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Yabas: Mulheres Negras, Deusas, Heroínas e Orixás: personalidades sem

fronteiras*
Sylvia Egydio**
Kiusam Regina de Oliveira***

O matador mata sempre duas vezes: a segunda pelo silêncio

(Elie Wiesel - Prêmio Nobel da Paz)

Em 1930, apesar de toda exclusão sofrida pelo negro no Estado de São Paulo, uma mulher negra
(ou o que restou dela) foi capaz de despertar o interesse de muitos homens brancos estudantes da
Faculdade de Direito: era uma múmia que servia para estudos. Certo dia um novo diretor tomou
aquilo como sacrilégio resolvendo, então, enterrá-la. No dia do enterro se aproxima Vicente
Ferreira, militante negro, fazendo um discurso comovente no qual revela o nome da múmia -
Jacinta. Contam que Ferreira fez um relato emocionado de Jacinta, transportando-se a um tempo em
que ela ainda vivia descrevendo sua beleza, o charme de seus trajes, seu jeito de andar pelas ruas de
São Paulo e sua vida. E foi assim, através da boca de um militante negro que, Jacinta, teve sua
identidade resgatada.

Somos seres capazes de passar pela vida cometendo vários sacrilégios, jogando um tipo de faz-de-
conta extremamente perverso no qual negamos a identidade do outro e fingimos não perceber as
atrocidades quotidianas que o atinge. Talvez tenhamos aprendido este feito com os colonizadores
que por estas terras chegaram e fincaram suas estacas através da força bruta sem que jamais a
reconhecesse como tal. Quantos índios e negros foram escravizados e quantos deles morreram
assassinados pela mão poderosa do colonizador? Quantas mulheres índias e negras foram
estupradas apenas para satisfazer seus desejos mais doentios? Quantas negrinhas virgens que ainda
embalavam suas bonequinhas de trapo nos braços tiveram sua inocência brutalmente arrancada para
que os “sinhozinhos” pudessem, perversamente, tentar curar sua sífilis?

Se você não encontrou respostas para essas perguntas não se retraia pois pouquíssimas são as
pessoas capazes de respondê-las, nem tanto pela falta de capacidade mental mas, talvez, por
aderirem (até mesmo inconscientemente) ao que chamamos de “confraria do silêncio” que vem
promovendo, através dos séculos, um jogo de faz-de-conta de extremo mal gosto. E é no bojo dessa
confraria que a mulher negra tem convivido com certas imposições sociais que, independente da
época, possuem um traço em comum: mantê-la em silêncio.

A mulher negra nunca foi vista em sua forma glamourosa afinal, quem é capaz de conceber que
exista glamour naquela que é nacionalmente reconhecida como um instrumento de trabalho, a mola
propulsora das cozinhas, o motor de tração dos tanques e privadas vergonhosamente silenciada e
mumificada para executar tais obrigações? Fazem muito, mas suas ações são mantidas aprisionadas
na trama violenta do jogo “faz-de-conta que você não existe”. Sabe-se que este jogo tem feito, em
nossa sociedade, inúmeras vítimas pois propõe aos jogadores que participem de uma farsa
metafísica que procura separar o que está ligado - o problema - é que não se percebe esta
incoerência e a aderência ao jogo dá-se de forma quase que letárgica. O perigo é que a mulher negra
pode (pelo poder que exerce essa confraria) ser convencida a jogar ao contrário, isto é, aceitar os
termos do jogo incorporando o preceito básico da não-existência mergulhando, de cabeça, no
processo sofrido da auto-rejeição.
Felizmente, nem todas as mulheres negras se deixam levar por este jogo sórdido. Muitas delas
fizeram e fazem história nas mais variadas áreas: mulheres das guerras, das letras, da saúde, das
artes, do esporte, da música, das rezas, da política, do candomblé etc. Mulheres que apesar de
anônimas para a grande maioria da população brasileira continuam a criar fama em seus espaços,
em seus círculos de resistência. São atravessadoras de fronteiras desde muito antes de terem sido
arrancadas do Continente Africano, sendo subjugadas e transplantadas sob a mais completa
violação dos direitos humanos. São mulheres que atravessam as fronteiras regionais, sociais e
pessoais na medida em que contestam os preceitos dessa confraria quebrando sua ordem sem se
deixar abater pela fúria desperta e, com glamour, resistem olhando nos olhos do matador.

