You are on page 1of 114
188N 2317-1332 ASE RSS) \ | atts TT : Sayfa i Ss, 9 b> Curitiba Jan/Jun 2014 Revista do Filosofia e Ensino Educagao filoséfica, ensino de filosofia e politica educacional: analises e perspectivas ISSN 2317-1332 R. NESEF Fil. Ens., Curitiba, v.4, n.4, p.1-113, Jan./Jun. 2014 A Revista do NESEF Filosofia e Ensino é uma publicago semestral do Nucleo de Estudos e Pesquisas Sobre 0 Ensino de Filosofia da Universidade Federal do Parana. Coordenagao: Geraldo Balduino Horn e Valéria Arias Conselho editorial: Alejandro Cerlleti (UBA), Anita Helena Schlesener (UFPRIUTP), Anténio Edmilson Paschoal (PUC PR), Anténio Joaquim Severino (UNINOVE), Carmen Liicia F. Diez (UNIPLAC), Celso Fernando Favaretto (FEUSP), Délcio Junkes (UFPR), Celso de Moraes Pinheito (UFPR), Celso Luiz Luidwig (UFPR), Dalton José Alves (UNIRIO), Danilo Marcondes (PUCR\), Darcisio Muraro (UEL), Domenico Costella (IFIL), Elisete Tomazetti (UFSM), Emmanuel José Appel (UFPR), Euclides André Mance (IFIL), Felipe Ceppas (UFRJ), Gelson Jodo Tesser (UFPR), Giselle Moura Schnorr (UNESPAR), Gustavo Ruggiero (UNGS - ARG.), Jelson Roberto de Oliveira (PUCPR), José Antonio Martins (UEM), José Benedito de Almeida Junior (UFU), J. M. de Barros Dias (UE - PT), Jorge Luiz Viesenteiner (PUCPR), Lucrécio de Araijo de Sé Junior (UFRN), Junot Corélio Matos (UFPE), Marcelo Senna Guimaraes (Colégio Pedro Il - RJ), Marcos Lorieri (UNINOVE), Maria Cristina Theobaldo (UFMT), Mauricio Langén (IPES/ANEP - UY), Paulo Henrique Fernandes Silveira (FEUSP), Ricardo Fabbrini (USP), Roberto de Barros Freire (UFMT), Rodrigo Pelloso Gelamo (UNIMEP), Tania Maria F. Braga Garcia (UFPR), Vanderlei de Oliveira Farias (UFFS), Walter Omar Kohan (UFR\), Zita Ana Lago Rodrigues (U. LUSOFONA - PT). Comité de avaliagéo da edigao: Anita Helena Schlesener (UTP), Carmen Lucia F. Diez (UNIPLAC), Darcisio Muraro (UEL), Délcio Junkes (UFPR), Domenico Costella (IFIL), Giselle Moura Schnorr (UNESPAR), Lucrécio de Aratijo de S4 Junior (UFRN), e Tania Maria F. Braga Garcia (UFPR). Produgao grafica e artistica: Murilo Rocha Colaboragao: Coletivo de pesquisadores do NESEF/UFPR. Apoios: Murilo Rocha - Tecnologia; Universidade Federal do Parana - PROGRAD; Instituto de Filosofia da Libertagao — IFIL; Sindicato dos Trabalhadores em Educagao Publica do Parana - APP ~ Sindicato Versio di http:/iwww.nesef.ufpr.brirevista Capa: Composigéo de Murilo Rocha, a partir do desenho de Patrick José Buchner, estudante do ensino médio de Colégio Estadual Padre Amaldo Jansen, (Séo José dos Pinhais, Parana) denominado liberdade sem regras. Como citar esta edigdo: REVISTA DO NESEF Filosofia e Ensino. Educago filoséfica, ensino de filosofia e politica educacional: analises e perspectivas. Curitiba, UFPR, vol.4, n°, p.1-113, jan. jun., 2014. Informagées sobre reprodugao: E permitida a reprodugao total ou parcial dos contetidos deste periédico desde que citada a fonte, conforme especificagao dos editores e legisiagao que regula a propriedade intelectual UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANA, SISTEMA DE BIBLIOTECAS. BIBIBLIOTECA DE CIENCIAS HUMANAS E EDUCAGAO. REVISTA do NESEF / Nacieo de Estudos e Pesquisas sobre 0 Ensino de Filosofia da UFPR; coordenagao: Geraldo Beduino Hor e Valéria Arias; producao gréfica e artistica: Murilo Rocha; conseiho editorial: Alejandro Cerllate ... etal. v.4, n.4 (2014) Curitiba, PR : UFPR, 2013, Educagao filosefica, ensino de flosofia e politica educacional: andlises @ perspectivas ‘Semestral ISSN 2317-1332 1. Filosofia - Estudo e ensino - Periédicos. |. Universidade Federal do Parana. Il, Horn, Geraldo Balduino. 1 ‘Arias, Valéria. Ill. Celete, Alejandro. COD 20.e4. 101 Sitlei do Rocio Gdulla CRB-9"/985 NOSSA CAPA, Composigiio de Murilo Rocha, a partir do desenho de Patrick José Buchner, estudante do ensino médio de Colégio Estadual Padre Arnaldo Jansen, (Sao José dos Pinhais, Parana) denominado liberdade sem regras. Scu Professor, Dirceu Alves do Carmo, enviou-nos a descrigdo que Patrick elaborou para sua ilustragdo, a qual transcrevemos na integra: A Ilustracio é sobre 0 conceito de liberdade de acordo com o senso comum. Nesse contexto ‘se entende que 0 individuo & completamente livre para fazer 0 que bem entende. E é Jjustamente nesse cendrio que o individuo, ciente de néo haver regras ou algo que possa delimité-lo, ou 0 puni-lo por seus atos, que o mesmo usa dessa liberdade para prejudicar aos outros, independente do motivo. O excesso de regras pode ser prejudicial a alguém, trancando-o e mantendo-o preso, privando-lhe de um direito essencial, que é a liberdade, porém a falta de restrigdes pode abrir passagem para atos cujos motives sao egoistas, imorais, e as vezes injustificaveis. imagem pretende demonstrar 0 uso erréneo da liberdade. Nela é possivel ver um homen- condor atacando um homen-pombo. O motivo de ter usado as figuras de Aves é uma referéncia ao simbolismo de liberdade, jé que uma ave é livre para abrir suas e voar até onde quiser. Portando, essa fusdo de homens e aves, significa que eles sao homens livres. Mas, embora a imagem represente a liberdade humana, também demonstra como ela pode ser usada de forma errada, exaltando a questo de "Eu sou livre, faco 0 que bem entendo". ce ees Jan. SUMARIO Apresentagio.... Segiio I - Artigos PARTE I- EDUCACAO FILOSOFICA E POLITICAS PARA O ENSINO DE FILOSOFIA © papel do professor e a fungio interdisciplinar da filosofia Jorge Luiz. Viesenteiner.. Uma defesa da leitura dos clissicos no ensino médio Glauber Cesar Klein ¢ Diégenes Galdino Morais Silva.... 120 Anilise dos trabalhos publicados nos livros do “Simpésio Sul-Brasileiro Sobre Ensino de Filosofia” que versam sobre TIC e ensino de filosofia Simone Becher Araujo Moraes ¢ Elisete Medianeira Tomazetii.. A filosofia e 0 tutor em EaD no Maranhio Gabriel Kafure da Rocha, Para um ensino de filosofia que contribua com a elaboragao do luto na adolescéncia Felipe de Jesus Sabadini.... Arelevncia do ensino da filosofia existencial na educagio basica David Velanes de Araijo... PARTE Il- FILOSOFIA: AUTORES E CONCEITOS, Miguel de Unamuno, a educagio e a pedagogia JM, de Barros Dias. ‘Tempo e Temporalidade em Heidegger a partir da dtica de Benedito Nunes Bruno Thompis Alves Siqueira Barbosa Segao II - Informativo NESEF Carta-manifesto. do Coletivo do NESEF/UFPR em reptidio ao desrespeito as prerrogativas do Direito Universal A Educagio no Estado do Parané e apoio a Educagio de Jovens e Adultos... 92 Se Carta-manifesto. do Coletivo do NESEF/UFPR em repiidio ao desrespeito as prerrogativas do Direito Universal 4 Educagio no Estado do Parana e apoio A Educagio de Jovens ¢ Adulto: 96 Segao III - Opiniao Estado de excegio: violéncia, politica e histéria Cleber Dias de Araijo. 101 O art. 6° da LDB e a perda do papel educacional das familias Wagner Luis Barbosa. 105 Instrugdes editoriais para autores.....cn0nnnsneenn 113 Se APRESENTAGAO Neste quarto néimero, a Revista do NESEF Filosofia ¢ Ensino ¢ mantém-se fiel & sua proposta editorial. Na contracorrente do produtivismo imperante nas politicas ¢ diretrizes que organizam e definem a pesquisa universitéria e académica, seguimos como espago para a veiculagdo de trabalhos de autores que se encontram em diferentes etapas de seus percursos intelectuais e académicos. Da mesma forma, enquanto veiculo de um Niicleo de Estudos e Pesquisas que tem na Educagdo Basica Publica sua principal interface, este niimero expressa a atuagao piblica do NESEF em relagdo a determinadas politicas educacionais em curso. Apresentamos a Segio Artigos, dividida em dois segmentos. No primeiro, divulgamos seis trabalhos que, embora muito particulares entre si, ttm em comum o fato de seus objetos relacionarem-se as expressdes da filosofia escolar. No segundo, apresentamos dois conjuntos de reflexdes sobre as ideias, trajetérias e influéncias centradas em dois pensadores: Miguel de Unamuno e Benedito Nunes. Na Seco Informative NESEF, transcrevemos dois registros, debatidos ¢ organizados em Sessdes Publicas propostas pelo Niicleo, e, posteriormente, amplamente divulgados em Ambito local e nacional. © primeiro registro diz respeito a0 reptidio intransigente dos professores de filosofia do Parana a politica para a modalidade de Educagdo de Jovens e Adultos (BJA) adotada recentemente pela Secretaria de Estado da Educagao, O segundo, de cariter nacional, refere-se a0 posicionamento de um amplo contingente de professores-intelectuais da educagio basica e superior, acerca da tendéncia da organizagio curricular flexivel, expressamente manifesta no PL 6840/2013. Tal tendéncia, néo esté, contudo, somente nessa proposta legislativa, posto que vimos observando em varias politicas piiblicas educacionais, a dissolugdo da concepg3o da educagao formal institucionalizada como Ambito de socializagdo de conhecimentos sistematizados € socialmente relevantes. O Manifesto contra o PL 6840/2013 traz, mais que um arrazoado de exigéneias, a abordagem filoséfica do contexto da proposigao, considerando os interesses econémicos e politicos nele implicitos. Fiéis ao género ensaio, quase esquecido na atualidade, onde 0 “jornalismo cultural” ¢ o debate intelectual, via textos piblicos, cedeu lugar a uma torrente de informag@es ligeiras e, ndo raro, isentas de qualquer sentido totalizante, dois autores expdem suas posigdes ¢ reflexdes na Se¢do Opinido. Neste nimero, apresentamos dois intrigantes textos, ambos dedicados a questées candentes, localizadas, contraditoriamente, no entrecruzamento da educagdo, da ética e da politica, O primeiro problematiza o conceito e as objetivagdes tipicas do estado de excegdo no seio da democracia liberal. © segundo refere-se a uma polémica ainda nao discutida reir) amplamente no Brasil: a obrigatoriedade da matricula das criangas de quatro anos no sistema escolar oficial, retirando-se, ao menos em parte, a prerrogativa educacional das familias. Saudagées filoséficas Valéria Arias Geraldo Balduino Arias paca Jan Jun. 2014 Oran ee SECAO I- ARTIGOS PARTE I - EDUCACAO FILOSOFICA E POLITICAS PARA O ENSINO DE FILOSOFIA papel do professor e a fungio interdisciplinar da filosofia Jorge Luiz Viesenteiner! Resumo Este texto tem por objetivo analisar as condigGes & interdisciplinaridade filoséfica, em dominios, por exemplo, da filosofia e da literatura~ saberes vinculados tradicionalmente & formagio de recursos humanos & educago ~, na medida em que se compreende a fungao do professor de filosofia como guardador/intérprete da racionalidade, enfatizando sua praxis de ‘médico da cultura’, a partir de trés horizontes gerais: a) 0 papel de médico da cultura, portanto, um indicative de engajamento politico-social; b) 0 papel do cultive da formagao humana; ¢) a salvaguarda das especificidades tedricas de cada dominio do saber, conjugada com 0 uso semidtico de cada dominio entre si, em proveito da interdisciplinaridade. Palavras-chave: médico da cultura, engajamento, formagao, interdisciplinaridade ‘Teacher’s role and the function of philosophical interdisciplinarity Abstract This text aims to analyze the conditions for philosophical interdisciplinarity around research areas such as philosophy and literature ~ theoretical domains that are traditionally linked to the formation of human resources for education -, as long as one understands the teacher's role of philosophy as keeper/interpreter of rationality, emphasizing the praxis of ‘physician of the culture’, from three broad horizons: a) the role of physician of the culture and an indicative of political and social engagement, b) the role of cultivation in human development, and c) safeguarding of the theoretical specificities of each field of knowledge, coupled with the semiotic use of each area between themselves for the benefit of interdisciplinarity. Keywords: physician of the culture, engagement, formation, interdisciplinarity. ‘Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) ¢ professor do Programa de Pés- Graduagio em Filosofia stricto sensu da Pontificia Universidade Catélica do Parana (PUCPR). Membro do GIRN (Groupe International de Recherches sur Nietzsche) pela Emst-Moritz-Arndt Universitit Greifswald, na ‘Alemanba. Email: jvies@uol.com.br pic ry Cerne ner nts Quando pensamos na filosofia e seu ensino, duas questées emergem como pautas decisivas de discussio que, aliés, tém a caracteristica de serem temas continuamente em abertos: o papel do professor de filosofia e © sentido de se agregar 4 filosofia 0 carter interdisciplinar por exceléncia. A filosofia tem por vocagio a tutela da racionalidade empregada para a criagao/discussio de conceitos, por meio dos quais 0 mundo, a vida, a morte, etc., so interpretados/transformados. Acrescente-se ainda a vocagdo que a filosofia também possui de manter interlocugdes com os mais variados dominios do saber, conferindo a ela a prerrogativa interdisciplinar por exceléncia. Ambas as vocagSes se intensificam principalmente quando a filosofia desloca sua fungdo fundante dos saberes ¢ das esferas da cultura, para exercer 0 papel de guardadora/intérprete da racionalidade, colocando em interlocugio estruturas hi muito isoladas e paralisadas. O esfacelamento das grandes narrativas sistematicas da filosofia contemporanea pode ser indicado como um dos fatores decisivos, dentre outros, para tal deslocamento, Diante desse horizonte, 0 papel do professor igualmente se altera, assumindo aquele de médico da cultura ¢ elo de forgas formadoras. Neste caso, para além de ser aquele que indica a seara de veracidade dos saberes ¢ das esferas culturais, assume a postura daquele que possui o termémetro e o diapasio com os quais a cultura é interpretada, reconhecendo que diagnosticar/interpretar a cultura €, simultaneamente, diagnéstico/interpretagio de si mesmo, Isso pressupde a habilidade de ser “elo” de ligagdo entre dominios de saber, para fins de formagdo humana. Neste artigo, esbogo algumas reflexdes a propésito do debate tanto do papel do professor de filosofia, quanto da vocagio interdisciplinar da filosofia. Distancio-me aqui da pretensio exegética do tema, em proveito de uma anilise mais aberta sobre a pauta, agenciando, para fins de exemplificagdes, a interlocugo entre saberes que se interconectam de muito perto, como a filosofia ¢ a literatura. Separei em duas grandes partes o artigo, de modo que inicialmente elaboro 0 horizonte do professor como médico da cultura e elo de forgas formadoras para, em seguida, experimentar com a hipétese da vocagao interdisciplinar da filosofia, com uma rapida consideragdo sobre aspectos metodolégicos de uma interlocugao interdisciplinar. O professor de filosofia: entre médico da cultura ¢ elo de forgas formadoras A formagio de recursos humanos desde a educago fundamental até a superior parece exigir, de forma cada vez mais intensiva, 0 deslocamento do papel do professor como indicador fundante da racionalidade, para assumir o papel de guardador-intérprete dessa racionalidade em cada um dos dominios da cultura: filosofia, arte, religido, politica, moral, etc, Indicador fundante da racionalidade significa uma fungJo na qual o professor, Sc ear Pens "1 peers terdiseiplinar da flosofia especialmente o professor de filosofia, confere a filosofia a fungio de legitimar/fundamentar as estruturas conceituais das esferas da cultura, num isolamento autocentrado e, muitas vezes, desengajado. No que se refere ao papel de guardador/intérprete da racionalidade, porém, trata-se de compreender, Jato sensu, que o professor passa a ocupar o lugar de um “elo de forcas formadoras, como médico da cultura’, tal como ja havia escrito Nietzsche (1999, v. 7, p. 734), num ininterrupto esforgo de diagnéstico das principais transformagdes contemporaneas, em cada uma das esferas culturais. O papel de médico da cultura pressupde a habilidade de dialogar com as mais variadas vozes, renunciando a ter de encontrar uma unidade hermética para cada Ambito da cultura e do saber, mas em proveito da transversalidade do seu papel que, do ponto de vista da formagio humana, guarda conceitualmente ¢ interpreta as pretensdes de racionalidade contemporaneas. Obviamente, 0 deslocamento seméntico desse papel é um apelo oriundo do préprio modus operandi da cultura contemporénea, caso se queira pensar as humanidades e a formagdo humana de modo também engajados. A formagao de recursos humanos em todos os estigios da educagdo, no rigoroso sentido que explicamos acima de guardador/intérprete da racionalidade, encontra eco privilegiado quando agtutinamos, por exemplo, a filosofia, a literatura e a tradugdo, levando em conta, é claro, as interlocugdes com outros dominios do saber que clas colocam em movimento, Trata-se de dominios vinculados tradicionalmente formagio de recursos humanos 4 educagdo, embora nio restritos a isso, ¢, contemporaneamente, possuidores privilegiados desse status de guardadores e intérpretes da racionalidade, Justamente por isso, entio, sio dominios que devem assumir uma responsabilidade ainda maior no que se refere & formagdo de educadores, que por sua vez, tém de exprimir uma fungdo critica interdisciplinar que eve em conta trés horizontes diversos: a) 0 papel de médico da cultura, portanto, um indicativo de engajamento politico-social; b) © papel, por vocagdo, do cultivo da formagao humana que a filosofia, a literatura e a tradugdo exercem, i.é., precisamente 0 exercicio critico de construir uma concepgdo de homem, no rigoroso sentido de como foi tradicionalmente pensado como paideia; e, por fim, c) nenhuma dessas fungdes interdisciplinares podem obliterar as especificidades de cada disciplina, de modo que, se por um lado, a interlocugao interdisciplinar entre filosofia, literatura e tradugdo serve de semiética umas para as outras, por outro lado, porém, é preciso reconhecer que cada um desses dominios ainda salvaguarda suas prerrogativas teéricas especificas. Esse tltimo aspecto abre uma problematica ainda maior, tal como veremos adiante, no que se refere 4 metodologia de trabalho a ser empregada em um horizonte interdisciplinar como esse. E preciso destacar, além disso, que a compreensdo desses trés horizontes teéricos, a propésito da interlocugao interdisciplinar entre filosofia, literatura e tradugdo, compde, simultaneamente, uma concepgo que também propomos do papel do professor, na medida em que, como escrevemos acima, trata-se de trés dominios de saber tradicionalmente ligados 4 formagdo de recursos humanos 4 educagao. ‘Vejamos as linhas capitais de cada um destes horizontes interdisciplinares. pic ry © papel do professor e a funcao interdisciplinar da flosof a) “Cada geragdo tem a sua tarefa” (KIERKEGAARD, 2010, p. 9), assim escreveu Kierkegaard — um dos primeiros filésofos contemporaneos — a propésito do absoluto engajamento da filosofia e os outros dominios da cultura, enfatizando a temporalizagio do pensamento, Assumir a fungiio de guardador/intérprete da racionalidade significa, como vimos, reconhecer-se como ‘médico da cultura’, um ‘elo de forcas formadoras’ capaz, de por em movimento a interlocugio paralisada entre dominios do saber, conforme registrara Nietzsche jé em 1873. Como ‘médico da cultura’, entio, & preciso reconhecer um especifico horizonte de engajamento ¢, portanto, uma fungio politico-social do professor guardador/intérprete da racionalidade, Para além de qualquer de carter militante politico partidario, trata-se de compreender engajamento no sentido de um posicionamento critico ¢ conereto, na medida em que j4 sempre estamos inseridos em uma situagdo especifica, de modo que também jé sempre sabemos mais ou menos as regras do jogo. Isso significa que sempre atuamos em uma situagdo conereta de decisdo/interpretagdo, renunciando as sedugdes moralistas de ter que pensar, previamente, a indicagdo legitimante/fundante da agio/interpretagdo correta para aquela situagdo. Nao ha espagos, entio, para idealismos ou utopias inocentes, mas um esforgo por reconhecer que, de antemdo, jé sempre estamos num contexto especifico do qual se diagnostica algo. Se ‘cada gerago tem sua tarefa’, cada aluno participe precisa também entender esse papel de ‘médico da cultura’ em sua dimensdo engajada, logo, também possuidor de um papel politico-social, ‘Nao se trata apenas de mero engajamento, mas é preciso também entender com preciso essa fungdo politico-social; e aqui emprestamos novamente a nogo nietzscheana de “extemporaneidade”. Por extemporaneidade compreendemos um modo de ser que consiste em um distanciamento da situagdo na situagdo: “atuar extemporaneamente — ou seja, contra a época e, com isso, na época e, talver, em favor de uma época por vir.” (NIETZSCHE, 1999, v. 1, p. 247) Isso significa que alguém tem de estar absolutamente engajado com seu tempo, efetivamente preocupado com as questdes da sua época, bem como tipico filho do seu tempo, ‘mas, simultaneamente, capaz também de se distanciar do seu proprio tempo, dando as costas a ele, a fim de pensar para além de seu préprio tempo e, com isso, construir as genuinas condigdes da criagio. Engajamento como extemporaneidade, portanto, nio ¢ agir fora do tempo, mas implica em ser suficientemente filo da época e, a0 mesmo tempo, tomar uma distancia critica dela a fim de pensar para além do tempo: um distanciamento da situagdo, na situagdo! Como escreveu Agamben: Pertence verdadeiramente ao seu tempo, & verdadeiramente contempordneo, aquele que no coincide perfeitamente com este, nem esti adequado as suas pretensdes © & portanto, nesse sentido, extempordneo; mas, exalamente por isso, exatamente através desse deslocamento © desse anacronismo, ele € capaz, mais do que os outros, de pereeber e aprender 0 seu tempo. (AGAMBEN, 2009, p. 58s.) pic ry 12 E peers terdiseiplinar da flosofia 0 ‘médico da cultura’, pois, & a “ma consciéncia do seu tempo” (Nietzsche, 1998, p. 118s.) e, para cumprir o papel de ‘elo de forgas formadoras’, é preciso antes diagnosticar tais forgas e se distanciar criticamente delas, a fim de poder pé-las em movimento, na mais auténtica fungao politico-social de médico da cultura. »b) Interlocugdes entre filosofia, literatura e tradugdo também tem de levar em conta 0 horizonte da formagio humana; ¢ ndo poderia ser diferente, na medida em que, de forma sub- repticia, a preocupagdo com a formagdo de um conceito de humano esté a base de cada um desses dominios, no rigoroso sentido da nogio de Paideia grega. Além disso, a fungio de “médico da cultura’, segundo Nietzsche, consiste em ser um ‘elo de forgas formadoras’. “Elo” consiste em pdr em movimento interlocugdes paralisadas com 0 objetivo de ‘formagdo’, notadamente de formagao humana, Nesse aspecto, ao lado da discusso das especificidades téonicas de cada area, a interlocugdo entre filosofia, literatura © tradugio tem de cumprir também a fungao de ampla formagao interdisciplinar, dando ao aluno a habilidade de efetivamente ser esse “elo” de forgas formadoras. A interlocugdo entre filosofia, literatura e tradugdo ¢ 0 dominio sumariamente adequado para criar tal concepgo de humano: seja no debate entre filosofia ¢ literatura, por exemplo, quando ¢ possivel pensar a criagdo de novas possibilidades de existéncia, seja no Ambito da tradugdo, por exemplo, a tradugdo do conceito de Bildung (formagio) ~ 0 equivalente alemao do termo grego Paideia — na medida em que a tradugdo da palavra também exerce a fungdo de semistica através da qual é possivel compreender as principais condigdes ¢ estruturas culturais de uma época. c) E preciso ainda, além disso, especificar com precisio em que consiste a interlocugdo entre os dominios da filosofia, literatura e tradugdo, quando pensada na perspectiva interdisciplinar. Essa interlocugdo consiste em compreender que cada uma dessas reas exerce o papel de semidtica uma para as outras — € 0 sentido que tomamos de semistica aqui é de forma bem genérica, vale dizer, a possibilidade que algo tem de ser uma lente de aumento por meio da qual interpretamos uma situagdo, um objeto, a vida, etc. Isso significa que cada um desses dominios faz uso das condigdes ¢ estruturas teéricas uns dos outros, a fim de exprimir as suas proprias especificidades conceituais. Assim, os dominios se ‘orientam’ uns através dos outros, Nao se trata, pois, de meras metaforizagdes entre os conceitos de cada uma das reas, em aproximagGes descriteriosas e sem qualquer rigor teérico. Uma pesquisa interdisciplinar néo pode e nem deve perder o rigor da discussio conceitual, em proveito da horizontalidade e em detrimento da verticalidade, para usar algumas expressdes de Guéroult (1974), Assim, as diferentes dreas se orientam através umas das outras, na medida em que cada uma possui suas especificidades proprias, tendo sempre seus marcos teéricos também determinados, mas tio logo dialogam com outras areas, usam-nas como semiéticas para exprimir suas novas e proprias reflexdes. A interlocugdo entre filosofia, literatura ¢ tradugdo, pois, possui de forma muito clara um conceito de “orientagdo” que norteia esse didlogo, e que pode ser compreendida como um “espago delimitado de posicionamentos desregulados” pic ry © papel do professor e a funcao interdisciplinar da flosof (STEGMAIER, 2008, p. 221). Ora, ha limites bem especificos ou espagos tedricos bem delimitados tanto para a filosofia, quanto para a literatura e a tradugdo, Colocé-las em interlocugdo significa, por um lado, levar em conta esse ‘espago delimitado’, na medida em que salvaguardamos as especificidades tedricas de cada dominio, a fim de no perder seu rigor conceitual (a verticalidade metodolégica); por outro lado, porém, na medida em que essas dreas se ‘orientam’ entre si, cada uma se configura como semiética (e ndo metifora) ‘uma para a outra, a fim de exprimir posigdes, reflexes © novos saberes, visto que 0 posicionamento originado dessa interlocugdo& ‘desregulado” (a _horizontalidade metodoligica), isto é, absolutamente aberto e pleno de possibilidades criativas. Cada um desses trés horizontes compe, genericamente, a constelagdo que gira em tomo da nossa hipétese inicial sobre 0 professor como guardador/intérprete da racionalidade €, nese caso, como médico da cultura; além disso, esse ‘horizonte teérico’ serve de concepedo geral que explica em que consiste uma interlocugdo, num projeto que envolve os dominios entre filosofia, letras e tradugdo, logo, uma interlocugdo efetivamente interdisciplinar. Uma altima consideragdo ainda precisa ser feita, no tocante ao papel da filosofia em especifico e, sobretudo, sua radical fungdo interdisciplinar, especialmente da filosofia contemporanea, A natureza interdisciplinar da filosofia contempordnea A filosofia & a principal mola propulsora dessa reflexio. Na medida em que o professor como ‘médico da cultura’ tem forte orientagdo interdisciplinar ~ ‘elo de forgas formadoras’ — é preciso também justificar como a vocagao da filosofia também é igualmente interdisciplinar, notadamente a filosofia contemporanea, ‘Nossa hipétese segue com rigor a fungdo do professor como intérprete/mediador da racionalidade, tal como explicamos acima. Nesse caso, trata-se também de compreender que a filosofia, na contemporaneidade — e aqui pensamos a partir do séc. XIX até os dias atuais — precisa renunciar o papel de indicadora e fundadora da racionalidade e dos saberes, aquela que indica os lugares especificos ou tentando legitimar as bases de cada uma das esferas culturais, bem como apontando seus limites, para também assumir um papel de “guardadora” da racionalidade e intérprete das estruturas culturais contempordneas. Isso significa que ela nio precisa renunciar 4 racionalidade ou 4 rigorosa discussdo de conceitos, mas apenas a sua pretensio fundante de universalidade a qualquer prego: “Mas, se essa perspectiva nfo & enganosa, ndo é inteiramente errado perguntar se a filosofia ndo poderia [..] trocar 0 papel insustentivel do indicador de lugar pelo papel de um guardador de lugar”, tal como escreve Habermas (1989, p. 30). Esse deslocamento de sentido, ¢ aqui seguimos as pegadas de Habermas, deve-se a duas questies principais: por um lado, a des-referencializagdo do “sujeito solitario”, ou seja, pic ry 7 15 peers terdiseiplinar da flosofia uma espécie de autoconsciéncia que se desdobra sobre si mesma, com supostas pretensdes fundantes também a partir de si mesma, ou num otimismo generalizado em tomo das préprias potencialidades. Conforme escreve Habermas, “no lugar do sujeito solitario, que se volta para objetos © que, na reflexio, se toma a si mesmo por objeto, entra ndo somente a ideia de um conhecimento linguisticamente mediatizado ¢ relacionado com o agir, mas também o nexo de pratica e da comunicagdo cotidianas, no qual estio inseridas as operagdes cognitivas que tm desde a origem um caréter intersubjetivo © a0 mesmo tempo cooperativo.” (HABERMAS, 1989, p. 25) Nesse caso, trata-se de se movimentar da pretenso do sujeito que extrai de si mesmo, supostamente, as possibilidades fundantes do saber, para resitud-lo como mediador ou ‘nexo’ da pritica e da comunicagdo quotidianas, em outras palavras, precisamente a mesma fungo anteriormente explicada de ‘elo de forgas formadoras’, conforme escreveu Nietzsche. Por outro lado, a des-referencializagdo das pretensdes universalizantes, oriundas do tipico modelo de um sistema filoséfico. A filosofia contempordnea é marcada pelo enfraquecimento de um modelo de pensamento baseado em sistemas filoséficos, que por sua vez, pressupunham uma supra-compreensibilidade, na medida em que exerciam o papel de juiz. da racionalidade, Grosso modo, esse modelo de sistema construia uma ontologia (0 homem é sua alma, p.ex.), deduzia uma forma de acessar tal esséncia com uma teoria do conhecimento, indicava uma ética a partir de tal ontologia (se 0 homem é sua alma, entdo livremo-nos do corpo), © assim por diante. O reconhecimento de que uma meta- compreensibilidade, bem como de que um sistema filos6fico ndo conseguem exprimir o real sio meros preconceitos, implica no deslocamento do papel da filosofia do seu pretenso indicador de verdades, para a fungdo de intérprete ¢ interlocutora dos saberes. Assim, para além das grandiosas unilateralizagGes tipicas dos sistemas filos6ficos, Habermas pergunta: “cla ndo abre mao assim da relagdo a totalidade na qual deveria se apoiar enquanto ‘guardido da racionalidade’? " (HABERMAS, 1989, p. 31) Ora, des-referencializar a pretensio fundante dos saberes, através de um sistema filos6fico que exige uma meta-compreensibilidade significa, simultaneamente, fazer a filosofia se voltar a0 ‘mundo da vida’ ~ Lebenswelt como é a expresso de Husserl, Estamos falando, nesse caso, de uma temporalizagao do pensamento e, além disso, da reconquista de um engajamento da filosofia, no rigoroso sentido que explicamos acima a nogio de ‘engajamento’ como distanciamento da situagao, na situagdo. F essa des-referencializagao da razio que implica num distanciamento de uma suposta unidade racional, para reconhecer 0 carter da racionalidade de mediadora dos saberes. Por isso, para além do papel de ‘indicador’, a filosofia tem de exercer o papel de ‘guardia’ da racionalidade, pondo em ‘movimento interlocugdes paralisadas por pretensdes universalizantes. Na pritica comunicativa do quotidiano, as interpretagdes cognitivas, as expectativas ‘motais, as expresses e valotagdes tém de qualquer modo que se interpenetrar,[..] pic ry © papel do professor e a funcao interdisciplinar da flosof Assim, a filosof poderiastalizar sua relagio com a toaldade em seu papel de intérprete voltado para 0 mundo da vida, Ela poderia wo menos ajudar a recolocar em ‘movimento a cooperagio paralisada, como um mébileteimosamente emperado, do fatorcognitivoinstramental com o morsl-pritio ¢ 0 cxtéico-expessvo,f possivel ‘pelo menos indicar o problema com que a filosofia vai se deparar, se ela abandonar 0 papel do juiz que (HABERMAS, 1989, p. 33). aliza a cultura em proveito do papel de um intérprete-mediador, Tanto a des-referencializagio do ‘sujeito solitério’, quanto a des-referencializagao dos sistemas filoséficos ou da unidade da razdo, portanto, justificam © novo papel da filosofia na contemporaneidade, na medida em que sua fungdo passa a ser de “guardadora de lugar e intérprete”.Assim, visto que a filosofia tem de se configurara mola propulsora ou o elemento aglutinador dos outros saberes, entio também ela precisa se justificar em sua vocagdo interdisciplinar, resituando seu novo papel através de uma praxis comunicativa que se movimenta entre os outros dominios do saber. Como escreve Habermas, ela tem de ser capaz de ‘recolocar em movimento a cooperagio paralisada, como um mébile teimosamente emperrado, do fator cognitivo-instrumental com 0 moral-pritico ¢ 0 estético-expressivo’, ou seja, 0 ‘elo’ entre as trés principais esferas da cultura: a ciéncia, a ética e as artes. Em resumo, na medida em que essa reflexdo se refere a uma interlocugdo entre filosofia, literatura ¢ tradugdo, & imprescindivel que se justifique, com preciso, em que consiste tanto a interlocugdo quanto a interdisciplinaridade da proposta, O trabalho com alunos da licenciatura em filosofia, letras, pedagogia e hist6ria, por exemplo, implicaria que cada um deles compreendesse com clareza 0 horizonte tedrico genérico dessa proposta, ou seja, 0 eixo norteador das pesquisas ¢ o papel de cada um como ‘médicos da cultura’, ou ‘elos de forgas formadoras’, através de trés horizontes especificos, conforme vimos: o engajamento € sua fung%o politico-social, a importineia da formagdo humana, e a salvaguarda das especificidades tedricas, mantendo o rigor conceitual e sem perder as interlocugdes. Uma consideragio a ser feita ainda 6 sobre 0 aspecto metodoldgico que envolve o exercicio interdisciplinar filoséfico, por exemplo, nas interlocugdes entre filosofia, literatura e tradugo. No inicio desse texto, a terceira seara tebrica no interior da qual minha hipstese se situa ~ além do horizonte de engajamento politico-social, bem como de formagdo humana —, apontava, por um lado, para 0 confronto interdisciplinar entre Ambitos de pesquisa (filosofia, literatura ¢ tradugdo), e, por outro lado, para a importincia de salvaguardar as especificidades teéricas de cada uma das reas envolvidas. Diante dessas duas varidveis de interdisciplinaridade e especificidades tedricas é que se justificam algumas observagdes sobre aspectos metodolégicos de uma interlocugdo interdisciplinar entre filosofia, literatura e tradugio, Dentre os principais aspectos, o principal a ser enfatizado é precisamente evitar que no confronto teérico entre ambitos diferentes de pesquisa, a interlocugio acabe pic ry 16 ra peers terdiseiplinar da flosofia desembocando, no fundo, em uma espécie de mera literatura comparada, especialmente quando aproximamos dominios tedricos no interior das humanidades. Isso significa que ao aproximarmos as intetlocugdes, 0 fato de que determinada drea conceitue “x”, isso nao significa que esse “x” se aproxima facilmente de outra area, pelo simples fato de que ambas esto escrevendo sobre “x”. E preciso refletir as interlocugdes nao tanto a partir dos temas propostos por diferentes dominios teéricos, mas pensar principalmente a partir dos seus proprios problemas (cf. PORTA, 2002). Que o tema ‘x’ no interior da filosofia nao necessariamente signifique também ‘x’ no interior da literatura ou da histéria, toma-se compreensivel especialmente se inserimos esse ‘x’ em seus devidos contextos, relacionado com seus respectivos problemas, bem como vinculado com seus objetivos e propostas especificas para cada ‘x’, a fim de perceber 0 quio fluida cada temitica pode ser. Como vimos acima, “cada geragdo tem sua tarefa”, ou seja, cada pensamento e andlise precisam ser coerentemente engajados, tal como ¢ um dos horizontes que propomos nessa reflexdo. Assim, pensar aproximagdes significa refletir os problemas de cada geragdo, as especificidades teéricas de cada época e, a partir do delineamento dos principais problemas, estabelecer as interlocugdes. Do contrario, comemos o risco de aproximarmos filosofia, literatura e tradugdo em tomo de um certo *x’, sem perceber que esse mesmo ‘x’ possui diferentes significados para cada dominio, respectivamente vinculado aos problemas que cada dominio tedrico pensava numa determinada ocasido. Isso significa que, tio logo se alterem os contextos de aplicabilidade, modifica-se também o sentido daquilo que se fala em cada ambito de pesquisa. Desconsiderar esse aspecto pode significar correr 0 risco de cair em mera literatura comparada, aproximando interlocugées que possuem problemas ¢ solugdes diferentes, embora todos falem de ‘x’ Estabelecer ¢ pensar as interlocugSes partem, portanto, da reflexio dos seus efetivos problemas. E