discurso cristo sobre a‘deologia de géncro”, Revita Estudos Feministas, v. 26, n. 2, 2018. “La Iglesia carlica frente ala politica sexual”, cit 22. GENERO, NEOCONSERVADORISMO F DEMOCRAC + movimemtagdes no Ambito do Juicirio, nas quais jf asumiam a forma ge uma politizagio reativa”. Na década de 2010, a “ideoloy on politica eficaz. Como uma espécie de “cola simbéliea™, tem, desde eno, viabilizado a atuagio conjunta de atores cujos interesses S20 originalmente Uistintos, Catolicos e evangélicos conservadores tém se unido para bloquear avangos no campo dos direitos sexuais, redefinir 0 sentido dos ditits ¢ cam alguns casos, legitimar a censura. Contam com profisionais das areas de direto, ciéncia politica e psicologia, entre outa, com politicos cuja identidade publica nfo é necessariamente de cunho 10 Programa Nacional de Direitos Humanos ‘onal de Educagio para 0 decénio de ia de género” se difundiu como estratéyg das politicas pablicas e, religioso, No Brasil, reagbes a de 2009 (PNDH-3) ¢ ao Plano Na 2011-2020 mostraram a forma aguda que as disputas assumiriam a partic co apelo popular dessa estratégia ficaria evidente de entio. Ao mesmo tempo, no ciclo de protestos de rua dos anos 2010, inicialmente na Europa e, em seguida, a partir de 2016, em diversos paises latino-americanos, a comesar por Colombia, México e Peru. ‘A educagio referenciada pela igualdade de género e pela diversidade sexual é tum eixo central das disputas, juntamente com a unio entre pessoas do mesmo sexo € a adogao por casais assim formados. E hd uma continuidade entre esses cao politica que se estabelece em diferentes paises. temas ¢ a mobi Na Franca, por exemplo, desde 2010 organizacées catdlicas conservadoras, algumas delas ligadas & Opus Dei, dos & igualdade de género e & diversidade sexual nas escolas. Contudo, foi o inham atuando contra contetidos associa projeto de legalizagio do casamento igualitério, apresentado pelo governo 0 Parlamento em 7 de novembro de 2012 e aprovado em 23 de abril de 2013, que disparou manifestages com milhares de pessoas nas ruas de Paris’. Co- nhecidas como La Manif pour Touts [a manifestagao por todos), aram-se em 2012, mesmo ano do primeiro dos sucessivos protestos contra o conceito de género realizados na Polonia, Os movimentos antigénero colaboraram para Ver Juan Marco Vaggione, “Reactive Poitcization and Religious Dissidence: The Political Satan ofthe Rls Sal Try and Pcie. 3, 9-2-2015, p 28555, er Eater Kovts ¢ Mauri Psi (ngs. Gender as Symbolic Glue (Buslapeste Brn, FEPS! Friedrich-Ebert ifn, 2015) e om Michal Stambolis-Ruhscorfre Joslin Ticou, “Resisting Gender Theory in France’, Roms Kuhar € David Patternote (orp. Ant-Gender Campaigns in Europe (Londes/Nova Yok Rowman & Lilefld, 2017) npaigs in Eurape (Londee!N MATRIZES DO NEOCONSERVADORISMO RELIGIOSO NA AMERICA LATINA 23, a vit6ria da direita polonesa nas eleigdes de 2015, quando algumas de suas liderangas passaram a fazer parce do governo,e tém sido também associados aos avangos da extrema direita na Hungria Na América Latina, as politicas para a edueagio sexual integral, incluidas em planos educacionais ¢ em legislagdes especificas em varios paises a partir de 2010,¢ coreconhecimento do casamento igualititio por meio de les especificas (Argentina, 2009; Uruguai, 2013) ou de decisoes das cortes constitucionais (Brasil, 20115, Colémbia, 2016; Equador, 2019) também dispararam manifestagées, que serio abordadas neste livro*. Entre elas, estio a Marcha de la Familia, na Colombia, que levou milhares as ruas em 10 de agosto de 2016; a marcha organizada pela Frente Nacional por la Familia, no México, um més depois; ¢, em novembro do mesmo ano, 0 langamento da campanha #ConMisHijosNoTeMetas no Peru, que anteciparia marchas massivas naquele pais a partir de margo de 2017. E importante reromar 0 argumento de que o recurso 2 “ideologia de género” como estratégia politica tem sido uma forma de inci ir sobre processos politicos mesmo quando 0 que est4 em