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Álvaro de Campos

• Campos, o poeta da modernidade;

• O imaginário épico: matéria épica; a exaltação

do Moderno; o arrebatamento do canto;

• Análise de excertos da “Ode Triunfal”;

• Características da poesia de Campos


2

Tempos Modernos, Charlie Chaplin, 1937

https://www.youtube.com/watch?v=yAXdP3StGSc
3

Futurismo

• Movimento italiano de início do séc. XX (Marinetti);

• Rutura com a vida e a arte do “passado”; quebra da tradição

defesa de uma estética


• Criação de uma nova estética para um novo mundo; não-aristotélica, baseada
na exaltação da força
• Celebração da modernidade industrial e urbana;
apologia da civilização
• Culto da máquina e da velocidade; tecnológica

• Fruição do mundo moderno (ligação ao Sensacionismo de Pessoa)


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«A Ode Triunfal de Álvaro de Campos, whitmanescamente caracterizada


pela ausência de estrofe e de rima (e regularidade), […] ocupa nada
menos de 22 páginas de Orpheu, é uma autêntica maravilha de
organização. Nenhum regimento alemão jamais possuiu a disciplina
interior subjacente a essa composição, a qual, pelo seu aspeto
tipográfico, quase se pode considerar um espécime de desleixo
futurista. As mesmas considerações são de aplicar à magnífica Saudação
a Walt Whitman no terceiro Orpheu.»

Fernando Pessoa, Páginas íntimas e de autointerpretação.


Álvaro de Campos

Poema
«Ode triunfal», pp.80-86
6

Título: «Ode Triunfal»

O que é uma “Ode”?

É uma composição poética lírica, laudativa (= faz um louvor/elogio)


ou amorosa, que tem a sua origem na poesia clássica grega, e que se
organiza em estrofes simétricas.
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Na «Ode Triunfal» de Álvaro de Campos, encontramos essas características?

A “Ode” de Campos apresenta, a nível formal, características


completamente diversas, pois, neste caso, temos uma composição em
versos longos, versos brancos, alternando com versos curtos, com
métrica irregular.

Campos rompe com o paradigma clássico


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Título: «Ode Triunfal»

O que significa “Triunfal”?

1. Relativo a triunfo.

2. Que perpetua o triunfo.

Triunfo – nome masculino

3. Honras solenes prestadas pelos romanos aos generais vencedores.

4. Vitória brilhante; grande êxito.


Remete para aplauso, para uma
5. Ovação estrondosa. manifestação de sucesso e de

6. Prazer, regozijo, júbilo. reconhecimento.


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«Ode Triunfal»

O título desta composição poética de Campos explica-se pelo


facto de o poeta nela cantar, elogiar, exaltar, a beleza da civilização
Canto
moderna, daí recorrer à ode, dado o seu caráter laudatório. Por arrebatado
outro lado, o adjetivo “triunfal” vem reforçar o vigor e a supremacia
do poder e da beleza da máquina face ao belo até aí apreciado,
marcando, assim, um contraste entre estéticas.

A estética do belo com uma


A estética do belo relação muito próxima com
tradicional, energia, a força, o vigor da
Versus máquina, que remete para a
aristotélico,
clássico. tecnologia e para a civilização
moderna.
Ode Triunfal

Tenho febre e escrevo


rangendo os dentes
meus nervos dissecados fora
a
todas as papilas fora de tudo
Tenho os lábios secos
E arde-me a cabeça
Em fúria… dentro de mim

Em fúria fora… de mim


«Ode triunfal», Álvaro de Campos

À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica


Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos. Apóstrofes,
onomatopeia,
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno! aliteração
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora, Sensações
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto! gustativas,
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos, auditivas e
De vos ouvir demasiadamente de perto, táteis
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!
Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical —
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força —
Aliteração
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro Fusão dos
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes elétricas tempos
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.

Verbos Volúpia da
onomatopaicos imaginação
Comparações valorativas do mundo mecânico

«Eu» deseja transformar-se nos objetos


representativos da modernidade

Ânsia eufórica
Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
de abarcar a
Ser completo como uma máquina! totalidade e a
complexidade
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo! das sensações

Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,


Luxúria
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento

A todos os perfumes de óleos e calores e carvões Sensações olfativas

Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!


