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CIP-BRASIL. CATALOGACAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ Carvalho, José Murilo de, 1939- C324c Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo de 7 ed. Carvalho. = 7? ed. — Rio de Janeiro: Civilizacdo Brasileira, 2005. Inclui bibliografia ISBN 85-200-0565-9 1. Cidadania - Brasil - Historia. 2. Democracia - Brasil ~ Historia. 3. Brasil - Politica e governo. I. Titulo. Introducao: Mapa da viagem O esforco de reconstrugao, melhor dito, de construgdo da democracia no Brasil ganhou impeto apés o fim da ditadura militar, em 1985. Uma das marcas desse esforgo é a voga que assumiu a palavra cidadania. Politicos, jornalistas, intelectuais, lideres sindicais, dirigentes de associagdes, simples cidad4os, todos a adotaram. A cidadania, literalmente, caiu na boca do povo. Mais ainda, ela substituiu o prdprio povo na retérica politica. Nao se diz mais “o povo quer isto ou aquilo”, diz-se “a cidadania quer”. Cidadania virou gente. No auge do entu- siasmo civico, chamamos a Constituigao de 1988 de Consti- tuigdo Cidada. Havia ingenuidade no entusiasmo. Haviaa crenga de que a democratizacao das instituiges traria rapidamente a felici- dade nacional. Pensava-se que o fato de termos reconquista- do o direito de eleger nossos prefeitos, governadores e presi- dente da Republica seria garantia de liberdade, de participa- Gao, de seguranga, de desenvolvimento, de emprego, de justi- ¢a social. De liberdade, ele foi. A manifestacdo do pensamen- to é livre, a acdo politica e sindical é livre. De participacgao também. O direito do voto nunca foi tao difundido. Mas as coisas n4o caminharam t4o bem em outras areas. Pelo contra- tio. Ja 15 anos passados desde o fim da ditadura, problemas JOSE MURILO DE CARVALHO centrais de nossa sociedade, como a violéncia urbana, o de- semprego, 0 analfabetismo, a ma qualidade da educagio, a oferta inadequada dos servigos de satide c sancamento, e as grandes desigualdades sociais e econémicas ou continuam sem solugdo, ou se agravam, ou, quando melhoram, é em ritmo muito lento. Em conseqiiéncia, os préprios mecanismos ¢ agentes do sistema democratico, como as eleigdes, os parti- dos, o Congresso, os politicos, se desgastam e perdem a con- fianga dos cidadaos. Nao ha indicios de que a descrenga dos cidadaos tenha gerado saudosismo em relagao ao governo militar, do qual a nova geracdo nem mesmo se recorda. Nem hd indicagao de perigo imediato para o sistema democratico. No entanto, a falta de perspectiva de melhoras importantes a curto prazo, inclusive por motivos que tém a ver com a crescente depen- déncia do pais em relagdo 4 ordem econdmica internacional, é fator inquietante, nao apenas pelo sofrimento humano que representa de imediato como, a médio prazo, pela possivel tentagao que pode gerar de solugSes que signifiquem retro- cesso em conquistas ja feitas. E importante, entao, refletir sobre o problema da cidadania, sobre seu significado, sua evolugio histérica e suas perspectivas. Sera exercicio adequa- do para o momento da passagem dos 500 anos da conquista dessas terras pelos portugueses. Inicio a discuss4o dizendo que o fendmeno da cidadania é complexo e historicamente definido. A breve introdugao aci- ma ja indica sua complexidade. O cxercfcio de certos direitos, como a liberdade de pensamento e 0 voto, nao gera automati- camente 0 gozo de outros, como a seguranga e 0 emprego. O exercicio do voto nao garante a existéncia de governos atentos aos problemas basicos da populagao. Dito de outra maneira: a CIDADANIA NO BRASIL liberdade e a participagao nao levam automaticamente, ou ra- pidamente, a resolugao de problemas sociais. Isto quer dizer que a cidadania inclui varias dimens6es e que algumas podem estar presentes sem as outras. Uma cidadania plena, que com- bine liberdade, participagao e igualdade para todos, é um ideal desenvolvido no Ocidente e talvez