Matador é sempre matador em qualquer Época histórica. Deseja uma única coisa: silenciar alguém
física e espiritualmente. No Brasil Colônia o matador, isto é, o colonizador, tombou com tiros
milhares de corpos negros; no Brasil Império o matador - as oligarquias dominantes - não
acolheram os milhares de negros e negras que foram jogados nas ruas sem salários e sem leis que
garantissem seus direitos de cidadãos logo após a Abolição; no Brasil da República Velha o
matador - o republicano - continuou impedindo a entrada de mulheres negras nos colégios de freiras
e a ascensão de homens negros no Exército; no Brasil da Era Vargas o matador - a ditadura - fez
com que aumentasse a mão-de-obra barata e desqualificada; no Brasil do autoritarismo o matador -
a ditadura militar - criou a ROTA (Ronda Ostensiva Tobias de Aguiar) tentando reprimir as formas
de expressão, os desejos e reivindicações do cidadão; no Brasil de Sarney o matador - a recessão -
aumentou o número da população favelada e da exclusão social; no Brasil de Collor o matador - a
política neo-liberal - gerou o aumento da pobreza; e no Brasil de Fernando Henrique Cardoso o
matador - o desemprego - colocou negros e brancos dedicando-se à mascataria e disputando um
pedaço de terra para construir seus barracos dentro do lixão (espaço disputado como fonte de
alimentação) e crianças se aperfeiçoando na arte de comer lixo e de matar, facetas contemporâneas
da luta pela sobrevivência.

Mas matador que é matador não sente dor em matar tampouco é capaz de sentir a dor do outro
quando morto - por isso o silêncio - o silêncio daqueles que jamais se darão conta de que causam
dor. Esse silêncio é lançado pelo matador quase como um desafio e aderido pelo cúmplice que se
cala diante da injustiça. É um silêncio histórico que esconde qualquer evidência que se tenha da
mulher negra como produtora de cultura. Esse silêncio adulterado, cientificamente plasmado é o
causador de uma espécie de genocídio da cultura e dos feitos negros que acaba por provocar
rupturas a esse segmento. Mas o matador sempre alega que o ato foi cometido pelo bem de alguém
e, nesse caso, é preciso que questionemos: Pelo bem de quem os matadores no Brasil, no decorrer
da história, mataram e matam tantas mulheres e homens negros? Quais foram (ou quais são) os
grandes beneficiários com essas mortes?

Como o rompimento do silêncio de Vicente Ferreira foi capaz de resgatar a identidade perdida de
Jacinta, esperamos que sejamos todos capazes do mesmo ato para dar, não só à mulher negra mas
ao povo negro (antes de seu extermínio) o lugar de destaque merecido e que vai conquistar, por
direito, no próximo milênio.

Da Kaballah hebraica ao império Yorubano

Verger[1] nos mostra como os estudos desenvolvidos pelo Capitão Clapperton (Travels and
Discoveries in Northen and África - 1822/1824) a partir de um manuscrito em língua árabe, trazido
por ele do Reino de Takroor (atual Sokoto), naquela época dominado pelo Sultão Mohamed Bello,
de Haussa, fornece dados analíticos comprovados sobre a origem dos povos africanos.

Eduardo Fonseca Júnior[2] tendo como base esses estudos mostra que Opá Oranian (monolito de
Oranian), um obelisco considerado o túmulo deste grande herói possui características de origem
fenícia além de conter palavras pertencentes à Kaballah hebraica que são: YOD, RESH, VO, BETH
e ALEPH, definição hebraica do nome YORUBÁ, cuja tradução seria a seguinte:

YOD - a divindade por ordem da


RESH - unidade psíquica do ser
VO - deu origem
BETH - ao movimento de luz, objeto central
ALEPH - de estabilidade coletiva do homem.