O “eu”, para exacerbar a
Adjetivação sensação a partir da realidade,
chega a desejar fundir-se com
Desejo e euforia visíveis no uso da interjeição, ela, intensificando, assim, o
da anáfora, de frases exclamativas (pontuação prazer desse contacto.
emotiva)
Fraternidade com todas as dinâmicas!
Promíscua fúria de ser parte-agente
Do rodar férreo e cosmopolita
Dos comboios estrénuos,
Da faina transportadora-de-cargas dos navios,
Do giro lúbrico e lento dos guindastes,
Do tumulto disciplinado das fábricas,
E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!
Horas europeias, produtoras, entaladas
Entre maquinismos e afazeres úteis!
Grandes cidades paradas nos cafés,
Nos cafés — oásis de inutilidades ruidosas
Onde se cristalizam e se precipitam
Os rumores e os gestos do Útil
E as rodas, e as rodas-dentadas e as chumaceiras do Progressivo!
Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares!
Novos entusiasmos de estatura do Momento!
Quilhas de chapas de ferro sorrindo encostadas às docas,
Ou a seco, erguidas, nos planos-inclinados dos portos!
Atividade internacional, transatlântica, Canadian-Pacific!
Luzes e febris perdas de tempo nos bares, nos hotéis,
Nos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots,
E Piccadillies e Avenues de L’Opéra que entram
Pela minh’alma dentro!
Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hô la foule!
Tudo o que passa, tudo o que para às montras!
Comerciantes; vadios; escrocs exageradamente bem-vestidos;
Membros evidentes de clubs aristocráticos;
Esquálidas figuras dúbias; chefes de família vagamente felizes
E paternais até na corrente de oiro que atravessa o colete
De algibeira a algibeira!
Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa!
Presença demasiadamente acentuada das cocotes;
Banalidade interessante (e quem sabe o quê por dentro?)
Das burguesinhas, mãe e filha geralmente,
Que andam na rua com um fim qualquer;
A graça feminil e falsa dos pederastas que passam, lentos;
E toda a gente simplesmente elegante que passeia e se mostra
E afinal tem alma lá dentro!
 
(Ah, como eu desejaria ser o souteneur disto tudo!)
A maravilhosa beleza das corrupções políticas,
Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos,
Agressões políticas nas ruas,
E de vez em quando o cometa dum regicídio
Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus
Usuais e lúcidos da Civilização quotidiana!

Notícias desmentidas dos jornais,


Artigos políticos insinceramente sinceros,
Notícias passez à-la-caisse, grandes crimes —
Duas colunas deles passando para a segunda página!
O cheiro fresco a tinta de tipografia!
Os cartazes postos há pouco, molhados!
Vients-de-paraître amarelos com uma cinta branca!
Como eu vos amo a todos, a todos, a todos,
Como eu vos amo de todas as maneiras,
Com os olhos e com os ouvidos e com o olfato
E com o tato (o que palpar-vos representa para mim!)
E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar!
Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós!
Adubos, debulhadoras a vapor, progressos da agricultura!
Química agrícola, e o comércio quase uma ciência!
Ó mostruários dos caixeiros-viajantes,
Dos caixeiros-viajantes, cavaleiros-andantes da Indústria,
Prolongamentos humanos das fábricas e dos calmos escritórios!
Ó fazendas nas montras! Ó manequins! Ó últimos figurinos! Apóstrofes
Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar!

Olá grandes armazéns com várias secções!

Olá anúncios elétricos que vêm e estão e desaparecem!

Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem!

Eh, cimento armado, beton de cimento, novos processos!

Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!

Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!


Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.
Vertigem insaciável
Amo-vos carnivoramente, da sensação

Pervertidamente e enroscando a minha vista

Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis,


Energia vital da indústria
Ó coisas todas modernas,

Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima


Exaltação de uma nova ordem
Do sistema imediato do Universo!

Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!

Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parks,


Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes —
Na minha mente turbulenta e encandescida
Possuo-vos como a uma mulher bela,
Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se ama,
Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.
Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas!
Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios!
Eh-lá-hô recomposições ministeriais!
Parlamentos, políticas, relatores de orçamentos,
Orçamentos falsificados!
(Um orçamento é tão natural como uma árvore
E um parlamento tão belo como uma borboleta).

Eh-lá o interesse por tudo na vida,


Porque tudo é a vida, desde os brilhantes nas montras
Até à noite ponte misteriosa entre os astros
E o mar antigo e solene, lavando as costas
E sendo misericordiosamente o mesmo
Que era quando Platão era realmente Platão
Na sua presença real e na sua carne com a alma dentro,
E falava com Aristóteles, que havia de não ser discípulo dele.
Eu podia morrer triturado por um motor
Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída.
Atirem-me para dentro das fornalhas!
Metam-me debaixo dos comboios!
Espanquem-me a bordo de navios!
Masoquismo através de maquinismos!
Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho!