aqui esti a riqueza de uma reflexdo sobre as possibilidades de interlocugdo interdisciplinar: cada Ambito de pesquisa necessita de uma estreita ligagdo e didlogo entre si, ou seja, cada aluno participante de uma pesquisa precisa estreitar os vinculos de debate teérico, a fim de tornar absolutamente claro para cada um, por um lado, a extrema importancia do debate interdisciplinar e no que ele consiste mas, por outro lado, © quanto cada Ambito teérico possui de especificidades tedricas, resguardando tanto a interdisciplinaridade do debate (0 aspecto horizontal, como Guéroult escreve), quanto as especificidades de cada Ambito teérico (o aspecto da verticalidade da pesquisa). Isso significa ser capaz de refletir a partir de uma metodologia que podemos denominar de “interpretagdo contextual” (STEGMAIER, 2013, p. 287-306), ou seja, partindo da formulagao clara dos problemas respectivos a cada situagdo, identificé-lo no interior de um texto em especifico, analisé-lo de que modo ele se formula como conceito no interior dessa obra, bem como no contexto com as outras obras do mesmo autor, a propésito desse determinado problema. Isso significa que algo ¢ formulado como questio de debate a partir dos problemas que determinado autor ¢ texto se propdem analisar. A interdisciplinaridade se pic ry Peron eee ee en estabelece, entdo, a partir dos problemas e ndo dos meros temas. Precisamente por isso que a filosofia, tal como a situamos anteriormente, precisa passar a ocupar o lugar de guardadora de lugar e intérprete da racionalidade. Antes de arrogar a pretensfo fundante dos debates, ela ocupa a fungdo de intermediagdo entre esferas de diélogos paralisadas, desde que se salvaguardem as especificidades tedricas de cada dominio do saber, sem perder a riqueza e fecundidade da interagdo entre esses mesmos dominios. A préxis de cada aluno envolvido em uma pesquisa interdisciplinar, por exemplo, ¢ a metodologia interna dessa interlocugao precisam que se garanta também, simultaneamente, a construgio de uma habilidade para se pensar de outra maneira o papel de cada um, no futuro, como educadores (tal como tradicionalmente o caso das Areas envolvidas nessa reflexdo): por um lado, professores com certa bagagem de pesquisa verticalizada, engajados com projetos de pesquisa no intuito da continua formagio, inclusive, no ambito da pés-graduagio e, por outro lado, professores guardadores ¢ intérpretes da racionalidade, com grande facilidade de interlocugdo entre diferentes dominios do saber. ‘Submetido em setembro de 2013. Aprovado para publicagao em maio de 2014. REFERENCIAS AGAMBEN, G. O que é 0 contemporaneo? ¢ outros ensaios. Chapecé: Argos, 2009. BRITO, Fabiano L. Nietzsche, bildung ¢ a tradi¢io magisterial da filologia alema. In: Analytica v.12, no 1 (2008), p. 149-181 DERRIDA, J. Torres de Babel, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. GOLDSCHMIDT, V. Tempo histérico e tempo légico na interpretagao dos sistemas filoséficos. In: GOLDSCHMIDT, V. A religiéo de Platao. So Paulo: Difuséo Europeia do Livro, 1963, p. 139-147, GUEROULT, M. La méthode en histoire de la philosophie. Philosophiques, Paris, vol. I, n°l (1974). HABERMAS, J. Consciéneia moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. O discurso filoséfico da modernidade. Sio Paulo: Martins Fontes, 2000. HUMBOLDT, W. Sobre a organizagio interna e externa das Instituigdes Cientificas Superiores em Berlim. In: CASPER, G. Um mundo sem universidades? EdUERJ, 1997. pic ry ee JAEGER, W. Paideia: a formagio do homem grego, Martins Fontes, 1995. KIERKEGAARD, S. O conceito de angustia. Trad.: Alvaro Valls. Petropolis: Vozes; Sao Paulo: Editora Universitiria Sao Francisco, 2010, LICHTENSTEIN, E. “Bildung”. In: Ritter, J. Historisches Wérterbuch der Philosophie, Bd. 1, Basel/Stuttgart: Schwabe & Co. Verlag, 1972. OEING-HANHOFF, L. et al. “Geist”, In: Ritter, J. Historisches Wérterbuch der Philosophie, Bd. 3, Basel/Stuttgart: Schwabe & Co. Verlag, 1972. NIETZSCHE. F. Kritische Studienausgabe in 15 Walter de Gruyter, 1999. den(KSA). Berlin/New York: . Além do bem e do mal. (Trad. Paulo César de Souza). Sao Paulo: Companhia das Letras, 1998. PORTA, M.A. A filosofia a partir de seus problemas. Sao Paulo: Loyola, 2002. STEGMAIER, W. Philosophie der Orientierung. Berlin/New York: de Gruyter, 2008. As linhas fundamentais do pensamento de Nietzsche. Org.: Jorge Luiz Viesenteiner e André M. Garcia, Petrépolis: Vozes, 2013. een ee Uma defesa da leitura dos clissicos no Ensino Médio Glauber Cesar Klein® Diégenes Galdino Morais Silva? Resumo A questio principal que permeia nosso texto é a seguinte: deve-se trabalhar com os cléssicos da filosofia nos planos de ensino de filosofia para o ensino médio? A questo & complexa, exigindo que fagamos uma reflexdo sobre diversos conceitos que ai esto subjacentes: © que é um clissico?, o que é 0 ensino mesmo da filosofia?, o que é formagao?, ete, Esse trabalho procura fazer essas reflexdes, a fim de claborar uma resposta suficiente & questio principal. Palavras-chave: educagao, filosofia, metodologia. A defence of philosophical Classies in High School's curriculum Abstract The main issue that permeates our text is as follows: you must work with the classics of philosophy in philosophy of teaching plans for high school? The issue is complex, requiring us to do a reflection on various concepts that there are underlying: What is a classic?, Which is the same teaching philosophy?, What is training education?, etc... This work seeks to make these reflections in order to develop a sufficient answer to the main question. Keywords: education, philosophy, methodology. Introdugio Ate ento no se pode aprender nen Mesos; pols onde est ela? Quem a porn? Per que caracere te pode conbecer? Pede-ve apenss aprender a Aosta, te 6, a exerer o talento da ras na apleago dos ses pincpoe erase certattentain que se presenta, mas smpre conn a reserva. de dive que a acto tan de procurar eves pps principle nus au foes € confirmé-los ou rejeité-los. Immanel Kan iad ao pra B 86. ‘Slee om Fowl pula Universidade Federal do Parané(UFPR). Profesor da Rede Estadual de Baca do Parana, E mail: glaubercklein@gmail.com SDoutorando em Educago pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Email dgmoras silva@gmail.com Soe ae Nosso texto parte da seguinte questdo: £ defensdvel a leitura dos classics da filosofia como material didatico jé no ensino médio? Nossa argumentagdo tem como guia reflexive a afirmagio de Italo Calvino (in Por que ler os classics? Cia. Das Letras, SP, 1993): "... ndo se pense que os classicos devem ser lidos porque "servem" para qualquer coisa: a tinica razto que se pode apresentar é que ler os classicos é melhor do que néio ler os classicos". A questo é pertinente a todo estudante de filosofia que se prepara para 0 exercicio de dar aulas no nivel de ensino médio. De certo, nio é uma questo nova, pelo contrario, ja comegou a ser debatida ha alguns anos, como 0 comprovam os textos de diversos professores de filosofia do pais*. Por conta da recente aprovacao da Lei n.° 11.684/08°, vive-se um ‘momento de intenso e premente didlogo acerca da importancia da filosofia no ensino médi assim como sobre 0 qué e como deve ser ensinado nesta disciplina, Esté presente, nas preocupagdes de muito de nés, professores de filosofia, o forte encargo de “sustentar” o nivel filoséfico/pedagégico, sem cair na banalidade ou trivialidades de temas apenas formativos, Entendemos que a questio envolve — ainda que nao necessariamente — varias outras, a saber, 0 que é um clissico da filosofia?, como deve ser o ensino da filosofia?, o que formagdo?, qual o valor da tradi¢ao ou, em outras palavras , qual 0 papel do estudo da histéria da filosofia para 0 aprendizado da filosofia dentro da matriz curricular do ensino médio?, ete. Nossa estratégia para uma resposta & questo proposta consistiré em, num primeiro momento, apresentar uma anilise dos principais conceitos envolvidos, nomeadamente, 0 de texto classico, 0 de formagao e o de ensino (especificamente, de filosofia); em um segundo, apresentar uma reflexao geral sobre o ensino de filosofia no ensino médio a partir dos ganhos da primeira parte desse trabalho, 1 Conceitos ¢ principios para uma defesa da leitura dos clissicos da filosofia no ensino médio 1.1 O que é um texto classico Uma primeira andlise que se impde é a de definigio de texto classico. Comecemos com o mais geral. © termo classicus indicava, durante o Império Romano, uma qualificagao social, ou seja, era usado para se referir ao cidadio romano pertencente a uma alta classe. ridade. Em termos literdrios, ao que parece, 0 termo foi empregado pela primeira vez por Neste sentindo, tinha jé conotagdes de autoridade e super 4A questio € © guia reflexivo foram apresentados & guisa de avaliaglo da disciplina “Seminérios de Ensino de Filosofia I", do curso de Hieenciatura em Filosofia — Universidade Federal do Parané, ministrada pelo professor Emmanuel Appel SDiscussio que abrange também a presenga da flosofia entre as discipinas cobradas nas provas do vestibular, intengdo esta j4 presente, embora no explicitada, na Lei de Diretrizes e bases de 1996 e nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio de 1998 (Cr. Appel, 1999, p. 70), SCF. Agéncia Brasil, de 3 de Junho de 2008, acesso em: hntpy/iwwwagenciabrasl. gov-br/noticias/2008/06/02/materia,2008-06-02.5878491729)view. ory eran Cerernnt n ensnn: Aulus Gellius, justamente para qualificar autores como exemplares, que exercem autoridade e sio tecnicamente superiores: “est classicus adsiduusque aliquis scriptor, non proletarius”. Gellius no forjou essa acepedo da palavra, uma vez. que seus trabalhos consistiam em compilagdo © historiografia, 0 que significa que 0 termo era empregado neste sentido ordinariamente, notadamente para a classificagdo dos livros ou autores usados ao longo da formagio dos jovens'. Modermamente, a questdo sobre 0 que é um cléssico foi discutida por diversos autores. Eliot, em seu ensaio O que é um classico, determina inicialmente algumas condigdes para 0 uso do termo: “devo utilizar a palavra "cldssico" apenas para reconhecer um "autor modelar" em qualquer lingua - empregando-a simplesmente como indicagio da magnitude, ou da permanéncia da importincia de um escritor em seu préprio campo de atividade” (ELIOT, 1991, pp. 76-7). A seguir, Eliot € mais preciso ao enunciar 0 que, para ele, é a marca essencial de uma obra clissica: “Se houvesse uma palavra que pudéssemos nos firar, capaz de sugerir 0 maximo do que pretendo dizer com a expresso "um classico", esta seria maturidade” (Idem, p. 78). Maturidade para ele, implica na nogdo de completude; indica que uma obra clissica s6 floresce ¢ & a expresso maior de uma civilizagdo, com lingua literatura amplamente desenvolvidas (Cf. Idem , ibidem®), Um aspecto interessante da leitura de Eliot é a sua distingdo entre classico relativo & cléssico absoluto. A distingdo repousa sobre a universalidade da obral®. Se uma obra é a expresso de uma sociedade, lingua e literatura, se ela ¢, enfim, uma obra nacional, entio ACL. Gellius, Noctes Atticae, Liber XIX. Disponivel em: http:/penelope.uchicago.edu/Thayer/L/Roman’Texts/Gellius/19* html Cf: Charles Augustin Sainte-Beuve, O que é um clissico?: “Entre cles [os romanos], chamava-se propriamente de classico, ndo os cidadios das diversas classes, mas somente os da primeira, que possuiam um bom rendimento, a partir de certa quantia determinada. Todos os que possuiam um rendimento inferior eram designados pela denominagio infra classem, absixo da primeira classe, No sentido figurado, a palavra clissico se encontra empregada em Aullus Gallius, e aplicada aos eseritores: um eseritor de valor e de importancia, classicus assiduusque scriptor, um eseritor que conta, que tem seu lugar ao sol, que no é confundido com os proletirios. Uma tal expresso supde um bom distanciamento temporal para que haja uma escolha ea classificagio dentro da_—_literatura.” (Grifos_nossos.) _Disponivel_ em: —_hitp//sainte- beuve.classicauthors.net/WhatlsAClassic. Um eldssico s6 pode aparecer quando uma civilizagdo estiver madura, quando uma lingua e uma literatura estiverem maduras; e deve constituir a obra de uma mente madura. E a importéncia dessa civilizagio e dessa lingua, bem como a abrangéncia da mente do poeta individual, que proporcionam a universalidade. Definir ‘maturidade sem admitir que o ouvinte ja saiba o que isso significa € quase impossivel. Permitam nos dizer, portanto, que, se estivermos adequadamente maduros ¢ formos pessoas educadas, poderemos reconhecer a ‘maturidade numa civilizagao e numa literatura "Cf. ELIOT, 1991, p. 94: “Podemos concluir, portanto, que o perfeito classico deve ser aquele em que todo 0 -8énio de um povo esteja latente, sendo de rodo revelado; ¢ que ele s6 pode se manifestar numa lingua se todo 0 seu génio puder estar presente de uma vez. Devemos assim actescentar, & nossa lista de caracteristicas do classico, a da completude. Dentro de suas limitagdes formais, 0 clissico deve expressar 0 miximo possivel da {gama total de sentimento que representa o carster do povo que fala essa lingua. Representé-lo-4 o melhor que ppuder, e exercerd também 0 mais amplo fascinio: junto ao povo a que pertence encontraré sua resposta entre todas as classes e condigdes humanas, Quando uma obra literéria, além dessa completude relativamente a sua propria lingua, haver idéntica significdneia em relagdo a varias outras literaturas, podemos dizer que possui também universalidade” eran py aero Eliot classifica-a como um clssico relativo. Ao contrario, cléssico absoluto & aquela obra que tem as caracteristicas antes mencionadas — magnitude, permanéncia e importincia, assim como maturidade -, nfo mais relativas a uma civilizagdo, mas, antes, a um conjunto de linguas ¢ culturas (idem, p. 93). Por fim, temos um fator essencial da andlise eliotiana acerca dos clissicos: A obra clissica 6 um padrdo; padrio de exceléncia, que contém as caracteristicas que foram desenvolvidas ao longo de seu ensaio. A obra classica ¢ um padrio e/ou critério de avaliagao de uma sociedade, de uma lingua e de toda uma literatura (idem, p. 96)! Todavia, mantendo-nos fiéis aos problemas de literatura, ou aos termos literérios quando abordamos a vida, podemos nos permitir ir além do que afirmamos. Em termos literirios, © mérito de Virgilio reside para n6s no fato de que ele nos proporeiona um eritério. Podemos, como jé disse, ter motivos para nos alegrar com a cireunstincia de que esse critério € fornecido por um poeta que escreve numa lingua diferente da nossa, mas esta no constitui uma rado para rejeitar © ritéri. Preservar 0 padtdo clissico, e avaliar por meio dele cada obra literdria individual, & comprovar que, enquanto nossa literatura em conjunto pode abarear tudo, cada uma de suas obras pode ser imperfeita em algum pormenor (..) Em suma, sem a continua aplicagdo da medida clissica, tenderemos a nos tornar provineianos. Aparentemente oposta 4 leitura de Eliot, Borges apresenta uma andlise mais curta e direta, Sua divergéncia com Eliot esti fundada na rejeigdo de um conjunto de critérios técnicos intrinsecos obra: “Classico ndo & um livro (repito) que necessariamente possui estes ou aqueles méritos; é um livro que as geragdes de homens, urgidas por razées diversas, Iéem com prévio fervor e com uma misteriosa lealdade” (BORGES, 1999, p. 168). autor argentino oferece, no entanto, uma definigo que nao deixa de ser criteriosa: “Classico é aquele livro que uma nagdo, ow um grupo de nagdes, ou 0 longo tempo decidiram ler como se em suas paginas tudo fosse deliberado, fatal, profundo como 0 cosmos ¢ passivel de interpretagdes sem fim” (Idem, p. 169). Temos, assim, para Borges, duas marcas préprias das obras classicas: Ser uma obra (1) que é lida com permanéncia, que, além disso, desperta uma profunda atencdo e importincia, (2) que comporta infindéveis interpretagdes. O que Borges parece descartar (pelo menos como caracteristicas absolutamente necessérias) & a qualidade essencial de a obra clissica ser um padrao téenico, portanto, uma expresso perfeita de uma cultura inteira, na linguagem de Eliot, de uma civilizagio e de um autor com ‘maturidade. Por outro lado, Borges mantém com Eliot a marca de permanéncia das obras Miidem, p. 96. CF. também Arantes, 1997, p. 27: “Tudo isso no obstante, é voz corrente entre os discipulos que a idéia de literatura como sistema em Antonio Candido esti muito préxima da nogdo de tadigdo em T. S, Eliot, segundo a qual, como é sabido, no se pode apreciar devidamente o significado de um eseritor a no ser por ‘comparasio © contraste, situando-o idealmente entre os aulores mortos, de tal sorte que a ordem constituida pelos monumentos literirios se modificaria toda vez que entrasse em ccna uma obra verdadeiramente nova” eran Cerernnt n ensnn: classicas. E, por fim, acrescenta outro fator!?: a obra classica comporta infinddveis interpretagdes. Outro texto clissico sobre 0 que é um classico, é 0 de Italo Calvino (1993). Mais proximo de Borges ¢, por conseguinte, mais distante de Eliot, Calvino esté menos preocupado com a fungdo sociolégica ou com os critérios metodolégicos para uma critica literéria do que com uma leitura mais pessoal ou, digamos, com as qualidades imprescindiveis que um classico proporciona aos leitores ndo especializados, Essas qualidades dio énfase ao prazer de leitura de um classico, ou aquilo que o leitor carregaré ao longo de sua vida pessoal (CALVINO, 1993, p. 10)!3, muito embora ndo deixe de assinalar fatores que podemos ver como ganhos coletivos ou funcionais. Entre essas qualidades, enumera um cardter formador dos clissicos, 0 que molda certos padrdes, escala de valores, paradigmas, ete., que ficam “gravados” na meméria ¢ inconsciente dos leitores (idem, pp. 10-11, definigdo 3). Esta poténcia de um classico, qual seja, de afetar ou impor indelevelmente seu conteido, nio vale apenas para os leitores individuais, mas também para toda uma cultura: “Os cldssicos sdo aqueles livros que chegam até nés trazendo consigo as marcas de leituras que precederam a nossa e atrés de si os tragos que deixavam na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes)” (Idem, p. 11, definigao 7). Assim, temos a idéia do clissico como 0 locus do diélogo entre periodos hist6ricos, havendo sempre uma influéneia formativa: “Aquilo que distingue o classico no discurso que estou fazendo talvez seja sb um efeito de ressondncia que vale tanto para uma obra antiga quanto para uma moderna mas jé com um lugar préprio numa continuidade cultural” (Idem, p. 14). 0 clissico & um livro que conversa com os outros classicos . Sendo este didlogo infindivel, uma vez que 0 classico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha por dizer (Idem, p. 11, definigdo 6), ou ainda, é uma obra que munca deixa de ser nova, isto é, com algo a ensinar (Idem, p. 12, definigdes 4, 5 ©9). Por fim, Calvino marca dois pontos: 1. O clissico nos ensina 0 que somos e por que somos © que somos!5; 2, O classico justifica-se por si mesmo, sua leitura vale por seu proprio valor's, Nao obstante essa iiltima afirmagdo, que ndo deixa de ser irénica, Calvino & bem claro no seu julgamento sobre a importincia e lugar dos classicos na formagio 2Fator este que, pri a facie, contratia @ aposta eliotiana de total adequagdo de um cléssico ao seu tempo ¢ cultura, o que parece implicar que uma leitura de uma obra cléssica serd mais precisa e completa quando as ierpretagSes dela resultante sejam compativeis com a historia da cultura que tornou possivel aquela eriagdo. "P*Dizem-seeléssicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem 0s tenhalido e amado”, definiglo 2 HCE definigdo 12. ‘FIdem, p. 16:“os clésscos servem para entender quem somos ¢ aonde chegamos” "Idem, ibidem: “..ndo se pense que os clissicos devem ser lidos porque “servem” para qualquer coisa, A nica rardo que se pode apresentar & que ler os clissicos é melhor do que ndo ler os elassicos”. ory eran ey Pare coT escolar!?: Os eldssicos nao sao lidos por dever ou por respeito mas s6 por amor. Exceto na escola: a escola deve fazer com que vocé conhega bem ou mal um certo nimero de classicos dentre os quais (ou em relagio aos quais) voc® poderi depois reconhecer “seus” eldssicos. A escola ¢ obrigada a dar-Ihe instrumentos para efetuar uma op¢20 ‘mas as escolhas que contam so aquelas que ocorrem fora e depois de cada escola, Apés essa andlise de trés grandes autores, vimos que a obra classica comporta as seguintes caracteristicas, fundamentais: devido a sua exceléncia técnica e poder expressivo e sintético de toda uma civilizagdo ou de varias, ela é, par excellence, 0 lugar a partir de onde podemos entender os valores e construgées culturais. Como a obra classica tem, também, o cariter de permanéncia, isto 6, de atravessar as mudangas hist6ricas, influenciado-as e devido a isso também sendo sucessivamente rejuvenescida, a sua relevaneia nunca deixa de ser atual. Por fim, lembremo-nos da marca atribuida ao cléssico por Eliot: é uma obra que nos fornece um padrio de qualidade, um critério de avaliagdo das novas obras, sem © qual corremos 0 perigo de tornamo-nos provincianos, isto é, cegos para a historicidade e amplitude das obras e periodos anteriores. Pensamos, afinal, que os resultados dessa andlise ndo diferem em quase nada quando da aplicagio a uma area especitfica da literatura, qual seja, a filos6fica. O que acreditamos ser bem expresso em uma frase famosa de Whitehead, que reflete bem as marcas anteriormente estabelecidas: “A caracterizagdo geral mais segura da tradigdo filoséfica européia consiste em que ela se compoe de uma série de notas de rodapé da obra de Platéo” (WHITEHEAD, 1979, p. 39). E, para endossar duplamente essa referéncia essencial da importincia de um clissico, lembremos também das palavras de Marcuse. Quando, em uma entrevista, perguntaram-Ihe 0 que explica ou © que procura um jovem ao querer estudar filosofia, seria por acaso tornar-se filésofo? ‘Sim, Mas filésofo num sentindo hoje quase inconcebivel, quer dizer, alguém que com base no que aprendeu e na sua experiéncia possa realmente entender, descobrir e transformar a realidade em que vive. Uma definigdo consideravelmente politica da filosofia, que contudo remonta a ninguém menos que Platio. (MARCUSE, 1999, pp. 11-12), idem, pp. 12-13. Grifos nossos. Assim como, p. 12: “A escola ¢ a universidade deveriam servir para fazer entender que nenbum livro que fala de outro livro diz mais sobre o livro em questio; mas fazem de tudo para que se acredite no contrério", Neste sentido, BONDIA defendeu que “a experiéneia 6 o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca, Nao 0 que se passa, ndo © que acontece, ou 0 que toca, A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece” (2002, p. 21). eran een ee 1.2 O ensino da filosofia ¢ a nogio de formacio Gérard Lebrun, em Por que fildsofo?, debrugou-se sobre a questo do que deve haver de mais essencial no ensino da filosofia no ensino médio. Assim ele nos diz: [Nunca acreditei que um estudante pudesseorientar-se para a flosofia porque tivesse sede da verdade: a formula & vazia. ff de outra coisa que o jovem tem necessidade: falar uma lingua da seguranga insala-se num vocabulério que se ajuste ao maximo as “dificuldades" (no sentido cartesiano), munir-se de um repertério de "topoi" em suma, possuir uma ret ica que the permitiré a todo instante denunciar a "ingenuidade" do "cientista” ou a “ideologia" de quem néo pensa como ele. Qual melhor recurso se lhe apresenta senio tomar emprestado um discurso filoséfice? (LEBRUN, 1976 apud FAVARETTO, 1993). Dois aspectos devem ser sublinhados nesta passagem de Lebrun, (1) a filosofia é 0 recurso par excellence que permi as pessoas defender um ponto de vista, ou certos valores ¢ critérios, mesmo quando ha uma tradigdo oposta que € hegeménica; assim, a formagio filoséfica implica, ¢ tem mesmo como um dos seus pontos essenciais, a jé decorada expresso senso critico; mas o que é mais importante no trecho, ¢ que vai além do mero chavdo, € a defesa de que € a filosofia — por esséncia, ¢ nao qualquer outra disciplina curricular ~ que proporciona o carter critico, isto porque ela oferece (2) a capacidade de se apreender ¢ determinar uma “lingua de seguranga”, um vocabulirio proprio e assimilar um conjunto de tépicos, elementos apenas a partir dos quais é possivel “denunciar a “ingenuidade" do “cientista" ou a "ideologia" de quem ndo pensa como ele”. O senso critico ¢ a capacidade de deniincia, claro, no devem ser tomados sem qualificagdo, mas em sentidos precisos que nao se confundem com o mero exercicio de contradizer e tentar refutar teorias. Ao contrario, Lebrun precisa que “através da passagem pelos textos, conceitos e doutrinas filoséficas, [os alunos] aprendem a marcar o sentido de todas as palavras, educando-se para a inteligibilidade, pois onde os ingénuos s6 véem fatos diversos, acontecimentos amontoados, a uma estrutura” (FAVARETTO, 1993, p. 3). Afico de significagdo sistematica, que concorda com filosofia permite discemnir uma significaga Definigdo esta, que salienta o carater filo © juizo de Jaeger (JAEGER, 1979, p. 12, grifos nossos) acerca do especifico da filosofia e da educagdo classicas dos gregos: ‘A posigdo especifica do Helenismo na histéria da educago humana depende da mesma particularidade de sua organizagio intima — a aspiragdo a forma que domina tanto os empreendimentos atisticos como todas as coisas da vida _e,além disso, do seu sentido filoséfico do universal, da percepso das leis profundas que govemnam a natureza humana e das quais derivam as normas que regem a vida individual e a estrutura da sociedade. (..) Par estes conhecimentos como forga formativa a0 Soe ern Pee nnLi) servigo da educagio e formar por meio deles verdadeiros homens, como o oleiro ‘modela a sua argila © o escultor as suas pedras, ¢ uma ideia ousada c criadora que so podia amadurecer no espirito daquele povo artista e pensador. A nogio de “ordem permanente”, isto é, a investigagdo acerca daquilo “que esta no fundo de todos os acontecimentos e mudangas da natureza e da vida humanas” (Idem, p. 11), que para Jaeger & marca essencial da filosofia grega, o fundamento da educagao helénica, do conceito de formagao, esté de pleno acordo com a definigdo de filosofia que nos proporeiona Lebrun (1976, p. 4):isto é @ investigagdo acerca daquilo “que esté no fundo de todos os acontecimentos e mudangas da natureza e da vida humanas” (Idem, p. 11), que para Jaeger & marca essencial da filosofia grega, 0 fundamento da educagdo helénica, do conceito de ‘formagao, esti de pleno acordo com a definigdo de filosofia que nos proporciona Lebrun (1976, p. 4): Filosofar consiste prineipalmente em expulsar o acaso, deciffar a todo custo uma legalidade sob 0 fortuito que se dé na superficie, Especificamente filosofico & 0 problema de compreender o funcionamento de uma configuragio a partir de uma lei que the ¢ infusa (¢ preciso que haja uma), conforme a ordem que se exprime nela (& preciso que haja uma) - quer se trate de compreender a possibilidade do juizo a partir dda afinidade dos materi sintéticos ou, de maneira mais desembaracada, a sociedade feudal a partir dos moinhos de vento, Embora nossa anilise ndo seja sistemitica, podemos a partir dos elementos aqui trabalhados determinar 0 que hé de especifico na formago © no contetido filoséficos, que devem nortear um ensino proprio da filosofia. Como bem aponta Fabbrini, em seu artigo O Ensino de Filosofia: A Leitura e 0 Acontecimento (FABBRINI, 2005, p. 2), uma leitura nao & necessariamente filos6fica por lidar com textos de filésofos, antes é possivel que uma leitura seja filosdfica mesmo de textos de outra natureza, O que determina o cariter filoséfico de uma leitura, e, acrescentamos, de um ensino, repousa justamente numa postura critica dos contetidos postos por si s6s, critica que s6 & possivel a partir de uma linguagem propria, de uma “lingua de seguranga”, como nos dizia Lebrun, que, num segundo momento, permite uma investigagdo que encontre uma idea que proporcione uma inteligibilidade sistematica. Dessa forma, os alunos terdo, no sentido forte destes termos, uma formagio que Ihes permita ter senso critico a partir de uma procura de leis sistemiticas de significagao. 2. Uma reflexao geral sobre os clissicos da filosofia no ensino médio A primeira coisa que vem & mente quando se pergunta se os clissicos devem ser lidos Soe ern cay ern ens: no ensino médio, ¢ outra pergunta: Se nao os classicos, 0 que entio? Temos, pois, de retornar a0 ensaio de Calvino, que julgamos apresentar um argumento irrefutivel: A leitura de um eldssico deve oferecer-nos alguma surpresa em relago imagem ue dele tinhamos. Por isso, nunca sera demais recomendar a leitura direta dos textos originais, evitando o mais possivel bibliografia eritica, comentérios, interpretagdes Acescola © a universidade deveriam servir para fazer entender que nenium livro que fala de outro livro diz mais sobre 0 livro em questo; mas fazem de tudo para que se acredite no contrério, Existe uma inversdo de valores muito difundida segundo a qual a introdugdo, o instrumental eritico, a bibliografia so usados como cortina de fumaga para esconder aquilo que 0 texto tem a dizer e que so pode dizer-se se 0 ddeixarmos falar sem intermediérios que pretendam saber mais do que ele (1993, p. 12, grifos nossos) Como vimos, classica é a obra que representa um padrio de exceléncia, técnico & histérico; sua caracteristica de modelo exemplar deve-se, em primeiro lugar, ao fato de ser a melhor expresso de uma cultura ¢ seus valores ¢ ganhos, em segundo lugar, ao fato de sua permanéncia histérica estar fundada na importincia que teve no diélogo formative com as obras subseqiientes e a constante renovagio de seu significado e valor. Ora, se a obra filoséfica tem essas caracteristicas, que outra melhor obra poderd servir de estudo da filosofia? Nenhuma sendo uma obra ainda mais cléssica. Duas objegdes so as mais comuns a esse tipo de argumento. A primeira alega que os alunos de ensino médio, notadamente os de instituigdes piblicas de ensino, no conseguem assimilar obras de tamanha densidade. Alega-se que as obras dos fildsofos so sobremaneira dificeis e de complicada penetragdo. Ao que apresentamos duas contra-objegdes: 1. Esse tipo de raciocinio recai numa circularidade: nao se deve aplicar determinado contetdo porque os alunos ndo estio aptos a assimilé-lo. Ora, 0 papel do ensino é justamente tornar os alunos aptos © capazes de assimilar € compreender os conteiidos que, de antemdo, foram julgados necessdrios e fundamentais. Usar os eldssicos da filosofia nas aulas do ensino médio tem como objetivo justamente tornar ox alunos capazes e aptos a entender essas obras capitais. 2. Poder-se-ia dizer que 0 contetido presente nos classicos da filosofia tem um grau de complexidade que exige uma formagdo e um preparo que os alunos de ensino médio ainda no possuem; assim, esta tentativa seria compardvel a ensinar matemdtica computacional na disciplina de matematica, quando o correto, devido ao grau de informagao dos alunos, seria aplicar nogdes basicas, como teoria dos conjuntos ou trigonometria. A isso, nenhuma objegdo. O fato é que (1) os classicos da filosofia nao so, via de regra, compardveis a livros ory eran 28 Perec didaticos de outras disciplinas, que trazem de forma distinta, contetdos com graus de complexidade distintos; os livros de filosofia, via de regra, trazem de forma indistinta contetidos de graus distintos; com isso queremos dizer apenas que um ¢ mesmo texto filoséfico pode, e em geral o faz, oferecer leituras de profundidade e precisio desiguais: 0 mesmo texto de Aristételes fornece uma interpretagdo coerente e legivel tanto a um iniciante quanto a um especialista erudito; entendemos entio que um texto classico da filosofia, embora possa conter uma profundidade densa, permite também leituras de compreensio gradual, portant, um grau de leitura perfeitamente compativel com o mimero padrio de informagdes para 0 ensino médio, o que é perfeitamente correlato ao que ocorre com os clissicos da literatura. Ninguém duvida que Memdrias Péstumas & uma obra densa, complexa € de miltiplas referéncias textuais, que para entendé-la com mais precisdo é necessirio um vasto cabedal de conhecimento literario, em alguns momentos dominio de obras que nao esto ainda traduzidas para o portugués. Ora, disso ndo segue que esse clissico seja ilegivel que nao seja agradavel e assimilével em algum grau por qualquer leitor interessado. Ea pritica ja corriqueira de oferecer a leitura desse livro no ensino médio prova essa possibilidade de leitura gradual). Por outro lado, ainda, (2) muitos classicos da filosofia esto escritos em uma linguagem acessivel e, até mesmo, agradivel ¢ sedutora: Os Didlogos de Platio, A Pottica de Aristételes, as Confissdes de Santo Agostinho, os Tratados de Séneca, os Ensaios de Montaigne, as Meditagdes de Descartes, os Contos de Voltaire, etc., etc., so todos textos claros, corridos, quando nao belos e apaixonantes. Estes textos so, sem davida, complexos e profundos; mas quem hé de negar que sio de saborosa leitura? Talvez. quem ndo 0s tenha munca Lido... Nesse contexto, podemos acrescentar a contribuigio que toma a leitura em filosofia com algo aberto, porém rigoroso (pensamos que ela no pode estar nos manuais, uma vez que esses possuem a filosofia fechada, compartimentada na interpretagdo e comentirios, por assim dizer, vigentes). Nessa concepcao preocupa-se com 0 posicionamento dos professores de filosofia enquanto promotores da “leitura no pedagogizante”, sobretudo quando se apresenta uma contribuigdo filoséfica aberta a novas experiéncias: imaginemos por um instante que a filosofia € reconhecida universalmente como uma contribuigdo essencial se no indispensivel para a conquista da felicidade, todos deveriam estar ipso facto de acordo para que se ensine e que se ensine 0 mais breve possivel: sem definir 0 objetivo de que tenho mencionado, dos pedagogos, prineipalmente os americanos, defendem a inclusdo da filosofia na educagio das criangas. Apesar de ter muitas reservas, mesmo relutineia com respeito a tais projetos, eles pelo menos tém o mérito de atribuir a filosofia um lugar privilegiado que ela deve responder, ¢ 0 desatio para qualquer professor de filosofia. Este deve tomar posigdo enfrentar este desafio que compreende, entre outros, e talvez mesmo essencialmente, um componente pedagégico: ou ele opta por uma "pedagogizagao" eran en en da filosofia, 0 que © leva, assim indicando, & barbaric que cu empreguei; um confinamento da filosofia nela mesma, ou se compreende bem 0 ensino da filosofia ‘como abertura, 0 que se pressupde que ele esta abeta & coisa em-si e critica com respeito a si mesma, (LEONARDY, 1993, 443-4)" A parte esse tipo de objegdes acima tematizadas, temos ainda outro ponto a considerar: um dos objetivos mesmo do ensino da filosofia é 0 senso critico. Com isto, como {4 vimos anteriormente, esté se falando do desenvolvimento da capacidade do individuo de contestar contetidos prontos ¢ impostos, tornar o sujeito em um cidadio que tem ferramentas para avaliar e, se for o caso, objetar ideologias, valores ¢ “conhecimentos” transmitidos de forma dogmitica!®. Ora, que contradigao ndo se cometerd ao transmitir esta postura critico filoséfica com textos que se pretendem codificagdes e interpretagdes “corretas” dos textos clissicos! Criar uma consciéneia critica e anti-dogmética a partir de textos didaticamente 'STradugo nossa de: “Car, imaginons un instant que la philosophic soit reconnue universellement comme une contribu tio enssentielle sinon indispensable & la conquéte du bonheur, tout le monde devrait étre ipso facto accord pour qu'on enscigne et qu'on Venseigne le plus t6t possible: sans se fixer Vobjectif dont je viens de parler, des pédagogues, surtout des américains, plaident pour Tinsertion de la philosophie dans l'éducation des enfants. Tout en ayant de nombreuses réserves, des réticences méme vis-i-vis de tels projets ils ont au moins le rmérite d'assigner a la philosophic une place privilégige dont elle devra répondre, et ce défi conceme tout censeignant de la philosophie, Celui-ci doit prendre position face & ce défi qui comprend, entre autres et peut-étre ‘méme essentiellement, un volet pédagogique: ou bien il opte pour une «pédagogisation» de la philosophic, ce ui entraine, comme Tndique bien le barbarisme que je viens d'employer, un confinement de la philosophie en elle-méme; ou bien il comprend 'enseignemende de la philosophic comme ouverture, ce qui présuppose quil soit ouvert la chose elle-méme et critique vis-d-vis de lui-méme“ 0 dogmatismo aqui apontado ndo deve ser compreendido em sentido estrito de adesdo cega a um prineipio irracional, concepeio que nos levaria @ desvios polémicos, vazios, a meras disputatios. O sentido do termo é perfeitamente cotrespondente ao uso que dele faz: Kuhn, em sua eonferéneia, depois transformada em artigo, A fungio do dogma na investigagio cientfica (KUHN, 2012). 