inatingivel. Mas ele tem ser- vido de parametro para o julgamento da qualidade da cidada- nia em cada pafs e em cada momento histérico. Tornou-se costume desdobrar a cidadania em direitos ci- vis, politicos e sociais. O cidado pleno seria aquele que fosse titular dos trés direitos. Cidadaos incompletos seriam os que possufssem apenas alguns dos direitos. Os que nao se benefici- assem de nenhum dos direitos seriam nao-cidadaos. Esclarego os conceitos. Direitos civis sao os direitos fundamentais a vida, a liberdade, 4 propriedade, & igualdade perante a lei. Eles se desdobram na garantia de ir e vir, de escolher o trabalho, de manifestar o pensamento, de organizar-se, de ter respeitada a inviolabilidade do lar e da correspondéncia, de nao ser preso a nao ser pela autoridade competente e de acordo com as leis, de nao ser condenado sem processo legal regular. Sao direitos cuja garantia se baseia na existéncia de uma justiga independente, eficiente, barata e acessivel a todos. Sao eles que garantem as relacées civilizadas entre as pessoas e a propria existéncia da sociedade civil surgida com o desenvolvimento do capitalismo. Sua pedra de toque é a liberdade individual. E possivel haver direitos civis sem direitos politicos. Estes se referem A participagao do cidadao no governo da socieda- de. Seu exercicio é limitado a parcela da populagao e consiste na capacidade de fazer demonstragées politicas, de organizar partidos, de votar, de ser votado. Em geral, quando se fala de direitos politicos, é do direito do voto que se esta falando. Se JOSE MURILO DE CARVALHO pode haver direitos civis sem direitos politicos, 0 contrario nao é viavel. Sem os direitos civis, sobretudo a liberdade de opiniao e organizagio, os direitos politicos, sobretudo 0 voto, podem existir formalmente mas ficam esvaziados de contet- do e servem antes para justificar governos do que para repre- sentar cidadaos. Os direitos politicos tém como instituigao principal os partidos e um parlamento livre e representativo. Sao eles que conferem legitimidade a organizagio politica da sociedade. Sua esséncia é a idéia de autogoverno. Finalmente, ha os direitos sociais. Se os direitos civis garan- tem a vida em sociedade, se os dircitos politicos garantem a participagao no governo da sociedade, os direitos sociais ga- rantem a participagao na riqueza coletiva. Eles incluem o direi- to a educagao, ao trabalho, ao salario justo, 4 satide, a apo- sentadoria. A garantia de sua vigéncia depende da existéncia de uma eficiente maquina administrativa do Poder Executivo. Em tese eles podem existir sem os direitos civis e certamente sem os direitos politicos. Podem mesmo ser usados em subs- titui¢do aos direitos politicos. Mas, na auséncia de direitos civis e politicos, seu contetido e alcance tendem a ser arbitrarios. Os direitos sociais permitem 4s sociedades politicamente or- ganizadas reduzir os excessos de desigualdade produzidos pelo capitalismo e garantir um minimo de bem-estar para todos. A idéia central em que se baseiam € a da justiga social. O autor que desenvolveu a disting4o entre as varias dimen- sdes da cidadania, T. A. Marshall, sugeriu também que ela, a cidadania, se desenvolveu na Inglaterra com muita lentidao. Primeiro vieram os direitos civis, no século XVIII. Depois, no século XIX, surgiram os direitos politicos. Finalmente, os di- reitos sociais foram conquistados no século XX. Segundo ele, nao se trata de seqiiéncia apenas cronoldgica: ela é também 10 CIDADANIA NO BRASIL logica. Foi com base no exercicio dos direitos civis, nas liber- dades civis, que os ingleses reivindicaram o direito de votar, de participar do governo de seu pafs. A participagado permitiu a eleicao de operarios e a criacao do Partido Trabalhista, que foram os responsaveis pela introdugdo dos direitos sociais. Ha, no entanto, uma exceg4o na seqiiéncia de direitos, anotada pelo proprio Marshall. Trata-se da educaga4o