Up-lá hô jockey que ganhaste o Derby,


Morder entredentes o teu cap de duas cores!

(Ser tão alto que não pudesse entrar por nenhuma porta!
Ah, olhar é em mim uma perversão sexual!)

Eh-lá, eh-lá, eh-lá, catedrais!


Deixai-me partir a cabeça de encontro às vossas esquinas,
E ser levado da rua cheio de sangue
Sem ninguém saber quem eu sou!
Ó tramways, funiculares, metropolitanos,
Roçai-vos por mim até ao espasmo!
Hilla! hilla! hilla-hô!
Dai-me gargalhadas em plena cara,
Ó automóveis apinhados de pândegos e de putas,
Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas,
Rio multicolor anónimo e onde eu me posso banhar como quereria!
Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de tudo isto!
Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de dinheiro,
As dissensões domésticas, os deboches que não se suspeitam,
Os pensamentos que cada um tem a sós consigo no seu quarto
E os gestos que faz quando ninguém o pode ver!
Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva,
Ó raiva que como uma febre e um cio e uma fome
Me põe a magro o rosto e me agita às vezes as mãos
Em crispações absurdas em pleno meio das turbas
Nas ruas cheias de encontrões!
Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,
Que emprega palavrões como palavras usuais,
Cujos filhos roubam às portas das mercearias
E cujas filhas aos oito anos — e eu acho isto belo e amo-o! —
Masturbam homens de aspeto decente nos vãos de escada.
A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa
Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.
Maravilhosamente gente humana que vive como os cães,
Que está abaixo de todos os sistemas morais,
Para quem nenhuma religião foi feita,
Nenhuma arte criada,
Nenhuma política destinada para eles!
Como eu vos amo a todos, porque sois assim,
Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,
Inatingíveis por todos os progressos,
Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!
(Na nora do quintal da minha casa
O burro anda à roda, anda à roda,
E o mistério do mundo é do tamanho disto.
Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente.
A luz do sol abafa o silêncio das esferas
E havemos todos de morrer,
Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo,
Pinheirais onde a minha infância era outra coisa
Do que eu sou hoje...)

Mas, ah outra vez a raiva mecânica constante!


Outra vez a obsessão movimentada dos ónibus.
E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios
De todas as partes do mundo,
De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios,
Que a estas horas estão levantando ferro ou afastando-se das docas.
Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado!
Ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó rebocadores!
Eh-lá grandes desastres de comboios!
Eh-lá desabamentos de galerias de minas!
Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos!
Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá,
Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões,
Ruído, injustiças, violências, e talvez para breve o fim,
A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa,
E outro Sol no novo Horizonte!

Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto


Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,
Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?
Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,
O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,
O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,
O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes
Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.
Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar,
Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos, Exaltação do canto
Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar,
Engenhos, brocas, máquinas rotativas!
Eia! eia! eia! Interjeição, anáfora,
Eia eletricidade, nervos doentes da Matéria! paralelismo, enumeração,
Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente! polissíndeto
Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!
Eia todo o passado dentro do presente!
Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!
Eia! eia! eia! Onomatopeias
Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita! Ânsia eufórica
Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô!
Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me.
Engatam-me em todos os comboios.
Içam-me em todos os cais.
Giro dentro das hélices de todos os navios.
Eia! eia-hô! eia!
Eia! sou o calor mecânico e a eletricidade!
Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa!
Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia!
Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!
 
Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!
Hé-la! He-hô! H-o-o-o-o!
Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!
 
Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!

Espaço – Universo
Desejo de totalidade

Álvaro de Campos, Poesia de Álvaro de Campos (ed. Teresa Rita Lopes), 2.ª
edição, Lisboa, Assírio & Alvim, 2013, pp. 81-90.
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Tema e sua relação como título

Exaltação da modernidade e de aspetos com ela


relacionados, como se antevê pelo título (“Ode triunfal”), uma
vez que a palavra “ode” significa canto elogioso, a que se
acrescenta “triunfal”, que reforça a magnitude desse elogio
que, neste caso, é dirigido à era moderna e industrial.
30

Contexto espacial

O sujeito poético encontra-se numa fábrica, a escrever sob a


luz das grandes lâmpadas elétricas como se comprova nos
dois primeiros versos do poema.
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Estado emocional do sujeito poético