0 autor faz uma interessante distingo entre as cincias naturais © as umanas (préxima a distingo de nossas insttuigdes de ensino entre ciéncias exatas & hhumanas), tematizando o tipo proprio de educagdo cientifica, focado no ensino por meio de manuais. Nossa atual reflexdo podera se enriquecer com o acréscimo deste ponto-de-vista, o que pretendemos operar futuramente. Por ora, destaquemos sumariamente o tratamento de Kuhn, is pp. 26-8 de sua conferéncia;nelas,o autor dé destaque 4 "edueagio cientiica”. © dogmatismo da pritca cientfica, caracterizada agora como “conjunto de padrses, instrumentos téenicas” existe, segundo Kuhn, em outras comunidades profissionais. Porm, a “pedagogia cientfica” pode ser rigida a tal ponto que s6 pode ser comparada a que existe na teotogia, A caracterstica propria da educagdo cientifica: & feta através de manuais, definidos como obras feitas especificamente para estudantes, Assim, a formacio do cientsa no se realiza pel pti de um pojcto de investigag, mpouco pelo didlogo com membros da cominidade cientifca, Em outras palavras, € uma educago, inicalmente, de segunda mio. A falta de um contato direto com as fonts originais das teorss,o estudante estd privado de ‘encontrar (1) “outras maneiras de olhar as questdes discutidas nos textos” e (2) “problemas, conceitos ¢ solugdes padronizados que a sua futura profisedo hi muito pds de lado e subsiuiy”. A formagdo bascada quase exclusivamente em manusis possi mais uma qualifiagdo: & que mesmo que em outras reas do saber ocorra 0 uso de manuais, os manuais cientificos possuem a caracteristica de uniformidade. Uniformidade em dois sentidos: de tratamento ede conte. Ademas, tis manuais apresentam “solugSes concretas de problemas que 2 profilo accita como paradigmas” ¢, a seguir, exerccios que seririo para que 0 aluno assimile 0 procedimento padtio de resolugio de problemas igualmente padronizados, “modelados & semelhanga, na substancia, e no método, dos que olivo Ihes deu a conhecer”. O cbjtivo de tal padronizagdo dos problemas © ‘suas resolugdes é “produzir com o maximo de rapidez "quadros mentais" fortes”. Set pary Er sieos no Ensino M BA] va defesa da dogmaticos! $6 ¢ possivel ser coerente com 0 ideal de senso critico se a metodologia de ensino for, ela mesmo e seus instrumentos, critica e anti-dogmética, 0 que, em filosofia, significa: ler 0 didlogo filoséfico ali onde ele nasce ¢ se desenvolve, nos textos filoséficos, e, como negar?, nos melhores deles, os clssicos. Submetido em margo de 2014. Aprovado para publicagao em maio de 2014, REFERENCIAS APPEL, E. Filosofia nos vestibulares ¢ no ensino médio. In: Cadernos PET- filosofia 2. Curitiba, 1999. BONDIA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiéncia e 0 saber de experiéncia, In: Revista Brasileira de Educagio, jan-abr, n, 019, Sao Paulo: ANPAD, 2002. (pp. 20- 28), Disponivel em: _http://redalyc.uaemex.mx/srefinicio/ArtPdfRed ,sp?iCve=27501903, acesso em 04 de dezembro de 2012. BORGES, J. L. Sobre os classicos. In: Obras completas, vol. 2, Outras InquisigSes. Sao Paulo: Globo, 1999. CALVINO, |. Por que ler os elassicos. Cia. Das Letras SP, 1993, ELIOT, TS. O que é um cléssico. In: A fungao social da poesia, “De poesia e poctas”. Trad. Ivan Junqueira. Sao Paulo, Brasiliense, 1991 FAVARETTO, C. F. Sobre 0 ensino de filosofia, In: Revista da Faculdade de Educagio, Sao Paulo, v. 19, n. 1, p. 97-102, jan.jun./1993. Disponivel em: http://www.crmariocovas.sp.gov-br/pdt/ces/pebll/ensino_filosofia.pdf. Acessado em 25 de junho de 2008. FABBRINI, R. N. O ensino de filosofia: a leitura e 0 acontecimento. In: Trans/form/agao, v. 28 (1). Marilia, Unesp. 2005. Disponivel em: http://www.pucsp br/posifilosofia/docente/ensino_de_filosofia.doc. Acessado em 25 de jumho de 2008. JAEGER, W. Paidei formagao do homem grego. Lisboa, Editorial Aster, 1979. Soe avy Se nn KANT, I. Critica da Razio Pura, Tradugdo: Manuela Pinto dos Santos ¢ Alexandre Fradique Morujao. Lisboa: Edigao da Fundagao Calouste Gulbekian: 2001. KUHN, T. A fungio do dogma na investigagio cientifiea, Organizador: Eduardo Salles O. Barra; tradugio: Jorge Dias de Deus. Curitiba: UFPR. SCHLA, 2012. Disponivel em: http://dspace.c3sl.ufprbr/dspace/bitstream/handle/1884/2975 1/Kuhn_A%20Funca0%20 do%20dogma?%20na%20investigacao%20cientifica.pdf?sequence=3 Acesso em 20 de novembro de 2013. LEONARDY, Heinz. Eléments pour une philosophie de Tenseignement de la philosophic. In : Revue Philosophique de Louvain. Quatriéme série, Tome 91, n. 91, 1993. (pp. 441-458), MARCUSE, H. A grande recusa hoje, Organizado por Isabel Loureiro, Petropolis, Vozes, 1999. WHITEHEAD, A.N. Process and Reality (Gifford Lectures Delivered in the University of Edinburgh During the Session 1927-28). New York: Free Press, 1979. Soe avy BB] Anstise dos trabalhos publicados nos livros do “Simpésio Sul-Brasileiro Sobre Ensino de Filoso Anilise dos trabalhos publicados nos livros do “Simpésio Sul-Brasileiro Sobre Ensino de Filosofia” que versam sobre TIC e ensino de filosofia Simone Becher Araijjo Moraes?” Elisete Medianeira Tomazetti?! Resumo Neste texto, apresentaremos 0 resultado da andlise dos artigos produzidos por professores/pesquisadores da drea de filosofia e ensino de filosofia de algumas universidades brasileiras que tematizaram as questdes das TIC no ensino dessa disciplina, Esses artigos, publicados como capitulos de livros, foram apresentados no Simpésio Sul- Brasileiro Sobre Ensino de Filosofia, organizado pelo Forum Sul de Cursos de Filosofia da regido sul do Brasil, que se realizou entre os anos de 2001 a 2010. A partir da andlise dos artigos, percebemos a importincia do ensino de filosofia na escola bisica, 0 movimento que potencializou o retorno da disciplina com sentido ¢ qualidade. Pretendemos mostrar aqui os diferentes ¢ pertinentes discursos € reflexGes sobre a questio das TIC ¢ a aula de filosofia, tematica tdo urgente nos dias atuais. Palavras-chave: ensino de filosofia, tecnologias, Simpésio Sul-Brasileiro. Analysis of the papers published in the books from the “Philosophy Teaching Southern Brazilian Symposium” about philosophy teaching with ICT Abstract In this paper, we present the results of analysis of the articles produced by teachers / researchers in the field of philosophy and teaching of philosophy in some Brazilian universities who discussed issues about ICT in teaching this discipline. These articles, published as book chapters, were presented at the South Brazilian Symposium about Teaching Philosophy, organized by the South Course of Philosophy in southern Brazil, which took place between the years 2001-2010 Forum, From the analysis of the articles, we realize the importance of philosophy teaching in the elementary school, and the movement which promoted the return of the discipline with meaning and quality. We intend to show here the different and relevant speeches and reflections on the issue of ICT and the philosophy class, so urgent issue nowadays, Key words: teaching philosophy, technologies, South Brazilian Symposium. ™Fstudante de Pos-Graduagio da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Email: simonebechermor@gmail.com ™Doutora em Educagio. Professora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Email: elisetem2@gmail.com Ses a Introducio Neste trabalho, apresentamos o resultado da anélise dos artigos produzidos por professores/pesquisadores da area de filosofia ¢ ensino de filosofia de algumas universidades brasileiras que tematizaram as questdes das TIC no ensino da filosofia em textos publicados como capitulos de livros e que foram apresentados no Simpésio Sul- Brasileiro Sobre Ensino de Filosofia entre os anos de 2001 a 2010, organizado pelo Férum Sul de Cursos de Filosofia da regido Sul do Brasil. De acordo com Ribas et. al (2005), tal Férum foi caracterizado como uma organizagio informal que possibilitou aos coordenadores dos cursos de licenciatura em filosofia ¢ de toda a comunidade implicada com a tematica, com a realizagdo do simpésio, a troca de experiéncias e a definigo de posicionamentos que fortalecessem a luta pela obrigatoriedade da filosofia como disciplina no curriculo do Ensino Médio problematizassem de seus objetivos, metodologias, entre outras questdes. De 2001 a 2010, em edigdes anuais, os eventos foram realizados em diversas Instituigdes de Ensino Superior (IES) da Regiéo Sul do Brasil, de maneira a promover 0 encontro de professores ¢ estudantes de filosofia, fossem esses da graduagio, da pés- graduagdo ou atuantes na escola basica, cujo principal interesse deveria ser as questdes sobre © ensino de filosofia na Escola Basica, bem como a formagio dos professores de filosofia. Logo nas primeiras edigdes, 0 Simpdsio Sul- Brasileiro Sobre Ensino de Filosofia, a0 reunir diversos professores, académicos ¢ pesquisadores oriundos das mais variadas regides do pais, tomou-se um dos mais reconhecidos eventos da area do ensino de filosofia, principalmente por se tratar de um evento que colocava em pauta o ensino de filosofia no Brasil, seu retorno ao curriculo e a formagio inicial dos futuros professores oferecida pelas universidades. Logo, este Simpésio, ao fomentar o debate sobre tais questdes fortaleceu 0 movimento de retomo da mesma para a educagio bisica no ano de 2006 (MAAMARI et.al, 2006). Os artigos produzidos nestes dez anos de evento tém servido como uma rica fonte de reflexdo ¢ estudo para os alunos ¢ professores dos cursos de filosofia de todo Brasil. No presente trabalho, que faz parte de nossa dissertagdo de mestrado, cujo objetivo é investigar a questo das Tecnologias da Informag3o e da Comunicagio (TIC) como um problema filoséfico e que afeta ou pode afetar a relagdo de ensino e de aprendizagem da filosofia no Ensino Médio. Procuramos analisar, nos artigos publicados nos livros do evento, essa questiio. Num primeiro momento, fazemos um breve panorama sobre a questio das TIC na escola de educagio basica, discorrendo sobre quais os possiveis reflexos da introdugdo das mesmas no ensino ¢ na aprendizagem de filosofia no Ensino Médio com jovens imersos na cultura da internet. Num segundo momento, procuramos apresentar os enunciados que aparecem a partir da leitura dos referidos capitulos presentes nos livros publicados a partir do Simpésio Sul- Brasileiro de Ensino de Filosofia. Considerando ja de antemao que a presenga Soe ean sio Sul-Brasileiro Sobre Ensino de Filosofi Een de tal temética nos livros é um dos indicios que sinaliza a importancia, urgéncia e relevancia do tema desde a tiltima década, procuramos, portanto, apés a leitura e anélise de todos os textos, identificar 0 enunciado que move o texto de cada autor, quais os pontos em que eles convergem entre si ¢ quais os pontos em que eles divergem, levando em conta os principais conceitos utilizados © as principais carateristicas que so levadas apresentadas por esses pesquisadores, bem como os referenciais tedrico-metodolégicos que os apoiaram. Num iltimo momento, direcionamos as concluses e apontamos possiveis encaminhamentos para trabalhos futuros. 1 As tecnologias da informagao e da comunicagio e a escola Desde meados do século XX, é notéria a presenga orescente das Tecnologias da Informagdo ¢ da Comunicagdo (TIC) em todos os setores da nossa sociedade, seja na produgio priméria ou de bens de consumo, seja na prestagdo de servigos ou nos relacionamentos. interpessoais. Juntamente com as TIC, vieram inimeras facilidades, comodidades e avangos em termos de comunicabilidade, produgio © difusio de conhecimento, interedmbio cultural, entre outras tantas, sem as quais as pessoas em geral ja no podem mais viver sem. A informagdo, por sua vez, através delas ganha uma dimensdo global ¢ instantinea, sendo por vezes construida e disseminada por milhares de intemautas conectados no World Wide Web. Ao escrever sobre as mudangas contempordneas, Lévy (2000) reflete sobre a questo da velocidade com que as informagdes surgem e sio renovadas nas redes que se criam e que se interconectam, fazendo com que as pessoas se comuniquem de forma andrquica © produzam uma verdadeira guerra de saberes, imagens, conceitos, propagandas, etc. No campo educacional, essas mudangas vém impondo a necessidade de varias adaptagdes, atualizagdes e revisdes nas priticas pedagégicas. Estas questdes so, na maioria das vezes, bastante desafiadoras para o professor que esta em sala de aula, bem como para 0 professor formador de professores, pois, diferentemente de outros setores da sociedade, a questo das TIC na educagdo brasileira ainda & considerada como uma novidade recente e esta sendo, de forma bastante lenta, introduzida, tanto materialmente quanto conceitualmente, nas priticas escolares ¢ nas reflexes sobre estas priticas. © paradigma educacional emergente requer a insere20 de novas priticas curriculares © metodologias inovadoras, para fazer frente as necessidades de uma sociedade globalizada, que altera padrdes de vida das pessoas, seja na maneira de se comunicar, nas habilidades profissionais de atuago ou na forma de aquisigao do conhecimento e do pensar. (GREGIO, 2004, p.2) Para Lévy (2000), as tecnologias ndo podem ser taxadas como boas, como mas ou ory rae como neutras, segundo ele, tudo ir depender do uso que fazemos delas e do ponto de vista de quem a utiliza, das situagdes diversas em que elas aparecem, condicionam ou restringem. Para ele, a questo nao é avaliar os impactos da tecnologia, mas de pensar sobre as possibilidades de sua utilizagdo em nossas vidas, em constante velocidade de renovagao. Vivemos hoje na era do desenvolvimento humano marcado pelo que Castells (1999) chama de informacionalismo, que é baseado nas tecnologias da informagdo, ou seja, vive-se na urgente busca de conhecimento, seja para satisfazer nossas necessidades primérias, seja para dar sentido & nossa existéncia. Nessa busca hoje, por meio da internet, somos capazes de desenvolver ¢ criar novos saberes a partir do que j4 possuimos ¢ isso, através da interagao que altera significativamente 0 cotidiano social, cultural, 0 mundo do trabalho, as formas de representar, organizar e adquirir 0 conhecimento. Tais condigdes acabam por alterar as relagdes de ensino ¢ aprendizagem na escola, Fora da sala de aula convencional, a linguagem digital ou audiovisual, desempenha ja hd algum tempo, o papel de uma nova forma de representar 0 conhecimento e passa a conviver com as mais tradicionais formas de linguagem, ou seja, forma oral e escrita, S40 os mais jovens os usuarios mais assiduos dessas novas linguagens, pois eles aprendem e criam saberes a partir e com essas novas ferramentas ¢ formas de significagdio do mundo ¢ do conhecimento: Estamos diante de uma gerago que aprendeu a falar inglés diante da imagem de televisdo captada por uma antena parabélica, e no na escola, que tem forte simpatia pela linguagem das novas tecnologias € que se sente mais @ vontade escrevendo no computador do que numa folha de papel. Tal simpatia se apoia numa plasticidade neuronal que dota os adolescentes de uma enorme capacidade de absorgao de informagao, seja ela via televisio ou video games, e de uma facilidade quase natural para entrar na complexidade ddas redes informéticas © manejé-la. (...) Os jovens respondem com uma aproximagdo composta nao apenas por uma facilidade em se relacionar com as tecnologias audiovisuais © informatica, mas também por uma cumplicidade cognitiva e expressiva: encontram seu ritmo seu idioma nos relatos © imagens dessas tecnologias, em sua sonoridade, fragmentagio velocidade (BARBERO, 1999, p. 19-20). Os iiltimos anos so marcados por imimeras reformas educacionais que propdem uma perspectiva educacional que seja mais condizente com a nossa sociedade em constante transformagao e que hoje ¢ denominada por muitos de “sociedade tecnol6gica”. Nao obstante, sob a perspectiva do mero discurso contido nos decretos © projetos das reformas educacionais, ndo é possivel que se tenha uma transformagio imediata para sua utilizagio na escola, Por ora, ndo se faz nem possivel falar de um discurso que disputa o poder para nomear uma nova realidade emergente de acordo com as ideias foucaultianas sobre as ory rae rasileiro Sot BT Anilise dos trabathos publicados nos livros do “Simpésio Sul ee ‘epistemologias sociais”? que estio na constante disputa pelo poder de definir as novas realidades em emergéncia. Esta discussdo esti para além dos campos académicos, pois ¢ politica, ou seja, estas questées so abordadas nas dindmicas sociais do poder. Visto que 0 discurso (...) ndo € simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) 0 desejo; & também, aquilo que & o objeto do desejo; e visto que — isto a historia ndo ccessa de nos ensinar ~ 0 discurso nio é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominagdo, mas aquilo por que, pelo que se Tuta, o poder do qual nds {queremos apoderar (FOUCAULT, 2004, p.10), Entretanto, este discurso que diz respeito a urgente “tecnologizagdo” das nossas escolas, aos poucos constréi a legitimagdo das agdes governamentais sobre a educagdo. Sabemos, portanto, que a efetiva implantagdo das TIC na educagdo, nao significa somente a instalagdo dos suportes téenicos ¢ fisicos, mas que ela carrega consigo as epistemologias sociais que iro bater de frente com as diferentes realidades das escolas espalhadas pelo Brasil. Por isso, & necessério 0 estudo, a reflexdo © 0 debate sobre os pressupostos pedagégicos, politicos, filoséficos e tecnolégicos que hoje movem esses discursos e das politicas educacionais, para que possamos ter uma compreensio mais ampla sobre as implicagdes das TIC nas relagdes de ensino € de aprendizagem ¢ até que ponto elas esto sendo implementadas com sucesso no sentido de uma construgdo de saberes efetiva © no apenas no nivel da instrumentalidade, E nesse sentido que os trabalhos que versam de alguma maneira sobre as novas TIC publicados nos livros resultantes do Simpdsio Sul- Brasileiro Sobre Ensino de Filosofia contribuem para este debate. No item que segue, tratamos mais especificamente sobre 0 contetido dessas produgdes, seus fundamentos e contribuigdes para a o Ensino de Filosofia, que, embora tenha como tradigao a questo da leitura e escrita filos6fica de maneira mais tradicional, aos poucos, abre espago para o debate sobre quais seriam as possibilidades de se censinar ¢ aprender a filosofar com e por meio das TIC. 2 Aanilise dos trabalhos Dos nove livros resultantes dos dez, anos de Simpdsio Sul- Brasileiro Sobre Ensino de Filosofia, em apenas um deles, a saber, no livro do primeiro ano (2001), ndo foi publicado nenhum artigo que relacionasse o ensino de filosofia com a questdo das tecnologias. Para melhor analisar esses trabalhos, procuramos organizé-los em dois grupos teméticos gerais: 0 grupo dos trabalhos que versam sobre relatos de experiéncia e 0 grupo dos trabalhos que versam sobre linguagem e comunicacdo filosdfica. Tais grupos se orientam 2Sio as categorias que usamos para definir e dividir o mundo social em sistemas que nos permite ou impedem de ponsar e ver as coisas (FOUCAULT, 2004) Soe a segundo alguns pontos em comum e privilegiamos a busca das semelhangas entre os tipos de abordagens que cada autor faz da tematica, bem como entre os referenciais teéricos que os norteiam, Portanto, os grupamos para uma anélise mais minuciosa. 2.1 Os relatos de experiéncia Dentre os demais oito artigos das publicagdes, entre os anos de 2003 a 2010, todos, de alguma forma, versam sobre a questio das novas tecnologias ¢ o ensino de filosofia; de modo mais direto no que se referem as possibilidades das TIC na pritica pedagégica/filosofica e na promogao do didlogo filosdfico por meio das diversas ferramentas tecnolégicas. Em especial, trés desses trabalhos, dizem respeito a descrigdes ¢ reflexdes sobre experiéncias vivenciadas por alunos e professores que tiveram como objetivo a inclusdo de algum tipo de tecnologia da informatica/digital/virtual nas aulas de filosofia: 0 primeiro deles, de Miiller & Eiterer (2003), diz. respeito a0 uso de um website para a formagio continuada dos os professores da escola asica, com base no didlogo entre escola e Universidade. O segundo trabalho, cuja autoria é de Tbertis et. a! (2006), relata sobre uso da internet com alunos da graduagao em filosofia. O terceiro trabalho desta série de relatos de experiéneias foi produzido por Novaes & Garin (2008), ¢ relata sobre a possibilidade do ensino de filosofia na modalidade & distancia (EaD), oferecido por uma universidade, com estudantes de diferentes cursos de graduagdo. Abaixo, analisaremos brevemente cada um dos trés artigos que se enquadram na modalidade relatos de experiéncias. 0 primeiro trabalho, de autoria de Miiller & Biterer (2003), cujo titulo é: “Filosofia na Escola online: uma proposta para a formagao continuada e permanente dos professores de filosofia”, trata da implementago de uma proposta de formagio continuada ¢ canal de comunicagdo via intemet entre os professores de filosofia da escola de ensino basico e a Universidade Estadual de Londrina (UEL) por meio de um website. Destaca 0 objetivo de “facilitar a troca de informagdes ¢ experiéncias sobre a pritica cotidiana da sala de aula (...) Um espago para a pesquisa, o debate ¢ o intercdmbio com outras ages e experiéneias em filosofia” De acordo com Miller & Eiterer (2003, p. 275): Além de dominar com clareza e seguranga os principais problemas filos6ficos abordados ao longo da historia da filosofia e de ter trénsito pelos textos classicos, 0 docente deveria ser capaz de articuld-los com as questdes que emergem do contexto do mundo vivenciado pelos educandos ¢ pelo universo da cultura, De acordo com as autoras, 0 prazo inicial de realizagdo do projeto era de dois anos, entretanto, ele acabou por ser renovado por mais um ano ¢ com possibilidades de tomar-se efetivo, tamanho 0 sucesso do empreendimento, Esta experiéncia, no entanto, nio diz respeito Soe ory cere nn sio Sul-Brasileiro Sobre Ensino de Filosofi LU 4 um tipo de receita infalivel e que pode ser aplicado em qualquer situagdo, mas sim, se configura em uma das muitas possibilidades de se criar um canal de parcerias necessirias para que se tenha um maior sucesso na pritica do ensino de filosofia na escola piblica, langando mao das ferramentas tecnolégicas que estio mais acessiveis. Com relagdo aos referenciais te6ricos utilizados pelas autoras do trabalho descrito acima, sublinhamos que elas ndo se utilizaram de nenhuma referéneia acerca das TIC ou da informatica propriamente dita, valeram-se apenas de pensadores sobre o ensino de filosofia, bem como de documentos legais que normatizam o ensino da disciplina no pais. segundo artigo deste grupo, que nos traz outro relato de experiéneia de autoria de Tertis et. al (2006) possui o seguinte titulo: Filosofia online: notas sobre 0 uso da internet do ensino de graduagao. © trabalho teve como objetivo a execugdo de um projeto sobre a exploragdo das possibilidades da internet para a filosofia na graduagdo por meio de um frum de discussio via internet, sob orientagdo dos professores em conjunto com as diversas disciplinas de filosofia. Para os alunos de graduagdo que fizeram parte desta experiéneia, a participago em uum debate on-line, onde eles deveriam defender uma posigio, configurou-se em um desafio, pois 0 confronto de ideias exigia dos académicos, réplicas © um esforgo de reflexio & compreensio das ideias dos envolvidos no debate. So ressaltadas, algumas dificuldades encontradas pelos alunos em avangar nas discusses e encontrar sozinhos caminhos para resolver os problemas filos6ficos, bem como certa timidez em fungdo da exposigdo pessoal limitagao Linguistica para expresso das reflexdes: Como foi dito, 0 frum on-line pode ter, um papel heuristico de ideias e exereitar 0 tipo de argumentagdo que exige captagio ~ através do contexto, da abertura © da tenga comunicativas ~ do ponto de vista alheio que nio se apresenta na sua total explicitagio, Pela outra, pode cumprir a fungdo de mediar entre 0 discurso escrito © 0 falado, pois a internet insere-se entre eles ao compartihar aspectos de uma modalidade e da outra em uma experiéncia de construgdo coletiva do conhecimento, £8, justamente, nesse entrecruzamento de atitudes e competéncias cognitivas que nos parece residir 0 cariter dialégico da tarefa filosofica e nele vemos a serventia da internet como recurso no seu processo de ensino-aprendizagem. (IBERTIS et al 2006, p. 325), Ao final do artigo, os autores salientam que por se tratar de uma proposta inicial e com falta da sistematizagdo necesséria, no foi possivel tomar esta atividade um recurso tio cficiente na aprendizagem do bem argumentar, embora seja uma das possibilidades de utilizagdo da ferramenta para esse exercicio, uma vez. que o cardter dialégico parece ser um dos pontos fortes deste tipo de uso. Ainda dentro da categoria relatos de experiéncia, Novaes & Garin (2008) em seu texto ory rae a “Ensaio sobre filosofia e novas tecnologias da educagdo: Desafios, Aporias Possibilidades”, trazem algumas consideragdes sobre a experiéncia de ensino de filosofia na modalidade EaD, junto aos cursos de graduagdo do Centro Universitirio IPA, onde utilizaram como meio de interagdo a internet. Neste texto, além de discorrerem acerca da legislagdo que regulamenta 0 Ensino 4 distincia no Brasil, os autores relatam uma espécie de incredulidade das pessoas diante da maquina, 0 que representa, num primeiro momento, um grande desfio para o ensino de filosofia na modalidade EaD, que muitas vezes & concebida como uma segunda categoria de ensino. Isso, porque existe uma crenga muito difundida de que é possivel filosofar somente com outras pessoas, ou seja, na presenga fisica do docente que estar dando 0 amparo e “corrigindo” obrigatoriamente de uma outra pessoa para acontecer, E possivel filosofar, e assim deve ser, diante de cada situagdo que se coloca diante de si” (NOVAES & GARIN2008, p. 372). Segundo 0 texto, na EaD 0 aluno é, de certa forma, muito mais sujeito do seu proprio 0s equivocos: “O filosofar, nao necesita aprendizado, pois ele precisa disciplinar sua agenda de compromissos, realizar atividades ora sincronas, ora assincronas, encontrar alternativas ¢ construir questionamentos por ele mesmo € de forma interativa, construir 0 conhecimento de forma cooperativa: “(...) Conhecimento & relagdo, na medida em que o sujeito e objeto se instituem como processos combinados de cooperagio” (NOVAES & GARIN, 2008, p. 379). Os trés textos acima destacados, sinalizam que existem intimeros tipos de ages que visam utilizar as TIC no Ambito do ensino de filosofia sendo desenvolvidas. Sejam estas agdes voltadas para a formagdo continuada de professores, para a manutengdo de um vinculo entre Universidade e escola, ou para a realizagdo de atividades que tensionam o desenvolvimento de certas habilidades e competéncias nos alunos. Parece-nos que os pesquisadores da drea do ensino de filosofia ja pereeberam que nos dias atuais se toma dificil pensar sobre as questdes da pritica filoséfica descartando as tecnologias que nos rodeiam ¢ sem, de alguma forma, langar mao das TIC ou refletir sobre as suas potencialidades. 2.2 Linguagem e comunicagao filoséfiea Cinco dos nove artigos publicados nos livros do SimpésioSul- Brasileiro Sobre Ensino de Filosofia versam sobre as questdes relativas 4 linguagem escrita, linguagem audiovisual e linguagem hipertextual, que atravessam os diferentes discursos filoséficos presentes nas publicagées. © primeiro texto, cujo titulo é “Os Desafios educacionais da cultura Audiovisual: consideragdes sobre 0 ensino de Filosofia” (2004), cuja autoria é do professor do CEFET/PR Edson Jacinski, Traz algumas reflexdes sobre a emergéncia da cultura audiovisual que nos leva a pensar sobre a intersubjetividade humana e sobre o conhecimento. A cultura audiovisual acaba por gerar um impacto significativo sobre nossa percepgdo de mundo, nos exigindo uma perspectiva educacional que possibilidade a navegacdo ¢ vivéncia dentro dela, Soe ars ory ean TL a ne ee de maneira critica, mesmo com o modelo pedagégico iluminista, ainda muito presente em nosso sistema educacional e que se mostra insuficiente para dar conta da nova ecologia cognitiva emergente. Um dos questionamentos que fazemos, frente a este contexto, é sobre como o ensino de filosofia pode acontecer no cenario contemporaneo ¢ como fugir desse carter monoldgico de emissio-recepedo para aderir as dimensdes interativa e dialégica que sio impulsionadas pelas TIC sem, no entanto, adentrar num possivel caos discursivo que ¢ bem propenso a acontecer em meio a este turbilhdo de informagées ao qual estamos diariamente expostos: “Neste sentido, superar 0 caos discursivo, textual, audiovisual propiciado pelas novas teonologias, através do seu enquadramento, seja fisico, cognitive, ete”(JACINSKI, 2004, p.229). O proximo texto “A filosofia no Ciberespago” (2005), de autoria de Celso Candido, professor da UNISINOS, traz a ideia de que a subjetividade e a sociabilidade humana so fundamentadas basicamente nos atos linguisticos, e que o ciberespago hoje é de fundamental importancia para “o interedmbio e a atividade humana planetiria” (CANDIDO, 2005, p. 216). 0 ensino de filosofia consiste na pritica do didlogo, que tem origem no pensamento livre e autdnomo. O didlogo é colaborativo e “Ensinar filosofia & ensinar 0 diélogo” (CANDIDO, 2005, p. 218). De acordo com o texto, o dislogo filos6fico desenvolveu-se até os dias de hoje a partir de trés técnicas linguisticas: na época mais antiga com a linguagem oral, depois com © surgimento da escrita ¢, nos dias atuais, com 0 didlogo hipertextual. E “com a emergéncia do hipertexto digital, o logos desterritorializa-se da pagina impressa ¢ dota-se de novos instrumentos vivos ¢ flexiveis; ganha uma nova vida, uma nova dinmica 4 velocidade da luz”(Idem, p. 220). Percebemos com este texto, que 0 movimento da grande inteligéncia coletiva previsto por Pierre Levy (1998), nos coloca em uma época em que todos aqueles que desejam engajar- se no didlogo filoséfico podem fazé-lo, seja nas academias ou fora delas, pois a internet possibilita 0 didlogo filos6fico para além dos livros ¢ salas de aula presenciais, basta “(...) se apropriarem criativamente da admirivel rede do /dgosdialético hipertextual que unifica a ‘mente humana em sua infinita riqueza e diversidade.” (CANDIDO, 2005, p. 225). O texto de 2006, cujo titulo é “Das epistolas aos E-mails: é possivel ensinar filosofia 4a disténcia?”, de autoria do professor da UNIJUI/ RS, Amnildo Pommer, traz & tona uma visio um pouco mais critica sobre a introdugdo da EaD no pais. Para 0 autor: (...) compreender 0 ensino a distincia & mais do que provar ou ndo a sua eficiéncia, € compreender de que maneira a comunicabilidade, a linguagem ¢ © pensamento transmitidos ¢ eriados pelo ensino enquanto procedimentos pedagdgicos mediados pela tecnologia computacional, podem estar sendo afetados. (POMMER, 2006, p. 300). Ses O ensino a distincia baseia-se, segundo Pommer, basicamente na escrita e, de alguma forma, com a implementagdo desde a modalidade desse ensino, parece que estamos voltando para o sistema de escrita antigo, a saber, 0 da escrita das epistolas como as que eram produzidas por Hordcio na antiguidade, Um dos problemas que ele aponta com relagdo a EaD 6a questo da adequagdo da linguagem que até entio estava amparada da linguagem oriunda dos textos classicos e que por meio do ensino presencial era “decodificada” pelos professores. Na EaD, apesar dos aparatos audiovisuais, parece que cada vez mais fica evidente o fim do pensamento de forma oral, comumente utilizado na aula expositiva. Para os alunos de filosofia, o autor sinaliza que esta modalidade exigira mais empenho na leitura e na escrita, habilidades que cada vez. mais se fazem necessérias para um filosofar com mais qualidade, ‘mesmo que isso se desenvolva em uma sala de aula a distancia, O artigo de Marcia Tiburi (2007), professora da FAAP/SP, com seu artigo: “Filosofia € Midia”, reflete sobre 0 papel ¢ 0 lugar do filésofo nos dias de hoje, em tempos de midiatizagao do mundo, hipercomunicagdo nas relagdes ¢ exacerbagdo da comunicagao, onde “(...) © que ndo for comunicado ou comunicdvel é visto como ameaga ou erro”. (TIBURI, 2007, p. 290). A filosofia, segundo o texto, tem a fungio de esclarecimento e deve atuar como uma produtora de lucidez, mostrar a necessidade da critica “(...) nfo apenas da opinigio, mas da ideia de que uma opinido ¢ formada e dos formadores de opinido”. (TIBURI, 2007, p. 292). O filésofo deve participar do mundo da comunicagao ¢ dos debates como agente. Para Tiburi (2007), a comunicagio no acaba na informago, € mesmo o sentido de informacao deve ser questionado, pois da forma como a midia jomalistica ¢ publicitéria a tem manipulado, deve-se haver uma preocupagdo com 0 tipo de manipulagdo que os mesmos exercem sobre as massas. Seria papel do filésofo portanto, ponderar “sobre tais questdes na tentativa de avangar rumo ao saber quanto a racionalidade e a consciéncia” (TIBURI, 2007, p.292). 0 iltimo artigo a ser analisado é de autoria de Celso Braida (2010), “Filosofia, ensino € 0 império do virtual”, ¢ traz a ideia de que as novas formas de comunicagdo sugerem a implementagdo de novas formas de ensino e de aprendizagem. Faz também uma critica ao ‘modo tradicional do ensino de filosofia, que segundo o autor, é egocéntrica € monofénica e, que de certa forma, hoje esta perturbada, assim como a pripria “(...) autocompreensio do humano ¢ da sociedade” (BRAIDA, 2010, p. 56). A grande questio seria como ensinar e transmitir a filosofia na era digital da atual sociedade em que vivemos? Existe hoje, um choque cultural entre as formas tradicionais do ensino de filosofia ¢ as novas formas de interagdes digitais que pressupdem que todo trabalho & coletivo. “(...) aera digital nao rompe com a tradigdo, mas sim com 0 tradicional”. (BRAIDA, 2010, p. 61). Para © autor, a EaD e as publicagdes postadas em ambientes virtuais podem vir a potencializar a tradigdo filosdfica, embora alguns destes procedimentos tradicionais ja ndo fagam mais sentido nos dias atuais, pois a digitalizago do mundo mudou radicalmente os modos de nos relacionarmos ¢ de construirmos o conhecimento. Ses er TR ey ret Consideragées finais A partir da leitura e anélise dos textos publicados como capitulos de livros organizados pelo Férum Sul de Cursos de Filosofia da regio sul do Brasil, entre os anos de 2001 a 2010, procuramos compreender de que forma a questo das novas tecnologias afetam © fazer docente, seja na Universidade ou na escola bisica e quais as reflexdes dos professores € pesquisadores sobre a temitica, Com base nesses textos, pudemos compreender quais esto sendo as possiveis estratégias e alternativas buscadas pelos professores de filosofia, para que, em meio a essa onda digital ¢ hipertextual, o filosofar persista com qualidade, Submetido em abril de 2014. Aprovado para publicagao em maio de 2014, REFERENCIAS BARBERO, Jestis Martin. Novos regimes de visualidade e descentralizagdes culturais. In, Mediatamente! Televisio, cultura e educagdo. Secretaria de Educagdo a Distancia. Brasilia: Ministério da Educagio, SEED, 1999. BRAIDA, C. R. Filosofia, ensino ¢ o império do virtual. In: Filosofia e seu ensino: desafios emergentes/ Org. NOVAES & AZEVEDO. Porto Alegre: Sulina, 2010. CASTELLS, M. A sociedade em rede. Sao Paulo: Paz ¢ Terra, v.1, 1999. CANDIDO, Celso. A filosofia no Ciberespago. In: Filosofia ¢ ensino: a filosofia na escola, Ijui. Ed. Unijui, 2005. CRAIA, Eladio C.P. Gilles Deleuze ¢ a vitualidade: a passagem da historia a cartografia no ensino de filosofia. In: Filosofia e ensino em debate. Ijui. Ed. Unijui, 2002. DELEUZE. Gilles, Diferenga e repetig¢ao. Lisboa: Relégio d’Agua, 2000. FOUCAULT, M. A ordem do discurso: Aula inaugural do Collége de France, pronunciadaem 2 de dezembro de 1970. 11. ed. Tradugao de Laura Fraga de Almeida Sampaio. Sao Paulo: Edigdes Loyola, 2004. GREGIO, Bernadete M. A. A informatica na educagao: As Representagdes Sociais ¢ 0 Grande Desafio do Professor Frente a0 Novo Paradigma Educacional. In: Revista Digital da CVA. Vol. 2. n.6. 