Desta forma YOD e RESH comporiam as letras Y - O - R, o símbolo VO comporia a letra U, o


símbolo BETH a letra B e o símbolo ALEPH a letra A. Veja:

YOD - YO
RESH -R
VO -U
BETH -B
ALEPH - A

Clapperton, desta forma, comprova a origem cabalística da palavra YORUBÁ, oriunda da


localidade YARBA, que “ ... é sinônimo do termo YARRIBA, que os Haussas usam para identificar
a palavra Yorubá.”[3] No mesmo monolito encontra-se a profecia que prevê a implantação do
império Yorubano por Nimrod, sob o nome da divindade Oduduwá, “ ... por ordem da unidade
psíquica do ser, seria por ordem de Deus.”[4] E assim se deu a fundação da antiga cidade de Ilê Ifé,
considerada o berço da cultura yorubana. Yorubá que aparece em alguns trabalhos como um grande
país formado por cinco regiões: Oyó, Egbwa, Ibarupa, Ijebu e Ijexá.

Foram grandes os esforços no período colonialista franco-britânico a fim de destruir o culto e as


tradições africanas. Assim, começou a batalha pela desmoralização das divindades africanas e,
ESU/EXÚ, de Mensageiro e Deus da Fertilidade passou a ser divulgado como demônio. “Mesmo
após as descobertas, por teólogos da implantação colonialista, da identificação total entre Olorum e
Jeovah, os pesquisadores mantiveram e acirraram a campanha de desmistificação das religiões
negras, classificando essas divindades como demônios pagãos.”[5]

Na teogonia africana temos Olodumaré (Oló = Senhor, Odú = Destino, Maré = Supremo = Senhor
do Destino Supremo) e Oduduwá (Odou = Fonte, da = Geradora, iwá = vida = Fonte Geradora da
Vida) como os criadores da vida humana, sendo que Oduduwá uniu-se a Olukun (Oló = Senhora,
Okun = Mar = Senhora do Mar) para gerar três filhos - Ogun, equivalente a Vulcano, senhor do
ferro, fígado, agricultura; Ishedale, equivalente a Afrodite, senhora das águas e mãe de todas as
ninfas e heroínas deificadas; e Okanbi, senhor do fogo, das conquistas e da justiça. “Da linhagem de
Ogun, todos os Orixás morreram. Da linhagem da princesa Ishedale, nasceram deusas e ninfas,
conhecidas por Ayabas. Da linhagem de Okanbi, nasceram os reis e heróis deificados tais como
Xangô, Aganjú, Kori, Abipa, Abiedum e outros...”[6] Os filhos de Okanbi dão início à epopéia dos
heróis yorubanos pois dentre seus sete filhos aparece Oranian, o implantador da cultura yorubana.
“Independentemente de ter tentado continuar a missão de seu avô Oduduwá em sua Guerra Santa
contra os descendentes de Ismael, transformou-se na maior figura dessa cultura, a tal ponto que é o
mais famoso dos sete filhos de Okanbi.”[7] Okanbi instituiu o primeiro feudo de que se tem notícia
pois tornou-se detentor de todas as terras da África Ocidental, instalando-se definitivamente em Ilê
Ifé. Neste momento, Oranian se afasta temporariamente de Ilê Ifé indo ocupar a cidade de Oyó.

Assim, Fonseca Júnior nos mostra a cronologia da época[8]:

OKANBI - Primeiro Alafin de Oyó - 1700 a 1600 a.C.


ORANIAN - Segundo Alafin de Oyó - 1600 a 1500 a.C.
AJAKÁ - Terceiro Alafin de Oyó - 1500 a 1450 a.C.
XANGÔ - Quarto Alafin de Oyó - 1450 a 1403 a.C.
AJAKÁ - Quinto Alafin de Oyó - 1403 a 1370 a.C.