popu- lar. Ela é definida como direito social mas tem sido historica- mente um pré-requisito para a expansio dos outros direitos. Nos paises em que a cidadania se desenvolveu com mais rapi- dez, inclusive na Inglaterra, por uma razdo ou outra a educa- ¢40 popular foi introduzida. Foi ela que permitiu as pessoas tomarem conhecimento de seus direitos e se organizarem para lutar por eles. A auséncia de uma populag4o educada tem sido sempre um dos principais obstaculos a construgio da cidada- nia civil e politica. O surgimento seqiiencial dos direitos sugere que a pro- pria idéia de direitos, e, portanto, a propria cidadania, é um fendmeno histérico. O ponto de chegada, o ideal da cidada- nia plena, pode ser semelhante, pelo menos na tradig4o oci- dental dentro da qual nos movemos. Mas os caminhos sao distintos e nem sempre seguem linha reta. Pode haver tam- bém desvios e retrocessos, nao previstos por Marshall. O per- curso inglés foi apenas um entre outros. A Franga, a Alema- nha, os Estados Unidos, cada pais seguiu seu proprio cami- nho. O Brasil nao é excegao. Aqui nao se aplica o modelo in- glés. Ele nos serve apenas para comparar por contraste. Para dizer logo, houve no Brasil pelo menos duas diferengas im- portantes. A primeira refere-se 4 maior énfase em um dos di- reitos, 0 social, em relagio aos outros. A segunda refere-se 4 alteragao na seqiiéncia em que os direitos foram adquiridos: 14 JOSE MURILO DE CARVALHO entre nos 0 social precedeu os outros. Como havia légica na seqiiéncia inglesa, uma alteragao dessa légica afeta a natureza da cidadania. Quando falamos de um cidadao inglés, ou nor- te-americano, e de um cidadio brasileiro, nao estamos falan- do exatamente da mesma coisa. Outro aspecto importante, derivado da natureza histéri- ca da cidadania, é que ela se desenvolveu dentro do fenéme- no, também histérico, a que chamamos de Estado-nagao e que data da Revolugio Francesa, de 1789. A luta pelos direitos, todos cles, sempre se deu dentro das fronteiras geograficas e politicas do Estado-nacdo. Era uma luta politica nacional, e o cidadao que dela surgia era também nacional. Isto quer dizer que a construgio da cidadania tem a ver com a relagao das pessoas com o Estado e com a nagao. As pessoas se tornavam cidadas & medida que passavam a se sentir parte de uma na- cao e de um Estado. Da cidadania como a conhecemos fazem parte entao a lealdade a um Estado e aidentificagao com uma nagio. As duas coisas também nem sempre aparecem juntas. A identificagio 4 nagao pode ser mais forte do que a lealdade ao Estado, e vice-versa. Em geral, a identidade nacional se deve a fatores como religiao, lingua e, sobretudo, lutas e guerras contra inimigos comuns. A lealdade ao Estado depende do grau de participagao na vida politica. A maneira como se for- maram os Estados-nagio condiciona assim a construgao da cidadania. Em alguns paises, o Estado teve mais importancia € 0 processo de difusao dos direitos se deu principalmente a partir da ago estatal. Em outros, ela se deveu mais a agao dos proprios cidadaos. Da relacdo da cidadania com o Estado-nag’o deriva uma tltima complicacgao do problema. Existe hoje um consenso a respeito da idéia de que vivemos uma crise do. Estado-nagao. 12 CIDADANIA NO BRASIL Discorda-se da extensao, profundidade e rapidez do fendme- no, nao de sua existéncia. A internacionalizagao do sistema capitalista, iniciada ha séculos mas muito acclerada pelos avan- cos tecnoldégicos recentes, e a criagdo de blocos econémicos e politicos tém causado uma redugao do poder dos Estados e uma mudanga das identidades nacionais existentes. As varias nagGes que compunham o antigo império soviético se transformaram em novos Estados-nacao. No caso da Europa Ocidental, os varios Estados-nagéo se fundem em um grande Estado multinacional. A redugao do poder do Estado afeta a natureza dos antigos direitos, sobretudo dos direitos politicos e sociais. Se