questéo nao sao diretrizes piiblicas especificas. E algo que sera exemplificado nos capitulos a seguir. Neste livro, o foco esta nas reagées ao género. Uma das questées propostas na obra diz respeito justamente a como defini-las, levando em conta a comple- xidade que procuramos abarcar na definigio desse fendmeno. Uma moldura teérica que permita, ao mesmo tempo, conecté-lo a processos histéricos € compreender sua novidade nos parece a mais adequada. Também nos parece necessirio que a abordagem seja capaz de levar em consideragio a muleiplici- dade de atores envolvidos, assim como 0 eixo atual das disputas entre atores progressistas e conservadores. Neoconservadorismo ‘Uma das principais formas de caracterizagio dos atores religiosos contritios a0 sgfnero ¢ de suas agendas é consideri-los parte de um movimento conservador consolidado em toda a regio. Contudo, o debate sobre o conceito de conser- vadorismo é muito vasto. “Agnieszka Graff, “Ideologia de género' conceptos débile, politica poderos, em Sara Bracke ‘e David Patcrnorce (orgs), Habemus gener! La Iglesia catlice y la ideolgia de gine (Rio de Janeiro, Abia/Sexuality Policy Watch, 2018), p. 84-91. Ver Bbieta Korolezuk e Agnieszka Graff, “Gender a ‘Ebola from Brussels”, ci. * Ver, neste volume, capitulos 2¢ 3. 2.4. Gbntno, NEOCONSEIVADONSMO # DEMOCEACIS ue a nogio de conservadorismo € posiconal, € deol, ¢ Entendemos 4 ; desenvolver em resposta ou reg, nto politico conservadores se v stbrcas de mudangas na estrucura social politica”, Qy im a aparecer quan dors tendem a aparecer quando segmeng, stabelecida se fortalecem a pony, © mov cia a situago ideologia ¢ iniciativas conserva sociais minoritérios que desafiam a ordem es de ameacar os fandamentos ideais e materiais das inti Sabemos que rulos so importantes quando temos como objetivo com, preender um fendmeno social ¢ politico. Uma caracteristica das publicagées sobre a reagio conservadora ao género ¢ justamente a dispersio de rétulg J foi definida como fundamentalismo™, movimento goes, utilizados para nomeé-la. antidireitos", contramovimento”, movimento antigénero”, neointegrismo™, politica de reconhecimento hiper-teacionsria™, entte outros rétulos. Apesar da vatiedade terminolégica, os estudos tendem a identificar dimens6es semelhantes esse fendmeno em diferentes paises. Uma das dimensées é a defesa de uma concepsio de ordem sexual ¢ familiar considerada ameagada. ‘Aordem sexual defendida, perante a dos movimentos feministas e LGBTQ, bascia-se na moralidade cristi, na legalidade e no caréter proctiador do sexo, ‘A definigio do ato sexual por seu fim reprodutivo se estabelece em oposigio& autonomia ¢ ao prazer. Esses iltimos so recusados como principios legitimos Uma perspectva inluente nesse sentido é a de Huntington, Ver Samuel P, Huntingon, “Conservatism as an Ideology”, The American Political Science Review, v.51, 2, jun. 1957 454-73. Ver Ana Cristina Gonziler Vélex etal. (orgs), Develando lt retirica del miedo de ls fandane- sales, * Ver Mario Pecheny e Rafael dela Dehesa, “Sexuality and Politics in Latin America: An Outline {for Discussion’, em Sonia Cortéa, Richard Parker e Rafael de la Dehesa (orps.), Sexuality ard Politics: Regional Dialogues from the Glabat South (Rio de Janeiro, Abia/Sexuality Policy Watch 2014), p. 96-135. Alba M, Ruibal, “Feminism frente a fundamentalism rlgiosos: mobilzago consumo gio em worn dos dos rprodutvos na Antic Latina, Revita Bln de ei alitcu, v. 14, 2014, p. 111-38, disponivel em: chueps:l/dx.doi.or 070103- Sonia Corréa, "A ‘politica do género™, ct, Nr Monsrat Sigs, “Un paso alate y dos aris? La rortuosa marcha del mois? {ela nennegmo yds soc en Cena em Als C8 ee ontime combi il en Arica Lain y ef Caribe (Buenas Ares, Cas 201+ "Nancy Frases, The Olds Dying and the New Cannot Be Barn (Nov York Verso, 2019) fd: 2 O welho estd morrendo ¢ 0 nove nao | Gi 5 Ont tr pode nse, ad, Gail Lan Fuzz, io Paulo, Autom -MATRIZES DO NEOCONSERVADORISMO RELIGIOSO NA AMERICA