A história da origem do povo yorubano mostra que Oduduwá era o próprio conquistador caldeu Nimrod,
descendente de Noé, que era primo de Abraão, neto de Cam e filho de Kusí e “... que foi designado por
Olodumaré para levar a remissão e a palavra de Olorum (Deus) aos filhos de Caim que, amaldiçoados, viviam
na África.”[9]

São essas coincidências que ligam a história da origem do povo africano à Kaballah hebraica sendo que, a
partir da análise de documentos que comprovam esta história, foi formulada a tese que liga Abraão, pai dos
semitas, e Oduduwá (Nimrod), pai dos africanos. Isto pode também ser constatado se for feita uma análise do
Vodu (africano) cujo símbolo é a serpente telúrica de DAN, com o símbolo de uma das doze tribos de Israel
que possui o mesmo nome, DAN, e o mesmo símbolo - a serpente telúrica.

De Ishedale às grandes heroínas

Conta a história que da linhagem da Princesa Ishedale nasceram deusas e ninfas, isto é, mulheres adoráveis
pela beleza protetoras dos rios, bosques, matas e montes, costumeiramente associadas às mulheres jovens,
guerreiras e formosas, conhecidas na teogonia africana por Ayabas que em Yorubá significa “... rainha mulher
do rei. Termo honorífico dado às divindades femininas da cultura Yorubana ...”[10].

Dessa linhagem nasceram Oyá-Yánsàn, que embeleza seus pés com pó vermelho; Òsun, seja ela Àpara,
Àyálá, Oke ou Oníra, aquela que limpa suas jóias de cobre antes de limpar seus filhos; Obá aquela que com
sua força física lutou e venceu Oxalá, Xangô e Orunmilá, sucessivamente; Yemoja, seja ela Ogunté, Assabá
ou Assessu, aquela que vive e reina nas profundezas das águas; Nàná Buruku, aquela que mata uma cabra
sem usar um obé (faca); Iewá, aquela jovem virgem que recebeu de Orunmilá o poder de ler o Oráculo de Ifá.

Da linhagem de Okanbi temos, também, mulheres exemplares que fizeram a história do povo yorubano como
Ya Torôsi Ayabá Nupe - Senhora Torôsi Rainha de Nupe - que viveu em 1460 a.C., filha do Rei, tia de Oyá.
Oyá, portanto, foi prima e mulher de Xangô, com quem conquistou vários reinos. Outra mulher fantástica foi
Moremi que, como Torôsi e Oyá, também pertencente a região de Tapá, foi uma grande princesa e sacerdotisa
yorubana, considerada heroína por romper com os sacerdotes de seu povo por acreditar que eles estavam
distanciando-se dos ensinamentos originais de Oduduwá. Funda, então, Abomei (Dahomé-Benin) instituindo
o matriarcado além de criar a sociedade secreta dos homens-leopardos (Ekun-Wale) que é uma qualidade de
Odé, isto é, caçador tido como rei. Foi conhecida como a Rainha-gata, aquela que instituiu as bases da cultura
Gêge. Alami, filha de Okanbi, princesa real e fundadora do Reino de Ketu reinou soberanamente até passar o
poder a seu filho, Alaketú, que veio a ser o primeiro rei de Ketú.

Oxum, Obá, Yemanjá , Iewá, Nanã entre outras formaram, na África, uma sociedade feminina secreta. Os
homens eram vetados, uma vez que, nestas reuniões, elas tratavam de assuntos pertinentes aos direitos das
mulheres - era um grupo feminista. Com muita estratégia estas mulheres traçavam planos e executavam ações
para solucionarem problemas de vários tipos, recorrendo, muitas vezes, do poder das feiticeiras Iyamis.
Lutaram bravamente para manter a soberania feminina e impedir que os homens conquistassem espaço maior
como vinha acontecendo. Mas o segredo durou pouco: os homens, estranhando o comportamento de suas
mulheres, resolveram segui-las para descobrir o que estava acontecendo, afinal, até mesmo Iewá, aquela
jovem e bela casta que nunca saia da beira de seu rio, podia ser vista caminhando pela floresta rumo ao
desconhecido. Após algum tempo descobriram o refúgio das mulheres e seu objetivo resolvendo, então,
revidar. E assim o fizeram.