O “eu” sente dor, febre causadas por sensações contraditórias


provocadas pela beleza dolorosa daquilo que o rodeia, destacando-se a
nova noção de estética preconizada pelo Modernismo e que é
“desconhecida dos antigos”. Apresenta-se apaixonado e exaltado; numa
histeria de sensações face ao esplendor do progresso, deseja sentir tudo
de todas as maneiras, identificando-se com tudo, querendo ser tudo e
fundir-se em tudo (“Ah!, poder exprimir-me todo como um motor se
exprime! / Ser completo como uma máquina!”/ “Poder ao menos penetrar-
me fisicamente de tudo isto...”).
Sobressai também um tom nostálgico perante o fracasso de algumas
transformações decorrentes da modernidade.
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Realidades retratadas

O lado positivo da realidade observada é visível nas referências aos


avanços da técnica, como confirmam as referências à fábrica, às
lâmpadas, às rodas, às engrenagens, às correias de transmissão, aos
navios, aos comboios, às grandes cidades, à atividade transatlântica,
aos guindastes, .... Porém, a esta exaltação da modernidade opõe-se
a outra face da realidade – o lado negativo da nova era industrial. Nela
surgem a corrupção, os escândalos financeiros, as agressões
políticas, os desastres de comboio, os naufrágios, as notícias
desmentidas, as guerras, as injustiças...
Denúncia dos efeitos perversos do progresso civilizacional

• Imoralidade: “vadios, escrocs exageradamente bem vestidos” (v. 59)


• Sujidade: “esquálidas figuras dúbias” (v. 61)
• Depravação: “cocottes” (v. 65);
• Futilidade: “Banalidade interessante” (v. 66)
• Promiscuidade: “graça feminil e falsa dos pederastas” (v. 69)
• Decadência da sociedade: “Artigos políticos insinceramente sinceros” (v. 80)
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Matéria épica

O facto de o poema ‘cantar’ a civilização industrial da época bem


como referir os pensadores da Antiguidade como responsáveis
pela preparação da era Moderna e a exaltação das
transformações operadas fazem com que perpasse um tom
épico pelo poema.
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Valorização do tempo

Ao contrário de Marinetti que defendia a valorização do futuro,


anulando o passado e o presente, o Futurismo alvariano reduz o
passado e o futuro a um só tempo: o presente. Defende mesmo que o
presente só é possível porque nele está todo o passado e todo o futuro,
ambos ganham significação no presente, até porque no passado se
preparou o presente e no presente se prepara o futuro, levando-o a
afirmar: “Eia todo o passado dentro do presente! / Eia todo o futuro já
dentro de nós! eia!” (vv. 222-223).
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Tipos sociais evocados

Referem-se vários tipos sociais, nomeadamente “comerciantes”,


“vadios”, “escrocs”, “aristocratas”, “esquálidas figuras dúbias”,
“chefes de família”, “cocottes”, “burguesinhas”, “pederastas”, “gente
elegante que passeia”, “caixeiros-viajantes”, “gente ordinária e suja”,
“gente humana que vive como cães”…
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Elogio da modernidade

No poema faz-se o elogio do belo feroz, abolindo-se o conceito de


beleza aristotélica, por isso tudo o que é símbolo da modernidade e da
era industrial é elogiado, numa euforia nunca vista, vendo grandiosidade
e beleza em todos os símbolos e efeitos da sociedade contemporânea e
na época moderna, ao ponto de, depois de enumerar alguns aspetos
negativos, concluir: “Que importa tudo isto, mas que importa tudo
isto”/Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo, / Ao ruído cruel e
delicioso da civilização de hoje?”
Exaltação do seu amor pela civilização / Excesso de expressão

 Ritmo alucinante:

• Anáfora “Eia…” (vv. 82-85)


• Interjeição “Eh-lá” (anafórica) (vv. 72-75)
• Apóstrofe (total de 126): “Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado”…
• Enumeração “Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hô la foule” (v. 32) …
• Repetição “Hup lá, hup lá, hup-lá” (v. 87)
• Semelhança com um motor “Giro, rodeio, engenho-me/Engatam-me em todos os
comboios” (vv. 143,144) …
• Identifica-se com um motor “Galgar com tudo por cima de tudo” (v. 86)
• Onomatopeia “Hup-lá! […]” (vv. 86–87 barulho / ritmo da máquina / máquina a
parar “Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!” (v. 89)
• uso recorrente de exclamações (est. 10)
Excesso de expressão