LATINA 25 para o exercicio da sexualidade e para sua regulagio. Por sua ver, a concepcio da familia é baseada em uma definicao exclusivamente heterossexual de casamento (heteronormativa), na qual criangas e mulheres sio supervisionadas pelo pater- familias (patriarcal). Qualquer tentativa de estender os limites morais ¢ legais que definem a familia para além do casamento heterossexual como fundador do parentesco ¢ rejeitada. Um termo mais recente, adotado em diferentes publicagées e congressos, € neoconservadorismo™. Esse termo foi formulado inicialmente nos Estados Unidos, na segunda metade do século XX, para descrever as reagdes de intelec- tuais conservadores dos anos 1970 aos movimentos de contracultura”. A partir de entio, seria utilizado no apenas para descrever 0 modo como as ideologias conservadoras se definiriam no contexto estadunidense, mas para langar luz. sobre os tipos de coalizées politicas estabelecidas entre diferentes atores — religiosos € nao religiosos — visando manter a ordem patriarcal ¢ sistema capitalista, expressando-se com forga no contexto latino-americano. Conceitualmente, permi uma aproximagao entre conscrvadorismo cristéo € individualismo liberal, assim como entre antipluralismo e neoliberalismo™. Na América Latina, é na andlise de cristaos conservadores, pa gélicos, que alguns autores tém explorado as afinidades eletivas com politicas neoliberais na forma da “teologia da prosperidade”, de uma énfase ampliada no mérito individual e no “empreendedorismo”. sularmente evan- O termo neoconservador tem, como outros, vitias limitagées; no entanto, permite caracterizar 0 fendmeno em sua emergéncia no momento politico atual, ressaltando as coalizies diversas que o sustentam em um contexto especifico. Segundo ‘Wendy Brown, ele se refere a uma racionalidade politica que se expressa em forte regulacao da motalidade sexual. Essa racionalidade promove uma forma de cultura politica e de politica de subjetivacao que prioriza a mobilizagio do direito de proveger e garantit uma moral sexual baseada na defesa da familia (heterossexual) legitimada por seu potencial reprodutivo. Isso se dé justamente Camila Gianella Malea, Rachel Seder e Maria Angélica Pefias Defago, "A New Conservative Social Movement? Latin America’s Regional Strategies to Restrict Abortion Rights’, CMI Brie Bergen, v. 16, 2017, p. 1-5; ver também Marina Basso Lacerda, O novo comervadorismo bras kkio (Porto Alegre, Zouk, 2019). » Ver Terence Ball, Richard Dagger © Daniel I. O'Neill, Political Ideologies and tbe Democratic Ideal (10. ed, Nova York, Routledge, 2017). Wendy Brown, “American Nightmare: Neoliberalism, Neoconservatism, and De-Democratiza ,Poitcal Theory. 34, n. 6, 2006, p- 690-714. t ISERVADORISMO E DEMOCRACIA 26 cbeRo, NEOCON’ as moralidades ganham legitimidade no sistema internaciong mo regional ¢ nacionalmente. el Foucaule sobre a governamentalidade inspira g outros autores que tém procurado associar 6 neocon, medida que outr de direitos, assim co! A discussio de Mich terpretacio de Brown” € servadotismo com uma nova neoliberalismo. E aqui nao se t da ilosofia cigncia politica, mas do governo “no sentido amplo de téenicas¢ a conduta dos homens" e ou de produgiy forma de governo, alinhada com as exigéncias do rata da instituigao governo, central nos estudos procedimentos destinados a dirigir cde novas formas de subjetividades. neoconservadorismo pode, assim, ser analisado como uma légica norma- tiva ¢ disciplinadora interiorizada pelos sujeitos contemporineos, confor. rmando-os ao “principio universal da concorréncia". Vai além de um projeto defensivo ou de uma tentativa de obter representagio do Estado, consolidando- se como um modelo de governanga ¢ cidadania. Um dos aspectos mais importantes da alianca entre neoliberais e conser- adores, que engendra o neoconservadorismo, é que eles convergem em uma A presenga mais intensa das narrativa da crise que tem como lécus a familia mulheres no mercado de trabalho remunerado na segunda metade do século XX é vista como fator desestabilizante do casamento e da boa criagio dos fihos. 