Armaram um plano terrível no qual Xangô, contrariadamente, teve de seduzir Obá e tomá-la como sua
primeira mulher, para logo em seguida conquistar Oyá e por último Oxum. Todos passaram a conviver
debaixo do mesmo teto: Xangô desprezava Obá e já não dava tanta atenção à Oyá, mas Oxum passou a ser
sua predileta sendo deliciada por ele a cada minuto do dia. Automaticamente, a rivalidade nasceu entre essas
mulheres que tinham um objetivo em comum: não entregar o poder aos homens. Mas o ciúme, a inveja e a
raiva causaram uma divisão no grupo. Oxum gabava-se das outras chegando ao ponto de ensinar Obá a fazer
uma comida que deveria ser preparada com sua própria orelha, alegando que isso faria Xangô olhar para ela
com olhos de amor. Obá, ardente de paixão, assim o fez e Xangô, ao ver a orelha no prato e a mulher
desfigurada, ficou irado expulsando as duas de casa. Pois é, o feitiço virou contra a própria feiticeira.
Desesperadas, não conseguiram controlar suas emoções transformando-se em rios: Obá num rio de águas
turbulentas e Oxum num rio de águas calmas. Oyá continuou a viver com Xangô até que ele desejou lutar e
conquistar a cidade de Tapa, seu local de origem. Ela o desafiou fazendo com que Xangô desistisse da idéia
mas, a partir deste momento, suas vidas se separaram.

Das grandes heroínas aos Orixás femininos - as Yabas

Alguns autores retratam os Orixás como forças da natureza associadas a imagem de um “Orixá-herói”[11]
cujo arquétipo do Orixá passa a fazer parte do inconsciente coletivo de uma nação, levando os filhos de cada
Orixá a desenvolver e a reforçar certas características do mesmo.

Voltando-nos para a mulher negra brasileira atual que não possui em suas lembranças recentes imagens de
mulheres negras sacerdotisas, princesas ou rainhas, adquirir a consciência histórica e espiritual da mulher
africana e de seu valor na cultura é essencial para se pensar no resgate de uma possível auto-estima perdida.
Os arquétipos destas heroínas africanas que, ao fazer sua passagem para outro plano transformaram-se em
forças da natureza, tem se revelado um excelente tratamento para mulheres negras freqüentadoras das roças
de Candomblé. É um conhecimento que tem levado essas mulheres ao campo de batalha usando, como arma,
as marcas da ancestralidade que só a sabedoria aliada ao poder da tradição oral, podem registrar. Desta forma,
conhecer a história destas ancestrais femininas, reconhecendo-as como atravessadoras de fronteiras, traz, às
mulheres negras de hoje, a possibilidade de contato com uma dimensão da religião que seita nenhuma traz: a
aceitação da complexidade do ser humano.

No Candomblé a complexidade feminina jamais foi vista como impedimento para que uma mulher guerreira
ou sensual, jovem ou velha, feia ou bonita se transformasse em forças da natureza. Jamais uma mulher negra
foi santificada como prêmio por sua castidade ou por fazer o bem sem olhar a quem. São mulheres negras que
tornaram-se formas de energia como conseqüência de viver intensamente seus amores, desamores, encantos
ou desencantos buscando, ardentemente, formas de viver melhor e em plena harmonia com a consciência
divina.

O arquétipo de Nanã é o daquela pessoa majestosa que tem a consciência de que cada gesto traz
conseqüências, mostrando-se meticulosa em seus atos e equilibrada; Oxum que com sua beleza e sensualidade
sabe ser enérgica quando necessário; Obá que com seu porte forte e viril é sedutora; Yewá que com forma
esbelta é dominadora e moralista, desconfiada e arredia; Oyá que com sua grande beleza é poderosa,
audaciosa e violenta despertando o desejo dos homens; Yemanjá que é carinhosa com seus filhos e deseja o
luxo para sua vida; até mesmo Oxóssi (que no Brasil tomou uma forma masculina, característica de seu
correlato masculino Odé e que na África é conhecida como a Diana da África)[12] tem o dom de provocar o
cio nas fêmeas para o acasalamento. Conhecida como a mulher de Ogum em um antigo texto do Ijalá „Osósí
L‟Orukó Obinrin Ogum‟ - Oxóssi é o nome da mulher de Ogum.