2004. Soe Anélise dos IBERTIS, C.; CENCI, M.; RODRIGUES, R. In: Filosofia na universidade/Org, ‘Maamari et all. Ijui: Ed. Unijui, 2006, JACINSKY, Edson, Os desafios educacionais da cultura audiovisual: consideragdes para o ensino de filosofia. In: Filosofia e ensino: um didlogo transdisciplinar. Ijui. Ed. Unijui, 2004, LEVY, P. O que é virtual? Trad, Paulo Neves, Sdo Paulo: 34,1996, . As teenologias da inteligéncia, Sao Paulo: Editora 34, 1993 . Cibereultura, Sao Paulo: Editora 34, 2000, A inteligéncia coletiva. Sao Paulo:ed. Loyola, 1998. MAAMARI, Adriana Mattar et al (org). Filosofia na Universidade. Ijui: Unijui, 2006. In: RIBAS, Maria Alice Coelho et al (org). Filosofia ¢ ensino: a filosofia na escola, jut: Unijus, 2005, MULLER, Maria Cristina; EITERER, Carmem Licia. Filosofia na escola online: Uma proposta para a formagio continuada e permanente dos professores de filosofia. In: Filosofia e ensino: possibilidades e desafios. Ijui: Ed. Unijui, 2003. MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicagio como extensées do homem. Sio Paulo: Cultrix, 2001. . La Galéxia de Gutenberg, Barcelona: Planeta-Agostini. 1985. NOVAES, José Luiz Correa; GARIN, Norberto da Cunha, Ensaio sobre filosofia ¢ novas tecnologias da educagio: Desafios ¢ possibilidades. In: Filosofia, formagio docente e cidadania, Ijui: Ed. Unijui, 2008, POMMER, Armildo. Das epistolas aos E-mail: ¢ possivel ensinar filosofia a distancia?In, Filosofia na universidade/Org. Maamarietall. Ijui: Ed. Unijui, 2006. TIBURI, Marcia. Filosofia ¢ Midia. In: Filosofia e sociedade: perspectivas para o ensino de filosofia. Ij Soe TOR iro Sol ey ret VIRILIO, Paul. A bomba informatica. Sao Paulo: Estacao liberdade, 1999. ZUIN, Antonio A. S. O Plano nacional de educagio ¢ as tecnologias da informagio ¢ comunicagao. Educagao e Sociedade. Campinas, v. 31,n. 112, set.2010 . Disponivel em <. Acessos em 19 nov.2012, Soe een nen A filosofia e o tutor em EaD no Maranhio Gabriel Kafure da Rocha®* Resumo Os caminhos ou (des)caminhos na formagio de professores de filosofia & uma andlise do curso a disténcia de licenciatura em Filosofia EaD que a Universidade Estadual do Maranhao comegou a oferecer desde o ano 2010, Dessa forma, identificando a formagao a distineia do professor-tutor de filosofia, caminhamos para desvelar os fundamentos teéricos que norteiam a escolha ¢ a avaliagdo da maior parte deste processo no que podemos caracterizar a ética do contexto EaD. Chegamos assim a um contexto fragmentério que necesita de novas conceitualizagdes ligadas a0 curriculo e novas alternativas metodolégicas para a filosofia EaD, Palavras-chave: filosofia a distancia, formagio de professores; tutoria The philosophy and the tutor in distance education in Maranhao Abstract The ways or (mis)directions in teacher education of philosophy is an analysis of the distance course degree in Philosophy e-learning of Maranhdo State University that began offering since 2010, Thus, identifying the distance learning teacher-tutor in philosophy, walked to uncover the theoretical foundations that guide the choice and evaluation of most of this process in which we can characterize the ethical context of distance education. Thus we come to a fragmentary context that requires new conceptualizations related to the new curriculum and methodological alternatives to philosophy on e-learning. Keywords: philosophy distance; teacher education; tutoring. 2sEstudante de Pés-Graduagdo na Universidade Federal do Piaui (UFPI). E mail: gkafure@yahoo.com.br Ses peer ory Tet en Caracterizagio do curso de filosofia da UEMA. A Universidade Estadual do Maranhio oferta cursos na modalidade a distincia desde © ano 2000. Criado pela Resolugdo n° 239/2000 do Conselho Universitario (CONSUN), o antigo Nicleo de Educago a Distancia (NEaD), hoje Niicleo de Tecnologias para Educagao (UEMANéet), é responsavel pela concepgio, gestiio ¢ avaliagdo de projetos em educagao distancia da Universidade Estadual do Maranhio (UEMA). Seu objetivo & atender as demandas da sociedade maranhense no que concerne a formagao de profissionais nas diversas reas de conhecimento, no nivel médio, ensino profissional, superior (graduagio e pés- graduagdo) e formagdo continuada. No Maranhio, as trés instituigdes pablicas existentes (UFMA, UEMA e IFMA), quando aderiram ao Plano, se habilitaram a receber uma quantia desse orgamento. A previsio de oferta de vagas no estado & de 30.774, distribuidas nas modalidades a distancia presencial ‘A graduagdo em Licenciatura de Filosofia da UEMANet tem execugao prevista para quatro anos, com carga horiria de 2.865 horas, é destinada, aos professores em exercicio nas escolas da rede oficial de ensino ¢ a comunidade em geral, desde que tenham concluido 0 ensino médio. Esse curso iniciou-se em 2010. Tomamos conhecimento dele quando foi divulgado numa semana de filosofia da UFMA, a possibilidade de tutoria. Assim, ao nos aproximarmos dos tutores, nos motivamos a compreender melhor essa nova area de mercado de trabalho para o filésofo. Consideragées acerca da educagio a distincia como estratégia para formagio de professores A genese da EaD surge nos UA, no final do século XIX, com a ideia do ensino por correspondéncia no Departamento de Extensio da Universidade de Chicago. Na mesma Epoca, também, surge o Instituto Hermon, na Suécia, Os grandes expoentes do ensino a distancia aconteceram na Universidade Hagen, em 1975, com 0 uso de videoconferéncias, materiais como DVDs ¢ CDs feitos em alta escala, A Inglaterra se destacou como o primeiro pais a instituir a Universidade Aberta como programa governamental. A trajetéria da EaD é composta por trés geragdes. A primeira geracao surgiu no final do século XIX, com a criagdo do telefone ¢ do ridio. Em 1856, o Instituto Toussaint e Lagenseherdt criou um curso a distancia de linguas estrangeiras. A segunda geragdo emerge com o surgimento do VHS. A terceira é marcada pelos computadores, internet, celular videoconferéncias; é o que chamamos de realidade virtual e inteligéncia artificial fundamento de produgdo que norteia a EaD foi o modelo fordista e pés-fordista, subsidiando o desenvolvimento do trabalho acadét 10 € da produgo de material pedagégico da Area, As caracteristicas industriais do fordismo, interligadas com pontos em comum com a Soe ory rere eee nn net ey educagio a distincia, mostram de forma destacada a racionalizagio, mecanizagio, 0 planejamento © a objetivagdo - aspectos fundamentais da disciplina, necessdrios para o percurso de um educando. Assim, 0 modelo industrial de educago a distncia em massa divergiu essencialmente da produgao presencial da maioria das academias. A corrente pos-fordista tem caracteristicas mais flexiveis, faz parte das mudangas educacionais impostas pela conjuntura neoliberalista da década de 1990, quando o paradigma fordista comegou a perder terreno em razio das sucessivas crises do capitalismo e passou a ser considerado como inadequado ao ideal humanista da educagao. Dessa forma, as novas tecnologias acabaram por desembocar no toyotismo. 0 toyotismo, além de oferecer um alto indice de produgdo, baseado em demandas sem desperdicio, tem como uma das bases, a responsabilidade pelo trabalho. Com isso, passa a exercer grande influéncia no campo da educagio e intensifica as relagdes sociais mundiais, ligando comunidades distantes, através de trocas de informagao, para aprimorar os rendimentos. A necessidade de trabalhadores polivalentes, capazes de realizar multifungdes, valorizava a educagio, voltada para a formagao de competéncias pessoais ¢ sociais. E 0 paradigma da era do conhecimento, associado a "era da comunicagao". Se Bacon (2005) dizia que conhecimento é poder, hoje podemos afirmar que a comunicago é 0 saber. Assim, a informago é algo que se busca além da escola. A comegar pela televisdo, que difunde informagdes didrias do mundo e chega até a promover cursos, como 0 Telecurso 2000, da Rede Globo, que estimula a educagio humanistica ¢ técnica nos operirios cansados das longas jomadas laborais e, por isso, muitas vezes impossibilitados de frequentar uma escola. Uma vez que a televisdo se tornou o meio dominante na comunicagao, MacLuhan (1996) centra-se na descrigdo da natureza fundamental e no poder revolucionério da televisio. A televisio tem essa faculdade de produzir ¢ reciclar as identidades coletivas, de criar um dispositive simbélico partilhado, uma vida simbélica comum, 0 que, em iltima instancia, pode ser visto como uma estratégia de agenciamento de conteiidos e saberes. Dentro dessa perspectiva, a escola, de certa forma, perdeu sua hegemonia na educagdo, ja que a televisio, ao mesmo tempo em que informa, “também deforma” de acordo com os seus interesses. Tendo que se reorganizar em termos de tecnologias de comunicagdo ¢ informagio, a escola incorporou a modalidade de educagao formal, informal e profissional. A busca por novas formas de educar geraram novos desafios para a contemporaneidade. Os modelos educacionais para as nagdes subdesenvolvidas esto embasadas na otimizagao escolar dentro da problematica da globalizagao. Sabemos que a globalizagio afeta a soberania do Estado como regente de uma sociedade democritica, e, a0 mesmo tempo em que estio mudando as condigdes fundamentais de um sistema educacional, ocorem sérias transformagdes no proceso de ensino © da aprendizagem, compreendidos dentro do contexto das politicas piblicas Soe ory rere Tt en nacionais. Isto 6, portanto, um foco de preocupagao para os profissionais da educagdo, sobretudo os fildsofos e socidlogos, entre outros. Com isso, 0 cendrio de desemprego € exclusio social ¢ latente na medida em que economia e sociedade esto desequilibradas. Choques de opinides colocam o neoliberalismo como um fracasso em termos educacionais, porque as reformas na educagio brasileira pés- ditadura, estimuladas principalmente pelo modelo norte-americano, transformou a educagdo piblica num sistema se ensino basico sucateado, valorizando a formagio através de escolas particulares, ou seja, a educagdo neoliberal é voltada para a burguesia. O que nos “salva” & que a propria desestatizagiio ndo foi plenamente realizada, Mesmo com as privatizagdes, ainda assim, as universidades federais continuam tendo a exceléncia no ensino em paises como 0 Brasil. Diante desse contexto, existe a necessidade de estratégias que atendam a necessidade de pessoas por educagdo a distancia. Ao defender que 0 “o Meio é a Mensagem”, podemos interpretar MacLuhan (1996) de forma que, tanto a TV quanto o professor, possam ser meios de comunicagdo para a educagio a distincia. Meios pelos quais se cruzam todos os ensinos escolares. O ensino presencial pode buscar fontes no livro, no manual, no compéndio escolar, na sebenta, no ditado ¢ até no o professor, enquanto meio. Criador da idéia de "aldeia global", MacLuhan (1996. p. 281,) trouxe para a educagdo um novo enfoque das teorias sobre comunicagdo: "Uma rede mundial de ordenadores tomara acessivel, em alguns minutos, todo tipo de informagao aos estudantes do mundo inteiro”. A evolugdo tecnolégica deixa de ser mera coadjuvante na vida social. O préprio meio passou a ser a principal atragdo: a informagdo, Muitas das paginas que estio na intemet, por exemplo, podem ser livros ou revistas, mas se tornam mais interessantes em razio dos meios de comunicagdo através das quais sio veiculadas, ¢ a educagdo passa a ter essa fungdo de se tomar atrativa e fundamentalmente eficaz. Pierre Lévy (1995), que vivenciou a intemet, relacionou 0 ensino com o universo das redes digitais e 0 ciberespago - por ele definido como um lugar de encontros ¢ aventuras na teia mundial “world wide web”. As ferramentas do ciberespago “moodle” so consideradas “abertas” para o didlogo, na medida em que nao trazem informagdes e regras excessivas aos usuarios. Desa forma, professores © alunos esto livres para trabalhar os conteiidos relevantes no processo de ensino e aprendizagem. Entretanto, ha limitagdes ocasionadas pela falta de conhecimento em informatica, justo quando 0 foco é o ensino e a aprendizagem. O tutor Na EaD, 0 professor-tutor surge como um articulador, facilitador e orientador de MApesar de MacLuhan ter sido um autor da érea de comunicagGo, nos anos 70 ele fez previsdes diretamente ligadas ao contexto educacional de hoje, prineipalmente quanto is relagbes presenciais e a distancia, MacLuban rio substtuiria 0 ensino presencial, mas através de seus textos subentende-se que a EaD é uma nova modalidade de ensino com um tutor que esteja todo tempo em cima cobranga o aluno. erento) mediagdes. Ele ajuda a construir 0 caminho para os alunos desenvolverem habilidades, buscarem de forma interativa novos saberes © uma aprendizagem com autonomia, jé que a forma interativa de aprendizagem, segundo Landim (2000), envolve as mediagdes que constituem o tratamento das formas de expressdo ¢ a relagdo comunicativa dos tutores ¢ dos alunos e dos alunos entre si, Nesse sentido, as formas de elaboragio diditica e grafica de programas ¢ materiais dos alunos possibilitam a aprendizagem a distancia. Mediatizar é a palavra que designa o tutor; significa selecionar um meio adequado para conceber ¢ elaborar discursos. Por mais simples que parega, na definigdo de objetos pedagogicos e na claborago de curriculos, comegaram a surgir problemas de mediatizagao. Primeiro, os meios apropriados para a situagdo de ensino ¢ aprendizagem considerando a clientela e a acessibilidade. Segundo, 0 discurso pedagégico adequado as caracteristicas do primeiro problema. Assim, este é um ponto chave da EaD, pois ¢ através da mediatizagdo que as condigdes e possibilidades de ensino-aprendizagem so levadas em conta para determinado meio. Como afirma Nietzsche (1999), as interagdes entre os homens nunca sao diretas, mas sim mediadas por sistemas simbélicos construidos através de suas historias e culturas. Os modelos pedagégicos, no qual o ensino-aprendizagem ocorre, segundo 0 filésofo alemao, demonstram a relagao entre linguagem ¢ a formagdo de conceitos, criticando a mimese em favor da criatividade, ‘Na maioria das vezes, 0 aluno se manifesta melhor com o tutor, no sentido de uma identificacZo como um colega-professor, tornando-se ele, o tutor, elemento essencial para a aprendizagem do aluno, responsavel por esclarecer a maioria de suas diividas ¢ também por cobrar quando 0 aluno nao esta fazendo um trabalho fidedigno. Os tutores possuem uma participagdo importantissima na avaliagio dos alunos, observando os problemas de aprendizagem e sugerindo formas altemativas de enfrentar os problemas individuais que os afetam. Existem diversos modelos de perfis e competéncias da tutoria, dentro do mereado que vivemos as instituigdes se preocupam em potencializar a qualidade de seus funciondrios. Ter certos conhecimentos prévios ¢ fundamental ao tutor, como por exemplo, 0 dominio ¢ utilizagdo das tecnologias, saber expressar de forma eserita 0 assunto em questio de acordo com regras de etiqueta da internet. © fato marcante ¢ que notadamente quanto maior a interveng3o do tutor no processo de ensino-aprendizagem, melhor a qualidade do aprendizado. Alguns sistemas mantém Centros Regionais de Orientagdo, organizando as reunides tutoriais dos estudantes que moram na zona correspondente. E fungao de o tutor conhecer os estudantes, repassar a matéria j4 coberta, resolver diividas, ampliar os assuntos, racionalizar a avaliagao, indicar leituras, ete As reunides presenciais em que a tutoria é exercida tém também a importante fungdo de desenvolver nos alunos as atitudes e capacidades relacionadas com a participagdo ¢ com a Soe ory rere eens net criagdo de conhecimentos com outras pessoas. Nestas reunides, 0 aluno tem ocasitio de problematizar 0 aprendido, desenvolver sua consciéncia critica ¢ aprender a ser solidario e democritico. ‘Veremos a seguir alguns aspectos criticos do curso ¢ da relagdo com o tutor, tais como a transformagio do professor de uma entidade individual para uma entidade coletiva é problematica, 0 que é uma tendéncia também do ensino presencial. A dificuldade est em ver © processo histérico com novas visdes, prineipalmente numa visdo holistica, A filosofia esta formando estudantes e pesquisadores, mas ser que a universidade, seja ela aberta ou presencial, esta formando pensadores como um todo? Assim, a tendéncia continua a ser a repartigio dos conhecimentos e saberes, levando cada vez mais & especializagao a centrar-se num s6 aspecto, ¢, de certa forma, propiciando um tipo de alienagdo em relagdo aos outros conhecimentos. Visto que a segmentagdo é a principal caracteristica dos novos modelos industriais de produgo no proceso de ensino, as fungdes do docente vao separar-se ¢ fazer parte de um processo em que fica dificil a identificagio de quem é 0 professor em EaD: 0 tutor, 0 computador ou as videoaulas? Todos os que fazem parte desse processo so contribuidores do ensino, sejam ele editores, tecndlogos educacionais, artistas grificos, entre outros. A EaD passa, entio, por uma nova revolugdo copernicana em que sujeito-objeto devem ter uma parceria sintetizada na palavra “ensinar a aprender” (BELLONI, p. 82, 2009). Isso se di pela perda do papel central do professor enquanto "mestre", pela posigio de parceiro, prestador de servigos. © novo aluno ndo & mais orientado e protegido; tanto o professor como o aluno precisam estar constantemente atualizados sobre as metodologias. Assim, as inovagdes pedagégicas, tais como o sucesso das teorias construtivistas © suas metodologias, tém um papel importante quando o professor se depara com a contradigio de alunos muito diferentes entre si. A formagao pedagégica é um momento oportuno para 0 desenvolvimento de métodos flexiveis e individualizados. Para pensar filosoficamente, é preciso didlogo, de modo que a pessoa se revele um pensador. O didlogo pela internet, se realmente acontecesse, seria muito importante e valido. E preciso considerar como os antigos, Sécrates ¢ Platao interagiam, dialogavam, se expressavam e permitiam a expresso do outro. Essa experiéncia, hoje, é realizada através do computador. Entretanto, nos foruns, os alunos nao participam, so timidos, retraidos, acham que vio falar tolices. Alguns deles s6 se familiarizaram com 0 computador quando entram no curso. O tutor tem como tarefa, entre outras, © acompanhamento nas discussdes dos foruns, a corregio das atividades ¢ a motivagio do aluno. O papel é de todos; todos tém que trabalhar com um objetivo comum que & a qualidade do ensino, Muitas vezes 0 aluno esta a mercé dessa pega fundamental. Tudo 0 que se pensa é direcionado a ele, mas quando da execugio do SA pesquisa foi tealizada em duas escolas piiblicas de ensino médio localizadas em Curt Metropolitana. a © Regio Soe eee nn net Ei trabalho, as vezes esta ndo acontece devido a superficialidade das ages. Na parte técnica, parece que esti tudo bem organizado ¢ articulado, mas quando percebemos que 0 proprio aluno nao tem 0 olhar direcionado para si mesmo, enquanto pega fundamental deste processo fragmenta-se todo o sistema, devido 4 falta de interagdo, do trabalho conjunto. Consideragées finais © nosso objetivo foi analisar os procedimentos de ensino-aprendizagem presentes no Curso de Filosofia em EaD da UEMANet e suas implicagdes para a formagdo de professores na rea em estudo, No percurso desse caminho, encontramos desvios principalmente no que tinhamos como objetivos especificos: identificar os procedimentos de ensino-aprendizagem presentes na formagdo & distancia do professor de Filosofia; desvelar os fundamentos teéricos que norteiam a escolha dos procedimentos de ensino-aprendizagem mais utilizados; conhecer como os alunos e tutores do curso de Filosofia a Distancia avaliam os procedimentos de ensino aprendizagem utilizados; descrever as vantagens ¢ desvantagens dos procedimentos de ensino-aprendizagem identificadas frente aos desafios implicados na formagao de professores atualmente, Admitimos que encontramos mais (des)caminhos dentro desta monografia. © que no invalida 0 fato de termos encontrado varios fundamentos e perspectivas teéricas ¢ reconhecido formas de avaliagdo e desafios para o ensino puiblico em BaD. A fragmentagio foi a esséncia de toda a problemitica entre professor-pesquisador, professor-tutor, tutor presencial, consistindo, talvez, na maior dificuldade para a execugio da EaD. Nesse sentido, por mais que em outros Estados os tutores em EaD tenham mais de 120 alunos, no Maranhao é preciso que a qualidade dos tutores seja maior para cativar e colaborar para que os alunos perseverem em seus estudos ¢ se interessem cada vez mais por sua propria formagdo. Enquanto 0 curso EaD for algo secundirio para 0 proprio aluno, nao se desenvolverd o trio -ensino-pesquisa-extensio na UAB. A questio passa, entio, nao pelo nao julgamento da EaD, mas, sim, por quais sios as possibilidades ¢ alterativas para esta pritica. Portanto, é inconcebivel pensar a EaD para 0 ensino bisico, tal como ja se pensou em outros momentos e lugares, quando afirmava-se a aprendizagem pela via da tele-educagdo, Gutierrez (1994) nos fornece algumas ideias interessantes nesse sentido: © 0 altemativo, como processo, leva em consideragdo as maneiras de veicular a informagdo, de constituir nicleos de reflexdo ¢ de evitar controles autoritarios. A medida das alternativas so as circunstincias, pequenas reformas aparentes sio, assim, grandes passos num processo educativo como a EaD. * 0 sentido metodolégico altemativo da EaD tem que problematizar '"Video disponivel em: http://www. youtube.com/watel \LrsGegB431_ 2» ideo disponivel em: http://www.youtube.com/watch?v=zdmwlnSEa2M 2 Video disponivel em: hii: www youtube.com/watch?v=LUDOnaqziLo Soe rere Re ee principalmente © curriculo, que é © perfil ocupacional/profissional do curso, O curriculo da EaD, por se basear em materiais autosuficientes, seqiienciais, & constantemente fechado no ato de ensino-aprendizagem, Sido muitas vezes respostas 4 perguntas que nunca foram formuladas pelos estudantes. Um “bom curriculo deve se basear numa teoria cientifica nascida da pritica” (Gutierrez, 1994, p 49). Sdo formas alternativas de obrigar 0 estudante a se deparar e confrontar as teorias cientificas € filosdficas com a pratica profissional e cotidiana dele mesmo. A pritica social é 0 conjunto de fatores politicos, econémicos, culturais e ideolégicos que o permeiam. © problema da educacdo, no sentido geral, € quando a mesma se interpoe & ctiatividade do aluno, tornando-o passivo, submisso © improdutivo. Isso esti relacionado diretamente com a satisfagdo do estudante em relagdo as suas criagdes e a pressio de ter que cumprir um nivel de rendimento relativo a uma porcentagem de produgdes cada vez mais crescente, Assim, a alternativa metodolégica aos materiais a distancia, é um aprimoramento das metodologias de pesquisa; esta ¢ ponto articulador de todo 0 processo de conhecimento. Ao invés de transmitir 0 contetido de modo clissico, & preciso desenvolver prazer na busca de conhecimentos nio abordados nos médulos curriculares. Assim, a pesquisa em filosofia, conectada com a educagdo, necessita estar inserida no processo social vivido pelo estudante, mediante atividades de estudo, tais como: leituras conotativas, denotativas, estruturais ¢ outras. Assim, chegamos conclusio que a que a apropriagio de ideias filoséficas, via processo educativo, pode ocorrer tanto no ensino presencial, como na modalidade EaD. Entretanto, para que 0 estudante transforme essa apropriagdio num pensamento genuinamente seu, exige~ se um trabalho muito maior de esforgo e de estudo. E o que chamamos na filosofia da combinagio entre teené e autopoiesis. A primeira significa 0 “fazer” e a segunda, a “técnica”. Logo, para “fazer” filosofia, ou qualquer outra ciéncia, é preciso, essencialmente, 0 dominio de técnicas especificas, e estas, sim, contam para a avaliagdo do processo formativo. Dessa forma, é necessiria a problematizagao das metodologias do ensino superior dedicado & formagdo de professores de filosofia da educagdo bisica, também na sua dimensdo técnica, dado que esta consiste em parte essencial do processo de ensino. ‘Submetido em janeiro de 2013. Aprovado para publicagao em setembro de 2013. REFERENCIAS BACON, Francis. Novum Organum ou verdadeiras indicagées acerca da Soe ory rere ren ry interpretagio da natureza: Nova Atlantida. Tradugao ¢ notas de José Aluysio Reis de Andrade. Sao Paulo: Nova Cultura, 2005. BELLONI, Maria Luiza. Edueagio a distancia, Campinas, SP: Autores Associados, 2009. CASTELLS, Manuel. Fluxos, redes ¢ identidades: uma teoria critica da sociedade internacional. In; CASTELLS, M. et al. Novas perspectivas criticas em educacao. Vol. 2, n. 7. p. 3-32. 1996. Porto Alegre: Artes Médicas. . La sociedad de la informacién: economia, sociedad y cultura. Madrid: Alianza, 1998. CHAU, Marilena. Convite a Filosofia. Ed. Atica, Sao Paulo, 2000. FREIRE, Paulo. Agao cultural para a liberdade e outros escritos. Traduca de Claudia Schilling. Rio de Janeiro: Paz. Terra, 1968. - Pedagogia da autonomia. Sao Paulo: Paz Terra, 2006. LANDIM, C. M. P. F. Educagao & distancia: algumas consideragdes. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997. LEVY, P. O que é 0 virtual? . Tradugio de Paulo Neves. Sao Paulo: Editora 34, 1996. GUTIERREZ, F, A mediagio pedagégica: educagio 4 distancia alternativa, Trad. Edilberto Sena. Campinas: Papirus, 1994. HABERMAS, Itirgen. Agir comunicativo e razio destranscendentalizada. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002. NIETZSCHE, F. Sobre a Verdade ¢ a Mentira no sentido extra-moral. In: Nietzsche — Coleco Os Pensadores. Sao Paulo: Nova Cultural, 1999. Soe avy Tete tere Para um ensino de filosofia que contribua com a elaboragao do luto na adolescéncia Felipe de Jesus Sabadini?s Resumo © artigo objetiva a explicago do processo psicobiodinamico do sujeito com enfoco na adolescéncia © nas crises existenciais decorrentes deste periodo. O presente texto & uma proposta pedagégica para um ensino de filosofia que fornega ao educando estrutura e ferramenta para ajudé-lo a elaborar o luto pela perda dos paradigmas da infincia e a ingressar na fase adulta, A exposigdo visa, também, dar ao fildsofo-educador elementos para compreender o processo em que vive 0 educando, para que, quebrados os preconceitos, haja melhor aproximagdo e didlogo entre ambos. Palavras-chave: Adolescéncia, luto, ensino de filosofia. For the philosophy teaching that contribute to the overcoming of the mourning in the adolescence Abstract The article aims to explain the psychobiodynamic process of the subject with focus on adolescence and on the existential crises arising from this period, This text is a pedagogical proposal for teaching philosophy to provide to the student the structure and the tool to help him to overcome the loss of the paradigms of childhood and enter adulthood. The exhibition also aims to give the philosopher-educator elements to understand the process in which the student lives in, aiming the break of prejudices and the better approach and dialogue between both. Keywords: Adolescence, mourning, teaching philosophy SGraduando em Filosofia pela Universidade Federal do Espirito Santo. (UFES), E-mail: felipe@felipesabadini.com.br Ses ear) Introdusio A adolescéncia constitui uma importantissima fase do desenvolvimento psiquico, social e biolégico do ser humano. Entretanto, nfo so raras as abordagens onde somente seu carter negativo € sublinhado. Difundiu-se no senso comum a imagem do adolescente rebelde, alheio a qualquer limite, impelido por uma vontade impulsiva de mudar 0 mundo, sendo, ele mesmo, incapaz de resolver seus proprios conflitos. Que essa visio, mesmo sob um ponto de vista critico, seja no minimo verossimil, & incontestavel. Contudo, cabe-nos uma abordagem onde os tragos assinalados como negativos possam analisados como desdobramento de um processo necessirio na vida do individuo. & importante considerar normal toda agitagdo dessa fase; anormal seria o equilibrio e a estabilidade durante a adolescéncia. Este momento da vida é substancialmente crise e luto, visto que se perdem os fundamentos da certeza em relagio a si e ao mundo, Na tentativa de readquiri-los 0 adolescente as vezes adota um comportamento descomedido que, somado a outros fatores, caracteriza uma entidade semipatolégica, a que chamamos de sindrome normal da adolescéncia, que, & perturbadora para o adulto, mas absolutamente necesséria para 0 adolescente pois, neste processo, vai estabelecer a sua identidade. 2 O papel do luto na dindmica do processo da construgao da identidade 2.1 Da infancia a crise da crise A estrutura psiquica que € formada durante a fase embrionéria e fetal, se estabelece imediatamente apés 0 nascimento, ¢ num processo continuo do desenvolvimento psiquico chega até a fase adulta. As etapas deste processo, segundo Jean Piaget (1896 — 1980), tém seu marco inicial na aquisigo da linguagem, que ocorre dos dezoito meses aos dois anos de idade. A crianga torna-se capaz de se compreender como um ente entre outros, e 0 mundo como externo a si mesma; antes desta etapa, o recém-nascido referia todas as coisas ao seu proprio corpo, Dos dois aos sete anos, 0 individuo adquire a capacidade de compartilhar a linguagem por meio de sinais ¢ representagdes verbais. Dos sete aos onze, aprende dar jjustificagdes racionais as suas afirmagdes, por meio de operagdes légicas, aritméticas, geométricas e mecinicas. Dos onze até os catorze, que é efetivamente 0 periodo da adolescéncia, ele comega a formular sistemas de ideias, a se preocupar com questdes para além de seu cotidiano ¢ elaborar teorias filoséficas, estéticas, politicas, ainda que de maneira ingénua e fantistica, A puberdade € marco mais significativo da adolescéncia, e ¢ fator determinante para 0 desprendimento de uma etapa que inicia desde o nascimento. 0 modo de vida da crianga no processo que vai do nascimento até a fase do pensamento operativo-concreto, que ja indicamos, € marcado pela sua relagdo de dependéncia com o meio familiar, 0 qual esta IBZ] Para um ensino de filosor ue contribua com a elaboragio do luto na adolescéncia encarregado de suprir suas necessidades basicas e estabelecer os papeis sociais. Atravessando, porém, essa fase, surgem mudaneas corporais que obrigam o individuo a desconstruir sua identidade infantile a relagdo que teve com os pais até entio, para formular uma nova, que esteja em conformidade com seu novo corpo. Contudo, esse desenvolvimento, onde vai ser consolidada a personalidade, é de crise aguda, Isto esté relacionado as mudangas que 0 adolescente sente em seu corpo, que se afiguram como algo extemo ¢ alheio a sua vontade. Assim, a tentativa de reter as caracteristicas da infincia — que estio vinculadas, também, com a condigio de acomodagio, dependéncia e iseng3o de algumas responsabilidades que esse status garante — coexiste com a aspiragdo de obter a identidade adulta, Essa etapa do processo, marcada por confusdes e ambivaléncias que so fonte de excessiva angustia, comporta um potencial elevado de transformagdo ¢ abre caminho para novas modalidades de existéncia. Atravessamos um periodo pleno de enigmas, de dissolugao de certezas tal como, no plano individual, processa-se a adoleseéneia, inevitavelmente traumatica, (..) impulsionada pot rupturas e perdas, mesmo que a servigo de novos ganhos. Ainda que potencialmente criativo, este processo & permeado por forte poder destrutivo no sentido da insisténcia de um excesso, em primeito lugar, pulsional, que pode vir a ser (.) promotor de notivel desequilibrio da dindmica do conflito. (CARDOSO, M.R. 2006. p. 10) 2.2.0 luto pela perda dos para ‘A necessidade de construir uma nova identidade & emergencial devido as perdas softidas no processo psicobiodinamico. O adolescente deve estar preparado para aceitar essa perda, para, s6 entdo, poder entrar no mundo adulto, F esse processo de perda ¢ aceitago que tratamos aqui como luto?*, Por seu turno, © primeiro tuto que precisa ser elaborado é pela perda do corpo infantil, que num processo natural, perde suas caracteristicas sexuais secundarias, que dio lugar is caracteristicas primérias; entre as quais podemos identificar o surgimento da menstruagio na menina e do sémen no menino, Esses fendmenos, que ocorrem na puberdade e revelam a capacidade do exercicio da genitalidade, tém impacto profundo no comportamento do individuo e na conquista da identidade adutta, ‘A separagio progressiva dos pais, que leva o adolescente a realizar o segundo luto, acontece no momento em que estes percebem a evolugdo da sexualidade de seus filhos. Os efeitos dessa mudanga provocam também neles angistia, Dai, cria-se uma série de ‘mecanismos que visam conter esse avango. A intensidade do conflito leva 0 adolescente a um distanciamento do meio familiar e a preferéncia pela adesio. Os grupos aos quais os 2Knobel, M. 1984, enon! adolescentes aderem demonstram, s vezes, oposigdo as figuras parentais. Esse deslocamento do meio familiar para o grupal & determinante para a constituigdo da identidade do adolescente diferente a do meio familiar. O papel do ensino de filosofia na construcio di 3.1 O papel do filésofo educador Para reter as caracteristicas infantis e adiar a responsabilidade dos papéis exercidos na maturidade, o adolescente demonstra desprezo pelo adulto, como mecanismos de defesa para assim manter afastada a possibilidade de assumir uma nova identidade com tudo que ela acarreta, A rivalidade se intensifica quando os pais ou as instituigdes tentam inserir novos valores que ou mantenham-no na condigdo de dependéncia, portanto no estado infantil ow quando tenta inserir nogdes de responsabilidades que 0 conscientizam necessidade de atingir a maturidade intelectual, 0 que também e problematico, em vista da identidade infantil que ele deseja reter. Dai, essa ndo se toma uma fase dificil somente para o adolescente, mas também para os pais e — especialmente nesta exposigo — para os professores de filosofia, que incumbidos de trazer 4 tona temas como moralidade, responsabilidade, autodeterminagao, abertura critica do entendimento, entre outros, impelem o educando cada vera uma mudanga no universo conceitual, Essa ambigtiidade, que por um lado faz. com que ele queira preservar as caracteristicas infantis e, por outro, desejar aleangar a identidade adulta, leva o adolescente a oscilar entre maturidade ¢ imaturidade, dependéncia ¢ independéncia, Isso gera um conflito que tem implicagdes no seu agir. O adolescente se rebela, resiste tomada de consciéncia ¢ deprime-se ante essa resisténcia, Nao raro, em virtude desse conflito ele toma postura de hostilidade frente ao educador e ao ensino, Todavia © educador, nao deve enxergar de forma negativa essa indisposi¢ao ou resisténcia ao ensino de filosofia. Deve, contudo, compreender que toda a agitagio neste periodo da vida & normal” e necessdria nessa etapa da vida. Mas essa compreensio s6 se toma possivel quando 20 eonceito de normalidade nio é ficil de estabelecer, ja que em geral varia em relagio com o meio sécio- econémico, politico c cultura (..) a normalidade se estabelece sobre as pautas de adequaco ao meio, ¢ que no significa submetimento ao mesmo, mas a capacidade de utilizar os dispositivos existentes para o alcance das satisfagdes basicas do individuo, numa interagio do alcance de substituigSes para o individuo ¢ para a comunidade, Logicamente que (..) a personalidade bem integrada nfo & sempre a melhor adaptada, mas tem, sim a, forga interior como para advertir 0 momento em que uma aceitagdo temporiria do meio pode estar em conflito com a realizago dos abjetivos basicos, e pode também modificar a sua conduta de acordo com as suas necessidades circunstanciais. Esse € 0 aspecto da conduta no qual 0 adolescente, em termos gerais, pode falhar. Ao viver uma etapa fundamental de transigdo, sua personalidade tem ccaracteristicas especiais que nos permite situé-lo entre as chamadas personalidades marginais, no sentido da adaptagao e da integragdo que acabamos de esbogar. Anna Freud diz que é muito dificil assinalar o limite entre 0 normal e o patol6gico na adolescéncia, e considera que, na realidade, toda a comogio deste periodo da vida deve ser considerada como normal, assinalando também, que seria anormal a presenga de um equilibrio estével durante 0 proceso adolescente. As lutas e rebelides extemas do adolescente ndo sdo mais do reflexo dos conflitos de dependénecia infantil que intimamente ainda persistem.” (Knobel, M. 1984, p. 27) Soe ory creer ne Ee 1 de filosofia que contribua com a elaboragio do luto na adolescéncia entendemos a realidade humana como um proceso em desenvolvimento, ¢ a adolescéncia como a etapa mais importante deste processo. Bla revela-se com uma genuina experiéncia dialética que encontra nos trés estégios do proceso evolutivo (infancia, adolescéncia e maturidade) correspondéncia nos trés momentos do processo dialético hegeliano _(tese, antitese e sintese). ica da adolescéncia 3.2 A experiéncia dial A infancia, como primeira etapa do processo, logo precisa encontrar sua superagdo em vista das mudangas biolégicas softidas, as quais as psicolégicas também acompanham. Esse estigio alcanga o seu termo quando 0 individuo as percebe como algo progressivo, certo e irreprimivel. Os prineipios que até ai garantiram um sentido 4 vida e fundamentaram os valores, comegam a ser negados ¢ entram em crise. A partir disso, a consciéncia se torna estranha a si mesma e se aliena, se perde € ndo pode mais retornar a si. A isto se deve a angistia 0 vazio de sentido, comum na adoleseéncia, © terceiro momento, que nds entendemos como 0 escopo do proceso, é 0 da negagio da negagdo da infincia, ou seja, negagdo da adolescéncia e do apropriar-se novamente da identidade, seus principios e fundamentos, E momento da extrusio da consciéncia que retorna para si, se encontra ¢ se recomhece, € torna-se por si. A identidade infantil negada pela adolescéncia, retorna a si suprassumida (aufhebung), inaugurando a fase adulta — sintese entre a infancia e adolescéncia, 3.3 A autodeterminagio na construgao da nova identidade A adolescéncia aparece como negagdo da infiincia e pré-etapa para maturidade, Ela ndo 6, pois, uma coisa, nem outra, mas esta em vias de ser. Desse modo, podemos dar outra definigdo para ela: & um nada, Nao se trata, porém, de uma nulidade, pelo contrario, é um nada como condi¢ao de possibilidade fazer-se a si mesmo; de escolher-se, de constituir autonomamente sua identidade e 0 sentido de seu proprio existir. Desta forma, 0 ensino de filosofia que queria contribuir com a elaboragdo do luto deve colocar 0 adolescente diante de sua angiistia e confronté-lo com ela, Deve dar a ele elementos para compreender sua crise e encontrar a superagio. Mas ha que se ressaltar que o ensino de filosofia contribui, mas ndo elabora o luto; aponta © caminho para saida da cavernd®, mas nao conduz para fora. O esforgo da filosofia, segundo Sartre, (1905 — 1980) “é 0 de pér todo homem no dominio do que ele é e de the atribuir a total responsabilidade da sua existéncia” (Sartre, 1946. p. 6). A filosofia aparece para mostrar-Ihe o sentido da angiistia como possibilidade de atuar-se. Qualquer tentativa de conduzir 0 educando com, por HEGEL G. W. F. (1807), Referéncia & alegoria de Platio em A Repablica, Livro VIL Soe creer ne losofia que contribua com a elaboragao do luto ear) exemplo, mostras de contetidos de ideias prontas, jargdes filoséficos, diversidade correntes de pensamento ¢ autores, que ajudam a elevar o grau de erudigdo, mas ndo confronta 0 individuo consigo mesmo, perpetuara seu estado infantil. O ensino de filosofia &, portanto, 0 meio para libertar 0 educando de suas “muletas” existenciais € torna-lo consciente de seu dever inaliendvel de determinar-se. Ele deve se tomar capaz de servir-se de seu préprio entendimento™ para escolher o sentido de sua existéncia sem a tutela de outro. A preguiga © a covardia so as eausas pelas quais uma parte tdo grande dos homens, libertos hd muito pela natureza de toda tutela alheia (naturaliter maiorennes), comprazem-se em permanecer por toda sua vida menores; ¢ & por isso que é to fic outros instituirem-se seus tutores. [2 to cémodo ser menor. Se possuo um livro que possui entendimento por mim, um diretor espiritual que possui consciéneia em meu lugar (..), no preciso ew mesmo esforgat-me, Nao sou obrigado a refleti, se suficiente pagar; outros se encarregardo por mim da aborrecida tarefa.