os direitos politicos significam participagao no governo, uma diminuigéo no poder do governo reduz também a relevancia do direito de participar. Por outro lado, a ampliagao da com- petigao internacional coloca press4o sobre o custo da m4o-de- obra e sobre as finangas estatais, o que acaba afetando o em- prego e os gastos do governo, do qual dependem os direitos sociais. Desse modo, as mudangas recentes tém recolocado em pauta o debate sobre o problema da cidadania, mesmo nos pa- ses em que cle parecia estar razoavelmente resolvido. Tudo isso mostra a complexidade do problema. O enfrentamento dessa complexidade pode ajudar a identificar melhor as pedras no caminho da construg4o democratica. Nao oferego receita da cidadania. Também ndo escrevo para espe- cialistas. Fago convite a todos os que se preocupam com a democracia para uma viagem pelos caminhos tortuosos que a cidadania tem seguido no Brasil. Seguindo-lhe o percurso, o eventual companheiro ou companheira de jornada podera de- senvolver visao prépria do problema. Ao fazé-lo, estara exer- cendo sua cidadania. 13 Conclusao: A cidadania na encruzilhada Percorremos um longo caminho, 178 anos de histéria do es- forgo para construir o cidadao brasileiro. Chegamos ao fi- nal da jornada com a sensagao desconfortavel de incom- pletude. Os progressos feitos séo ineg4veis mas foram len- tos e nado escondem o longo caminho que ainda falta per- correr. O triunfalismo exibido nas celebragées oficiais dos 500 anos da conquista da terra pelos portugueses nao con- segue ocultar o drama dos milhées de pobres, de desempre- gados, de analfabetos e semi-analfabetos, de vitimas da vio- léncia particular e oficial. Nao ha indicios de saudosismo em relagao 4 ditadura militar, mas perdeu-se a crenga de que a democracia politica resolveria com rapidez os problemas da pobreza e da desigualdade. Uma das razGes para nossas dificuldades pode ter a ver com anatureza do percurso que descrevemos. A cronologiae a légica da seqiiéncia descrita por Marshall foram invertidas no Brasil. Aqui, primeiro vieram os direitos sociais, implanta- dos em perfodo de supressao dos direitos politicos e de redu- gao dos direitos civis por um ditador que se tornou popular. Depois vieram os direitos politicos, de maneira também bi- zarra. A maior expansdo do direito do voto deu-se em outro 219 JOSE MURILO DE CARVALHO perfodo ditatorial, em que os 6rgaos de representacdo politi- ca foram transformados em pega decorativa do regime. Final- mente, ainda hoje muitos direitos'civis, a base da seqiiéncia de Marshall, continuam inacessfveis 4 maioria da populagdo. A piramide dos direitos foi colocada de cabega para baixo. Na seqiiéncia inglesa, havia uma ldgica que reforgava a conviccao democratica. As liberdades civis vicram primciro, garantidas por um Judicidrio cada vez mais independente do Executivo. Com base no exercicio das liberdades, expandiram- se os direitos politicos consolidados pelos partidos e pelo Legislativo. Finalmente, pela agao dos partidos e do Congres- so, votaram-se os direitos sociais, postos em pratica pelo Exe- cutivo. A base de tudo eram as liberdades civis. A participa- ¢4o politica era destinada em boa parte a garantir essas liber- dades. Os direitos sociais eram os menos dbvios e até certo ponto considerados incompativeis com os direitos civis e po- liticos. A protegao do Estado a certas pessoas parecia uma quebra da igualdade de todos perante a lei, uma interferéncia na liberdade de trabalho e na livre competigao. Além disso, o auxilio do Estado era visto como restricg&o a liberdade indivi- dual do beneficiado, e como tal lhe retirava a condigéo de independéncia requerida de quem deveria ter 0 direito de voto. Por essa raz4o, privaram-se, no inicio, os assistidos pelo Esta- do do direito do voto. Nos Estados Unidos, até mesmo sindi- catos operdrios se opuseram 4 legislacao social, considerada humilhante para o