1 parte das mulheres, nunca howe a Tirante o fato de que, para a m: possibilidade de nao realizar trabalho remunerado, a apologia da familia pa- triarcal projeta nela formas de seguranca econdmica disponiveis apenas para poucas®, Além disso, o divércio e a autonomia sexual produziriam, na pets- pectiva dos neoconservadores, um quadro de irresponsabilidade masculina ¢ de vulnerabilidade feminina, para o qual a solugio seria a adogio de polities r6-casamento” € “pré-familia", Trata-se de uma politica de responsabilizagio Em “American Nightmare’, artigo de 2006 tado, mas também nos livros posterores, Undbing de Demos: Nealiberalio’ Stealth Revolution (Nova York, Zone Books, 2015) eo mais ents /* the Rain of Neolberalm (Nova Yok, Columbia University Press, 2019). Miche! Foucault, “Do governo dos vives (1979-1980)", em Resumo das cursos do Callége de France (1970-1982) (wad. Andrea Daher, Rio de Janet, Zahat, 1997), p. 101 Pierre Dardot ¢ Christian Laval, A now razao do mundo: enti sobre a s neoliberal (ad Mariana Echalar, Sio Paulo, Boitempo, 2016), a Melinda Cooper, Family Valuer: Between Neolibealism ost eon eran and the New Social Conservatism (B Flavia Bi Idem. i, Familia: ows concites (Sao Paulo, Perseu Abramo, 2014), MATRIZES DO NEOCONSERVADORISMO RELIGIOSO NA AMERICA LATINA 27 fundamental i agenda neoliberal de privatizagio e desregulamentagao®. Ainda queo “familismo” possa ser apreendido na alianga entre setores religiosos e nao religiosos, parece-nos ser sobretudo no campo da regulacéo da reprodugao e da sexualidade que os primeitos setores tém protagonismo. O.uso do conceito de neoconservadorismo permite identificar as principais mutagdes € matrizes que caracterizam as ages reativas ¢ contemporineas de setores religiosos diante das mudangas nas formas de regular a ordem sexual. O fendmeno se localiza em uma temporalidade politica especifica, marcada pelo impacto dos movimentos feministas e LGBTQI, como mencionado anteriormente. Conquistas importantes na esfera legal de virias sociedades, como a extensio da permissio para o aborto, o reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo e a aprovagio de leis de identidade de género, tiveram como consequéncia nio intencional o surgimento de estratégias, discursos e atores renovados no campo conservador. As atuais rearticulagées conservadoras respondem a uma politizagio reativaY gerada pelo impacto dos movimentos feministas e LGBTQI na América Latina, que levou alguns atores religiosos a adaprarem suas estratégias ¢ seus argumentos para maxi- mizar a influéncia nas formas de regular a sexualidade. Sem ignorar a existéncia de diferengas e tenses no neoconservadorismo, © antagonismo com movimentos feministas e LGBTQI nos permite enxergar uma identidade comum ¢ um projeto compartilhado. A configuracio desses movimentos como um exterior constitutivo"” per homogeneizar atores € argumentos neoconservadores diferentes entre si. Em outras palavras, apesar da diversidade e das tens6es internas ao campo de agéo desses movimentos, diferenciando-se dos movimentos feministas e LGBTQI e combatendo-os que a reagao neoconservadora de que falamos ganhou identidade politica. Caracterizando scus antagonistas como movimentos ideolégicos que de- veriam ser rejeitados, os neoconservadores dao continuidade & légica ativada por rétulos como “feminismo radical’, “agentes de uma cultura da morte” € “hedonistas’; entretanto, a nogio de “ideologia de género” como estratégia © Ver Wendy Brown, Inthe Ruins of Neoiberaiom: The Rise of Anvidemocrti Polite im the We (Nova York, Columbia University Press, 2019), Juan Marco Vaggione, “Reactive Plticzaion and Religious Dissidence: The Political Mutations of the Religious in Social Theory and Practice", Socal Theory and Practice, Tellahasse, v.31, 1.2, 2005, p. 233-5. © Chantal Moule, En tome a lo poitio (Buenos