• aliterações onomatopaicas: “de ferro e fogo e força” (v. 16), “rugindo, rangendo,
ciciando, estrugindo, ferreando” (v. 24)
• verbos no infinitivo
• comparações inesperadas: “olhando os motores como a uma Natureza tropical” (v.
15), “Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera” (v. 105), “Possuo-vos como a uma
mulher bela” (v. 116)
• advérbios: “Amo-vos carnivoramente. / Pervertidamente” (vv. 106-107),
“Completamente vos possuo” (v. 117)
• adjetivação/múltipla adjetivação: “grandes, banais, úteis, inúteis” (v. 108)
• orações coordenadas marcam parataticamente (justaposição, sem uso da
conjunção coordenativa) o ritmo rápido do poema (vv. 15-18)
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Ritmo e sua funcionalidade

Impera no poema um ritmo torrencial, vivo, em que surgem, em


catadupa, as diferentes realidades captadas por um “eu” em plena
histeria de sensações.
O sujeito poético incute um ritmo alucinante, pois os aspetos
evidenciados ao longo do poema atropelam-se, sugerindo, assim, a
sua euforia e quase devoção à modernidade e às transformações,
boas e más, operadas pela civilização industrial em que este “eu”
sensacionista se insere.
41

Marcas do Futurismo e Sensacionismo

O poema inscreve-se na segunda fase poética de Álvaro de


Campos, aquela em que faz sentir o Futurismo e o Sensacionismo,
o elogio à era Moderna e aos símbolos da modernidade, ao belo
feroz, e se assiste à anulação da estética aristotélica e à mistura do
objetivo com o subjetivo. A nível formal também se verifica a
subversão sintática, estrófica e métrica. O vocabulário é atípico,
rompendo, em todos os aspetos, com a tradição poética anterior.
42

Sensacionismo e a poesia de Álvaro de Campos

• O Sensacionismo é uma estética criada por Fernando Pessoa e por Mário de Sá-
Carneiro e encontramos a sua marca na poesia de Campos e de Caeiro.

• Na poesia, privilegia a representação das sensações (visuais, táteis, etc.) de que


o sujeito poético teve consciência no seu contacto com o mundo que o rodeia;

• Perpassa a “Ode Triunfal” o princípio de “sentir tudo de todas as maneiras e ser


tudo e ser todos” nesta realidade moderna, urbana e industrial.

• Na “Ode Triunfal”, o Sensacionismo associa-se ao Futurismo na ideia de “sentir”


em excesso (e em delírio) o mundo moderno e de representar a forma como os
sentidos apreendem essa realidade.
43

O imaginário épico

Arrebatamento do canto
Matéria épica
• Forma - ode
• Exaltação do canto
• Expressão adequada ao
• Apoteose da civilização
conteúdo
• Celebração e elogio do
• Linguagem e estilo
progresso e da técnica
consentâneos com a
euforia e admiração do real
44

I. Uma ode à civilização moderna


Canto de exaltação/louvor

— A vida e o mundo modernos


— A industrialização O eu canta o triunfo
— A velocidade da sociedade moderna
— A técnica
— O progresso

«Ah, poder exprimir-me todo


Campo lexical como um motor se exprime! /
predominante no poema: Ser completo como uma máquina!»

Lâmpadas, motores, rodas, 


engrenagens, automóvel, tom eufórico
correias de transmissão,
cafés, comboios
45

II. Futurismo e sensacionismo

— Rejeição 1. Todo o objeto é uma sensação


da tradição nossa.
e do passado 2. Toda a arte é a conversão
— Exaltação duma sensação em objeto.
do progresso 3. Portanto, toda a arte é
e dos avanços a conversão duma sensação
tecnológicos numa outra sensação.
Fernando Pessoa, Páginas íntimas…

Desejo de viver Predomínio


as sensações de sensações visuais,
do mundo moderno auditivas, olfativas
e gustativa
46

III. Conteúdo e forma: como captar o mundo moderno

Multiplicidade «E arde-me a cabeça de vos


de sensações querer cantar com um
excesso De expressão de
todas as minhas sensações,
[…]»

Onomatopeias «Hé-há! Hé-hô! Ho-o-o-o-o! /


Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!»
Irregularidade estrófica e métrica

Objetivos:
— Conhecer a vida moderna e as sensações
que ela proporciona
— Propor um novo tipo de poesia

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