cidadao. S6 mais tarde esses direitos pas- saram a ser considerados compativeis com os outros direitos, e o cidadao pleno passou a ser aquele que gozava de todos os direitos, civis, politicos e sociais. Seria tolo achar que s6 ha um caminho para a cidadania. A histéria mostra que nao € assim. Dentro da propria Europa 220 CIDADANIA NO BRASIL houve percursos distintos, como demonstram os casos da In- glaterra, da Franga e da Alemanha. Mas € razoavel supor que caminhos diferentes afetem o produto final, afetem o tipo de cidado, e, portanto, de democracia, que se gera. Isto é parti- cularmente verdadeiro quando a inversao da seqiiéncia € com- pleta, quando os direitos sociais passam a ser a base da pira- mide. Quais podem ser as conseqiiéncias, sobretudo para 0 problema da eficacia da democracia? Uma conseqiiéncia importante é a excessiva valorizacao do Poder Executivo. Se os direitos sociais foram implantados em perfodos ditatoriais, em que o Legislativo ou estava fechado ou era apenas decorativo, cria-se a imagem, para 0 grosso da populagio, da centralidade do Executivo. O governo aparece como 0 ramo mais importante do poder, aquele do qual vale a pena aproximar-se. A fascinagao com um Executivo forte esta sempre presente, ¢ foi cla sem divida uma das razdes da vit6ria do presidencialismo sobre o parlamentarismo, no ple- biscito de 1993. Essa orientagao para o Executivo reforga lon- ga tradicdo portuguesa, ou ibérica, patrimonialismo. O Esta- do é sempre visto como todo-poderoso, na pior hipétese como repressor e cobrador de impostos; na melhor, como um dis- tribuidor paternalista de empregos e favores. A agao politica nessa visio é sobretudo orientada para a negociagao direta com © governo, sem passar pela mediacao da representago. Como vimos, até mesmo uma parcela do movimento operario na Primeira Republica orientou-se nessa dire¢ao; parcela ainda maior adaptou-se a ela na década de 30. Essa cultura orienta- da mais para o Estado do que para a representagao éo que chamamos de “estadania”, em contraste com a cidadania. Ligada a preferéncia pelo Executivo esta a busca por um messias politico, por um salvador da patria. Como a experién- 221 JOSE MURILO DE CARVALHO cia de governo democratico tem sido curta e os problemas sociais tém persistido e mesmo se agravado, cresce também a impaciéncia popular com o funcionamento geralmente mais lento do mecanismo democratico de decisao. Dai a busca de solugdes mais rapidas por meio de liderangas carismaticas e messidnicas. Pelo menos trés dos cinco presidentes eleitos pelo voto popular apés 1945, Getilio Vargas, Janio Quadros e Fernando Colloz, possuiam tragos messianicos. Sintomatica- mente, nenhum deles terminou 0 mandato, em boa parte por nao se conformarem com as regras do governo representati- vo, sobretudo com o papel do Congresso. A contrapartida da valorizagao do Executivo é a desvalo- rizacao do Legislativo e de seus titulares, deputados e sena- dores. As eleigées legislativas sempre despertam menor inte- resse do que as do Executivo. A campanha pelas eleigdes di- retas referia-se 4 escolha do presidente da Republica, o chefe do Executivo. Dificilmente haveria movimento semelhante para defender eleigdes legislativas. Nunca houve no Brasil reagio popular contra fechamento do Congresso. H4 uma convic¢ao abstrata da importancia dos partidos e do Congresso como mecanismos de representag4o, convicgao esta que nao se reflete na avaliag&o concreta de sua atuagao. O desprestigio generalizado dos politicos perante a populacdo € mais acen- tuado quando se trata de vereadores, deputados e senadores. Além da cultura politica estatista, ou governista, a inver- sao favoreceu também uma visdo corporativista dos interes- ses coletivos. Nao se pode dizer que a culpa foi toda do Esta- do Novo. O grande éxito de Vargas indica que sua politica atingiu um ponto sensivel da cultura nacional. A distribuigao dos beneficios