Aires, Fondo de Cultura Econémica, 2007) 28. GENERO, NEOCONSERVADORISMO DEMOGRACIA politica consstiv em uma novidade que permit coalibes amplas desde gy regs 1990 ¢ aumentou a mobilizacio popular nos anos 2000, adquitinds senvaldade politica na América Latina na segunda década deste sécul, com, discutido na segao anterior Para analisar esse fenémeno, identificar algumas matrizes das ages contempo! vem arores catdicose evangélicos, propomos cinco dimensoes que permitem rineas do conservadotismo com suas especificidades,envo religioso e que, conservadorismo permite jogar luz sobre as A primeira é que 0 conceit de neo: aliangas ¢afinidades entre diferentes setores. Nesta anilise, interessam-nos particularmente as aliangas ¢ afinidades entre setores evangélicos ¢ catéicos, uma vez que a maioria dos pentecostals latino. _americanos refutaram as iniciativas dos movimentos ecuménicos da segunda metade do século XX", Hi, porém, motivos para considerar essas alianas diversas para além dos atores religiosos. Estudos mostram que organizagées empresatiais, proprietirios de terrae militares tém tido papel na organizacio de campanhas eleicorais ¢ no peso que os atores neoconservadores tém assumi 1nos egislaivos®. Do mesmo modo, o processo politico brasileiro recente expe ‘uma alianga entre extrema direita ultraneoliberais e milicares na qual a reagéo 20 género vem sendo um eixo central desde a campanha eleitoral de 2018 até as politicas de governo em diferentes ministérios. Embora a regio tenha uma longa experiéncia com a atuagio da hierar quia catélica junto a0 Estado em defesa de uma moralidade reprodutiva ¢ Marcado pela cisiparidade e pelo carter plural, o universo protestant foi responsive pels n cas na Buropa e nos Estados Unidos. No caso da Amétia Latina regiio onde, durante séculos, a correlacio de forgas entre 0s cristios foi bem desigua, fivore cendo a Igreja cavlica as ages ecuménicas ganharam forga na segunda merade do século XX, ‘mais precisamente depois do Concilio Vaticano IL (1962-1965). As iniciativas de aproximagio dda igrejascristis mobilzaram segmentos luteranos, presbiterianos, anglicanos ¢ catélicos &2 regio, mas gcaram desconfangas nos grupos pentecostais, que adotaram uma posi ci ci # co, Soe ra do mine ama Ano Go Mendonga, “O movimento ecuménico no século XX — al : . s > no século XX ~ algumas abservagées sobre suas oie cava Tepe ns: Digi ano 3 12,208, spn em , 108 ‘em: 8 jul, 2020, sp*cod_artigo=2368¢cod_boletim= 1 3&tipo=Artigo>, 4°°5 i pers Sole Va ¢ Laura Castro, “Colombia: educacién sexual, diversidade ¥ 2? selene ees Seal eer, em Ana Cristina Gonailez ele tal (oe) OF siete le del dementia ch. Verte Re Wikio Familse Transnational Po-Family Activa. in My ferns ene exe. paper apresentalo na Con TEJP-Flico México Femmes y Conseradariamos, Cidade do Méxi, 200 primera incitivas ecu MATRIZES DO NEOCONSERVADORIGMO RELIGIOSO NA AMERICA LATINA 29 matrimonial, 0 neoconservadorismo integra atores do campo evangélico € engendra novas formas de atuacio politica, Aalianga conjunt 6 éli licic alianga conjuntural entre atores catdlicos ¢ evangélicos tradicionalistas, impelida pelo forte cxescimento dos pentecostais em virios paises do continen- te, defende a familia heterossexual, a vida desde a concepgio ¢ a moralidade cristé. Opera unificando esses atores no debate e na agio politica, como se nao houvesse disputas morais dentro do catolicismo € do pentecostalismo, assim como entre ambos. Essa alianga baseia-se na rejei¢io comum ao aborto ¢ & homossexualidade, embora haja énfases diferentes nesse sentido. O neoconservadorismo catdlico €inflexivel quanto & questio do aborto, uma vez que néo ha, dessa perspectiva moral, possibilidade de excegées a sua criminali afirma que “a vida humana deve ser respeitada e protegida absolutamente desde 0 momento da concep¢ao” ¢ considera o aborto “seriamente contririo a lei mo- ral”, Quanto & homossexu: lade, embora a considere um ato “intrinsecamente desordenado”, a Igreja