(..) & portanto diffeil para todo homem tomado individualmente livrar-se dessa ‘minoridade que se tormou uma espécie de segunda natureza. Ele se apegou a ela, ¢ € endo realmente incapaz de se servir de seu entendimento, pois nfo deixam que ele 0 experimente jamais, Preceitos e formulas, esses instrumentos meciinicos destinados ao uso racional, ou antes ao mau uso de seus dons naturais, slo os entraves desses estado de minoridade que se perpetua, (KANT, Immanuel. 1783. p. 1, 2) A abertura para 0 pensamento critico, a capacidade de fazer 0 individuo pensar por conta propria, ter posigdes claras e refletidas, ndo é sendo a meta do ensino de filosofia. O adolescente encontrara elementos de que precisa para realizar a da primeira etapa do processo € se tomar 0 que ele quiser ser. Nao s6 isso, mas dara também condigdes de efetuar um agir social © moral que abarque 0 outro em suas ages, que considere a humanidade em sua pessoa (Kant I. 1785). Conelusio texto dé ao ensino de filosofia a missio de fazer com que 0 amadurecimento iolégico do educando seja acompanhado pelo amadurecimento intelectual; de nutrindo-o com um sistema de valores que permite a descoberta de seu mundo interior e 0 capacite a uma agio refletida no mundo exterior; fazendo aluno e professor conscientes de que a conquista da maturidade é intermediada por densos conflitos, que quanto mais se intensificam mais abrem caminho para o “apropriar-se novamente” da identidade perdida. educador, a escola, a familia ¢ a sociedade de um modo geral so colaboradores na formagao do cidadio, ¢ seu S0Sapereaude! Tenha a coragem de servir-te de tua prépria inteligéneia.” (KANT, I. 1783). Tea ern compromisso nao pode ser omitido: de formar seres humanos capazes de escolher o melhor para si, em uma escolha que transpée os limites da individualidade ¢ atinge a esfera do universal. Submetido em agosto de 2013. Aprovado para publicagio em janeiro de 2014. REFERENCIAS KNOBEL, Mauricio. Adolescencia normal: um enfoque psicanalitico. 3. ed. - Porto Alegre: Artes Médicas, 1984, CARDOSO, Marta Rezende. Adolescentes. Sao Paulo : Editora Escuta, 2006. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. Histéria da filosofia - de Freuda a atualidade. Sao Paulo: Paulus, 2005. SARTRE, Jean Paul, O existencialismo e um humanismo, Sao Paulo: Abril Cultural, 1973. HEGEL, George Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espirito, Petrépolis: Vozes ; Braganga Paulista : Editora Universitaria Sdo Francisco, 2012. KANT, Immanuel, Resposta 4 pergunta: O que & o Esclarecimento? (1783), Traduzido por Luiz Paulo Rouanet, Disponivel em: http:/lensinarfilosofia.com.br/_pdfs/e_livors/47 pdf KANT, Immanuel. Fundamentagio da Metafisica dos Costumes. Lisboa : Edigdes 70, 2009. Soe ee ee Sree Arelevancia do ensino da filosofia existencial na Educagio Basica David Velanes de Araijo®* Resumo Este trabalho buscou investigar como o ensino da Filosofia Existencial pode contribuir na formagio de estudantes da educago basica, considerando que muitos jovens, de todas as idades, inseridos nos contextos escolares, se encontram em dispersio sobre suas existéncias e projetos de vida. Assim, o ensino de filosofia existencial pode contribuir na formagio de educandos da Educagao Basica, trazendo a construgio de uma consciéncia sobre a existéncia, sobre a condicdo humana e sobre o sentido da vida e de sua autenti Palavras-chave: existencialismo, educagdo, filosofia. The relevance of teaching philosophy existencial in Basic Education Abstract This work investigates how the teaching of Existential Philosophy can contribute to the education of students of ba contexts are dispersed about their existence and livelihood projects. Thus the teaching of training. Whereas young people of all ages entered in school existential philosophy can contribute to the education of students of Basic Education, bringing the building of awareness about the existence of the human condition and the meaning of life and its authenticity. Keywords: physician of the culture, engagement, formation, interdisciplinarity. Professor de filosofia da Rede Estadual de Educagio de Minas Gerais, Estudante de Pés-Graduago do Centro Universitério Campos de Andrade. E mail:dvelanes(@gmail.com Soe ars en) oe Ererncory Introdugio Talvez uma das tarefas mais complicadas para o homem é refletir sobre sua condigao no mundo enquanto ser existente, A dispersio existencial o leva a uma existéncia inauténtica, sem sentido, ¢ isso se pereebe no nimero de pessoas que desperdigam suas existéncias, vivendo sobre 0 desespero, a angiistia, o medo ¢ a inércia, (Kierkegaard 1979; Abbagnano, 2006). Educar & mais do que impor erudigdo e conhecimento, por isso educar é uma tarefa no sentido filoséfico. Portanto, devemos pensar qual & o cariter da filosofia dentro das escolas. Pois tanto a filosofia, como a educagdo possuem a tarefa de colocar © homem diante de si mesmo ¢ diante de sua condigo no mundo (Andrade, 2008). A Educagdo Basica que compreende a Educagao Infantil, o Ensino Fundamental ¢ © Ensino Médio (BRASIL, 1996), traz consigo sintomas destes problemas ¢ situagdes que correspondem a muitas queixas de professores sobre a realidade educacional. Mesmo considerando a falta de recursos para uma educagdo de qualidade e uma caréncia de politicas piblicas para a educagao, se percebe nos educandos uma falta de consciéneia sobre o sentido de vida, Jovens de todas as idades, inseridos nos contextos escolares, so totalmente dispersos sobre suas existéncias e projetos de vida, Os Parimetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio que tratam das Ciéncias Humanas ¢ suas tecnologias trazem a ideia de construgdo de identidades responsiveis ¢ solidérias, “compromissadas com a insergdo em seu tempo © em seu espago, pressupde 0 aprender a ser, objetivo méximo da agdo que educa ¢ nfo se limita apenas a transmitir conhecimentos prontos”. (BRASIL, 2000, p.8). Segundo a LDB é neste sentido que o ensino de Filosofia contribui para o aprimoramento do educando, incluindo a formagdo ética ¢ 0 desenvolvimento da autonomia intelectual ¢ do pensamento critico, ¢ também para o exercicio da cidadania Brasil, 1996). O PCN ainda destaca que & preciso adquirir a habilidade para contextualizar os conhecimentos filos6ficos, tanto no plano de sua origem especifica quanto nos planos pessoal-biogritfico, no entorno s6cio-politico, histérico e cultural € no horizonte da sociedade cientifico-tecnolégica (Brasil, 2000). A sugestio apresentada neste trabalho através de uma metodologia hermenéutico- interpretativa, que 6 a esséncia da metodologia filosdfica, é de que 0 contesido filoséfico que mais se aproxima da aplicagéo a0 plano pessoal-biogrdfico, que permite criar uma competéncia onde se possa contextualizar, a partir de conhecimentos filoséficos, vivéncias, modo de ser, ¢ uma vasta visto de mundo, fundamentado de modo refletido ¢ eritico, de acordo com 0 PCN, é o estudo da Filosofia Existencial, nfo dispensando, obviamente, a diversidade de contetidos ¢ problemas que a filosofia suscita em suas outras ramificagbes. Nesse sentido, aponta-se que o ensino de filosofia existencial pode contribuir na formagio de educandos da Educagdo Basica, trazendo a construgdo de uma conseiéneia sobre a-existéncia, sobre a condigdo humana e sobre o sentido da vida e de sua autenticidade, Soe ory crane wre ee ee ar Peary Para tanto, primeiramente se buscou apresentar o existencialismo em seus aspectos tedricos ¢ histéricos para, posteriormente, identificar como esta corrente filosdfica se relaciona com a educagio, e por fim, é enfatizado como o ensino da filosofia existencial pode atuar na formagao de sujeitos livres, conscientes e auténticos. O que é existencialismo? Desde Sécrates, Descartes, Pascal Nietzsche j4 & possivel pensar em questdes existencialistas, porque suas filosofias abordam 0 cuidado de si como uma questio fundamental, embora com enfoques diferentes. Estes filésofos, antes do existencialismo se tomar uma corrente filoséfica, sentiram a necessidade de refletir sobre a condigao do ser humano enquanto um ser que deve efetuar escolhas dentro de uma existéncia repleta de conflitos. Mas, apenas com Kierkegaard é que os historiadores afirmam que a questio da existéncia como problema filoséfico se tomou mais profunda na filosofia, e o consideram como o primeiro representante da filosofia existencial (HUISMAN, 2001). Soren Abier Kierkegaard (1813 — 1855) foi um pensador que questionou a precedéncia dos conceitos puros ¢ intelectuais em prol de uma filosofia sobre a vida concreta do homem, criticando, deste modo, 0 pensamento hegeliano. Ele sugere uma filosofia que se volte para o individuo que deseje viver uma existéncia auténtica e verdadeira. Assim, ele constréi uma filosofia da existéncia que se contrapde a todos os sistemas racionalistas, principalmente Aquele elaborado por Hegel (CHAUI, 1979). ‘Além de abordar temas como a angistia existencial e 0 desespero, Kierkegaard caracterizou 0 sentido da vida, primeiramente tomada pela vida estética, que & predominantemente hedonista e que se contrapde 4 dor ¢ ao tédio, mas que se adere aos prazeres mundanos. Mas este modo de vida, além de no trazer quietude, se fundamenta numa busca eterna de novidades & qual conduz o ser humano ao desespero. Diferentemente da vida estética, 0 modo de vida ético se funda no compromisso com o dever © a responsabilidade perante a existéncia (CHAUI, 1979; ROVIGHI, 2001). E preciso destacar que, de modo geral, o termo “existencialismo”*? designa um tipo de filosofia no sistematica, ou uma linha de pensamento onde o singular, 0 concreto ¢ a existéncia sdo privilegiados em relago ao conceitual, nocional ou 4s generalidades, opondo- se, deste modo, ao “essencialismo” que insistia sobre a prioridade do conceito e de uma SF ssencialismo” Doutrina filosofica que confere, contrariamente ao existencialismo, primado a esséncia sobre 4 existéncia, chegando mesmo, em suas reflexdes, a fazer total abstrago dos existentes concretos. Trata-se de tuma filosofia do ser ideal, que prescinde dos seres reais. A filosofia de Hegel pode ser considerada essencialista”. (JAPIASSU, H. MARCONDES, D. Dicionério Basico de Filosofia, 2001, p. 67). Sartre ainda informa que “Esta ideia [essencialismo] pode ser encontrada praticamente em todo lugar: encontramo-la em Diderot, em Voltaire e até mesmo em Kant. © homem seria 0 possuidor de uma natureza humana; esta natureza, que & 0 conceito humano, se encontra em todos os homens, o que significa que cada homem ¢ um exemplo particular de um conceito universal, o homem; dessa universalidade resulta que, em Kant, ‘ homem da selva, o homem da natureza ¢ o burgués estio todos encaixados na mesma definigo e possuem as :mesmas qualidades bisicas.” (SARTRE, J. P.O Existencialismo é um Humanismo, 2012, p. 19). ory Pn nents Toe ea esséncia anterior & existéncia. Podemos dizer que o existencialismo diz respeito a uma atitude filoséfica ¢ que este termo comecou a ser usado depois da I Guerra Mundial, depois que alguns pensadores adotaram uma visio mais concreta da realidade, em vez de verdades teoréticas, se interessando fundamentalmente pelo problema da existéncia humana. Essa perspectiva causou repercussdes em diferentes campos, dentre eles 0 artistico, o religioso, 0 ético ¢ o social (HUISMAM, 2001; MOREIRA, 2003). A filosofia existencial busca enfatizar o sentido da vida e seus problemas, e & apenas neste exercicio que 0 ser humano se toma capaz de fazer algo sobre o “absurdo” que envolve a morte, a agonia, alegria do amor, a realidade da escolha ¢ a experiéncia da liberdade (GILES, 1975; KNELLER, 1966). neste sentido que o homem tem liberdade para criar e impor um significado sua realidade, mesmo que esta possa funcionar sem ele. “Ao homem niio pode ser “ensinado” 0 que é o mundo, Ele deve criar essa compreensdo para si mesmo”. (SARTRE, 2012, p. 79). A subjetividade do homem na perspectiva existencialista nao é um conceito pré-fabricado, anterior & existéncia. O individuo é um ser livre no mundo, capaz de dar sentido & sua propria existéncia e escolher o seu proprio destino. Portanto, para 0 existencialismo, as pessoas no sio objetos pré-moldados ¢ previsiveis. Nem um estimulo condicionante ou uma situagdo podem descrever suficientemente o comportamento de um ser humano, uma vez. que este pode transcender a si mesmo € ao contexto sociocultural através de sua liberdade. “O mundo esté ali: & concreto e particular, ¢ qualquer esséncia que dele se abstraia é menos real do que os dados donde ela foi abstraida.” (KNELLER, 1966, p. 77). Em uma conferéncia em Paris (1946), que depois se transformou em um ensaio intitulado © Existencialismo é um Humanismo, Jean-Paul Sartre (1905-1980) usa o exemplo do corta-papel, isto &, um objeto com um conceito pré-fabricado, para poder explicar uma das, teses principais do existencialismo, originalmente formulada por Marx, segundo a qual “a existéncia precede a esséncia”: Consideremos um objeto fabricado, como por exemplo, um liv ou um corta- papel: tal objeto fabricado por um artifice que se inspirou de um corta- papel é a0 mesmo tempo um objeto que se produz de uma certa maneira e que, por outro lado, tem uma utilidade definida, e no é possivel imaginar um homem que produzisse um corta-papel sem saber para que ha de servir tal objeto. Diremos, pois, que, para cada corta-papel, a esséncia ~ quer dizer, 0 conjunto de receita e de caracteristcas que permitem produzi-lo ¢ defini-lo ~ precede a existncia: ¢ assim a presenga, frente @ mim, de tal corta-papel esti bem determinada. Temos, pois uma visio tenica (SARTRE, 2012, p. 18). Mas entio como o ser humano é apresentado na filosofia existencialista sartreana? O ser humano “Primeiro ele existe, se descobre, surge no mundo e sé depois ird se definir, ou seja, primeiramente ele é “nada”, s6 depois sera e o sera conforme se fizer de acordo com 0 ory ee ee que tiver projetado.” (SARTRE, 2012, p.19). Dessa forma, 0 homem constréi sua esséncia através de suas escolhas ¢ ao nascer no mundo, é um no-ser, S6 aos poucos vai tomando consciéncia de sua existéncia, acrescido com um enorme desejo de se tornar alguma coisa, isto é, “essencializar-se”. Mas, diferente dos objetos do mundo como 0 corta-papel, que sio coisas acabadas, 0 ser humano nunca estar acabado, ou seja, 0 homem é um ser em eterna indeterminagdo até sua morte. Assim, o existencialismo coloca o homem em poder daquilo que do que ele é, conferindo-the responsabilidade total por sua vida. Responsabilidade essa, no apenas individual, mas que envolve todos os homens. Pois, as escolhas, segundo Sartre, envolvem toda humanidade, ja que algo ndo pode ser bom para um individuo, sem sé-lo para todos (Sartre, 2012). Em adigio, Martin Heidegger (1889-1976) coloca o individuo como ser que se relaciona diretamente com o mundo e dele participa com os outros seres. Em sua concepgio, ha uma ligagao entres os Dasein", estabelecida pelo estar-no-mundo com os outros, de modo que nao é possivel estabelecer distingdo sobre eles, pois estar-no-mundo & viver em um mundo em comum com os outros. Para Heidegger, o ser humano sé tem uma existéncia auténtica quando esta é idealizada pelo Dasein, desconsiderando todos os empecilhos ¢ barreiras que possam entravar a sua autenticidade. Pelo contrario, a existéncia inauténtica se revela como um sentimento de desamparo. Aqui, o individuo se sente abandonado ao ser langado no mundo cheio de possibilidades, das quais ele tem que escolher, sem, porém, que ele tenha escolhido nele existir. Contudo, se deve enfatizar que, segundo Heidegger, a existéncia inauténtica nfo se trata de uma simples aparéncia, ilusdo ou de uma realidade empobrecida, mas um modo de ser necessério da propria existéncia. (KELLENER, 1966; ROVIGHI; HUISMAN, 2001). Por fim, & preciso destacar que ha dois tipos de existencialismo, a saber, o cristio e o ateu, No primeiro, se destacam Karl Jaspers (1883-1969), Gabriel Marcel (1889-1973) ¢ Kierkegaard, jé citado, todos de confissio catélica (SARTRE, 2012). O existencialismo ateu, que pode ser representado por Heidegger, embora o mesmo nio se considere como tal, ¢ pelo proprio Sartre. (MESQUIDA ef al, 2003), Ambas as correntes comungam do mesmo principio fundamental, que é o problema da existéncia, contribuindo para varias outras Areas do conhecimento, entre elas a educagao. Existencialismo ¢ educagio pase (a exisdnea, eral) Termo heideggeriano que significa reaidade humana, ente humano, a quem somente o ser pode abrirse. Mas como & ambiguo, corendo o rsco de abrir uma brecha para o humanism, Heidegger profere uilizar a expressio seral. Na inguagem corrente, Dasein quer dizer *existéncia humana Mas Heidegger procura pensar o que separa o *homem dos outosenfes, Enquanvo os *enes sao fechados em seu universo citcundante, © homem & Gragas & inguager, ai onde vem o ser. Assim, o Dasein é o ser do existente humano enquanto existéncia singular ¢ concreta: "A esséncia do ser-ai (Dasein) reside em sua enistencia (Existen), ito é, no fato de ultapasar, de transcender, de ser orginariamente ser-no-mundo (APIASSU, I. MARCONDES, D, Dieionirio Bisco de Filosofia, 2001, p. 48). Soe crane wre IGF] A rolevancia do ensino da flosofia existoncial Ererncory A Filosofia Existencial ndo chegou a contribuir claramente para uma proposta pedagégica tio especifica quanto as filosofias tradicionais o fizeram. Entretanto, as criticas feitas pelos existencialistas contra essas filosofias so de extrema relevincia para se pensar a educagdo. Além disso, a Filosofia da Educagio pode herdar a mensagem da liberdade auténtica unicidade individual, ambas afirmadas pela Filosofia Existencial. Deste modo, uma teoria educacional com bases existencialistas iria & contracorrente sobre uma tendéncia voltada a0 conformismo ¢ acomodagao pessoal a esséncias preestabelecidas, isto é, contra um sistema de educagio que leva os educandos a se ajustar a uma coletividade, em vez de buscar seus préprios caminhos (KELLENER, 1966). Esse tipo de aluno “bem ajustado” tem seus moldes fora da escola, fundamentados por diferentes papéis sociais, ou ao rebanho como afirma Nietzsche. Para o filésofo, grande parte das pessoas se acomodam a uma moral coletiva, baseada na submissio irrefletida aos valores dominantes da civilizagdo erista e burguesa. Trata-se, pois, de uma critica ao conservadorismo cego e & ideologia do mundo burgués. Destarte, é nesse sentido que uma filosofia da educagao com base existencialista deve procurar estimular o desenvolvimento da subjetividade livre ¢ criadora de cada educando, sendo o grupo apenas um meio para o individuo se desenvolver, caso seja de sua propria vontade, e no por pressdes sociais para se adequar a padrdes estabelecidos socialmente sem engajamento do proprio individuo. (KELLENER, 1966). De acordo com os defonsores da filosofia da existincia, somente as posigdes cxistonialistas © a prtica podagégica que delas decor, permitem a formasio de uma consciéncia capaz de levar o homem, enquanto ser-no-mindo, a compreender as suas relagdes com a natureza ¢ com os outros homens. (MESQUIDA et al, 2003, P4) Ao mesmo tempo, Farias (2013) afirma que Heidegger ao trazer em sua obra Ser Tempo, uma discussao a respeito da existéncia humana, nos mostra um modo particular de compreensio ¢ interpretago do ser-ai atuante no mundo e, também, como ele se relaciona consigo mesmo e com as outras formas de ser. Logo, se a educagio escolar tem a proposta de inserir as pessoas em um mundo marcado pela linguagem e cédigos, se toma necessirio o esclarecimento de que quanto mais compreendermos 0 ser humano, maior seré a nossa habilidade de conseguirmos colabora com seu processo de formagio. Por isso, na perspectiva heideggeriana “o processo educacional auténtico é aquele em que alunos aprendem o proprio significado do aprendizado. Isso implica que eles aprendam que, somente se forem chamados singularmente pelo que esté em questio, de fato estardo aprendendo”. (ANDRADE, 2008, p66). Por conseguinte, 0 estudante se toma o foco central da agio pedagdgica diferentemente da concepgdo tomista-aristotélica, onde 0 professor seria o centro dessa mesma agiio. Assim, o existencialismo respeita o individuo em sua individualidade, torando Soe ory crane wre ee ee cada estudante um microcosmo, ou um ser tinico que deve ser levado em consideragao na pritica educativa do docente. Em seguida, coloca o paradigma de que conhecimento nio pode ser transmitido, mas decorre de um método dialégico que se estabelece entre os seres-ai, que conservam sua individualidade. Neste sentido, o processo de aprendizado € colocado como uma insergo apaixonada no objeto de estudo, ou, como um mergulho na realidade com 0 intuito de decodificé-la (MESQUIDA et al, 2003). Na perspectiva do existencialismo, hi uma rejeigdo para com as concepgdes tradicionais entre professor ¢ aluno, O professor niio é 0 centro do conhecimento ou consultor de situagdes, muito menos alguém que tenha a personalidade a ser imitada. A fungo do professor é assistir pessoalmente cada individuo em seu caminho para a realizagdo enquanto Dasein, Ele deve, também, encorajar os estudantes no empenho dos estudos € na reflexdo sobre © conhecimento; estimular a critica, mas acima de tudo, os estimular, para que esses busquem, através do conhecimento, a autenticidade, agindo no tecido da imaginagdo humana, bem no estilo socritico. Tal estilo seria o ideal para a educagdo, pois, além de tomar mais intima a relagdo entre professor e alunos, estes tiltimos aprenderiam melhor aquilo que eles proprios reputassem como verdade. Deste modo o professor, de forma processual, ajudaria aos seus alunos a darem a luz 4 grandes criagdes (KNELLER, 1966). Mesquida ef al (2003) ressalta que a pedagogia libertadora de Paulo Freire traz um aspecto existencialista, mesclado com a dialética marxista, porque o foco da educagao, neste educador brasileiro, & de Sartre, seria o homem objetificado em uma situagdo que no péde escolher ter nascido mas que, pela liberdade que possui, tem a potencialidade de mudar sua realidade (Sartre, 2012). E por isso que os educandos no podem ser percebidos como depésitos de conhecimento, aos ‘© homem concreto, oprimido, explorado ¢ desumanizado. Nas palavras contririo, a eles deve ser propiciado um exercicio problematizador, dialégico e questionador sobre sua condigao, situagao, sobre seu estar-no-mundo (Freire, 1987). existencialismo trabalha com 0 conhecimento subjetivo porque o homem é um ser nao apenas de intelecto, mas que possui, também, afetos. Nesse sentido, para se conhecer alguma coisa, o homem precisa relacionar consigo mesmo. Assim, o conhecimento deve se ligar a verdadeira finalidade do ser, que é se envolver autenticamente com a vida. Defende- se, portanto, o conhecimento autoconsciente de si, que emancipa o homem de sua ignorancia € dos preconceitos. O papel do ensino da filosofia existencial na escola A filosofia deve comegar ajudando © educando a tomar consciéneia da finitude da vida e da inevitabilidade da morte, a qual o ser humano teme e 0 angustia, adotando o método existencialista, Para isso, & preciso refletir sobre a condigio humana ¢ também sobre ser humano em relagdo a si mesmo. ‘A educagio basica, em geral, ndo traz esse tipo de reflexdo, relegando a ideia de Soe ory crane wre ML en nents morrer, como se ndo fosse algo importante, Mas, deveriamos refletir constantemente sobre tal tema, porque a morte apaga totalmente nossa esséncia, o que fizemos ou pensamos. Embora os jovens enxerguem a morte como algo distante, ou tratam como algo melancélico ou depressivo, esta reflexio contribui para uma vida auténtica que engloba a consciéneia ‘onipresente da condigdo humana, nos toma cénscios dos valores da vida e exalta a propria existéncia, levando a analisar a propria vida, pois a eminéncia da morte é um dos mais poderosos incentivos para 0 autoexame. Nesse sentido, cabem palavras de Pascal: Quando considero a duragio minima da minha vida, absorvida pela ctemidade procedente e seguinte, o espago diminuto que ocupo, ¢ mesmo que vejo, abismado nna infinita imensidade dos espagos que ignoro ¢ me ignoram, assusto-me c assombro-me de me ver aqui c nio lé. (PASCAL, 1999, p. 66). ‘Ao estudante deve ser apresentada a possibilidade de aprender a viver a vida no conhecimento, ajudando-o a entender que esta terd um fim. Por isso, & importante que ele se pergunte para que ele vive, ¢ se esté vivendo plenamente como um ser livre ou se, a0 deixar sua vida, essa terd tido alguma importincia, (KNELLER, 1966). (© si mesmo da presenga (Dascin) cotidiana ¢ 0 impessoalmente-si-mesmo, que distinguimos do propriamente si-mesmo, ou scja, do si mesmo apreendido como proprio. Enquanto impessoalmente-si-mesma, cada presenga se acha dispersa no ‘impessoal, precisando ainda encontrar a si mesma (HEIDEGGER, 2011, p.186). De outta feita, o existencialismo pode contribuir para a educagdo com novas maneiras, de se pensar o contexto educacional, ajudando ao educando compreender o homem, o mundo, a simesmo, a angiistia, o cuidado, a linguagem a fala etc. (MESQUIDA et al, 2003). estudante da educagio basica precisa reconhecer que a frustrago ¢ 0 conflito nio so coisas indesejéveis, que precisam ser evitadas a em qualquer custo, tal como a cultura dominante impée. E preciso reconhecer que a frustragZo ¢ o conflito sio aspectos da condi¢ao humana, Com efeito, a escola deveria familiarizar 0 educando com a dualidade da vida humana, onde, por um lado, existe a dor, o softimento, 0 terror e, por outro, a beleza, 0 éxtase e alegria, “Como o significado da existéncia preside no proprio homem, o estudante deve usar ‘0 seu conhecimento de realidades externas para congragar-se mais completamente com a sua propria natureza”. (KNELLER, 1966, p. 89). ensino de filosofia existencial na educagdo basica pode auxiliar para o despertar de uma consciéneia no educando de que ele ¢ dono do proprio destino e responsivel por ele. O ser humano enquanto ser-no-mundo, é antes de tudo, compreensio de si mesmo, e nesse proceso de compreender a si, esté implicita a nossa esséncia, nosso agir € o nosso pensar que determinam o nosso eu individual. E nesse sentido que o homem se relaciona no mundo e ory Peers 1 da flosofia oxi como seus semelhantes, devido ao seu modo de estar “langado” no mundo. A partir de sua condigZo, ele seleciona e elege aquilo que lhe proporciona uma melhor compreensio da sua existéncia, se langando ao futuro (ANDRADE; LYRA, 2008; FARIAS, 2013). © homem faz 0 que vier a ser (SARTRE, 2012), e € na intensidade do existir que a realidade se revela, Isso pode ser ao mesmo tempo aterrador e desafiador, pois exige de toda pritica e reflexio humanas um engajamento com a vida. Deste modo, o homem é responsivel de ser o que é ¢ o que sera em sua existéncia, usando sua liberdade, ou escolha individual, para escolher seu destino que é somente seu e tinico (MESQUIDA et al, 2003). A filosofia da existéncia também pode contribuir para que o estudante adquira uma postura livre, ética e responsdvel pela sua existéncia e seus atos. O homem é livre, portanto as aulas sobre o existencialismo devem estimular a consciéncia sobre as tendéncias que atuam no sentido de desumanizar 0 ser humano, reduzindo-o a objeto, minando sua liberdade e explorando-o pelos meios de comunicagdo. Deve trazer o entendimento sobre a subordinagao de individuos 4s méquinas e sistemas econémicos, sobre a ilusio de uma democracia perversa, ¢ tantas outras questées sociais e politicas que se reproduzem nas escolas como apontam as teorias critico-reprodutivistas. (KNELLER, 1966; ARANHA 1989). E nesse sentido que Sartre (2012) nos mostra que toda ago tem como condigdo indispensivel a liberdade de quem atua. Entio, agir é modificar a realidade visando um fim projetado pelo qual se quer alcangar. A realidade humana é parte do que o individuo escolhe, portanto, nada vem de fora ou de dentro, © homem esti abandonado ¢ sem ajuda em sua necessidade de construir a si mesmo até os minimos detalhes. E pela liberdade de escolher a ago que o homem cria o seu proprio caminho através de um langar-se no futuro, em busca de realizar seus projetos de felicidade. E Sartre insiste: A consequéncia essencial de nossas observagies anteriores & a de que o homem, cstando condenado @ ser livre, carrega nos ombros peso do mundo intciro: & responsével pelo mundo © por si mesmo enquanto mancira de scr. Tomamos palavra “responssbilidade” em scu sentido corriqueiro de “consciéncia” (de) ser autor incontestivel de um acontecimento ou de um objeto, Nesse sentido responssbilidade do Pare-si, j8 que o Para-si € aquele que se faz ser (..) 0 Para-si dleve assumi-la [a responsabilidad] com a consciéncia orgulhosa de ser os cu autor, pois os piores inconvenientes ou as piores ameagas que prometem atingir minha pessoa 36 adguirem sentido pelo projeto; ¢ clas aparceem sabre © fundo de ccomprometimento que eu sou, Portanto, éinsensato pensar em qucixar-se, pois nada alheio determinou aquilo que sentimos, vivemos ou somos. (SARTRE, 2012, p. 678) Como 0 existencialismo traz a reflexdo sobre a existéncia e sua condigao, se afirma aqui que o homem, ao se reconhecer como um ser de liberdade, podera desenvolver uma conscincia do agir ao superar o platé da dispersdo existencial, Esta se trata de uma forma em Soe crane wre ory TL enn) Ererncory que 0 individuo se encontra no mundo sem a consciéncia dos condicionamentos exteriores 4s suas escolhas ¢ ages (ABBAGNANO, 2006). Com efeito, a forma que 0 homem encontra para evitar a dispersio é o estudo da prépria condigdo existencial, enquanto um ser que é livre em um mundo cheio de possibilidades. Aqui, entio, podemos perceber a relevancia do ensino de existencialismo na educago basica, a fim de criar as condigdes de possibilidades para que os estudantes desenvolvam a autorreflexdo sobre o mundo em que vivem e sobre si mesmo em vista de um cuidado de si, que afaste a dispersio e traga a autenticidade. ‘Uma educagio com bases existencialistas vai contra uma forma de educagio escolar padronizada, Concorda-se que se deva-se oferecer aos estudantes uma igualdade de oportunidades, entretanto, isso nio justifica que todas as criangas possuam e devam seguir os mesmos ritmos escolares. Deve-se, portanto, permitir maior variedade de métodos e de ‘onganizages educativas, porque uma educago padronizada tende a obstruir 0 desenvolvimento dos individuos, pois a finalidade da educagio deve, a principio, ser 0 proprio individuo. © individuo ao surgir no mundo, esté imerso em um contexto de aprendizado ¢ ensinamentos no qual a escola tem grande importincia, mas “para se esquivar dos ditames recebidos, terd de ir contra si-mesmo, pois o seu modo de ser e estar no mundo faz parte destas aprendizagens.” (FARIAS, 2013, p.7). Dessa forma, evita-se, também, a concretizagio daquilo que Heidegger chamou de modo de ser impréprio ou impessoal inauténtico (ANDRADE, 2008). Por outro lado, a filosofia da existéncia nao abriga o egofsmo, porque buscar de forma egofsta a nossa liberdade, sem atentar para os efeitos que essa tomada de posigdo possa causar em outros, equivale a transgredir o proprio significado de liberdade. Sendo a liberdade, a base da moralidade, nao se espera que o home abrace todos os padrdes morais estabelecidos, sem que cuide de seus afetos intimos e pessoais. Assim, em uma aula de filosofia existencial, 0 professor ndo pode impor seus valores, mas, apenas, apresentar os prinefpios ¢ razdes que a fundamentam, permitindo que os estudantes tomem suas proprias decisdes. No se trata de defender uma anarquia moral, mas enfatizar que os alunos nfo podem continuar a ser “conduzidos” pelo professor e pelos principios, supostamente etemos, estabelecidos socialmente, (KNELLER, 1966). Cabe ao professor estimular entre os estudantes, 0 cuidado de sie, ao mesmo tempo, 0 amadurecimento da ideia de que todos somos responsiveis pelo que fazemos e nao é possivel escapar das conseqiiéneias de nossos atos, pois essas so resultados inevitaveis da liberdade de escolha, incluindo-se ai, as escolhas impensadas. E por meio do cuidado que 0 homem da sentido aos seus projetos de felicidade, Destarte, uma educagdo escolar, para cuidar de seus ‘educandos, precisa levar em consideragdo as singularidades de cada individuo e criar as condigdes de possibilidade para sua realizago no sentido formar seres mais auténticos ¢ livres (KNELLER, 1966; FARIAS, 2013). Consideragies finais Soe ee ee ‘Ao se falar de ensino de filosofia existencial na educagao bisica é preciso abordar os contetidos trabalhados em sala de aula. Assim, devemos nos perguntar: qual conteiido especifico, dentro do eixo existencialista, deva ser ensinado? Nesse sentido, concordamos em trazer a contribuigio da pedagogia dita progressista, pois nessa concepgio, a escola entendida como local de aprendizado contetidos, os quais devem ser ensinados de forma critica e socializadora, com o intuito de servirem democraticamente a toda sociedade (ARANHA, 1989; SAVIANI, 2001) Os contetidos programaticos ndo podem ser “matérias estanques”, mas instrumentos de realizagio do individuo que vive em sociedade. Assim, impdem-se os limites do estudo dirigido, pois o estudante, pelo exercicio de sua liberdade, escolhe o que efetivamente aprende, tendo em vista que faz sentido pra si mesmo, pois, em iltima instincia, é ele quem decide sobre o seu proprio caminho. Por esse mesmo motive, concorda-se que o método dialégico & 0 que melhor se adequa para o ensino de filosofia pois, & pelo didlogo que se problematiza e que se gera reflexio e se contribui para a formagio de conceitos. (MESQUIDA et al, 2003; ASPIS E GALLO, 2009). © professor de filosofia, antes de tudo, deve ser filésofo e deve ter a habilidade para refletir, indagar ¢ discutir sobre todos os contetidos e temas filoséficos a serem ensinados na escola, ensino do existencialismo pode trazer aos nossos estudantes a consciéneia de que somos seres langados no mundo e que precisamos dar respostas aos anseios de nossas existéncias, buscando a autenticidade. Essa percepgdo implica que nao se possa deixar-se perder na coletividade ou na dispersio, O ensino dos conteiidos da filosofia existencial na escola pode ajudar ao educando a participar de momentos nos quais a reflexdo sobre a sua maneira de estar no mundo seja levada em consideragdo, Dessa forma, ele pode vir a entender a si mesmo como alguém com capacidade para assumir as responsabilidades de sua existéncia, (MESQUIDA et al, 2003). Uma educagio que tenha a capacidade de por os estudantes a refletir sobre sua existéncia e condigiio no mundo e sobre seus projetos de vida, os ajudaré no processo de autoconhecimento, possibilitando a construgao de uma vida auténtica, guiada pela liberdade. Entende-se que a escola é um local privilegiado para combater a tendéncia conformista, fortemente marcada socialmente, Nesse aspecto, 0 ensino de filosofia da existéncia pode contribuir para o enriquecimento das pessoas, de suas formagGes e da criagdo de suas proprias esséncias. Submetido em abril de 2014. Aprovado para publicagio em maio de 2014. REFERENCIAS ABBAGNANO, Nicola. Histéria da filosofia. Lisboa, Portugal: Presenga, 1984. Soe ory crane wre ret Introdugio ao existencialismo. Sdo Paulo: Martins Fontes, 2006. ANDRADE, Pedro Duarte de. Heidegger Educador. Aprender - Cad. de Filosofia e Psic. da Educago Vitéria da Conquista Ano VI n, 10 p. 57-72 2008. ARANIHIA, Maria Lucia de Arruda. Filosofia da educagao. Sio Paulo: Moderna, 1989. ASPIS, Renata Lima; GALLO, Silvio. Ensinar filosofia: um livro para professores. Sao Paulo: Atta Midia e Educagao, 2009. BOLLNOW, Otto Friedrich. Pedagogia e filosofia da © formas instiveis da educagio. Rio de Janeiro: Vozes, 1971 um ensaio sobre BRASIL. Ministério da Educagio, Secretaria da Educagio Médica e Tecnolégica. Pardmetros curriculares nacion: tecnologias. Brasilia: MEC, 2000. (PCN+): Ciéneias Humanas e suas Lei de Diretrizes ¢ Bases da Educagao Nacional n° 9394/96, BURSTOW, Bonnie. A filosofia sartreana como fundamento da educagdo. Educagaio & Sociedade, ano XXI, n° 70, Abril/00. CHAU, Marilena. Kierkegaard. In: Os Pensadores. Sao Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 9-24, FARIAS, Maria do Rosario Teles de. Heidegger em Ser e Tempo: Didlogos com a Educagdo Escolar. In: Congreso de Fenomenologia Da Regitio Centro-Oeste. n° 5, 2013. Goi Fenomenologia, Cultura e Formagio Humana. Goi NEPEFE/FE-UFG, 2013. P. 140-150. ia. Anai FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 5* ed. Petropolis: Vozes, 2011 HUISMAN, Denis. Histéria do existencialismo. Bauru: EDUSC, 2001 JAPIASSU, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionario basico de filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. Ses peer KNELLER, George F. Introdugio filosofia da educagao. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1966. KIERKEGAARD, Siren Aabye, Diario de um sedutor; Temor e tremor; O desespero humano, In.: Os Pensadores, So Paulo: Abril Cultural: 1979. LYRA, Edgar. Heidegger e a Educagio, Aprender - Cad. de ia da Conquista Ano VI n. 10 p. 33-55, 2008. sofia e Psic. da Educagao MESQUIDA et. al. Prolegémenos para uma pritica educativa existencialista, Revista ago. 2003. Didlogo Educacional, Curitiba, v. 4, n.9, p.115-120, m MOREIRA, Joselito Adriano. O homem existencialista em Sartre. In: Ensaios: nosso modo de pensar. Mariana: Dom Vigoso, 2003 NIETZSCHE, Friedrich. La gaya ciencia. Madrid: A. L. Mateos S.A. 1994, PASCAL, Blaise. Pensamentos. In: Os Pensadores. Sio Paulo: Nova Cultural, 1999, ROVIGHI, Sofia Vanni. Histé Loyola, 2001 da filosofia contemporanea. Sao Paulo: Edigdes SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Petropolis: Vozes, 2012. O ser eo nada. 21" ed. Petropolis: Vozes, 2012. SAVIANI, Dermeval. Pedagogia hist6rico-critica: primeiras aproximagdes. Sdo Paulo: Cortez, 2011 Ses a pedago: PARTE II -FILOSOFIA: AUTORES E CONCEITOS Miguel de Unamuno, a educagio ea pedagogia J. M. de Barros Dias 1 Nota introdutéria Na vasta, € a um tempo problemitica, obra literdria ¢ ensafstica de Miguel de Unamuno hi um tinico livro que, desde © seu titulo, aborda explicitamente 0 tema pedagégico. Trata-se de Amor y Pedagogia, publicado em 1902, Em vida do seu autor teve uma segunda edigdo, prefaciada pelo proprio Don Miguel. Hoje em dia o livro integra a colecgiio “Austral”, da madrilena editora Espasa-Calpe, na qual tem sido repetidamente editado. A Unamuno ~ professor universitirio desde 1891, reitor da Universidade salmantina entre 1900 ¢ 1914, ¢ entre 1931 © 1934, rector vitalicio de 1934 até 1936, e presidente do Consejo de Instruccién Piiblica, na II Repiblica ~, 0 tema da educagio no Ihe podia ser alheio. Cabe dizer que educar 0 povo, fazer obra demagégica, mais do que pedagégica, foi a pedra de toque da actividade profissional de Unamuno, ¢ sobretudo, da sua actividade vital, realizada de maneira consciente, com s6lidas bases filos6ficas. 2 Amor y Pedagogia, proposta contra as educagdes positivista ¢ sociologista de finais do século XIX/comegos do século XX Em finais do século XIX/comegos do século XX © ambiente intelectual espanhol estava saturado de “pedagogia”®’. Depois do desastre colonial de 1898 — € mesmo antes ~ houve uma imensa febre “pedagégica”, dado que “de educacién y pro educacién hablaron politicos, economistas, sociélogos, hombres de ciencia, literatos, periodistas, agricultores, comerciantes”**, Unamuno, em Amor y Pedagogia, destaca os exageros “pedaggicos” desse tempo. Numa primeira leitura do livro, 0 “amor” e a “pedagogia” ndo tém pontos de contacto: o Espirito ~ 0 homem ~ representado por Avito Carrascal, ¢ a mulher com quem se casou indutivamente, Marina, que simboliza a Matéria, geraram 0 sujeito a educar, Apolodoro, que ¢ um ente predestinado: sera génio segundo os preceitos da sociologia e de todo o progresso de comegos do século; seré, desde a primeira hora, um infeliz que contactaré com a Ciéneia, ™Doutor em Filosofia pela Universidade de Evora. Professor Associado da Universidade de Evora. E mail: barros.dias@hotmail.com Cf. YVONNE TURIN (Prélogo de Pedro Lain Entralgo), La Educacién y la Bscuela en Espaia de 1874 1902. Liberalismo y Tradicién, Madrid Aguilar, 1967, tad. do francés por Josefa Hernindez Alfonso, pp. 68 2SMARIA DOLORES GOMEZ MOLLEDA (Prélogo de Vicente Palacio Atard), Los Reformadores de la Espafia Contemporiinea, 1 reimp., Madrid, Consejo Superior de Investigaciones Cientificas, 1981, p. 371 ce es ory or doseada pela Forma — 0 seu pai — em quantidades adequadas ao seu desenvolvimento, que a Matéria — a sua mae — subvertera ao inculcar-Ihe os preceitos da educagdo caseira tradicional, subordinada aos carinhos matemais?”. Eserita depois de Paz en la Guerra**, Amor y Pedagogia é uma obra na qual Unamuno faz. transitar 0 tratamento temético da dimensio colectiva para a esfera pessoal, em que 0 autor nos apresenta a vida inauténtica, concebida e consumida a luz de uma ideia que tudo submete a si mesma — a pedagogia positiva tem que criar o ser humano. Pela tipicidade no tratamento dos personagens, Amor y Pedagogia & um livro precursor no contexto da obra ‘unamuniana.*? Entretanto, se se tém em considerago as propostas de Buenaventura Delgado sugeridas na revista Perspectivas Pedagégicas, a origi~nalidade da obra unamuniana reduz-se consideravelmente. Tendo por base a comparagio de Amor y Pedagogia com o livro de Paul Bourget, Le Disciple ~ publicado treze anos antes -, a0 ler 0 texto de Buenaventura Delgado podemos supor que Unamuno teria colhido do autor francés onze elementos tépicos para a coneretizagao do seu projecto literirio.*” 5™ Mientras el padre se encierra con el filésofo, enciérrase la madre con el hijo y alli es cl besuquear al suefio de su sueio ~ Mama, di querido ~ Querido! jquerido mio! jrico! jrey de la casa! jeielo! ;querido! jquerido...! Luis, Luisito, Luisito, mi Luis... Porque al bautizarle hizo le pusieran Luis, el nombre de su abuelo materno, del padre de Marina en vez de aquel feo Apolodoro, es Luis cl nombre prohibido, cl vergonzante, el intimo, — Luis, mi Luis, Luis mio, Luisito, mi Luisito — y se lo come a besos. Le apricta la boca contra la boca sacudiendo la cabeza ala vez, la separa luego de pronto, quédasele mirando un rato y gritando «Luis! imi Luisto!», vuelve a unir boca 8 boca eon ahinco, = ;Di, mama, me quieres? ~ Mucho, mucho, mucho, Luisito, mi Luis, mucho, mucho, mucho, sol, cielo, mi Luis, (Luisite.! jLais!", MIGUEL DE UNAMUNO, Amor y Pedagogia, Barcelona, Imprenta Henrich y Compaiia, Editors, 1902, 267 (1) pp. OC I, pp. 343-34 Doravante citaremos as Obras Completas acima referidas ~ e publicadas entre 1966 e 1971, em nove Tornos ~ por intermédio da sigla OC, seguida da indicago do Tomo, depois de referirmos a primeira publicagéo em que © texto citado apareceu. Cf. MIGUEL DE UNAMUNO, Paz en la Guerra, Madeid, Ed. Fernando Fe, 1897, OC, Il, pp. 87-301 5*Unamuno avanza lentamente hacia su tema verdadero, cl hombre mismo, el hombre de came y hueso; desde Ja comunidad social, desde la vida cotidiana, impersonal, pasa a una vida determinada extrinsecamente por un propésito, por una pasién, por una mania, si se quiere. Don Avito esté ya definido esqueméticamente en la primera pégina de la novela, individualizado, pero no personalizado, puesto a actuar en virtud de un principio extemo previamente introducido en el relato; no hay esa situacién radical, ese grito desde el cual se puede ddesnudar el alma del personaje, como pediri después Unamuno. Si acaso, la novela va tendiendo @ cllo; las péiginas finales van entrando en el mundo de lo personal y més entrafable; a la ficticia figura de Carrascal se le va superponiendo ~ mejor dicho, le va brotando de dentro ~ un ser elemental, convanleciente de la pedagogia, que empieza a tener alguna realidad intima y direca.”, JULIAN MARIAS (Introdugio de Jusn Lépez-Morillas), Miguel de Unamuno, 2* ed,, Madrid, Espasa-Calpe, 1980, p. 120. “fo estes os pontos de contacto entre Le Disciple e Amor y Pedagogia: a) veneragio do pensador ciéneia (trata-se de um materalista incrédulo), & qual dedicou os seus melhores anos de vida; b) o pensador existe para um mundo abstracto, afastado da realidade, ¢ acredita intimamente no auto-dominio dos institos; Soe FT| Miquel de Unamuno, a educagio e a pedago: problema das influéncias, apontado por Buenaventura Delgado em relagdo a Amor y Pedagogia, tinha sido colocado a Unamuno por alturas da saida a piblico de En Torno al Casticismo*, Clarin, no jomal El Imparcial, rectiminava Unamuno com estas palavras: “No cita a nadie; todo lo dice como si aquellas novedades, que lo serin para muchos, se le hubieran ocurrido a él solo, 0 como si no supiera él que ya han sostenido cosas parecidas otros”; Unamuno, ferido com a critica, esclarece os leitores: “{Y por qué no hace citas Unamuno? Primero y principal, porque esas novedades, si no son de el, no son tampoco de A. © B. oC, sino que flotan en el ambiente intelectual modemo, y no recuerda haberlas leido aqui o alli, sino que han surgido de sus lecturas todas, porque nada tiene de erudito, aunque tenga de sabio, porque lee poco (es la verdad), aunque ley mucho™®. Estes pontos de vista foram sublinhados anos mais tarde no ensaio “Pirandello y Yo”, enviado para Buenos Aires Unamuno acredita que as verdades, uma vez pronunciadas, sio propriedade universal. E mister seu, como 0 & de todos os pensadores, utilizé-las sempre que sirvam os seus propésitos. Mesmo que Amor y Pedagogia seja a versio unamuniana de Le Disciple, quando se analisa a obra em profundidade, vé-se que © autor pés nela elementos genuinos as suas teorizagdes educacionais. Neste livro — como na obra — “pedagogia” & sinénimo do cientificismo finissecular aplicado educagio, que Unamuno combate com vigor depois da crise religiosa de 1897, que colocou definitivamente em xeque a sua adesio inicial ao positivismo. Para ele, a “pedagogia” que subjaz a Amor y Pedagogia & um attificio ¢ um perigo, coarctador da liberdade que radica na imaginagio, © fundamento da educagdo, em Unamuno*®, A “pedagogia” criticada em Amor y Pedagogia ¢, também, a obra do fundador da ©) a8 teorias do pensador slo peregrinas; 4) a vida sentimental do pensador é, para si proprio, motivo de preocupasio; @) 0 pensador tem uma influgncia nefasta na educagao do jovern; 4 0 diseipulo encanta-se pelo artificial (a literatura); 2) diseipulo converte-se em sedutor; h) anoiva do discipulo descobre ser, para ele, um objecto de experiéncias; 4) o fim existencial do diseipulo € trigico: suicida-se; 3) averificagio da realidade leva 0 pensador a assist derroeada das suas terias; 1) 0 pensador regressa is suas oragSes juvenis,esquecidas, uma vez conhecida a morte do scu discipul. Cf. BUENAVENTURA DELGADO, “*Amor y Pedagogia’, de Miguel de Unamuno y ‘Le Disciple’ de Paul Bourget", Perspectivas Pedag6gicas, Barcelona, Universidad de Barcelona ~ Facultad de Filosofia y Letras, Vol. VI, no 21/22, 1968, pp. 25-36. {Cf MIGUEL DE UNAMUNO, En Tomo al Casticismo, La Espafia Moderna, Madrid, H-I-IV-V-VI, 1895; Barcelona, Lépez, 1902, OC, I, pp. 773-869. “.CLARIN, El Imparcial, Madrid, apud Unamuno, “Carta a Clarin”, Salamanca, 9.V.1900, in MIGUEL DE UNAMUNO (Prélogo de Julién Marias), Obras Selectas, 62 ed., Madrid, Editorial Biblioteca Nueva, 1977, p. 953. Ipidem. “Es un fendmeno curioso y que se ha dado muchas veces en la historia de la literatura, del arte de la ciencia 0 de a filosofia, et que dos espirits, sin conocerse ni conover sus sendas obras, sin ponerse en relacién el uno con el otto, hayan perseguido un mismo camino y hayan tramado analogas concepcioncs o Hlegado @ los mismos resultados. Diriase que es algo que flota en el ambiente. © mejor, algo que late en las profundidades de la historia y que busca quien lo revele.”, MIGUEL DE UNAMUNO, “Pirandello y Yo", La Nacién, Buenos Aires, 15.VIl 1923, OC, VIII p. SOL “Vide nota 45, ina Soe modema pedagogia social. Referimo-nos ao livro do neokantiano Paul Natorp, Sozial Pédagogik, publicado em 1899, e no qual achamos uma comunhio matricial entre a origem da vontade racional ¢ a da comunidade; se toda a educagdo 6, para Paul Natorp, social, é-o de igual modo, individual, uma vez que o homem s6 se faz homem na sociedade. A critica de Unamuno ao filosofo ¢ pedagogo alemao foi apontada por Joaquin Garcia Carrasco‘ que, em nosso entender, concebe 0 mundo educacional unamuniano demasiado a la lettre de Amor y Pedagogia.” Em Amor y Pedagogia, 0 candidato a génio, Apolodoro, como os restantes frutos da “pedagogia”, ndo é livre. Nunca o foi: desde a sua fecundagio o pai segue preceitos rigorosos.** © mundo em que Apolodoro vive, asséptico, levé-lo-4 ao preceptor, Fulgencio Entrambosmares, que, fora da escola, foi encarregado pelo pai de ministrar-the a Educagdo. Céptico em relagdo a si proprio, porque é personagem que desvela a faceta mais dramética do espirito unamuniano, ie, a problematizagdo da crenga na imortalidade, Fulgencio. Entrambosmares é convincente ao advertir 0 aluno, o seu aluno, dos perigos do mundo, e ao prever a eventualidade de, com “una jeringuilla especial para inocular en los sesos todos un suero de cuatro paradojas, tres embolismos y una utopia”®®, poder salvar a existéncia do sujeito e a existéncia colectiva dos absurdos que povoam a actualidade. Na fuga do mundo da vida para o mundo dos livros, é 0 pedagogo quem esti encarregado de preparar a crianga para a vontade de ter vontades!, Este trajecto pedagégico ¢ atroador. Em primeiro lugar, o é esterilizado dos virus que fazem com que os seres se adaptem melhor a0 meio, integrando-os nos seus mecanismos biologicos de protecgdo. Em segundo lugar, impossibilitado de dizer no em presenga do “CE JOAQUIN GARCIA CARRASCO, La Ciencia de Ia Educacién. Pedagogos, :Pera Qué?, Madrid, Santillana, $.A. de Ediciones, 1983, p. 163. “Veja-se, a este propésito, a orientagdo de todo o capitulo “La Mania Pedagégica en Miguel de Unamuno”, da cobra supra citada, Cf Id, ib, pp. 162-181, “Hay que dejar abierta de noche la ventana del cuarto, por donde entran las Nieblas exteriores y el aire fresco, rno hay que espumar el puchero, hay que sumergir @ cada paso los cubiertos en esa cubeta con solucién de sublimado corrosivo que esté sobre la mesa, y es extraiios vasos, graduados, y con su rétulo H20, y el salero con su CINa, y ese retrete biscula.”, MIGUEL DE UNAMUNO, Amor y Pedagogfa, OC, II, pp. 326-327, Em comegos do século XX, como nos nossos dias, & uma situago privilegiada, © que esboga a relagdo educativa com duas pessoas: “um professor” ~ “um aluno”, 6 no campo teérico, como o de Jean-Jacques Rousscau em Emile ou de IEdueation, ou aqui mesmo, em Amor y Pedagogia, e fora do campo educacional sistémico, € possivel falar de uma diade com duas eriaturas, ‘unicamente duas, em situago educativa S°MIIGUEL DE UNAMUNO, Amor y Pedagogia, OC, I, p. 360. st Vamos, Apolodoro, escribe atu tia, —No sé como decirle eso, papa — Como quieras, hijo mio, ~ Es que no sé emo querer. iQué no sabe cémo querer... Oh, la pedagogia no es tan fei como ereen muchos!.”, Id, ib. p. 353. Soe ory crete enn Te absoluto da Ciéneia, Apolodoro ~ tal como todos os Apolodoros do mundo ~ é um ser que esta predestinado, Como a Ciéncia reivindica factos, e nada mais do que factos, é necessério, & crianga “pedagégica”, no estudo que efectua da Natureza, por “notas marginales ilustraciones, sefialando a la vez con lapiz rojo los més notable pasajes”S®. Ainda neste contexto hd a reter outra recomendago dar de Fulgencio Entrambosmares: “Lépiz. rojo, mucho lépiz. rojo, y como todo es en realidad notable, lo mejor seria dar de rojo al libro todo”, segreda o filésofo-pedagogo, contaminado pela mania erudita que inunda o ambiente cultural da época. No que conceme erudigdo podemos ler, no ensaio “Primera Vision Europea del Japon”, um forte protesto de Unamuno. O autor escreve contra a erudigao e a investigagao profissionais, quando nos diz que “Feman Méndez, Pinto no era, para bien de la literatura portu-guesa, eso que se llama un erudito ni un investigador profesional, casi un espia como si dijéramos. Y por eso acert6 con la verdad sustan-vial esencial, con la que casi nunca el espia, el infame mercenario de la investigacién malévola, acierta” . Segundo Unamuno, ninguém tem a capacidade de prejudicar mais o seu amo que o investigador-espio, pois “el orgullo, y el peor orgullo, el delegado y ordenado, el orgullo de ordenanza, no el permite ver claro. Las muestras de cortesia interpreta por rendimientos de admiracién © de temor. ;Desdichado el tirano que obra por informes de espias!”5%, Atentemos nas palavras de Unamuno. Os eruditos, que preferem a historia da filosofia 4 filosofia, os criticos de Hegel ao Hegel criador, nunca acertam com a “verdad sustancial”ss, Os enuditos mergulham nas aparéncias do passado sem se preocuparem com os fluxos vitais do presente: confrontados com um génio declaram-no inoportuno, na medida em que “es ‘molestan los cantos vivos de los poetas vivos, son pobres desgraciados a quienes molestan que entren personas vivas, de came y sangre, en el museo en que estén clasificando sus esqueletos. No tratan sino con éstos. ¥ como a los vivos no les ven el esqueleto porque la tierra de los siglos no les ha comido ain la carne”S* nao sabem classificé-los. Os eruditos nao saltam: saltitam de um presente muito pequeno para um passado que, para si préprios, & amplissimo. Os eruditos estdo atidos ao facto mais pequeno: Quando este se acha ameagado, todas 52d,, ib, p. 341 SThidem, S{Cf, MIGUEL DE UNAMUNO, “Primera Visién Europea del Japén", El Dis Gréfico, Barcelona, 2.IX.1914, 06, 1V, pp. 1337-1340. Id,, ib., p. 1339. “Ibidem. 71d, ib. p. 1337. SMIGUEL DE UNAMUNO, “Sobre la Erudicién y Ia Critica", La Espaita Moderna, Madrid, XII.1905, OC, I, p. 1270, Soe as suas investigagSes ficam comprometidas e, por isso, “hay que renunciar a toda una astantes escritores americanos; epistolografo impenitente, Unamuno também colaborou ingeniosa y acaso brillante teoria pacientemente elaborada”®?. Nao & com esta espécie de investigadores que a faceta dissociadora das Universidades — para utilizarmos 0 pensamento memorivel de Leonardo Coimbra® — pode evoluir. Em contraponto com as evidéncias do mundo dos factos, que admitem ser missfio da Ciéncia a catalogagao do mundo para devolvé-lo a Deus com um inventirio razoavel de tudo quanto existe, Unamuno propée a sua crenga na liberdade existencial, a0 aconselhar, em Amor y Pedagogia, pela voz interposta de Don Fulgencio: “Extra-vaga, hijo mio, extravaga cuanto puedas, que mas vale eso que vagar a secas. Los memos que llaman extravagante al projimo jeuinto darian por serlo! Que no te clasifiquen; haz como el zorro que con el jopo borra sus huellas; despistales. Sé ilogico a sus ojos hasta que renun~ciando a clasificarte se digan: es é1, Apolodoro Carrascal, especie iinica. Sé tu mismo, tinico ¢ insustituible”® 3 Defesa unamuniana de uma pedagogia para o homem conereto Podemos ler nas primeiras linhas de Del Sentimiento Tragico de la Vida... a defesa de um homem conereto, contra 0 “homem” definido por meio da afirmagio da sua racionalidade. Unamuno deseja escrever ¢ falar para “el hombre de carne y hueso, el que 1d, ib., p. 1268. © homem de génio no é s6 aquele que aproxima c associa ideias ou estados psiquicos aparentemente alheios entre si; é, sobretudo ¢ essencialmente, aquele que dissocia e afasta certos estados psiquicos, vencendo urna coesio, fone de toda a heranca da raga. Nao foi, com efeito, menos genial a dissociagio dos estados psiquicos referentes & nossa posislo sobre o globo terrestre ¢ a0 nosso sentido de orientagdo, permitindo a concepeo dos antipodas, ou a associago newto™niana da queda dos graves com a aceleragio centripeta da lua [A forga de inércia ou cocsio das associagSes & a grande forga conservantista das sociedades, como uma meméria social implicita, hipnética, parente dos instintos animais. Pertence & massa ignara. A forga de dissociagéo e criagdo de novas associagSes pertence, singular ¢ esporadica~mente, aos génios; perience sistematicamente 30s organismos intelectuais superiores, que sio a pane licida ¢ criadora da consci coleetiva. Nesses organismos contam, desde o século XII, as Universidades.", LEONARDO COIMBRA, “A Questo Universitaria (Discurso Parlamentar)”, in (SclecgGo, coordenagio ¢ revisio de Sant’Anna Dionisio), Obras, Port, Lello & Irmo, 1983, Vol. I, pp. 608-608. © passo célebre de Laplace, no Ensaio Filoséfico sobre as probabilidades foi repe-tidamente referido ou citado desde o principio do século XIX aos nossos dias. Transcrevemo-Io na clegante versio dada por Antero de Quental no eélebre escrito Tendéncias Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX: ‘Uma inteligéneia que, num momento dado, conhecesse todas as forgas que animam a natureza, ¢ a situagdo respectiva dos seres que a compdem, se além disso fosse assaz poderosa para submeter esses dados a andlise, abrangeria na mesma formula os movimentos dos maiores corpos do universo e os dos étomos os mais ténues: nada para ela seria incerto, ¢ futuro como passado scria a seus olhos presente. © espirito humano oferece na perfeigdo que conseguiu dar a astronomia um leve esbogo desta inteligéneia. As suas desco~bertas em mecéiniea e em geometria, conjuntamente com a da gravidade, tomaram-Ihe possivel compreender nas mesmas expresses analiticas os estados passados e futuros do sistema do mundo. Aplicando © mesmo método & outros objectos dos seus conhecimentos, conseguiu reduzir a leis gerais os fendmenos observados, e prever aqueles que em dadas circunsténcias se devem produzir.”, JOSE MARINHO, Verdade, Condigio ¢ Destino no Pensamento Portugués Contemporineo, Porto, Lello & Irmao, 1976, pp. 290-291. MIGUEL DE UNAMUNO, Amor y Pedagogia, OC, II, p. 361 Cf, MIGUEL DE UNAMUNO, Del Sentimiento Trigico de la Vida..., OC, VIL, p. 109. Soe ory crete enn Te nace, sufre y muere — sobre todo muere ~ el que come, y bebe, y juega, y duerme, y piensa, y quiere" ¢ que é, portanto, “el hombre que se ve y a quien se oye, el hermano, el verdadero hermano”, Em face da pedagogia que tiraniza, Unamuno defende a educagdo que liberta®*, Sem preocupar-se com sinteses magistrais, indiciadoras do espirito de sistema, Unamuno debate se com 0 conatus essendi — esforgo de preservagao do ser de cada ser ~ assimilado de Baruch Espinosa‘, para ultrapassé-lo**, na mira de querer serlo todo, como diz Frangois Meyer®. No desejo de conservar o seu ser, o ser humano tem que conservar-se e intentar ampliar-se: a luta ontolégica do homem Espinosa, do homem Unamuno, de todos os homens que nascem € vivem lutando, consiste no combate sem tréguas contra a morte, que & 0 signo da nossa finitude — apesar de o ser humano querer 0 infinito. Relativamente & articulagdo entre a teleologia e a técnica pedagdgicas, ao escrever a Manuel Galvez, que Ihe tinha enviado um exemplar de La Maestra Normal (Vida de Provincia), concebido na linha de Amor y Pedagogia, Unamuno diz, ao seu amigo que “es igual: igual plaga de pedanteria, No quieren entender que lo que importa es lo que se ensefia y no el como. La pedagogia esa no sino una coleccién de moldes para quesos, de todas formas y tamafios como no tienen leche ni quajo, no hacen queso. {La supersticién del método!””. Para Unamuno nao ¢ 0 método que determina aquilo que deve ser ensinado: é em fungdo dos tbidem, “STbidem. ‘sAvito Carrascal terd a oportunidade de encontrat-se com outro ser nivolesco, Augusto Pérez, a quem dird, uunamunescamente, que “sélo he penetrado en el misterio de la vida cuando en las noches terribles que sucedieron al suiciio de mi Apolodoro reclinsba mi cabeza en el regazo de ela, de la madre, y loraba, Hlorab, lloraba, Y ella, paséndome dulcemente la mano por la cabeza, me decia: *;Pobre hijo mio!, jpobre hijo mio!”.", MIGUEL DE UNAMUNO, Niebla, Madgid, Ed. Renacimicnto, 1914, 313 pp., OC, Il, pp. 599-600. ‘La proposicién sexta de la parte Ill de su Etica, dice: unaquaeque res, quantum in se est, in suo esse perseverare conatur; es decir, cada cosa, en cuanto es en si se esfuerza por perseverar en su ser. Cada cosa, en cuanto es en si, es decir, en cuanto sustancia, va que, segin él, sustancia es id quod in se est et per se coneipitu, lo que es por si y por si se concibe.", MIGUEL DE UNAMUNO, Del Sentimiento Trigico de la Vida... Madrid, Euitorial Renacimiento, s, d. [1913], 320 (1) pp., OC, VIL, p. 112. ‘La esencia de un ser no es slo el empefio en persistir por siempre, como nos ensefié Spinoza, sino, ademés, el empefio por universalizarse, es el hambre y sed de etemnidad y de infinitud, Todo ser creado tiende no s6lo a conservarse en si, sino a perpetuarse, y, ademis a invadir a todos Tos otros, a ser Tos otros sin dejar de ser él, a ‘ensanchar sus linderos al infinito pero sin romperlos.”, Id., ib., p. 232. Cf. FRANCOIS MEYER, La Ontologia de Miguel de Unamuno, Madrid, Editorial Credos, 1962, trad. do fane8s por Cesireo Goicoechea, p23 ¢ ses Carta de Unamuno a Manuel Galvez, Salamanca, 6.1V.1915, in MANUEL GARCIA BLANCO, América y Unamuno, Madrid, Editorial Credos, 1964, pp. 34-35, Unamuno reafirma o exposto a Manuel Galvez numa carta escrita a Marcelo Rivas Mateos: “La pedagogia es a modo de una coleccién de molds de quesos de todas formas y tamaios. Mas como no hay leche, leche de intuicién, no es posible hacer quesos.”, carta de Unamuno # Marcelo Rivas Mateos, Salamanca, 1.1918, in (Edigdo de Laureano Robles), Epistolario Inédito, Madeid, Espasa-Calpe, 1991, Vol. II (1915-1936). p. 63. Soe fins que se esclarecem 0 meios educativos. De acordo com uma carta escrita a Carlos Vaz Ferreira, um filésofo preocupado com questdes educacionais Unamuno afirma: “Estoy harto de decir y repetir a los maestros que lo importante no es precisamente como debe ensefiarse sino qué lo que se debe ensefiar y qué no, Del qué sale el cémo mucho mejor que del cémo el que" La Maestra Normal (Vida de Provincia) suscita em Unamuno um conjunto de consideragdes sobre os exageros do professorado do seu tempo, convertido em casta ~ a semelhanga do sacerdécio e dos militares, O nosso autor considera que “pueda llegar dia en que frente al magisterio, que se llama a si mismo, con su caracteristica pedanteria, sacerdocio de la cultura, pueda surgir un movimiento antipedagogista en el que entren gentes muy amantes de la cultura y de la educacién y de la ensefianza””?, visto que “eso de que hay quienes saben bien una doctrina, pero no ensefiaria, es casi siempre una falsedad””, na medida em que, quando alguém afirma que “sabe algo, pero no sabe enseifarlo, 0 es que en realidad no Io sabe bien o no quiere enseftarlo. Y contra la falta de voluntad no sirve la pedagogia’”*, Citando Manuel Galvez, Unamuno declara que “con la invasién de los pedagogos y los primarios, verdaderos primarios, ya no se queria que el pais tuviese sabios, escritores, artistas, filésofos, humanistas; s6lo querian tener escueleros. {Escuelas y mas escuelas!, pedian los barbaros en coro, y combatian la creacién de nuevas universidades””®, As fungdes do professor ndo se limitam a escola, e aquele ndo pode almejar que esta seja 0 local da educagdo, que tem de ser de tipo altruista, em ordem a levar cada um a construgdo do seu Deus’ Para Unamuno, a educagdo, devendo realizar-se no exercicio da imaginagao”, tem uma ordem tripla de componentes: ¢ educagdo do cardcter, & exercitagio da modéstia, é exemplo de virtudes. E, também, aprendizagem do trabalho, na medida em que s6 ele possibilita aos sujeitos e as colectividades a imortalidade: na Peninsula Ibérica temos um exemplo a seguir no que concerne 4 moral da energia. Trata-se do povo 71Garta de Unamuno a Carlos Vaz Ferreira, Salamanca, 29.V.1907, in MANUEL GARCIA BLANCO, América y Unamuno, op. cit, p. 198 "MIGUEL DE UNAMUNO, “La Plaga del Normalismo”, La Nacién, Buenos Aires, 8.VL1915, OC, IV, pp. 985-986, Mid, ib. p- 987 ™“Ibidem. *SMANUEL GALVEZ, La Maestra Normal (Vida de Provincia), Buenos Aires, Nosotros, 1914, apud MIGUEL DE UNAMUNO, “La Plaga del Normalismo", OC, IV, p. 986 Cf, MIGUEL DE UNAMUNO, “La Plaga del Normalismo”, OC, IV, p. 990. Este aspecto € muito importante na teorizagio educacional de Unamuno, Na conferencia proferida no Teatro Cervantes, de Milaga, em 21.VIIL.1906, afirmou que “la imaginacién si es algo, es Is faculdad de crear imagenes, no de repetir las aprendidas de memoria, y es, ante todo, la faculdad de ver lo real en lo vivo, de volver a crearlo dentro nuestro. Y no sabemios imaginarnos lo mismo que vemos, volvero a crear, no sabemos dar espirituaidade al mundo sensible. Repetimos lo aprendido, com mis 0 menos graeejo, pero sin penetra en su esencia. Y asi sucede que lamamos poeta a uno que nada tiene de tal, a uno que lo sumo hace versos, como llamamos profesor al que nada profesa.”, MIGUEL DE UNAMUNO, OC, IX, p. 187. Soe ory crete enn Le basco’, No ambito da educagio do caricter Unamuno propde a similitude entre “instrugdo” & “educagdo”. O cidadao verdadeiro, consciente dos seus direitos, serd juiz, ¢ jamais verdugo. © nosso autor propde-nos, ndo a instrugdo do carvoeiro, que se faz ritualmente, mas a “instruceién de verdad”, que é, simultaneamente, exercicio de modéstia. Contririo a proliferagdo dos estabelecimentos confessionais de ensino, Unamuno pugna pelo ensino, nas escolas do Estado, da religido catélica — oficial em Espanha e que a maioria dos espanhéis diz professar —, na medida em que ela “ha influido y sigue influyendo en el modo de ser, de vivir, de pensar y de sentir del pueblo espafiol, tanto 0 més ~ ereyo que mucho més ~ que su lengua, su legislacién, su historia”®, Se cada espanhol deseja conhecer- se € conhecer 0 seu povo, Unamuno pergunta-se se “zhemos de desdeliar el estudio de ese elemento?”