sociais por cooptacao sucessiva de categorias 222 CIDADANIA NO BRASIL de trabalhadores para dentro do sindicalismo corporativo achou terreno fértil em que se enraizar. Os beneficios sociais nao cram tratados como direitos de todos, mas como fruto da negociagao de cada categoria com 0 governo. A sociedade passou a se organizar para garantir os direitos e os privilégios distribuidos pelo Estado. A forga do corporativismo manifes- tou-se mesmo durante a Constituinte de 1988. Cada grupo procurou defender e aumentar seus privilégios. Apesar das criticas a CLT, as centrais sindicais dividiram-se quanto ao imposto sindical e & unicidade sindical, dois esteios do siste- ma montado por Vargas. Tanto 0 imposto como a unicidade foram mantidos. Os funciondrios piblicos conseguiram esta- bilidade no emprego. Os aposentados conseguiram o limite de um salério minimo nas pens6es, os professores consegui- ram aposentadoria cinco anos mais cedo, e assim por diante. A pratica politica posterior a redemocratizagao tem revelado a forca das grandes corporagées de banqueiros, comercian- tes, industriais, das centrais operarias, dos empregados publi- cos, todos lutando pela preservagao de privilégios ou em bus- ca de novos favores. Na area que nos interessa mais de perto, © corporativismo € particularmente forte na luta de juizes e promotores por melhores salarios e contra o controle exter- no, e na resisténcia das policias militares e civis a mudangas em sua organizagao. ‘A auséncia de ampla organizag4o auténoma da sociedade faz com que os interesses corporativos consigam prevalecer. A representagao politica nao funciona para resolver os gran- des problemas da maior parte da populagao. O papel dos le- gisladores reduz-se, para a maioria dos votantes, ao de inter- medidrios de favores pessoais perante 0 Executivo. O eleitor vota no deputado em troca de promessas de favores pessoais; 223 José MURILO DE CARVALHO o deputado apoia o governo em troca de cargos e verbas para distribuir entre seus eleitores. Cria-se uma esquizofrenia po- litica: os eleitores desprezam os politicos, mas continuam votando neles na esperanga de beneficios pessoais. Para muitos, o remédio estaria nas reformas politicas mencionadas, a eleitoral, a partidaria, a da forma de gover- no. Essas reformas e outros experimentos poderiam even- tualmente reduzir o problema central da ineficacia do siste- ma representativo. Mas para isso a fragil democracia brasi- leira precisa de tempo. Quanto mais tempo cla sobreviver, maior sera a probabilidade de fazer as corregdes necessarias nos mecanismos politicos e de se consolidar. Sua consolida- ¢4o nos paises que sao hoje considerados democraticos, in- cluindo a Inglaterra, exigiu um aprendizado de séculos. £ possivel que, apesar da desvantagem da inverséo da ordem dos direitos, o exercicio continuado da democracia politica, embora imperfeita, permita aos poucos ampliar 0 gozo dos direitos civis, o que, por sua vez, poderia reforgar os direi- tos politicos, criando um circulo virtuoso no qual a cultura politica também se modificaria. Na corrida contra o tempo, ha fatores positivos. Um de- les é que a esquerda e a direita parecem hoje convictas do valor da democracia. Quase todos os militantes da esquerda armada dos anos 70 sao hoje politicos adaptados aos proce- dimentos democraticos. Quase todos aceitam a via eleitoral de acesso ao poder. Por outro lado, a direita também, salvo poucas excegées, parece conformada com a democracia. Os militares tém-se conservado dentro das leis e nao ha indi- cios de que estejam cogitando da quebra das regras do jogo. Os rumores de golpe, freqiientes no periodo pés-45, ja ha algum tempo que nao vém perturbar a vida politica nacio- 224 . it CIDADANIA NO BRASIL nal. Para isso tem contribuido o ambiente internacional, hoje totalmente desfavoravel a golpes de Estado e governos au- toritarios. Isso nao é mérito brasileiro, mas pode ajudar