sustenta que os homossexuais “devem ser acolhidos com respeito, compaixio e delicadeza”, Dessa maneira, os setores neoconservadores catélicos tendem a ser mais tolerantes em questées relacionadas & homossexua- lidade — desde que o casamento seja exclusivo a casais herterossexuais — do que em relagéo ao aborto, cuja criminalizacio nao permite excegdes. ‘A desqualificagéo da homossexualidade também se faz presente entre neoconservadores evangélicos. Alguns grupos pentecostais adotam priticas de exorcismo para combaté-la ow criam centros com o propésito de oferecer acompanhamento espiritual ¢ ajuda de terapeutas cristios aqueles que nio se ‘enquadram na heteronormatividade. Na realidade, esse segmento constituiu nas tilkimas duas décadas um grupo de especialistas — no campo da psicologia e da advocacia — para garantira reproducio dos valores cristios e defender a liberdade de expressio dos lideres pentecostais sobre a tematica da homossexualidade. De modo geral, observa-se oposicao de politicos pentecostas is iniciativas legislativas ejudiciérias a favor das minorias sexuais, em especial aquelas inicia- tivas que valorizam os lagos afetivos na composigao das familias, criminalizam ahomofobia c estendem 0 direito de adogao a casais do mesmo sexo. Assim, 0 tema da homossexualidade parece mobilizar mais os atores neoconservadores, Joa Luis Pca Guadalupe e Sebastian Grundberge (rps), Esnglioy poder en America La tina (Lima, Instituto de Estudios Social Cristianos/Konrad Adenauer Stiftung, 2018). 30. GENERO, NEOCONSERVADORISMO F DEMOCRAGIA «do quea questo da incerrupeo da gravider. Como mostra ps, fee », hd posigoesdiferenciadas sah, a ; licatvas na Argentina* e no Brasi quisas qual ‘ do aborto entre os pentecostais. ‘a ampliagao dos permissivos ; + das diferencas doutrindrias, das formas de organizacio ¢ governy (eclesidstico, congregacional ou presbiteriano) ¢ até do confronto histérieg dos evangélicos com a Igreja catlica, esses arores atualmente compartilham g agenda antgénero. Ela prmitiu uma politica de aliangas dos lideres penteosas iilitantes catélicos em varias sociedades da regio, Mais do ma tendéncia de mimetismo, com os setores pentecostais Apesa com intelectuais € queisso, percebe-se u adotando configuragbes discursivas~ associagao do aborto & cultura da more, narrativa da “ideologia de género” ~ e estratégias de intervencio na sociedade «nos circulos de poder politico oriundas da Igreja catdlica, em especial do movimento da Renovacio Carismatica. CChegamos, assim, a uma segunda dimensao do neoconservadorisma: a acen- tuada juridificagao da moralidade. (3s setores religiosos conservadores levaram as preocupag6es sobre a regu- lamentagio moral da sexualidade para 0 campo do diteito, particularmente a rea de direitos humanos, como estratégia e arena para enfrentar movimentos feministas e LGBTQI. Para 0 catolicismo, a sobreposi ¢ leis seculares € um componente central de sua posicio naturalista, Precisa- mente, diante da incorporacio dos direitos sexuais ¢ reprodutivos como parte dos direitos humanos, a Igreja catélica ativou um discurso baseado em uma ‘moral sexual universal, que reflete a defesa da familia natural e da sexualidade vinculadas & reproducio. jo entre moral religiosa Para o campo catélico, 0s direitos humanos si uma prioridade politica contra o avango dos movimentos feministas e LGBTQI. Na visio do Vaticano, 0 impacto desses movimentos nas Nagdes Unidas em meados dos anos 1990 precisava ser contido. Esse posicionamento é, assim, um marco central na consolidagao da reagio neoconservadora: trata-se de redefinir sentidos ¢ limites para os direitos, nao simplesmente recuséclos. Diante da inser¢ao dos direitos sexuais e reprodutivos no campo dos direi- tos humanos, o Vaticano se mobiliza para renaturalizar o discurso sobre 0 Ve Dud Fb Dab p18-21. oem MaDe Cane Maat, Di Cin ne brieta evangélica", Criss, Buenos Aires, n. 36, 201% “Abort cativismo reigioso nas ees de 2010" Revit 9.7, 2012, p. 