*), © sentido da resposta parece-nos ser claro, tanto mais que Unamuno eserevera numa das caitas que seriam incluidas em El Porvenir de Esparia’?, 0 seu espanto pelo facto de, no seu pais, ser “general la semi-ignorancia en cuanto al catolicismo y su esencia, aun entre los teélogos. La llamada fe implicita ha tomado un desarrollo que debe espantar a toda alma sinceramente cristiana”*’, Ao apelar implicitamente para o exemplo da sua educagdo juvenil, Unamuno defende ser grande a diferenga que existe entre um livre- pensador educado mais ou-menos religiosamente — ainda que esta educagdo se tenha sedimentado em formas impuras de religido — ¢ aqueles que foram educados de maneira irreligiosa. Apesar de, em Espanha, “pais que se dice cristiano no haya leido el Evangelio la inmensa mayoria de los hombres que por cultos se tienen”, é necessério, para a defesa da sua historia, levar as escolas o ensino da religido, que sera estudada e terd erédito idéntico a0 de qualquer disciplina de indole cientifica*’. Recordemos que, apesar de pugnar pelo ensino da religido nas escolas oficiais, Unamuno posiciona-se contra a Companhia de Jesus** CE IM. DE BARROS DIAS, Miguel de Unamuno: © Tema da “Hispanidad” © suas Implicagdes Educacionais, Evora, Universidade de Evora, 1990, pp 43-46 [texto policopiado. ‘MIGUEL DE UNAMUNO, “Educacién ¢ Instrucci6n”, Nuevo Mundo, Madrid, 611.1920, OC, V, p. 1138. ‘© MIGUEL DE UNAMUNO, “La Educacién (Prélogo a la Obra de Bunge, del Mismo Titulo)", La Espaiia Modema, Madrid, 1.1902, OC, I, p. 1017. "tpidem. "Cf, MIGUEL DE UNAMUNO, El Porvenir de Espaiia, Madrid, Editorial Renacimiento, 1912, OC, Il, pp. 635.677, Neste volume reine-se a correspondéncia trocada entre Angel Ganivet ¢ Unamuno, e tinha sido dada a conhocer em 1898, no dirio El Defensor de Granada, 1d, ib, p. 646 MUNAMUNO, “La Educacién (Prélogo a la Obra de Bunge, del Mismo Titulo)", OC, I, p. 1018. *SSegundo Yvonne Turin, em Unamuno “la religion doit ére étudiée comme la langue ou l'histoire de son pays. instruction religiewse, dans la perspective envisagée par le recteur de Salamangue, ne pas pour but la formation religieuse proprement dite, elle s'apparante ni plus ni moins & ce bain populaire qu'il recommande & tous, YVONNE TURIN, Miguel de Unamuno Universitaire, op. pp. 69-10. %Unamuno manifestou, a0 longo da sua vida, uma altitude teérica anti-jesuitica. km termos pedagégicos, segundo 0 autor basco, para os jesuitas 6 primordial o ensino da arte de falar em piblico com mestria. Cada disciplina tem “esa tendencia a hacer aprender a los nifios indices, no mas que indices de libros y de cosas. Un resumen de historia universal no es mis que el indice de una obra extensa. Todo se reduce a dar a los nifios Soe ory crete enn e as Escuelas del Ave Maria‘? criadas por Andrés Manjén em 1889. Por razdes muito diferentes, Unamuno nao valorard positivamente a experiéneia acrata da Escuela Moderna’* de Francisco Ferrer Guardia, fundada em Barcelona no ano de 1901. Con: jeragies finais As orientagdes teleolégicas dos modelos educacionais positivista, sociologista, dos jesuitas, de Andrés Manjén e de Francisco Ferrer colidem com a atitude filosofico- educacional de Unamuno, que submete ao livre exame todas as questdes de todos os temas, sem os antolhos cientificistas, a ingeréncia da teologia na educagio, as concesses 4 facilidade ea libertinagem educativa A atitude fundamental de Unamuno enquanto teorizador da educagio reflecte a sua personalidade angustiada e sedenta de liberdade responsavel. A teoria, que nasce da necessidade de lutar pela melhoria das condigdes educativas concretas, ilumina a pratica e nutre-se dela, Em vez da anemia teérica do pedagogo de laboratério temos, em Unamuno uma teorizagio vivenciada da educagdo, concebida para promover fecundagio ¢ a casilleros y etiquetas.”, UNAMUNO, “Conferencia en la Sociedad de Ciencias, de Malaga, el 23 de Agosto de 1906”, Conferencias Dadas en Malaga por Miguel de Unamuno, Malaga, La Ibérica, 1908, OC, IX, p. 206. A pedagogia jesuitica, anota Unamuno, resume-se ao aforismo: “In necessariis unitas, in dubiis libertas, in omnia [sie] caritas.", MIGUEL DE UNAMUNO, “La Educacién Jesuitica”, La Nacién, Buenos Aires, 30,VIIL1912, reproduzido em Repertorio Americano, San José de Costa Rica, 30.VI. 1921,0C, IX, p. 1105. ‘Também referido cm La Agonia del Cristianismo, Madrid, Renascimiento, Compaiia Ibero-Americana de Publicaciones, 1931, trad, do francés pelo autor [L’Agonie du Christianisme, Paris, F, Reider, 1925], OC, VIL, p. 351 Sobre o anti-jesuitismo unamuniano, ef, MIGUEL DE UNAMUNO, “La Educacién Jesuitica”, OC, IX, pp. 1100-1105; “EI Habsburgianismo Jesuitico Espafol”, Espafia, Madrid, n° 174, 8,VIIL19I8, in VICENTE GONZALEZ MARTIN (Introdugdo, edigéo © notas de), Cronica Politica Espafiola (1915-1923), Salamanca, Ediciones Almar, 1977, pp. 175-179; “La Pata de la Rapose”, Repertorio Americano, San José de Costa Rica, 20.V1.1921, pp. 324-326; carta de Unamuno a Filiberto Villalobos, Paris, 21.XI.1924, in (Edigdo de Laureano Robles), Epistolario Inédito, op. cit, Vol. II (1915-1936), p. 149: La Agonia del Cristianismo, OC, VII, pp. 342 ¢ 350-352; “Cristo sin Cruz, Jesuitico”, 13 1V-1929, Cancio-nero, Diario Poético (Edigdo e prélogo de Frederico dde Onis), Buenos Aires, Editorial Losada, 1953, OC, VI, p. 1262. Aquela que pode considerar-se como @ réplica da Companhia de Jesus & Unamuno pertence a Gabriel Palau, Cf. GABRIEL PALAU, SJ, Por Donde Se Ve... Réplica de un Jesuita Espaiol a D. Miguel de Unamuno, 2. ed,, Buenos Aires, Libreria de A. Garcia Santos, 1932, 168 pp. "CT, MIGUEL DE UNAMUNO, “Conferencia en la Sociedad de Ciencias, de Malaga, el 23 de Agosto de 1906", OC, IX, pp. 205-206; carta de Unamuno a L. A. Santullano, Salamanca, 8.111913, in (Edigdo de Laureano Robles), Epistolario inédito, op. cit, Vol. I (1894-1914), p. 317; carta de Unamuno a Marcelo Rivas Mateos, Salamanca, I.1.1918, in (Edigdo de Laureano Robles), Epistolario Inédito, op. cit, Vol. II (1915-1936), p. 65, "Cf, carta de Unamuno a Gilberto Beccari, Salamanea, 22.XI, 1910, in VICENTE GONZALEZ MARTIN, La Caltura Italiana en Miguel de Unamuno, Salamanca, Ediciones Universidad de Salamanca, 1978, p. 308; “El Sentimiento de la Fortaleza”, La Nacién, Buenos Aires, 10.XII.1909, OC, I, p. 335; carta de Unamuno a Carlos Bratl, Salamanca, 20,X.1909, in (Figo de Laureano Robles), Kpistolario Inédito, op. cit., Vol. 1 (1894-1914), p. 268. Unamuno reconsiderou algumas das posigSes por si tomadas acerca do fundador da Escuela Moderna no artigo “Confesion de Culpa’, publicado em 1917. Cf, MIGUEL DE UNAMUNO, “Confesién de Culpa”, El Dia, Madrid, 7.XII.1917, OC, VIII, pp. 398-400. Soe Le dinamizagdo do tecido cultural dos seus concidadios. Defensor da intervengdo do Estado na educagdo®, Unamuno procurou cumprir durante a sua vida com o exposto num texto seu de 1902: “Tengo mi cétedra, procuro en ella, no sélo ensefiar la materia que me esta encomendada, sino disciplinar y avivar la mente de mis alumnos, obrar sobre cada uno de ellos, hacer obra pedagégica; pero no desperdicio ocasién de hacerla demagégica, de dirigirme, ya por la pluma, ya de palabra, a muchedumbres, de predicar, que es para lo que acaso siento mas vocacién y més honda’, Submetido em: outubro de 2013 Aprovado em: maio de 2014. CE LM. DE BARROS DIAS, Miguel de Unamuno: © Tema da “Hispanidad” © suas Implicagdes Educacionais, op. cit, pp. 160-170. "MIGUEL DE UNAMUNO, “La Educacién (Prologo ala Obra de Bunge, del Mismo Titulo)”, OC, I, p. 1022. Soe ory crete enn penn ene ‘Tempo e Temporalidade em Heidegger a partir da dtica de Benedito Nunes Bruno Thompis Alves Siqueira Barbosa?! Resumo Em Ser & Tempo, Heidegger nos apresenta uma perspectiva impar acerca do tempo e da temporalidade, mostrando-nos ideias que tiveram ¢ tém uma importante contribuigio na caracterizagio do jeito de pensar o tempo na nossa filosofia, tomando-o um autor de leitura essencial e quase obrigatéria na busca por uma existéncia auténtica, Os modos da temporalidade, 0 movimento extitico e a concepgao do Intratemporal serio estudados aqui através da perspectiva heideggeriana na ética de Benedito Nunes. Palavras-chave: tempo, temporalidade, Heidegger, Benedito Nunes. Heidegger’s time and temporality from the perspective of Benedito Nunes Abstract In Beingand Time, Heidegger honor us wit ha singular perspective about time and temporality show Ingusideas thath adand havean important contribution to form the way to think o four time philosophy, tuminghim in a essential autor toread in a searc ho fauthentic living. The “kinds” of temporality, the extatic movement, and the Innertemporal conception willb estudied in the perspective of Benedito Nunes. Keywords: time, temporality, Heidegger, Benedito Nunes. Introdugio Tempo ¢ temporalidade sio, talvez, alguns dos assuntos mais polémicos da filosofia. Aristételes, Agostinho, Bergson ¢ muitos outros tentaram dar, cada um, sua definigao ideal sobre 0 assunto, Mas & Heidegger, em Ser & Tempo, quem revoluciona, Brindando-nos com ‘uma 6tica impar acerca deste tema, Transformando ¢ adaptando Aristételes e, de certa forma, criando uma nova concepgao temporal, Heidegger procura desvelar 0 mistério da existéncia e, para isso, 0 diélogo com o tempo é pega-chave nessa busca inicial. Temporalidade propria e temporalidade imprépria, autenticidade ¢ inautenticidade, 0 movimento extético © a sua estrutura do cuidado, formatando, assim as estruturas do Dasein, a questo da substancia sero pontos a serem discutidos aqui. Benedito Nunes procurou passar-nos os ensinamentos heideggerianos mediante a obra Heidegger & Ser ¢ Tempo que discutiremos aqui. Para isso, nada melhor que uma pequena apresentagdo acerca dos possibilitadores desse artigo, *\Graduando em Filosofia pela Universidade Federal do Piaui (UFP). E mail: brunothompis@gmail.com ce es ory Pc IB Tempo e Tomporalidade om Heidegger a partir da stiea de Benedito Nunes O autor Benedito José Viana da Costa Nunes foi um filésofo brasileiro nascido no final da década de 20 € que veio a falecer em Novembro de 2011, aos 81 anos, devido a uma hemorragia estomacal que no péde ser controlada. Benedito nos deixa como legado diversas obras que versam entre a poesia e a filosofia, onde residiam suas dreas de maior atuagio: Filosofia da Arte, Hermenéutica, Estética e a Literatura como um todo. Benedito, em vida, foi vencedor de duas edigdes do Prémio Jabuti de Literatura (1987 — Passagem para o poético ¢ 2010 — A clave para o poético) e foi agraciado com um Prémio Machado de Assis de Literatura, pelo conjunto de sua obra, Dentre suas publicagdes, destacam-se os livros: O dorso do tigre, Joao Cabral de Melo Neto, Poesia de Mario Faustino, Introdugo 4 filosofia da arte, A filosofia contempordnea, O tempo na narrativa, Passagem para o poético: filosofia e poesia em Heidegger, No tempo do niilismo e outros ensaios, Crivo de papel, Hermenéutica e poesia e, a nossa obra em questo, Heidegger Ser & Tempo. Martin Heidegger Heidegger foi um filésofo alemao, professor da Universidade de Freiburg im Brisgau ¢ reitor da mesma entre 1933 ¢ 1934. Benedito nos apresenta um Heidegger que pode ser didaticamente dividido em duas fases, sendo que a primeira fase compreende a publicagdo de Ser & Tempo, que seria um tratado sobre o ser, ¢ a segunda compreenderia a década de 30 culminaria com a publicagao de Sobre o Humanismo, logo apés a Segunda Guerra Mundial ‘Sua contribuigdo para a filosofia moderna é inegavel e ultrapassa a barreira do simples publicar, avivando-se a cada dia mais nos ambitos académicos e acendendo a chama de uma ontologia, na qual a busca de uma primazia do ser sai do ambito meramente inteligivel ¢ resulta numa busca quase que empirica pelo sentido do ser langado, beirando o existencialismo, embora esse nunca fosse sua preocupagao principal. Benedito nos ensina que Heidegger utiliza 0 método fenomenoldgico de Husserl, a quem ele dedica a obra Ser & Tempo, o que quase o impossibilita de trabalhar com conceitos (caracteristica da filosofia) bem definidos. ‘Tempo e temporalidade Nao ha uma esséncia, uma substéncia, intrinseca ao eu como o pensam grandes correntes e tedricos da filosofia. E com essa afirmagdo que Benedito comega a discorrer sobre © tempo, Para ele, Heidegger diz que essa esséncia se encontra em outra coisa que no o eu. Aqui nos ateremos, por enquanto, a concepgio de temporalidade descrita por Heidegger e, mais a frente, procuraremos, desvendar esse segredo que nos remete & perguntar: onde esta essa esséncia, entdo? Soe en tn nt ry Tan) A possibilidade como possibilidade se abre para 0 homem a medida que ele decide. Essa deciséo nos remete 4 morte e, finalmente, nos situa dentro de um mundo pré- determinado onde fomos langados. Para Heidegger, é quando o homem toma consciéneia da morte, como possibilidade da impossibilidade, que ele se abre para todas as possibilidades com as quais pode vir a ser. E a consciéncia da finitude que leva o homem a decidir, é a presenga da morte que o faz decidir, é 0 despertar para a possibilidade da impossibilidade que © faz decidir e essa decisio 0 totaliza. Benedito chama essa decisio de projetar-se. E é através desse mesmo projetar-se que 0 homem pode advir a si de modo existencial. Em outras palavras, quando eu decido, eu potencializo mantendo 0 meu ciclo de possibilidades em aberto. E através da decisdio, que descubro, com minha existéncia, que posso ser eu mesmo ¢ ime libertar das decisdes que a todo instante foram tomadas por mim por outros entes. O Dasein s6 se reconhece como ser langado quando se futuraliza, quando se antecipa remetendo-se 4 morte € essa projego o leva ao presente, como momento da decisio. Heidegger nomeia esses trés passos citados como movimento extético, ou, como “o fora de si em sie para si mesmo” da existéncia, ou ainda: temporalidade. Para Heidegger, a temporalidade & bem mais que uma ferramenta de contagem de momentos pretéritos ¢ momento suscedentes, A temporalidade ¢ a principal ferramenta utilizada pelo homem na busca do caminho da existéncia auténtica ou propria, Dessa forma, temos uma estrutura extitica bem definida e que nos pée cara-a-cara com as caracteristicas do Dasein: 0 advir é 0 poder-ser, 0 retrovir é 0 ser langado ¢ 0 apresentar € 0 estar junto aos entes, ou seja, é 0 ser- com. Assim compéem-se os trés membros da estrutura do cuidado. E através de sua movimentagdo, de seu exercitar, que finalmente nos imporemos a frente da nossa propria subjetividade. E valido ressaltar que 0 movimento extdtico nos incita a sair fora de nos mesmos, quer que nos projetemos, quer que nos libertemos e a primeira recompensa que recebemos por compreendé-lo é ter nossa subjetividade livre para ser nossa e nao mais dos outros. Assim, por ter status de completude, a temporalidade abarca 0 homem como um todo pelo fato de remeté-lo a morte. Porém, ndo é surpreendente perceber a tendéncia quase que unanime de esconder a morte do cotidiano do homem, O ser-lancado é bombardeado com todos os tipos de influéncia, pré-determinagdo, toda a carga de possibilidade do outro que o engessa em sua situagao atual, impedindo-o de praticar o exercicio para a morte. Fica nitida, entio, a tendéncia do Dasein de oscilar entre dois pélos distintos: 0 da existéncia auténtica e 0 da existéncia inauténtica. Essa oscilacdo teria fim quando 0 homem decidisse antecipar-se, ou seja, aceitar a concepgdo de temporalidade focada no fim que jé somos, na nossa finitude, Em outras palavras, essa decisdo reconheceria o nosso fim ¢ para ele se remeteria, no como expectativa, sim como antecipagao. Partindo desta concepgao, temos 0 que Heidegger define como temporalidade propria ou auténtica, onde o futuro deixa de ser expectativa e passa a ser antecipagdo. O futuro, entio, perderia a caracteristica de ndo-existente (0 futuro é aquilo que ainda nao é, diria 0 senso Soe ory crete ne 89 en an Soe comum) de modo a nao termos controle sobre ele, jogando-o 14 na frente, quase como inalcangavel. © passado deixaria de ser esquecimento, saitia do plano do que “ja passou” necessariamente teria conotagéo de retomada. Deixariamos, entio, a tendéncia de esquecermos e inacessibilizarmos 0 que outrora fomos, em favor de retomarmos algo que uma ver, foi possivel. © presente, que puxa a cadeia da temporalidade vulgar ou inauténtica, deixaria de ser 0 nosso foco principal e passaria a ser 0 momento da decisao. E no agora que cu decido, antecipando-me. Assim, organizando 0 pensamento da forma como Benedito no explicou anteriormente, vimos que ¢ com a antecipagio que retomo o que uma vez foi possivel é através dessa retomada & que me apresento, buscando 0 momento da decisdo e, assim, projetando o presente, mas focando sempre no futuro. Desse modo, o Dasein ainda & passado sem deixar de ser presente e a partir disso, antecipa o futuro. Citando Agostinho para justificar a inexisténcia dos trés tempos, Benedito nos pie, frente a frente, com uma temporalidade que ndo se mostra em etapas independentes entre si ‘mas, como um emaranhado de sucessdes que atuam em conjunto, impossibilitando a divisdo e a independéncia dos trés tempos que aqui sdo divididos somente como forma didatica. Frisemos: ndo importa o éxtase da temporalidade, a temporalizagdo deve ser feita através do futuro. Agora, o presente ndo mais seria o “mandatario” da temporalidade. Fo futuro quem puxa a cadeia dos éxtases. # s6 com o futuro que a possibilidade se abre como possibilidade, 6 ele quem potencializa © projeto, O presente, como no cotidiano, é concebido como um simples agora e essa é a deixa para entrarmos no ambito da temporalidade imprépria ou inauténtica: © presente é como dito, 0 agora, o futuro é expectativa © 0 passado & esquecimento do que ja passou. A impropriedade citada por Heidegger se apresenta, tomando como base essa concepgao de temporalidade, por esquecermos a morte. Além do mais, a temporalidade imprépria, por basear-se nos agoras da existéncia, se torna infinita em si espalhando-se pelos entes intramundanos parecendo que deles se origina. Heidegger define a temporalidade assim explicitada por intratemporal. intratemporal Caracteriza-se pela preocupagdo iminente com as coisas com as quais se est. Ou seja, assumindo a concepgao de temporalidade de forma impropria, tendo a me esvaziar de futuro, esquecer-me da morte e viver com ¢ para o mundo circundante, transformando minha concepedo temporal como o tempo, que posso tanto agarrar quanto perder. Nao é dificil que, a0 pensarmos 0 intratemporal, 0 julguemos como esquecedor da temporalidade, mas nio é bem isso. O intratemporal & derivado da temporalidade que outrora definimos © compreendemos. A grande diferenga, e ¢ aqui onde mora a o cere da questio, ¢ que 0 intratemporal altera a temporalidade, retirando do futuro a primazia extética outrora conquistada e estabelecendo o presente como carro-chefe dos éxtases da temporalidade, retomando, assim, a concepedo de temporalidade imprépria. ‘Tempo e Temporalidade em Heidegger a partir da ética de Benedito Nunes © tempo, assim concebido, remonta a concepgdo dos entes intramundanos que primeiro so acessiveis nao de modo cognoscivel e, sim, por sua utilidade, seu tato, sendo definidos pela fungdo a qual se prestam. Tendo por base essa concep¢do, o carater piblico que Heidegger atribui ao tempo, transforma-o em algo com utilidade pré-estabelecida, remontando Aristételes e & concepgdo que Heidegger definiu como tempo natural ou vulgar. Assim, 0 tempo com 0 qual contamos passa a ser “contado, medido, descoberto nas coisas” ¢ que nos prestamos a alocé-lo em instrumentos piblicos, obedecendo ao seu cariter anteriormente citado, para medir 0 tempo. Porém, nesse processo, entramos em conflito direto com 0 Dasein: se 0 Dasein ja conta com o tempo, jé 0 apreende, onde alocariamos as nossas medidas? Benedito diz que, as medidas feitas por nés passariam a ter fungdo meramente reguladora, estabelecendo momentos especificos para cada coisa. Assim, teriamos uma sucessio de “agoras” independentes, expondo aqui o presente 4 dianteira dos éxtases da temporalidade em fungdo das coisas nas quais se temporaliza”, No que tange a temporalidade, ao remetermo-nos a subjetividade, significa remetermo-nos 4 compreensio da temporalidade extitica, Heidegger frisa que ¢ na temporalidade extitica que a subjetividade se liberta, Respondendo, entio, & pergunta feita no comego do artigo, posso afirmar que a substincia como vigente no eu, & puramente neutralizada pela temporalidade, Fazendo com que a substincia do homem seja a sua propria existéncia e aqui Heidegger nos incita a um pequeno exercicio légico sobre © Dasein: tudo o que vimos anteriormente pode ser traduzido na seguinte definigdo, 0 Dasein & temporal. Se 0 Dasein & temporal, ele existe de modo a temporalizar-se desde 0 seu nascimento até o seu fim, até a sua morte, Pensemos pois, num mundo sem temporalizagdo. Se 0 Dasein & temporal e estamos nesse mundo sem temporalizagdo, ndo haveria Dasein. E, entio, de acordo com as definigdes heideggerianas, & © Dasein quem proporciona 0 mundo. Nao haveria mundo sem Dasein. Desta forma, o intratemporal se preocupa com 0 mundo circundante ¢ se estende em cada “agora”. Lembremo-nos sempre que a busca de Heidegger em Ser & Tempo & pelo sentido do ser. Sentido, em Heidegger, é onde a compreensibilidade de algo esta apoiada, Logo, compreender o ser, esta diretamente ligado questio da temporalidade outrora explicitada por nés, Esta mesma temporalidade, é 0 sentido do Dasein. Por fim, concluimos que a temporalidade, que abrange todas as estruturas da existéncia (0 ser langado, 0 ser-com € © ser-para-a-morte), é a possibilidade da possibilidade, Consideragées finais Benedito Nunes nos brinda com uma compreensio astuta da ordem temporal na filosofia de Heidegger, nos impulsionando a refletir acerca da autenticidade de nossa propria "Heidegger, segundo Benedito, frisa que a concepgdo de tempo natural néo pode set deixada de lado, pois & “a primeira interpretagdo detalhada desse fendmeno que nos foi transmitida”. Soe crete ne 90 RL ee ine existéncia. Inquietante para alguns, absurdo para outros, 0 fato é que Heidegger possui uma visio impar da temporalidade e procura, com ela, embasar uma existéncia propria, auténtica em cada um de nés. Sua preocupagdo, entretanto, nao pode ser vulgarmente definida como arbitraria, Da mesma forma, ndo podemos dizer que o homem vive melhor com a existéncia auténtica. Heidegger nos deixa a cargo de nés mesmos; a nossa decisdo antecipadora um dia vird e quando ela vier, teremos que escolher entre a abertura a propriedade ou a permanéncia na impropriedade. © homem é e sempre foi livre para escolher ¢ a ordem racional é prova disso. A ordem racional impulsiona 0 homem a ser livre, como Benedito faz questo de frisar: “a vocagdo convoca-nos a nossa liberdade, a um ‘querer ter consciéncia’, que ¢ 0 que escolhemos angustiadamente” (Heidegger & Ser e Tempo, p.23). Porém, isso nao constitui uma automaticidade da decisio, da consciéncia da morte, do remetimento a finitude, da antecipagdo, da saida da menoridade do presente, muito pelo contrério. A razo nos angustia © momento da decisio pode e, frequentemente, esbarra nessa angistia, nesse “conscientizar- nos”, Cabe ao homem domar a angistia ¢ apropriar-se de sua propria vida, Para isso, & bom ter em mente que o caminho facil ¢ a permanéneia, a mudanca sempre tende a ser a radicalizacdo de paradigmas e, portanto, 0 caminho a ser percorrido esté muito longe de ser facil. ‘Submetido em outubro de 2013. Aprovado para publicagao em fevereiro de 2014. REFERENCIAS NUNES, Benedito. Heidegger & ser e tempo. 3* Ed. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 2010. Soe Senn rr aay) SECAO Il - INFORMATIVO NESEF Carta-manifesto do Coletivo do NESEF/UFPR em repiidio ao desrespeito as prerrogativas do Dircito Universal 4 Educacio no Estado do Paranda e apoio & Educagio de Jovens e Adultos? Curitiba, 14 de fevereiro de 2014, © NESEF, entidade de pesquisa educacional sobre a Educagdo Filos6fica e o ensino de Filosofia, atuante ha mais de duas décadas na defesa de uma educagdo de qualidade, norteada pelo ideal da formagdo integral dos sujeitos © extensiva a todos os cidadios brasileiros, dirige-se, de modo geral, ao conjunto da Sociedade Paranaense e Brasileira ¢, de modo particular, as Instituigdes PUblicas ¢ Entidades Civis relacionadas ao final desta Carta- Manifesto, a fim de demarcar seu posicionamento quanto s recentes investidas contra 0 direito & educagdo piblica dos jovens, adultos ¢ idosos queacorrem 4 Modalidade Educagao de Jovens e Adultos (EIA). © Brasil, Pais cuja Educagdo Piblica & considerada “direito” de todos ¢ obrigagao do Estado, em colaboragdo com as Familias, tem, no esteio dos ideais democriticos ¢ republicanos, a obrigagdo de dar as garantias legais e, viabilizar as condigdes concretas para a realizagdo desse direito, ‘No Parané, entre outras atitudes de franco destespeito ao direito subjetivo & Educagao, nova organizagio da Modalidade Educago de Jovens ¢ Adultos (RJA), expressa na Instrugio Normativa n° 008/2013-SUED/SEED, traduz-se em retrocesso em relagdo 4 politica educacional, que 4 duras penas, os educadores, os estudantes e demais cidadios organizados desse Estado vem conseguindo coneretizar. Dessa forma, em apoio A luta dos Féruns de EJA ¢ das entidades € escolas que, preocupadas com os prejuizos sociais das medidas que o Governo do Parana implementou em relagdo a essa modalidade, 0 NESEF, exercendo a prerrogativa de controle social franqueada todo cidadio, vem a piblico ¢ veicula os seguintes posicionamentos ¢ pedidos de explicagdes. 1, Sabendo-se que: “no Parand, segundo 0 Censo 2010, sio mais § milhdes de pessoas com 15 anos ou mais sem a Educagdo Basica completa, Destes, 3,5 milhdes esto sem instrugdo € sequer concluiram o ensino fundamental” (Forum Paranaense de EJA), 0 Estado nao pode afirmar que ndo ha demanda para a EJA, logo, é seu dever, em colaboragdo com a Sociedade, conforme preceito constitucional, garantir as condigdes para que o direito educacional desses mais de 5 milhdes de paranaenses possa ser exercido, A Instrugio n° 008/2013- SUED/SEED, pelo seu teor ¢ determinagdes, em alguns casos dificulta 0 acesso 4 educagao pelo piiblico da EJA, em outros, simplesmente o suprime. 2, Para planejar, gerir ¢ executar a politica educacional espera-se que sejam indicadas pessoas Ses Hi oad que possuam os conhecimentos requeridos para este exercicio, além de sensibilidade social e respeito ao aciimulo de lutas, debates e produgdes no campo da educagdo. Um projeto educacional no se esgota nele mesmo: é preciso que os dirigentes governamentais entendam que a Educagio, sobretudo a Publica, é eminentemente social. A nova organizagio da EJA nao expressa valores humanos ou sociais, sendo implicitas suas finalidades economicistas e tecnocriticas. A solugdo “administrativa”, para a economia de recursos investidos na Modalidade, prevalece em detrimento das necessidades pedagégicas dos estudantes e professores. Ou seja, seus autores e defensores, ao buscar maior eficécia e eficiéncia e, com isso, diminuir os “gastos” com educagio, contribuem para que a divida social com todos os que nao tiveram oportunidades educacionais aumente e se consolide. 3, Sabe-se que a Instrugio n° 008/2013-SUED/SEED e a nova organizagio que cla determina so positivas para um segmento educacional especifico, qual seja, a educagdo privada. Uma vez dificultados o acesso, a permanéncia ¢ a conclusdo de estudos nas escolas piblicas com a oferta de EJA, a migragdo dos estudantes para a rede particular, que ja & expressiva, provavelmente sera ampliada. Mais uma vez, os recursos sociais , ao invés de redistribuidos & sociedade que os gerou, sero revertidos as empresas, aumentando as distincias entre trabalhadores e proprietirios. 4, Ante a flagrante contradigiio da Instrugo n° 008/2013-SUED/SEED com a Lei de Diretrizes e Bases da Educagdo Nacional (9.394/1996), a Constituigio Federal, as Diretrizes Nacionais para a EIA (MEC) ¢ os Documentos Orientadores da Organizagio das Nagdes Unidas/UNESCO para o Brasil, pedimos a0 Conselho Estadual de Edueago do Parana que esclarega 4 Sociedade, as razdes pelas quais aprovou o mencionado documento. 5. Ante a flagrante contradigdo entre as especificidades da EJA e a forma que a Secretaria de Estado da Educagdo pretende que cla seja organizada, ferindo o direito @ Educagdo dos Paranaenses, pedimos a0 Ministério Publico do Paran, representado pelo Centro de Apoio Operacional as Promotorias de Justiga da Crianga e do Adolescente e da Edueagio, que se posicione a respeito do poder discriciondrio da Secretaria de Estado da Educagdo nesse particular. © Governo pode deliberadamente, em nome da racionalidade administrativa e da economia de recursos, ferir a Lei e impedir a concretizagao de direitos de cidadania ja conquistados? 6. Por fim, em nome do ideal da construgdo da Educagdo Publica, Gratuita, Universal, Laica com qualidade epistemolégica ¢ politico-pedagégica, o NESEF solicita aos dirigentes governamentais da Seeretaria de Estado da Edueagio que, respeitando-se 0 cariter republicano e as prerrogativas do Estado Democratico de Direito, doravante, na proposigdo de politicas pablicas educacionais, considerem, além de questdes administrativas ce es ory preres Ser cen € da vontade politica especifica do grupo que exerce o poder, as necessidades, os interesses € as peculiaridades de estudantes, professores © comunidades escolares. Nés do NESEF/UFPR, assim como de dezenas de outras entidades organizadas da Sociedade Civil, na condigao de representantes de grandes grupos, estamos dispostos a exercer o papel de colaboradores em todas as iniciativas governamentais que realmente contribuam para os avangos educacionais, que a Sociedade Brasileira exige. Consideramos que as _politicas _construidas democraticamente tém mais chances de se legitimarem, j4 aquelas propostas unilateralmente, caso da Instrugao n° 008/2013-SUED/SEED, sero sempre mais sujeitas as diversas formas de Controle Social Saudagées Filoséficas Ses oad Coletivo do NESEF/UFPR 2014”, Esta Carta segue por, via eletrOnica, para os seguintes destinatérios Conselho Estadual de Educagao do Parand~ Presidéneia Representagio da UNESCO no Brasil- Organizagiio das NagSes Unidas! Brasilia Governo do Parand ~ Casa Civil - Governadoria Ministério Piblico do Parand: Centro de Apoio Operacional 4s Promotorias de Justiga da Crianga e do Adolescente e da Educagdo ~ CAOPEduc ~ Promotora de Justiga responsivel Comissio de Educagao da Assembleia Legislativa do Parand - Presidéneia Setores de Educagdo das Universidades Estaduais Paranaenses ¢ das Universidades Federais sediadas no Parand Ministério da Educagio ~ Secretaria de Educagao Bisica - Secretaria APP Sindicato ~ Presidéncia Forum Paranaense de EJA ~ Coordenagao Forum Estadual de Educagdo ~ Coordenagio Férum Nacional de Educagdo ~ Coordenagao Coletivo de Professores de Sociologia do Norte do Parand ~ Coordenagao Niicleos de Estudos ¢ Pesquisas Educacionais brasileiros, latino-americanos ¢ portugueses com os quais 0 NESEF estabelece parcerias Imprensa Paranaense; Redes Sociais; Blogs e Comunidades Afeitas & Educagio ‘Contatos E mail: nesefeontato@gmail.com Web site:http://www.nesef.ufprbr Facebook:https:/’www.facebook.com/olimpiada.filosofica.5?ref=tsSefref=ts "Coletivo NESEF 2014 e colaboradores (em ordem alfabética): Ademir Pinhelli Mendes, Alceu Cordeiro Fonseca Junior, Alessandro Reina, Avanir Mastey, Anita Helena Schlesener (Colaboradora), Danuska Brosin, Deleio Junkes (Colaborador), Danicl Soczck, Dirceu Ferreira, Domenico Costela (Colaborador), Edimar Eugenio, Edmilson Feliciano Leite, Elio da Silva, Edson Teixeira de Rezende, Emmanuel Apple (Colaborador), Gladys Mariotto, Geraldo Balduino Hor, Gelson Jodo Tesser (Colaborador), Giselle Moura Schnorr, Ivo Luska (Colaborador) Leandro Ocbeck, Louise Vieira, Luciana Vieira de Lima, Luciana Teixeira, Mayra Othero Nunes Jardim Mugnaini, Naldemit M. Mendes, Nicole Kollross, Nora H. Migliori, Patricia dos Santos Bortokoski, Raoni Barbosa Galete, Roberson Leite de Melo, Rui Valese, Sidnei Martins, Valéria Arias, Walter L. Mauch, ‘Vilmar Kraemer, Wilson José Vieira. Ses Perens ca ate een Manifesto do Coletivo do NESEF/UFPR em repudio ao PL 6840/2013, em tramitagio no Congreso Nacional. © Nicleo de Estudos e Pesquisas sobre 0 Ensino de Filosofia — NESEF/UFPR, entidade de carater pablico e interinstitucional que defende uma educagdo piblica e gratuita extensiva a todos os cidadios brasileiros, norteada por diretrizes ¢ estratégias de emancipagao humana, formagio integral e autonomia intelectual, dirige-se, por meio deste manifesto, a0 conjunto da sociedade paranaense ¢ brasileira, a fim de demarear seu posicionamento quanto as recentes investidas voltadas reformulagdo do ensino médio. Nesse particular, destaca-se 0 Projeto de Lei 6840/2013, em tramitagio no Congreso Nacional. Este PL, diferentemente de outros em tramite no parlamento federal, conta com um grande leque de apoios partidarios e institucionais. Com efeito, 0 empenho do Conselho Nacional de Secretérios da Educagio (CONSED), entidade de direito privado, foi fundamental para a formulagdo ¢ difusio do discurso segundo 0 qual a maior urgéncia do Ensino Médio é a dareformulagdo do curriculo. Nés trabalhadoras/es em educagdo, sabemos bem que o curriculo expressa a concepgdo da escola, mas isso ndo significa, em absoluto, que os problemas da educagdo nacional sejam originados pelo tipo de organizagio curricular. Os entraves a evolugdo qualitativa da Educagdo Nacional, muito além do curriculo preserito, so reconhecidamente outros, tais como: baixos salérios, condigdes de trabalho,transito dificil, formagio do professor, vida do estudante ¢ esta ndo raro com expectativas e urgéncias draméticas, processos democriticos precérios em quase todas as instincias educacionais, incluindo escolas, secretarias e conselhos. PL 6840/2013 & fruto da Comissdo Especial para Reformulagio do Ensino Médio — CEENSI constituida oficialmente e, portanto, financiada com recursos piblicos.sua tarefa foi promover estudos © proposigdes para a reformulagdo do ensino médio, Apoiada, como mencionado, por diversas instituigdes e partidos, além de executivos estaduais. Anteriormente a0 PL 6840/2013, a CEENST produziu 0 Documento Orientador para os Semindrios Estaduais[1}, 0 qual teria sido amplamente divulgado nos estados da federagdo. 0 Documento Orientador traz a Proposta para Avancos no Ensino Médio do Consetho Nacional de Secretérios de Educagdo, além de programas e projetos para o Ensino Médio em andamento no pais. Desse modo, a partir de pretensa legitimagdo social da proposta de reformulagao do curriculo, via “seminérios”, conduzidos no ambito dos governos estaduais e de “audiéncias piblicas”, promovidas com convidados (governadores, secretirios de educagao e especialistas académicos) no ambito da Camara dos Deputados, a CEENSI elaborou a versio final do texto do que viria ser 0 PL. 6840/2013. Destacamos, a seguir, alguns dos pontos da proposi¢do que mais aviltam as/os que defendem o direito & educagdo publica, gratuita, laica e universal: Petry eens 96 TL ante eee ree A proposigdo, elaborada 4 revelia daquelas/es que cotidianamente vivenciam e estudam 0 contexto e os problemas do ensino médio, simplesmente desconsidera a historia de lutas, 0 actimulo de debates, as andlises e os anseios dos coletivos e instituigdes que vem buscando altemativas para a Educagdo Basica como um todo. Mais: a proposta conta com 0 tradicional cinismo politico, tipico da disputa entre grupos hegeménicos, ao apresentar-se como alternativa para a democratizagao do ensino médio, quando na verdade compromete as poucas conquistas qualitativas socialmente construidas e potencializa a mercantilizagio dessa etapa de ensino, ao facultar iniciativa privada a oferta de cursos e disciplinas, essas ‘metamorfoseadas, como se fossem meros acidentes, em componentes curriculares. 2. A proposigio banaliza um dos principais objetivos da educagdo escolar, a socializagdo de conhecimentos — de conhecimentos referendados ¢ que existem sob a forma de disciplinas organizadas —, ao mesclar diferentes campos epistemol6gicos, com os estatutos que Ihes cabem, numa mesma rea; assim como exorbita de suas atribuigdes a0 definir que cursos de licenciaturas também abdiquem de suas especificidades em favor de areas de conhecimentos. Sim, 0 PL suprime as atuais disciplinas com tradigdo curricular, amalgamando-as em quatro areas de conhecimento: Linguagens, Matemética, Ciéncias da Natureza e Ciéncias Humanas. Esta nova estrutura, insistimos, além de atentar contra as disciplinas escolares, retrocede as j suficientemente criticadas experiéncias curriculares dos anos de 1990-2000, quando a banalizagio dos contetidos comprometeu severamente a capacidade formativa da educagdo nacional piblica, Com efeito, o retorno 4 transversalidade — inclusive com temas obrigatérios, sob medida para as “empresas” e suas parcerias com as escolas —como estratégia de organizagdo curricular contraria o Parecer 05/2011 e a Resolugio n° 2 da CEB/CNE de 30 de Janeiro de 2012. Tais normativas buscam a garantia da qualidade da formagio ofertada aos alunos do Ensino Médio vinculam esta garantia & continuidade de estudos, bem como organizacdo curricular por disciplinas, respeitando 0 que estabelece a Lei 9394/96. Ocore que, nesse PL, assim como em muitas falas governamentais, entre elas as que figuram no Programa Ensino Médio Inovador e no Pacto Nacional pelo Fortalecimento do Ensino Médio, 0s recursos metodologicos da contextualizagio ¢ da interdisciplinaridade — recursos que pressupdem a disciplinaridade — sio confundidos com a mera invocagdo de conhecimentos reunidos em areas gerais, como se conhecimentos disciplinados ndo tivessem nenbuma imanéneia, nenhuma lWgica interna; como se, enfim, ndo tivessem sangue, nervos, misculos, 3, No PL.6840/2013 é indisfargavel a tentativa de escamotear o problema da falta de docentes com formagao especifica para as disciplinas em que atuam, Sabemos que as causas desse déficit encontram suas raizes, de um lado, no crénico desestimulo 4 carreira, na desvalorizacao dos profissionais da escola pablica, e, de outro, na baixissima oferta de cursos de licenciaturas que realmente formem professores nas disciplinas de tradi¢ao curricular. Pern cat ein Sendo assim, a formagdo de professores em cursos de licenciaturas, cujos curriculos ¢ metodologias convirjam com as necessidades da Educagio Basica, a concretizagio de carreiras, além de salérios condizentes, que proporcionem tempo livre para leitura e/ou outras atividades culturais e para a preparagdo das aulas, que aportem recursos necessarios a0 estudo, 4 pesquisa, ao planejamento, em paralelo com uma maior permanéncia dos estudantes nas escolas -, sio problemas cujo enfrentamento requer investimento piiblico e ainda esforgos conjuntos de governos, organizagdes civis e instituigdes académicas. Ora, a pura e simples jungio de diferentes disciplinas em areas gerais, no passa de uma fuga sorrateira do problema para facilitar a distribuigdo das aulas em areas supostamente afins Aquelas em que os professores foram formados ¢, num futuro préximo, tende a diminuir a pressio por licenciaturas especificas, jé que, na pritica, bastariam quatro cursos de licenciaturas (Linguagens, Matematica, Ciéncias da Natureza e Ciéneias Humanas) para suprir as maltiplas necessidades da Educagdo Basical 4 O PL prevé © Exame Nacional do Ensino Médio/ ENEM como componente curricular e dé normativas para seu novo formato, baseado na aplicagio de provas por séries. Os proponentes ndo apresentam argumentos suficientemente razoaveis para esta mudanga, mas é de se esperar que, — tal como hoje ocorre em relagdo ao Sistema Nacional de Avaliagao €, onde existem, aos Sistemas Estaduais de Avaliagdo -, seja a avaliago que venha determinar a selegdo de conteddos. Mais uma vez a preocupagdo com “notas”, “indices”, “rankings” © “indicadores”, prevalece sobre a qualidade da formagdo ofertada pela escola piblica. 5. Outro problema, presente tanto no texto de justificagdo quanto no corpo de artigos do PL, diz respeito as definigdes dos cursos da Educagdo Profissional, integrada ou subsequente ao ensino médio, Nesse particular, é claro o incentivo as parcerias, sobretudo com as entidades do chamado Sistema S (SENAC, SESI, SESC, SENAR, SENAT, SEBRAE). Também é possivel depreender da Proposta ¢ dos seus Considerandos que as decisdes sobre cursos a ofertar e em quais localidades, serdo norteadas pelos requerimentos do mercado © dos empresarios parceiros. Novamente, fica caracterizada a intengdo de transferéncia de recursos piblicos para a iniciativa privada. 