a desencorajar possiveis golpistas e a ganhar tempo para a de- mocracia. Mas 0 cendrio internacional traz também complicagées para a construgao da cidadania, vindas sobretudo dos paises que costumamos olhar como modelos. A queda do império soviético, 0 movimento de minorias nos Estados Unidos e, principalmente, a globalizagao da economia em ritmo acele- rado provocaram, ¢ continuam a provocar, mudangas impor- tantes nas relagées entre Estado, sociedade e nagao, que eram o centro da nogao e da pratica da cidadania ocidental. O foco das mudancas est localizado em dois pontos: a redugao do papel central do Estado como fonte de direitos e como arena de participagao, e 0 deslocamento da nagao como principal fonte de identidade coletiva. Dito de outro modo, trata-se de um desafio A instituicdo do Estado-nagio. A redugao do pa- pel do Estado em beneficio de organismos e mecanismos de controle internacionais tem impacto direto sobre os direitos politicos. Na Unido Européia, os governos nacionais perdem poder e relevancia diante dos 6rgios politicos e burocraticos supranacionais. Os cidadaos ficam cada vez mais distantes de seus representantes reunidos em Bruxelas. Grandes decisdes politicas ¢ econémicas sao tomadas fora do ambito nacional. Os direitos sociais também sao afetados. A exigéncia de reduzir o déficit fiscal tem levado governos de todos os paises areformas no sistema de seguridade social. Essa redugao tem resultado sistematicamente em cortes de beneficios e na descaracterizacao do estado de bem-estar. A competi¢ao fe- roz que se estabeleceu entre as empresas também contribuiu 225 JOSE MURILO DE CARVALHO para a exigéncia de redugdo de gastos via poupanga de mao- de-obra, gerando um desemprego estrutural dificil de elimi- nar. Isso por sua vez, no caso da Europa, leva a pressdes con- tra a presenca de imigrantes africanos e asidticos e contra a extensdo a eles de direitos civis, politicos e sociais. O pensa- mento liberal renovado volta a insistir na importancia do mercado como mecanismo auto-regulador da vida econémi- ca e social e, como conseqiiéncia, na redugao do papel do Estado. Para esse pensamento, 0 intervencionismo estatal foi um paréntese infeliz na histéria iniciado em 1929, em decor- réncia da crise das bolsas, e terminado em 1989 apés a queda do Muro de Berlim. Nessa visdo, 0 cidad4o se torna cada vez mais um consumidor, afastado de preocupagées com a politi- cae com os problemas coletivos. Os movimentos de minorias nos Estados Unidos contribuiram, por sua vez, para minar a identidade nacional ao colocarem énfase em identidades cul- turais baseadas em género, etnia, opgdes sexuais etc. Assim como ha enfraquecimento do poder do Estado, ha fragmen- tagdo da identidade nacional. O Estado-nagao se vé desafia- do dos dois lados. Diante dessas mudangas, pafses como o Brasil se véem fren- te a uma ironia. Tendo corrido atrés de uma nog4o e uma pratica de cidadania geradas no Ocidente, e tendo consegui- do alguns éxitos em sua busca, véem-se diante de um cenario internacional que desafia essa nogdo e essa pratica. Gera-se um sentimento de perplexidade e frustragao. A pergunta ase fazer, entao, € como enfrentar 0 novo desafio. As mudangas ainda n4o atingiram o pais com a forga verificada na Europa e, sobretudo, nos Estados Unidos. Nao seria sensato reduzir 0 tradicional papel do Estado da manei- ra radical proposta pelo liberalismo redivivo. Primeiro, por 226 CIDADANIA NO BRASIL causa da longa tradicao de estatismo, dificil de reverter de um dia para outro. Depois, pelo fato de que ha ainda entre nés muito espaco para o aperfeicoamento dos mecanismos institucionais de representacao. Mas alguns aspectos das mu- dangas seriam benéficos. O principal é a énfase na organiza- cdo da sociedade. A inversao da seqiiéncia dos direitos refor- cou entre nés a supremacia do Estado. Se ha algo importante a fazer em termos de consolidagio democratica, é