2537 MATRIZES DO NEOCONSERVADORISMO RELIGIOSO NA AMERICA LATINA 31 direitos humanos, defendendo uma moralidade sexual reprodutiva ¢ unitéria. Em 2000, o Pon icio Conselho para a Familia da Santa Sé declarou: “Algumas agéncias internacionais, apoiadas por poderosos lobbies, querem impor” novos direitos “a nagdes soberanas, como ‘direitos reprodutivos, que abrangem o acesso a0 aborto, esteilizagio, ao divércio fécil, um ‘estilo de vids’ da juvencude que incentiva a banalizagao do sexo, pais na educagio dos filhos”®, © enfraquecimento da justa autoridade dos Essa defesa dos direitos humanos se reflete nas ages neoconservadoras de paises da América Latina, tanto em debates juridicos quanto em tribunais judi- ciais. A legitimidade desse discurso ¢ familiar ao conservadorismo catélico, que entende sua apropriagéo em defesa da vida e da familia como uma estratégia relevante*, Na Argentina, por exemplo, organizagdes néo governamentais (ONGs) “pré-vida" intervém com estilo proprio em processos judiciais e debates parlamentares por meio de uma interpretagio dos direitos humanos que nega direitos sexuais e reprodutivos. Em debates politicos ¢ juridicos, tem-se observado a defesa dos direitos hu- manos de pais, de nascituros ou de criangas e adolescentes como os princip: argumentos a favor da vida e da familia, contra a agenda feministae LGBTQI*. Essa apropriagao do discurso dos direitos humanos foi observada também no debate sobre a legalizacdo do aborto na Argentina em 2018 ¢ 2019, quando setores opostos & reforma legal abreviaram as normas internacionais para afirmar que os direitos humanos protegem a vida desde a concepcio. A tendéncia a traduzir suas posigdes morais em termos de direitos nao se limita aos catdlicos. Os pentecostais, que se tornaram hegeménicos no campo cevangélico da América Latina, também tém usado a gramética dos direitos hhumanos para defender a liberdade de crenga, as prerrogativas das instiuiges religiosas e, em algumas sociedades, a insergio dos principios morais cristios nos quadros constitucionais. 5 Pontfcio Consejo para la Familia, “La Familia y los Derechos Humane dsponivel em: chp! ww.vatican.va/roman_cutia/pontifical_councils/family/documents/rc_pe_family__ doc_20001115.farily-human-rightssp.htmlt_fenre6S>,acesso em: 12 malo 2 lynn M Morgan, ";Honrara Rosa Parks? Intent de los sectors caélicos conservadores vor de los ‘derechos’ en la Amética Latina contemporinea, Sexulidad, Salud y Seciedad Rio de Jancto, n, 17, 2014, p.174-97. Mara Anglia Peas Defagoe José Manuel Morin Fainds, “Conservative Litigation Aguas Senual and Reproductive Health Policies in Argentina", Reproductive Health Matter, v. 1.44, 2014, p. 82-90. 32. cineno, NEOCONSEINADORISMO B DEMOCRACIL Mais uma ver, a estratégia de confronto piiblico com os segmentos sociais luralismo ético se acentuaria com 0 recurso & nogig de Na midia, nas igrejas, nos espacos de poder policy — vos — e nas ruas, evidenciaram-se as tens6es entre 9 que advogam um ph “ideologia de género" sobretudo nos legislat direito & igualdade de gén liberdade rligiost na regio. Revelou-se, nesse processo, 0 crescente destague «a contra a compreensio da sexualidade como ‘ero ¢ 0 que foi codificado como parte do direito 4 da lideranga pentecostal na lu tum elemento relevante da cidadania, a legalizagao do aborto © a educacio sexual nas escolas®. No Brasil, desde o langamento do terceiro Programa Nacional de Dis Humanos pelo governo federal em 2009, instaurou-se uma franca disputa ‘em tomo dos sentidos ¢ limites dos direitos humanos por parte de atores re- ligiosos neoconservadores ¢ aivistas feministas ¢ dos movimentos LGBTQL Nas controversias em questio, ora o direito a vida do nascituro era colocado ci contraposigio & demanda feminista pelo direito ao aborto, ora o dircto A liberdade religiosa e de expressio eram enquadrados como ameagados pela cexpansio dos direitos LGBTQ, em especial pela proposta de criminalizagio da homofobia™”. Com a vitéria de Jair