Conhecer esses arquétipos pode oferecer às mulheres negras a possibilidade de sobreviver numa sociedade
competitiva e injusta como a nossa uma vez que esse conhecimento tem se mostrado capaz de despertar nas
pessoas, conhecedoras de seu Orixá de cabeça, as similaridades entre pessoa-Orixá além do desejo de tornar-
se uma pessoa cada vez melhor e à altura de seu Orixá.

Das Yabas às grandes heroínas - o retorno sem fronteiras

Quais as fronteiras existentes entre mulheres negras, deusas, heroínas e orixás?

Seria o mesmo que perguntar quais as fronteiras existentes entre o blues, jazz e rap ou mesmo entre o samba,
axé e o maracatu. Podemos perfeitamente idealizar um samba-axé com swing de maracatu como um blues-
jazz com swing de rap. Isto porque a criatividade humana não tem fronteira - é livre - para atrever-se a alçar
grandes vôos nos quais tempo e espaço configuram-se apenas como coadjuvantes. É absolutamente lógico
juntar todos esses estilos se se pensar que um é derivado do outro e que fazem parte da mesma natureza, em
sua essência. Os limites sempre nos aprisionam assim como os preconceitos nos impedem de vislumbrar
diferentes formas de simplesmente ser.

A conscientização de ser mulher negra num país como o Brasil passa por várias etapas desde não se perceber
como negra até mesmo de superar essa percepção. É através do conhecimento da história do povo africano
que a mulher negra passa a reconhecer-se como portadora de títulos de nobreza que a qualifica como legítima
herdeira do trono real, mesmo diante do silêncio e da simplicidade de sua tarefas.

Neste sentido, as mães-de-santo negras do Candomblé brasileiro continuam ocupando lugar de honra no
processo de resgate da identidade cultural e filosófica de ser mulher negra através dos tempos. Identidade
(re)buscada quando traz à tona, memórias faraônicas que remontam o poder das sete Cleópatras e o suicídio
da última que, num ato extremado e consciente, tirou sua própria vida para não ser subjugada por um homem.
São mulheres que, por serem as sacerdotisas centrais do culto, possuem o papel de integradoras dos membros
dos grupos. Não têm a pretensão de carregar o estereótipo de mulheres puras, doces ou meigas pois,
humildemente, se reconhecem como figuras contraditórias. A cultura africana não descarta uma coisa para
qualificar outra pois convive perfeitamente com a dualidade complexa existente dentro de todos: as pessoas
são e não são ao mesmo tempo. Ninguém é de todo bom ou mal, apenas carregam dentro de si ambos os
aspectos da personalidade sendo que um não existiria sem o outro, pois são forças opostas que se atraem e que
se completam. Exemplificando, no Candomblé para uma mulher negra ser mãe não precisa abrir mão de sua
sensualidade ou sexualidade - ser mãe - não a obriga, portanto, a ser menos feminina.

As mulheres negras têm um valor que às vezes desconhecem mas, o Candomblé, como forma de resistência,
refúgio para as injustiças vividas no cotidiano, tem ajudado essas mulheres a se perceberem como donas de
seus próprios destinos sem que dependam de seus homens uma vez que, 36,7% das famílias negras, são
chefiadas pelas mulheres. O reforço oferecido pelas mães-de-santo vem através da percepção de que as
mulheres negras, guerreiras em sua essência, estão capacitadas para construírem grandes obras. É por isso que
o espaço de resistência chamado Candomblé, em dias de atendimento e festa, é reconhecido como “terapia
para o povo” pois oferece subsídios permanentes para que a mulher encontre o que procura: uma vida com
equilíbrio e confiança em si própria.