reforgar a organizagao da sociedade para dar embasamento social ao politico, isto é, para democratizar o poder. A organizagio da sociedade nao precisa e nao deve ser feita contra o Estado em si. Ela deve ser feita contra o Estado clientelista, corporativo, colonizado. Experiéncias recentes sugerem otimismo ao apontarem na direcdo da colaborag4o entre sociedade e Estado que nao fo- gem totalmente 4 tradigio, mas a reorientam na direg4o sugerida. A primeira tem origem na sociedade. Trata-se do surgimento das organizagGes n4o-governamentais qué, sem serem parte do governo, desenvolvem atividades de interesse ptblico. Essas organizagées se multiplicaram a partir dos anos finais da ditadura, substituindo aos poucos os movimentos sociais urbanos. De inicio muito hostis ao governo e depen- dentes de apoio financeiro externo, dele se aproximaram apés a queda da ditadura e expandiram as fontes internas de re- cursos. Da colaboragio entre elas e os governos municipais, estaduais ¢ federal, tém resultado experiéncias inovadoras no encaminhamento ¢ na solugdo de problemas sociais, sobretu- do nas areas de educagio ¢ direitos civis. Essa aproximagao nao contém o vicio da “estadania” e as limitagdes do corporativismo porque democratiza o Estado. A outra mudan- ca tem origem do lado do governo, sobretudo dos executivos 227 JOSE MURILO DE CARVALHO municipais dirigidos pelo Partido dos Trabalhadores. Muitas prefeituras experimentam formas alternativas de envolvimento da populagao na formulagao e execugao de politicas publicas, sobretudo no que tange ao orgamento e as obras publicas. A parceria aqui se da com associag6es de moradores e com or- ganizacg6es n4o-governamentais. Essa aproximacao nao tem os vicios do paternalismo e do clientelismo porque mobiliza o cidadao. E 0 faz no nivel local, onde a participagao sempre foi mais fragil, apesar de ser ai que ela é mais relevante paraa vida da maioria das pessoas. Mas ha também sintomas perturbadores oriundos das mudangas trazidas pelo renascimento liberal. Nao me refiro a defesa da redugao do papel do Estado, mas ao desenvolvi- mento da cultura do consumo entre a populacio, inclusive a mais exclufda. Exemplo do fenémeno foi a invas4o pacifica de um shopping center de classe média no Rio de Janeiro por um grupo de sem-teto. A invasao teve o mérito de denunciar de maneira dramatica os dois brasis, 0 dos ricos e 0 dos po- bres. Os ricos se misturavam com 0s turistas estrangeiros mas estavam a léguas de distancia de seus patricios pobres. Mas ela também revelou a perversidade do consumismo. Os sem- teto reivindicavam o direito de consumir. Nao queriam ser cidada4os mas consumidores. Ou melhor, a cidadania que rei- vindicavam era a do direito ao consumo, era a cidadania pre- gada pelos novos liberais. Se o direito de comprar um telefo- ne celular, um ténis, um relégio da moda consegue silenciar ou prevenir entre os exclufdos a militancia polftica, o tradicio- nal direito politico, as perspectivas de avango democratico se véem diminuidas. As duas experiéncias favorecem, a cultura do consumo dificulta o desatamento do n6 que torna tao lenta a marcha 228 CIDADANIA NO BRASIL da cidadania entre nds, qual seja, a incapacidade do sistema representativo de produzir resultados que impliquem a redu- cao da desigualdade e o fim da divisao dos brasileiros em cas- tas separadas pela educagio, pela renda, pela cor. José Bonifacio afirmou, em representagao enviada 4 Assembléia Constituinte de 1823, que a escraviddéo era um cancer que corrofa nossa vida civica e impedia a construgao da nagao. A desigualdade é a escravidao de hoje, o novo cancer que impe- de a constituicdo de uma sociedade democratica. A escravi- dao foi abolida 65 anos apés a adverténcia de José Bonifacio. A precaria democracia de hoje nao sobreviveria a espera tao longa para extirpar o'cancer da desigualdade.

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