6 Outro ponto a destacar, diz respeito a pretensio do PL em estabelecer que somente jovens com mais de 18 anos poderdo cursar 0 ensino médio notumno. Ora, entende-se que, além do desconhecimento das dificuldades das familias ¢ das juventudes brasileiras, — da impositiva necessidade de ingresso precoce no mercado de trabalho —, a proposi¢ao exorbita, de muito, a extensio de seu poder, pois suprime aalternativa desse jovem ja trabalhador de estudar 4 noite, ao mesmo tempo que constrange os maiores de 18 anos que podemestudar durante o dia, Nesse ponto, entendemos que o PL é francamente inconstitucional. Pen) Lan Se 7. A defesa da transversalidade como categoria norteadora da reorganizagao curricular do ensino médio por Areas de conhecimento, visando equacionar os problemas de aprendizagem e até do fracasso escolar é, no minimo, falaciosa e no é apenas um duro golpe contra os estatutos disciplinares. E isto ¢ muito mais, pois pensar 0 curriculo sem disciplinas, substitui-las por areas de conhecimento, é de uma irresponsabilidade total: as consequéncias serdo logo sentidas tanto pelos alunos como pelos professores. Pelos alunos, porque assistirdo a um rebaixamento verdadeiramente miserével do que thes era ensinado, diminuindo suas poucas chances de autonomia intelectual e de emancipagdo, condenando-os assim & invisibilidade ¢ & irrelevancia social. Pelos professores, porque reduzidos a operadores de transversalidades terdo dificuldades imensas de preservar ¢ organizadamente avangar na conquista de direitos, — direitos que sempre resultam em mais formagdo e com evidente incidéneia sobre seus alunos. Assim, repudiamos 0 conteiido e 0 espirito do Projeto de Lei 6840/2013, solicitando sua imediata retirada da pauta do Congreso Nacional. Coletivo do NESEF/UFPR Curitiba, meados de abril de 2014, Seguem as assinaturas dos que participaram das reuniGes para a elaborago do manifesto. Ademir Aparecido Pinhelli Mendes; Aleeu Cordeiro Fonseca Tinior; Alécio Donizete da Silva; Alessandro Aparecido de Oliveira; Alessandro Reina; Alessandro Vorossi Correia; Alvaro S.F. Baptista; Anita Helena Schlesener; AvanirMastey; Angela Cristina Ruiz; Bassima Ali Youssef; Carlos Nunes de Araijo; Carmen Liicia Fornari Diez; Cristiane Gomes; Daniel Soczek; Danielle Kaminski; DanuskaBrosin; Denilto Laurindo; Dinuel Femandes de ‘Campos; Dirceu Ferreira; Domenico Costella; Dorotea Trentini; Edimar Eugenio; Edmilson Feliciano Leite; Edna Ap. de Souza Hamish; Edson André Pegoraro; Edson Teixeira de Resende; Eduardo Legat Rodrigues; Elenita Castanho Mendes Steffen; Elizabete Luzia Garcia Amarcio; Emmanuel Appel; Eni de Fatima Zampiri; Erica Eugénica Possette; Eunice Elisabeth Zardo; Fabia Melissa Siqueira; Fabio Antilio Stangue; Georgete M. Antunes Marin; Geraldo Balduino Horn; Giselle Moura Schnorr; Gladys Marioto; Hilda Maria Zaneth Heller de Mattos; Ivone Rodrigues Macena Barossi; Jonas Ferreira de Andrade; Leandro Oebeck; Leila Athaide da Rosa; Luciana Vieira de Lima; Luciane A.S.L. Rodrigues; Luciene C. Imes Baptista; Lucrecio Sa; Luzia Maria Pereira; Marcelo Moraes; Marcia Elizangela Furini; Marcio Paludo; Maria do Socorro da Silva; Maria Inez Damasceno; Maria Lucia de Andrade; Marilda Alberton Leutz; Marina de Oliveira Santos; Mayra Mugnaini; Mildre Meri Novakoski Margaridi; Naldemir M. Mendes; Nara Maria B. Posinato; Neusa Nogueira Petry eens Pern cat ein Fialho; Nicole Kollross; Nilce Ferreira Chameski; Nora H. Migliori; Otavio TarasiukNaufel; Rafael Pires de Mello; Ricardo Pozzeti Jr; Roberson Melo; Rui Valese; Sandra Mara Monteiro; Sandra Maria Zago; Sidnei Martins; Silmara Quintino; Silvana Maria Biscalchim; Silvia Regina Santos dos Anjos; Soeli Cleonice Borox; Valéria Arias; William de Almeida ¢ Wilson José Vieira. biDisponivel em: bitp:/Avww2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/S4a- Jegislatura/reformulacao-do-ensino-mediolarquivo-geral/documento-orientador-para-os-seminarios-estaduais Acessado em: 12/04/2014, Pen) ry Cleber Dias de Araajo™ Em 1940, Walter Benjamin redigiu as famosas teses Sobre 0 conceito de histéria, nas quais surge uma surpreendente formulagio dialética acerca do estado de excegiio (referéneia a0 nazismo). Dizia o autor, que 0 estado de excegao & regra. Agamben retomou essa tese recentemente, no livro Estado de excecao, este que, segundo o italiano, se tormou forma de governo nas democracias modernas do pés-guerra. Com isso surge uma curiosa relago entre democracia ¢ absolutismo. © exemplo recente mais simbélico dessa ambiguidade & 0 Ato Patriota de G. Bush, apés 0 11 de Setembro, principio constitutive do estado de excegao é flagrante nas cartas magnas de paises como Estados Unidos, Franga, Inglaterra ¢ também o Brasil. © prinefpio € comum: em situagdes de emergéncia, o soberano tem autonomia para decidir sobre a suspensio de direitos civis garantidos por lei. Trata-se de uma suspensio juridica, mediante a qual se instala um vazio, uma anomia. Voltando & tese de Walter Benjamin, dizia 0 autor que ha uma “tradigio dos oprimidos” que deve nos alertar para a regra da excegdo. A excegiio, no momento histérico em questo, é o nazismo. Mas, no sentido amplo figurado na tese, a tradigao dos oprimidos remete aos primérdios da sociedade de classe ¢ aos fundamentos da protego da propriedade privada. A divisio de classes ¢ suas consequéncias, diretas ou indiretas, em distintas sociedades, quase sempre impde & comunidade a necessidade de pensar sua convivéncia a partir de determinados pardmetros, afim de que essas consequéneias nao alterem o status quo. Pois bem. O estado de excegao & uma dessas formas de garantir a estabilidade sempre que © status quo & ameagado, além de outras situagdes, como o estado de guerra. Entio, tenhamos bem claro que falamos de uma situagio em que uma Constituigao prevé sua propria violagdo. Direitos so concedidos, mas devem ser exercidos mediante bom comportamento, bem dito, distante de qualquer tipo de violéneia contra o patriménio (piblico ou privado)™. Na medida em que o estado de excego é a suspensio de direitos garantidos em lei e, portanto, a violagdo (legal) de uma legislago, ndo hé como nao entender que essa medida no seja violenta, Nesse sentido, falamos entdo de uma forma de fazer politica que recorre & violéncia consentida pela jurisdigdo, Portanto, somente o Estado tem a prerrogativa de praticar politica mediante ages violentas. Manifestagdes de toda ordem que ndo vislumbrem isso correm 0 risco de serem contidas conforme recomendagio constitucional (ou de leis especificas, conforme 0 caso brasileiro). Mas, se entendermos que a agdo politicamente ‘Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Parané (UFPR), Professor de Filosofia da Rede Estadual de Educagio do Parand, E mail: eleberaraujo35@gmail.com salem da possibilidade de que as proprias pessoas se cologuem em risco mutuamente, mas essa situago, usualmente, aparece como iltimo item nas legislagdes sobre ordem e seguranga. Son oer eeenirney violenta é aquela que viola direitos no atacado e no varejo, consideram-se nao somente ataques a patriménios ou violéncia fisica contra pessoas, mas uma série de agdes que dia a dia impedem a efetivagdo de direitos. Em outras palavras, cotidianamente ha manifestagbes de excegio. E curioso que se recorra a violéncia para conter protestos eventualmente indspitos ¢ 0 mesmo procedimento ndo seja adotado em casos de violagdo cotidiana de direitos. Nao se trata da criminalidade comum, que & também manifestagdo de excegdo, mas de ages politicas ¢ econdmicas (ou a falta delas) que violam direitos. Nao existe nada mais violento do que o mercado e a urgéncia que o move e, por conta disso, vidas esto em risco o tempo todo. No mundo dos negécios impera um estado de excegdo permanente, Medidas extremas sdo frequentes ¢ a violéncia com que se liquida empresas, e até paises, é a regra de um mundo que se habitiou 4 carificina econémica. Nessa marcha, investidores fazem preces para que paises quebrem; a inddstria da morte sonha com guerras e conflitos; as burguesias comerciais, de varejo tremem como epiléticos frente a qualquer vestigio de crise, E importante, a essa altura, fazer uma distingio. Nao se pode confundir excegdo com totalitarismo, pois se a excegio & a regra (conforme Benjamin) ¢, na esteira de Agamben, politica de governo nas proprias democracias, 0 Estado totalitirio é manifestagdo da regra, mas ndo a regra em si. Em outras palavras, nem todo estado de excegdo é Estado totalitirio, embora todo Estado totalitério implica em estado de exceedo. A diferenga sutil de minasculas € maitisculas entrega o jogo. Um “estado de excegdo” & a situago na qual se encontra a sociedade, cujo governo pode ou nao ser totalitario. O que Benjamin quis dizer com “regra” diz. respeito & marcha triunfante da hist6ria como progresso, uma barbarie incessante que vincula a politica com a violéncia. Ao contrario de Hobbes, que vé a barbarie na falta de Estado, leis, etc., 0 que vigora aqui é a barbérie como norma histérica. De certa forma, Marx passou muito perto dessa concepedo catastréfica da histéria, ao afirmar que © capitalismo levaria a uma situagdo socialmente degradante, insuportavel, mas se colocou em outro rumo a0 depositar confianga (ndo total, é bom que se diga) no progresso. Se pensarmos nas colonizagdes da Africa e da América, nao é de hoje essa relagao entre violéncia e politica. Naturalmente que politica no século VII, por exemplo, ¢ sindnimo de uma centralizagao absolutista contra a qual a burguesia viria a se insurgir. E foi a propria burguesia que acumulou 0 espélio da sangria colonizadora e, sem isso, de novo com Marx, © capitalismo ndo seria possivel na forma como ocorreu. Esse ¢ 0 tipo de barbirie que tinge a marcha do progresso. Essa também é, em grande medida, a tese de Eduardo Galeano nas suas Yeias abertas.... & uma denincia de como a Europa ¢ os Estados Unidos da América praticaram uma verdadeira rapinagem que permitiu algumas das mais importantes conquistas da civilizago ocidental, entre elas, a propria Revolugdo Industrial. Portanto, no ha nada de novo em afirmar que existe uma relagdo histérica entre politica ¢ violéncia, o que fundamenta a excegao como regra. Nem é novidade apontar 0 dedo para os maus feitos do capitalismo nesse sentido. O que parece inteiramente original é fato Son oer eeenirney rer de que em democracias representativas, a transferéncia de poder se volta contra a prépria populagdo, ¢ esta ndo tem direito de responder a altura, Estado como detentor da prerrogativa de agir violentamente contra seus cidadios beira a criminalidade na sua lentidio para atender reivindicagSes e demandas populares. A propésito, ndo é nenhum assombro que contingentes populacionais tenham direitos negados simplesmente porque seus Estados sio incapazes de atender interesses particulares e, a0 ‘mesmo tempo, promover 0 bem piblico (sob pena de grave engano, mas isso parece mesmo impossivel). O que Marx chamou de alienagio, ou estranhamento, se ajusta a um tipo de andlise da natureza da relagio entre violéncia e politica no capitalismo. Este, por ser uma sociedade de classes, ndo consegue organizar suas relagdes de trabalho de outra forma que nao seja pela hierarquia funcional, operando sob metas urgentes. Assim, capital se reproduz. com maior facilidade onde as regras nao sejam outras a ndo ser aquelas ditadas por ele mesmo. Quanto maior a resisténcia, maiores sio as dificuldades do capital. Por esse motivo 0 direito de greve sofreu tanta resisténcia até ser admitido juridicamente, Porém, admite-se a greve na medida em que 0 movimento parega justo (reconhecimento de que a exploragdo passa dos limites) € pacifico. Ora, 0 que as greves tinham de revolucionério era exatamente 0 seu cariter violento, isto é, uma afronta ao capital. Nao é recente o debate sobre 0 esvaziamento da greve como instrumento politico. Por certo, uma greve ainda é prejuizo para o capital, mas a questo & outra, pois é 0 proprio discurso sindical que esvazia o sentido politico da greve em fungdo de certas fragilidades propriamente politicas das classes trabalhadoras. A alienagdo venceu? Dificil responder, mas & certo que o direito contemporineo lidou com a greve do mesmo modo que vem lidando com outras conquistas capazes de provocar movimentos de massas. O Estado contempordneo, de certo modo, se esforga nessa constante tentativa de civilizar as Jutas sociais até chegar ao ponto de engessé-las juridicamente, ameagando-as com a excegao. Nesse sentido, as democracias representativas se tomam inviolaveis porque representa a legitimidade popular do poder institucional No Brasil, hé anos se fala em consolidagio das instituigdes, 0 que significa a consolidagdo da prépria democracia representativa. Em uma sociedade de classes como a nossa, as institucionais se consolidam pela forga, como na ditadura, ou exatamente pela representatividade. Na medida em que a representagio politica sofre um abalo, como se mostrou em eventos recentes, sugere-se 0 alargamento das possibilidades de participagdo popular, como plebiscitos, consultas populares, ete., na tentativa de recuperar o sentido da representatividade © manter a legitimidade das instituigdes, evitando, assim, a violéncia contra as mesmas. S6 existe uma ameaga de excegdo contra essa violéncia é porque se reconhece, em primeiro lugar, que a democracia representativa ¢ inviolvel, e esta ndo pode se manifestar de modo eficaz sem 0 efetivo funcionamento legitimo de suas instituigdes. Desse modo, a violéncia deve sempre ser pensada dentro do direito, ou seja, ninguém tem o direito de agir violentamente porque Son oer eeenirney representaria uma ameaga as préprias instituigdes. Por que acontece, entio, uma crise de representagio politica que leva ao questionamento das instituigdes? Isso presumindo que ha uma crise, pois ha quem afirme 0 contririo. Todavia, supondo que de fato vive-se no Brasil tal crise, & preciso encontrar sua suposta origem. De modo inteiramente especulativo, & possivel identificar nas ultimas duas décadas alguns fenémenos que no so novos na histéria das democracias representativas. A adaptagdo dos movimentos sociais e dos partidos de esquerda ao aparato institucional gera ‘uma série de consequéncias diretas no chao da hist6ria, ¢ o resultado mais Sbvio ndo poderia set outro sendo 0 que de nenhuma mudanga é possivel fora dos limites institucionais. A politica em si se converte nessa agdo burocratica cujo sentido é a obediéncia aos ditames juridicos. Governar, a rigor, ndo é fazer politica, mas administrar dentro de limites legais, mesmo que as leis gerem profundo desconforto popular (vide Lei de Responsabilidade Fiscal, cujo fundamento moral se confunde com o cinismo da histéria como progresso). Essa institucionalizagdo da politica, que estaria na base de uma suposta crise de representagdo, se completa com a criminalizagdo da propria, Nada escapa ao af punitivo que tomou 0 pais nos iiltimos tempos. Fazer politica, nesses termos, pode se tomar caso de policia, e as autoridades se defrontam, dessa forma, com a violéncia institucional. H quem veja nisso certa maturidade popular em relagdo 4 exigéncia de condutas morais por partes das autoridades. Em tese, estariamos diante um salto na consciéncia politica, de tal modo que se dissolveria a distingdo de classes ¢ o tratamento distinto que cada uma recebe das instituigdes € se reforgaria o sentido da nacionalidade ¢ da propria civilidade politica, Mas tem algo mais ai, alguma coisa que se furta a essa anélise positiva, que & a possibilidade de que a institucionalizagao da politica produziu uma geragdo despolitizada no sentido tradicional, isto 6, que nao pensa a politica a partir da direita ou da esquerda. © que existe, é um conjunto de partidos politicos ¢ seus mecanismos de poder que nao se interessam pelo “povo”. Com a profissionalizagao, institucionalizagdo e criminalizagdo da politica, temos, enfim, a despolitizagdo da politica, espago propicio para que a violéncia, longe de ser revolucionéria, apenas se revele com outro rosto, mas no mesmo espelho de uma sociedade de excegdo institucionalizada. Como tudo nessa sociedade, a politizagao da politica é urgente. Submetido em janeiro de 2014. Aprovado em: maio de 2014. Son oer eeenirney BOB) © art. 6° da LDB © a porda do papel educacional das familias O art. 6° da LDB ea perda do papel educacional das familias Wagner Luis Barbosa” Introdugao “Art. 1°. A educagdo abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivéncia humana, no trabalho, nas instituigdes de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizagbes da sociedade civil e nas manifestagdes culturais.”"” O artigo inicial de nossa Lei de Diretrizes ¢ Bases (LDB) deixa muito claro de quem & a responsabilidade primeira na educagdo das criangas: a familia. Apesar disso, vemos, cada vez. de forma mais flagrante, a transferéncia dessa responsabilidade & escola, Busco discutir esse esvaziamento da fungdo educacional familiar a partir do Artigo 6° da LDB, que define a obrigatoriedade da matricula de criangas a partir dos 4 anos de idade. Como subsidio, utilizo a “Teoria Histérico Cultural” (Vygotsky). Essa teoria & comumente utilizada para referendar a permanéncia da crianga na escola, enquanto espago organizado para o saber ¢ com adultos preparados para a fungdo de educar. Porém, é uma teoria interacionista, ou seja, que trata da interagdo da crianga com 0 meio, como forma de intemnalizagdo de valores. E, nesse caso, a familia deve desempenhar seu papel de referencia. Inicio esse ensaio fazendo um histérico do Artigo 6° da LDB, comparando-o com 0 Estatuto da Crianga e do Adolescente (ECA). Na sequéncia, trago argumentos da psicopedagogia. Finalizo com uma reflexdo sobre a quem interessa a permanéncia das criangas, cada vez em menor idade, nos espagos formais de ensino. Hist6rico do art. 6° da LDB Na tradigdo legislativa brasileira & comum ouvirmos termos como emenda, substitutivo, morosidade, ete. So termos que expressam priticas como modificar leis aprovadas, ou a demora de sua apreciagio. Com a LDB nao é diferente. A lei data de 1996, mas se compararmos com a versdo atual, veremos virios pontos alterados. Essas modificagdes podem ter varias interpretagdes, uma delas, a visio positiva de adequagao ao momento histérico do pais. Outra visio, ndo tio interessante, ¢ a aprovagdo original sem 0 nivel de debate exigido pelo tema, necessitando ajustes futuros, Apesar de muitos pontos terem sido alterados, o que cabe discutir aqui é o Art. 6°, Na versio original, de 1996, ele era grafado da seguinte forma: “Art. 6°. E dever dos pais ou responsaveis efetuar a matricula dos menores, a partir dos sete anos de idade, no ensino Graduando em Letras pela Universidade Federal do Paran (UFPR). E mail: wb.wagnerbarbosa@gmail.com tp: /portal.mec-gov-br/arquivosipdifldb pat fundamental.”* No artigo acima os pais ou responsiveis eram obrigados a matricular seus filhos na primeira série do ensino fundamental aos 7 anos ¢ a educagdo bisica era de 9 anos. A pré- escola ¢ a creche eram opeionais, apesar da Constituigao Federal (CF) de 1988 determinar ao poder piblico 0 pleno oferecimento de vagas a quem necessitasse: “Art. 208. O dever do Estado com a educagio sera efetivado mediante a garantia de: (...) IV - atendimento em creche e pré-escola as criangas de zero a seis anos de idade;"” Nove anos depois a lei 11114, de 2005, fez algumas alteragdes na LDB de 96 ¢ a grafia do Art. 6° ficou assim: “E dever dos pais ou responsiveis efetuar a matricula dos menores, a partir dos seis anos de idade, no ensino fundamental." Ensino fundamental ganha mais um ano e passa a 10 de duragao. Porém, decorridos 8 anos, a lei 12796, de 2013 modificou novamente o Art. 6°, ficando assim: “Ei dever dos pais ou responsaveis efetuar a matricula das criangas na educagdo bisica a partir dos 4 (quatro) anos de idade.”! Agora o termo utilizado é Educagio Basica, que consiste em Educagao Infantil (4 ¢ 5 anos), Ensino Fundamental (6 aos 14) e Ensino Médio (15 aos 17). Ou seja, agora os pais so obrigados a matricular seus filhos na pré escola, aumentando a obrigatoriedade, que inicialmente era de 9 anos, para 14, Apesar da obrigatoriedade também para o Ensino Médio, vamos aqui nos ater a matricula na Educagio Infantil. O que diz o Estatuto da Crianga e do Adolescente (ECA)? Muito ouvimos, tanto de educadores como de politicos, que “lugar de crianga & na escola”, Jé é uma frase de todos, um dito do senso comum, ao qual ndo costumamos dar a merecida atengio. Outro jargao utilizado junto ao j4 mencionado é o que diz que “é melhor ‘uma crianga na escola que na rua.” Mas, se nao estiver na escola, por que estaria ela na rua? Por que ndo estaria na familia? Como citado na introdugao, o Art. 1° da LDB diz que a educagao se origina dos meios familiares, mas, apesar disso, ela esta passando cada vez menos tempo nesse meio. Como entdo atender a esse artigo? Observemos 0 que diz 0 ECA sobre esse assunto: Art. 4°. I dever da familia, da comunidade, da sociedade em geral ¢ do poder piblico assegurar, com absoluta prioridade, a efetivagdo dos direitos referentes & vida, a satide, & alimentagdo, & educagdo, ao esporte, ao lazer, a profissionalizagdo, & ®shutp:liportal mee. gov.br/seed/arquivos/paitvescolaileis/lein9394 pd »ntp:/éwwwplanalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Versio Original da_Constituigio, atualmente o artigo foi alterado pela EC n° 59, de 2009, mas a obrigatoriedade da oferta se mantém. Lohttp/fwww.planalto.gov.br/ceivil_ 03/_Ato2004-2006/200/Lei/L11114.him ‘wihttp://presrepublica jusbrasil.com:br/legislacao/1034524/lei-12796-13 OT) © art. 6° da LDB © a porda do papel educacional das familias cultura, 4 dignidade, ao respeito, a liberdade © a convivéncia familiar comunitiria."™ Esse artigo ¢ praticamente uma reprodugdo pormenorizada do Art. | da LDB. O Art. 19 do ECA complementa o artigo acima: Toda crianga ou adolescente tem direito a ser criado e educado no sei da sua familia e, excepcionalmente, em familia substituta, assegurada a convivéncia familiar comunitéria, em ambiente livre da presenga de pessoas dependentes de substineias entorpecentes.""° O Art. 4°, do ECA reforga o papel prioritério da familia na protegdo integral ao menor. Dentre os direitos assegurados, esti 0 da educagdo. O Art. 19 do ECA estabelece que toda crianga tem 0 direito a uma familia, com prioridade 4 natural. Esse artigo reitera 0 papel educacional da familia acima de todos os outros agentes, como o préprio Estado. Como entio aliar os artigos que defendem o papel educacional da familia aos que determina obrigatoriedade da matricula aos 4 anos de idade? Aparentemente contraditérios, {j4 que, sendo obrigados a iniciar sua pratica educacional formal tio cedo, ficam as criangas privadas da convivéncia familiar. Ao longo desse ensaio espero oferecer subsidio a esse debate. Teoria histérico cultural de Vygotsky Lev Wygotsky, pensador da extinta Unido Soviética, criou a Teoria Histérico Cultural. Ela tratava do desenvolvimento intelectual das criangas e seus processos de aprendizagem. Em linhas gerais, sua teoria define 0 homem como um ser histérico cultural (LUCCI, 2006), moldado pela cultura que ele mesmo cria através das interagdes entre os individuos. Em tratando mais especificamente do aprendizado, Vigotsky defende que as criangas também aprendem a partir de processos interativos. E através da atividade reciproca com um mediador mais preparado que a crianga vai evoluindo em seu desenvolvimento cognitivo. Para o pensador, 0 mediador, geralmente um adulto, atua no que a crianga ainda nao sabe, ‘mas esté préxima de aprender. A essa possibilidade de conhecimento ele chama de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) (LUCCI, 2006). ‘Vygotsky percebe, através da ZDP, a regularidade do aprendizado das criangas, de acordo com a idade. Ou seja, esse processo de aprendizado tem uma certa recorréncia e cabe a0 mediador atuar nesse estigio. Essa intervengdo regular & fungdo da escola ¢ seus pesquisadores. Esse mediador geralmente & 0 educador formal. Porém, também os familiares tém papel importante nesse processo. E na familia que as criangas devem aprender os valores 1 hueps/www planalto.gov.briccivil_O3/leis/18069.hum "Idem primordiais que irdo acompanhé-las por toda a vida. A fungo da escola é trabalhar a partir da cultura que a crianga trés de casa e ndo o lugar onde os valores bisicos so inicialmente passados. © processo interativo, do qual o homem é fruto e construtor de seu meio de vida, ¢ fungdo de muitos agentes, provavelmente sendo a familia o mais importante. E nesse local que 0s costumes, os gestos, os sabores, as expresses mais particulares, 0 afeto, as emogdes so repassadas. Se a crianga é privada desse proceso de desenvolvimento, faltam as referencias geradoras da personalidade do ser humano. A perda dessa fase implica na perda da fase do desenvolvimento da pessoa que nenhum outro local ird suprir, nem mesmo a escola. Salientando 0 exposto até agora, cito MELLO (2007): (..) & importante lembrar que as novas geragdes aprendem o conjunto das caracteristicas bumanas, endo apenas a lingua, os costumes, o modo de usar os objetos € 0s instrumentos, 0 modo de se relacionar e de pensar. As criangas aprendem também os sentimentos e os valores, além de formarem e desenvolverem a meméria, a atengZo, o controle da propria vontade, Nesse proceso, reproduzem para si qualidades, capacidades e habitidades humanas eriadas ao longo da historia, Pp. I4es. A escola infantil ja teve fungi assistencialista (CAMPOS, 2010). Os locais destinados as criangas ja foram espagos de acolhimento, geralmente geridos por entidades religiosas. Nesses locais as criangas recebiam valores morais. Atualmente, depois da luta de pais, educadores e interessados no tema, a creche e a educagdo infantil fazem parte do sistema educacional, ou seja, locais responsaveis pelo estimulo ao conhecimento, Porém, ndo deve ser © tinico. Mesmo sendo reconhecidos em leis especificas como espagos educacionais, as creches e pré-escolas ainda so vistas por muitos como locais de cuidado das eriangas, sendo que esse cuidado, esse carinho, deve vir dos lares ¢ ndo delegados aos espagos educacionais. Alguns argumentos da psicopedagogia Segundo Yaegahi (2007), o processo de humanizagdo da crianga se inicia na familia, por meio das experiéneias emocionais vividas nese meio que ocorrer’, ou nio, 0 desenvolvimento satisfatério da erianga. Ainda de acordo com a pesquisadora, a familia tem a fungdo psicossocial de fomnecer afeto, servir de amparo as ansiedades existenciais dos filhos, ¢ dar subsidios ao desenvolvimento integral da crianga, A falha nessa fungdo pode acarretar uma série de transtornos, muitas vezes ndo facilmente identificados, que podem comprometer a boa convivéncia em casa e em outros espagos piblicos, como a escola, Dentre os transtomos identificados por psicopedagogos Se ry BOG) © art. 6° da LDB o a porda do papel educacional das familias Yaegahi cita alguns possiveis: “1) transtornos de conduta, 2) transtornos de linguagem, 3) transtomos esfineterianos, 4) transtornos do sono, 5) doengas psicossomiticas, 6) transtomnos de aprendizado escolar.”pp. 75 a 76.1% Um diagnéstico muito presente no trabalho dos psicopedagogos ¢ a constatagdo de que 08 pais nunca esto disponiveis aos filhos (YAEGAHI 2007). Essa falta pode acarretar os transtomos acima citados, que, se esmiucados, irdo demonstrar tendéncias as drogas, personalidade insegura, problemas de peso, dificuldade no aprendizado, entre outros. Yaegahi defende que, diante da presenga dos sintomas das criangas, dos recorrentes transtomos € na constatagio da auséncia dos familiares, é hora de repensar a organizagdo familiar, para que o atendimento integral & crianga seja efetivado. Se essa convivéncia nao for revista, existe o risco de que as novas geragdes no intemalizem referéncias de vida, ficando assim sem uma base necesséria para medir as experiéncias que verdo na escola e no meio social. Em outras palavras, sem aprender em casa 0 que ¢ 0 “certo” e 0 “errado”, nao saberdo diferenciar esses conceitos, quando recebé-los em outros meios. ‘A quem interessa a obrigato dade da matricula das criangas a partir dos 4 anos? Certamente essa & uma pergunta com varias possibilidades de resposta, Podemos pensar nas regides onde o poder piblico falha ¢ crime organizado se instala, sendo a escola um refiigio aos estudantes; podemos pensar em um local onde ha alimento, quando este falta em casa; ou ainda o argumento da necesséria interago com outras criangas. Porém, quero abordar outro aspecto: a necessidade dos familiares em ir aos seus trabalhos, deixando os filhos na escola —em muitos casos, por todo o dia, Quando pensamos que as criangas devem estar na pré-escola, obrigatoriamente, a partir dos 4 anos, uma questio nos vem a mente: “Se essas criangas estio na escola, certamente os pais tem mais tempo para outras atividades”. Entretanto, que atividades so essas, que se beneficiam dessa disponibilidade familiar? Quando os pais nao precisam estar com as criangas, pois estio na escola, eles se dedicam mais a suas atividades remuneradas, em outras palavras, a seus empregos. Em um pais que esti muito préximo do pleno emprego, ou seja, onde existem vagas de emprego formal a todos os individuos em idade economicamente ativa, os setores privados forgam © poder pablico a fornecer-thes facilidades para atuar. Aos setores econémicos & vantagem ter disponibilidade em tempo integral de seus trabalhadores. Os governos, por sua ve7, criam ou modificam leis, baixam decretos, para que o setor econdmico nao pare. Com o Art. 6° da LDB parece que nio foi diferente. A competitividade capitalista necessita, cada vez mais, de trabalhadores disponiveis. Se tragarmos um comparativo entre as modificagdes da lei ¢ as alteragdes no cenério politico-econdmico nacional, veremos que \YAEGASHI, Solange Franci Raimundo, “Familia, desenvolvimento e aprendizagem: um olhar psicopedagogico”, In: RODRIGUES, Elaine, ROSIN, Sheila Maria, “Infincia e priticas educativas”, Maringé: Eduem, 2007, esses dois temas esto relacionados. ‘Na primeira versio da atual LDB, 1996, 0 Brasil estava entrando em um momento de abertura neoliberal (BRAGA) e saindo de um periodo de crise de gestio federal: Governo Tancredo/Samey — 1985 a 1990, Collor ~ 1990 a 1992, Itamar Franco ~ 1992 a 1995 e, anterior a isso, mas ainda muito latente, de Governo Militar — 1964 a 1985. Em 1996 o pais estava mergulhado em crise econdmica e 0 presidente Fernando Henrique Cardoso — 1995- 2002 promoveu uma abertura econdmica que levou a administragdo publica 4 situagao de subservigncia aos interesses do capital especulativo internacional. Com essa situagdo, varias leis foram flexibilizadas. Apesar da luta de organizages ligadas & educacdo para que o Estado garantisse vagas em todos os niveis de ensino piblico (sendo aqui o foco a pré-escola), ndo ha como negar que essa pratica favoreceu enormemente as empresas, que tiveram 0 tempo dos pais, antes dedicados aos filhos, repassados a iniciativa privada. Em 1996 0 Art, 6° da LDB obrigava a matricula aos 7 anos, no ensino fundamental. Em 2005, através de emenda constitucional, a idade de ingresso no ensino fundamental passou a ser de 6 anos. Nao por coincidéncia, em 2005, terceiro ano do primeiro mandato do presidente Lula — 2003 a 2011, a economia do pais apresentava um crescimento consistente. Como o presidente Lula no quebrou a evolugdo neoliberal, essa redugio da maioridade da obrigatoriedade da matricula provavelmente represente um apelo do etemamente insatisfeito mercado, que necessita sempre mais, mesmo que para isso tenha que arrancar os pais de seus filhos nos momentos em que as criangas mais necessitam de apoio. Finalmente, em 2013, com uma politica de pleno emprego e, tendo alcangado papel de destaque internacional, o Brasil torna obrigatéria a matricula das criangas a partir dos 4 anos, na pré-escola. Mais um golpe na familia, travestido de beneficio governmental, Em um momento de formagao do carter da crianga, os pais precisam dar sua contribuigao ao sistema econdmico, Consideragées finais Uma politica aparentemente benéfica para as familias, sobretudo as mais empobrecidas, mas que facilita a atuagdo das empresas, que podem contar com os familiares em tempo integral. Se o governo quisesse facilitar a vida das familias e, principalmente, das ctiangas, criaria condigdes para que, ao menos um ente da familia, pudesse trabalhar meio periodo, para que pudesse conviver mais com seus filhos. E bom que fique claro, nao sou contra a escolarizagao das criangas, mas que seja em curto periodo © que os pais possam desfrutar da convivéncia familiar por mais tempo. Atualmente, além de trabalhar por todo © dia, muitas vezes nos finais de semana, os pais chegam tarde cansados em casa, por uma série de motivos: carga de trabalho excessiva, transporte publico precério, falta de opgdes de trabalho em bairros proximos, dentre outros. 110 crooner: Corer a Esse conjunto desfavorece o processo de interagio familiar, até para que os pais acompanhem © rendimento dos filhos na escola. Para que o Estado crie condigdes para que as criangas convivam mais com seus pais, & necessirio redefinir as prioridades governamentais, Enquanto a balanga pender para o poder econdmico, as agdes que observaremos serdo paliativas. E as criangas continuaram indo, cada vez, mais novas € com carga hordria didria cada vez maior, para as escolas, buscando formagao social, moral, de base, que deveriam ter em casa. A continuagdo desse perverso cenério ira sobrecarregar a atuago de outros profissionais. Um deles, os psicopedagogos, que terdo que tratar novos transtomos, muitos deles desenvolvidos pela falta de uma familia mais presente, Outro, os educadores, numa luta ‘va contra estudantes sem limites. © papel da interagdo, definido por Vygotsky, que cria os referenciais de vida is criangas, ndo sero mais os pais, mas também no serdo os professores, pois no é essa a fungo deles. Serdo criangas sem um referencial consistente, provavelmente perdidas, com parte de sua formagao interrompida, pois as empresas precisaram de seus pais. Submetido e aprovado em maio de 2014. REFERENCIAS BRASIL. Congresso Nacional. Lei de Diretrizes e Bases da Educagio Bras LDB, n° 9394. Brasilia: 20 de dezembro de 1996. Disponivel em: http://portal mec. gov.br/arquivos/pdfildb.pdf, Acessado em: 02 dez. 2013. . Assembleia Nacional Constituinte. Constituigao Federal. Brasilia, 1988. Disponivel em: _ http://www-planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm, Acessado em 02 dez, 2013 Congresso Nacional. Lei n? 11.114. Brasilia, 16 de maio de 2005. Dispontvel em: http://www-planalto.gov.br/ecivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11 1 14.htm, Acessado em: 02 dez. 2013. Lei ne 12796. Brasilia, 2013. Disponivel em: http://presrepublica jusbrasil.com.br/legislacao/1034524/lei-12796-13. Acessado em: 02 dez. 2013. Estatuto da Crianga e do Adolescente. 5. ed. Brasilia: Gabinete do Senador Osmar Dias, 2005. cy Lei n° 8069. Brasilia, 13 de julho de 1999. Disponivel em: http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/leis/18069.htm. Acessado em 02 dez. 2013. LUCCI, Marcos Antonio. A Proposta de Vygotsky: A psicologia sécio histérica, Sdo Paulo, 2006. Disponivel em: _http://www-ugr.es/~recfpro/rev102COL 2port pdf. Acessado em: 02 dez, 2013. RODRIGUES, Elaine. SHEILA, Maria Rosin (Organizadoras). Infancia e praticas educativas. Maringé: Eduem, 2007. Campanha Nacional pelo Direito 4 Educagdo. Insumos para o debate 2 — Emenda Constitucional n.’ 59/2009 e a educagdo infantil: impactos e perspectivas. Si0 Paulo, 2010. BRAGA, David. O crescimento econdmico do Brasil e a metodologia de executive search. Disponivel em: https://www.bluesteps.com/regions/brasil/artigos/momento-de- crescimento-novas-oportunidades.aspx. Acessado em: 02 dez. 2013. Sa Se cre INSTRUGOES EDITORIAIS PARA AUTORES Para realizar a submisséo de um artigo para a Revista do NESEF - Filosofia e Ensino vocé deve utilizar o sistema eletrénico de submissio disponibilizado no seguinte enderego: Antes de realizar a submisso de seu artigo leia atentamente as regras para submissao de artigos disponiveis no endereco: a/paginas.php?conteudoregras-para-submissao http://www.nesef.ufprbrire en) R.NESEF Fil. Ens., Curt SINDICATO Cgc apa Gal ChE

You might also like