Bolsonaro, a pasta diretamente responsivel pelas politicas no campo dos direitos humanos foi entregue a uma advogada pastora que se define como “terrivelmente crista”, Ainda que se possa discutir seus efeitos sobre as democracias, como o fare- mos, uma terceira dimensio do neoconservadorismo é que ele opera em contextos democraticos. F.justamente no periodo em que se deu o processo de liberaliza- a0 dos regimes politicos na regio, nos anos 1980, que novos atores coletivos puderam tomar parte da cena piiblica, com o retorno ao pluralismo partidirio € A liberdade de expressao e debate apds longos periodos de regimes ditatoriais em varios patses da re Em obras influentes, a literatura na area de ciéncias sociais crata desses nove s coletir i (0s atores coletivos numa perspectiva progressista e de movimentos ¢ Macs ds Doss Capos Macho, “0 dca Maio Pecheny « Rafiel 4 Dehesa, “Sexuality and Politics in Latin America”, cic; Daniel Jones ¢ Paloma Dulbecoos "Lt trict evangéica’, ci Maria das Dores Campos Machado e Fe f ‘ampos Machado © Fernanda Picllo (orgs), Reiges ¢ bomescualiid {eo de ci, FEN. 2010; Mar das Does Cs Maud, etccan eo amano Congreso Naclonal", HoriontesAaopaliiam, Prt Algi. 23 1-47, 2007 ‘eligi cas eles 2014 (Rio de Janeiro, Funda Heineich Ball 201) MATRIZES DO NEOCONSERVADORISMO RELIGIOSO NA AMERICA LATINA 33 6 ese 58. Ni organizagoes de esquerda®*. Nao foram apenas setores progressistas, no entanto, que recorreram a novas estratégias de intervencio publica, com os canais de participagio reabertos ea contestagio publica assum padrio. Atores conserv: lo um novo conservadores também o fizeram, Dessa maneira, & possivel observar a proliferacio de organizacées da sociedade civil, partidos politicos confessionais ¢ mesmo funcionérios piblicos que, orientados por principios religiosos, buscam impactar o Estado e suas leis. Atores catélicos conservadores ec evangélicos “maximizam” a ativacio dos canais da democracia para perma- necer influentes nesse novo contexto. Nossa hipétese, como serd discutido, € que 0s atores conservadores so também participes nos processos recentes de transformaco das democracias, em um momento em que, mais uma ver, seu sentido esta em xeque Essa acio no contexto democritico implica, entre outras quest6es, compreen- der que asociedade civil e politica inclui os atores conservadorese, especificamen- te, 05 religiosos. Sem ignorar sua genealogia religiosa, o neoconservadorismo é composto por uma diversidade de atores que complexifica o fendmeno. Como parte da sociedade civil, ha um ntimero crescente de organizagées nio gover- namentais “pré-vida’ ou “pré-familia” nos paises da regiéo. Essas ONGs tém diferentes tipos de vinculos com os religiosos: algumas séo associagées que dependem institucionalmente da Igreja catélica, outras se identificam com 0 catolicismo mesmo por meio de seus nomes (Portal de Belém, Associagio de Advogados Catélicos etc.) e, por fim, existem ONGs que se apresentam como ecuménicas ou nao religiosas®, A Igreja catélica tem operado no ambito estatal ¢ influenciado o sistema partidério de diferentes manciras historicamente. A formagio de partidos democratas cristaos foi uma das estratégias catélicas a0 longo do século XX. Atualmente, as agremiagées partidérias confessionais nao sao a estratégia privile- | sada; no entanto, a Igreja continua a ter impacto sobre a politica nos paises da regio, tendo acesso direto a governantes e sendo parte da histéria néo apenas de partidos conservadores, mas também dos progressistas. E 0 caso do Partido Eder Sader, Quando novos pesomagens entrar em cen: experiécias eats dos rabalbadores da Grande Sao Paulo, 1970-80 (Séo Paulo, Paz e Terra, 1988) Ver José Manuel Morin Fatindes, “El desarollo del act j 1980-2014", Revita Mexicana de Sociologia v.77, . 3, 2015, p. 407-35, dsponivel 1-30188-250320150003 ismo autodenominado ‘Pro-Vids' en Argencin fem: , acess em: 12 mao 2020.

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