Bem próximo do ano 2000 é chegada a hora das mulheres negras se unirem e exigirem que suas histórias
sejam passadas a limpo, aproveitando para revelar o que está por trás de todo carnaval propagado pela Rede
Globo com relação ao Brasil 500 anos, como sendo esta mais uma atitude que tenta levar o povo à ignorância,
desconsiderando que o Brasil já havia sido descoberto pelos índios antes da chegada dos colonizadores.
Temos visto, portanto, diariamente, a história do Brasil sendo recontada pelos descendentes destes mesmos
colonizadores, continuando a valorizar apenas o que lhes convém. Talvez deva-se criar um movimento
paralelo, que (já sabemos) não terá o mesmo apoio da mídia chamado - Brasil: 500 anos de história mal
contada - ou ainda - Brasil: 500 anos da história que não foi revelada. E através de iniciativas como esta da
Rede Globo, continuamos a ver o triunfo do engodo coletivo proporcionado sempre por aqueles que detém o
poder e que determinam o que o povo deve ou não saber e as mulheres negras, continuam a ver tentativas de
silenciar suas bocas pretas até perderem o fôlego (e seu referencial) assim como fizeram com Jacinta. A
mulher negra jamais precisou esperar a boa vontade de um homem para ajudá-la a resgatar sua identidade -
historicamente tem encontrado apoio em grupos organizados por mulheres negras que abrigam, dentro de um
corpo, várias personalidades resgatadas. Mulheres negras, deusas, heroínas e orixás - personalidades
multifacetadas que se confundem mas também se completam a fim de fazer realçar o glamour e a nobreza
deste grupo. São mulheres que entendem fronteiras como a impossibilidade de se expressar com liberdade,
fato que a mulher negra repudia por fazer com que relembre seus tempos de cativeiro, local este que jamais a
impediu de lutar por seus direitos. É preciso que a mulheres negras entendam, de uma vez por todas que,
apesar de não se conhecerem umas às outras enquanto pessoas, compartilham histórias de vida semelhantes
pois ocupam o mesmo espaço físico na memória nacional. São histórias que as ligam como os retalhos são
ligados uns aos outros (pelo alinhavo) numa colcha de retalhos.

Fronteiras? Não podemos mais reconhecê-las como legítimas pois legítimo é o nosso passado que nos
qualifica como nobres sendo que o lema é: jamais se curvar diante daquele que deseja nos ver subjugada e não
aceitar os limites que nos são impostos já que possuímos, em nosso registro corporal, a marca que nos
legitima como seres encantados e encantadores, como deusas-mulheres, rainhas de nossas próprias vidas.

Este artigo é para você, Jacinta, grande yabá: após 60 anos a reconhecemos como grande mulher que, mesmo
após a morte, continuou a servir aos sinhozinhos paulistas; corpo negro eternamente aprisionado,
ironicamente, para o bem de todos e felicidade geral da nação. Felizmente, a alma da mulher negra é livre
tanto quanto a energia: voa, flutua, mergulha, dança, recocheteia e, como o raio de Oyá, corta a escuridão do
céu arriscando um desenho ousado provando a todos uma coragem que não tem limites. É com este perfil que
nós, yabás contemporâneas, entraremos no século 21: não aceitando nada menos que deixar nossas marcas na
escuridão do céu infinito.

Axé!

*As fotos que documentam este ensaio são do fotografo José Sebastião Maria de Souza.

**Iyalorixá do Axé Ilê Obá; Iyanifá; Chief of Ido Osun. Membro do Conselho Editorial da revista de
CULTURA VOZES (Rito Afro-brasileiro)

*** Mestranda em Psicologia da Educação da Universidade de São Paulo (USP) professora no Curso Normal
e Coordenadora Pedagógica do Axé Ilê Obá – Jabaquara – São Paulo, SP.

[1] VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás: deuses iorubás na África e no Novo Mundo. São Paulo: Editora
Corrupio, 1981, p. 14.
[2] FONSECA Jr., Eduardo. Dicionário antológico da cultura afro-brasileira: incluindo as ervas dos Orixás,
doenças, usos, fitoterapia e fitologia das ervas. Eduardo Fonseca Jr. - São Paulo: Maltesa, 1995.
[3] Ibidem, p. 67.
[4] Ibidem, p. 68.
[5] Ibidem, p. 68.
[6] Ibidem, p. 36.
[7] Ibidem, p. 70.
[8] Ibidem, p. 71.
[9] Ibidem, p. 36.
[10] Ibidem, p. 208.
[11] AFLALO, Fred. Candomblé: uma visão do mundo. São Paulo: Mandarim, 1996, p. 51.
[12] FONSECA Jr., Eduardo. Dicionário antológico da cultura afro-brasileira. Sã

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