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Wolfgang Leo Maar O QUE POLITICA editora brasiliense Copyright © by Wolfgang Leo Mase, 1982 Neola pate desta publica poe see gravada, raven sem letras, onc, reprduida por ncios mecnivos ov ote guaiegser sem atoriago pedi da elitr, Prima igo, 1982 1 edgso, 1994, 23 reimpreso, 2006 Revit: Helin H. Line (Casts: Eno Damian ‘ails tnternacionals de Catalogagio na Publicago (CIP) ‘Clinaen rasllen do Livro, 0, Beal) “Moar, Wolfgang Lao ‘Oe ¢polea/ Wolfgang Leo Mia. ‘to Polo: Basins, 2006. (Coles0 Primeios pasos: 5) 23 rem da 16,0, de 1994, ISBN 11010528 1. Poltica 2, Poltsa mundi 1 Tilo, TL Seie. 06-0108 cpp. 320 Indices para catlogosistemitco: 1.Poltica 320 Roa Aii,22-Tauagé = CEP 03310010 -8 ‘onefFax (Ox) 6198-188 wwredtorsbasienseco be 0 Palo = SP tivraiabrasitense sa. ua Eis Marengo 216 Tatuaps - CEP 03336-000- Sto Paulo- SP Fone: (Onn) 65750185, ‘ivaiasasiense sedi crabrsiese come INDICE — Apresentagio. ....... se = Uma visio histories... 2222... 2.) — Atividade politica, Estado e cotidiano. = Politica, cultura e ideologia. — Indicagdes para leitura. AMaria Amalia APRESENTACAO, A politica ¢ uma referéncia permanente em to- das as dimensBes do nosso cotidiano na medida em que este se desenvolve como vida em sociedade. Embora o termo “politica” seja muitas vezes utili- zado de um modo bastante vago, é poss(vel precisar seu significado a partir das experiéncias hist6ricas em que aparece envolvido. Em 1984, apés vinte anos de Presidentes impos- tos pelos militares, milh®es foram as ruas em com cios por todo 0 pafs na memorével “Campanha das diretas” para se manifestarem pela eleicgo direta, secreta ¢ universal do Presidente da Republica, Como se sabe, este acabaria por ser indicado por um colégio eleitoral pela via indireta, porque 2 maioria dos congressistas eleitos foi contréria a ele fo direta, Em 1986 este mesmo Congresso Nacio- Wolfgang Leo Maar O que é Politica nal rejeitaria a proposta de convocagio de uma Assembléia Nacional Constituinte livre e soberana desvinculada do Congresso Nacional, anulando as- sim 9s esforgos populares para que 0s congressis- tas no agissem em beneffcio proprio. No in‘cio de 1986 0 govern decretou o “plano cruzado” pro- movendo uma reforma econdmica em que se anun- ciavam beneficios & populagio majoritéria de baixa renda, com 0 que conquistou amplo apoio nas elei- $688 de 15 de novembro. Encerrado o pleito, 0 governo decretou novas medidas altamente impo- ulares, levando as centrais sindicais a convocar uma greve nacional de protesto contra a politica econd- mica do governo, Em alguns lugares o exército foi as ruas para "“garantir a ordem e as instituigBes", a exemplo do que fez em 1964, Nao 6 preciso se estender mais. Este breve recor- te de alguns momentos da histéria recente do Bra- sil elucida exemplarmente o significado da politica através dos movimentos que visam interferir na realidade social a partir da existéncia de conflitos que no podem ser resolvidos de nenhuma outra forma. A polltica surge junto com a propria histéria, com 0 dinamismo de uma realidade em constante ‘transformagdo que continuamente se revela insufi lente ¢ insatisfatéria e que no é fruto do acaso, mas resulta da atividade dos préprios homens vi- vendo em sociedade. Homens que, portanto, tém todes a8 condigdes de interferir, desfiar e dominar © enredo da histérfa. Entre 0 voto e a forga das ar- ‘mas est uma gama variada de formes de ago de- senvolvidas historicamente visando resolver conf tos de interesses, configurando assim a atividade politica em sua questo fundamental: sua relagdo com 0 poder, Afinal, a politica’ serve para se atingir 0 po- der? Ou’ entdo seria a “politica” simplesmente a propria atividede exercida no plano deste poder? As eleigGes — ou as armas — servem para cont ‘mar ou para transformar? Que referencial usar para encaminhar estas ques- tes? Parece que, de repente, a “politica” aparece — como naquela memorével “Campanha das Dire- tas" em 1984, Mas de fato ela nfo aparece “de ropento”: jé est 16, multifacetada, sempre pre- sente em suas relagdes com 0 Estado, com 0 po- der, com a representatividade e participagdo, com as ideologias, com a violéncia, soja nos sindicatos, nos tribunals, na escola, na igraja, na sala de jan- tar ou na reunido partiddria. E 0 que se verd a seguir. A politica e as politicas Apesar da multiplicidade de facetas a que se ap! ca a palavra “politica”, uma delas goza de indi cutivel unanimidade: a! referéncia a0 poder poli- tico, & esfera da politica institucional. Um deputa- do, ou um Gryao de administragao publica so pol 10 Wolfgang Leo Maar ticos para a totalidade das pessoas, Todas as ativi dades associadas de algum modo & esfera institu- cional politica, © 0 espago onde se realizam, tam- bém_ so politicas. Um com{cio ¢ uma reunido politica e um partido é uma associagdo politica, lum individuo que questiona a ordem institucional pode ser um preso politico; as a¢des do governo, 0 discurso de um vereador, o'voto de um eleitor so politicos. Mas ha um outro conjunto em que a mesma pa- lavra manifesta-se claramente de um modo diverso. Quando se fala da politica da lareja, isto nao so refere apenas as relagdes entre a Igreja e as institul- Bes politicas, mas & existéncia de uma politica que se expressa na Igreja em relagdo a certas questoes como a miséria, a violéncia, etc. Do mesmo modo, a politica dos sindicatos néo se refere unicamente & politica sindical, desenvolvida pelo governo para os, sindicatos, mas’&s questées que dizem respeito 3 propria atividade do sindicato em relagio aos seus 1dos e ao restante da sociedade. A politica fem niista no se refere apenas ao Estado, mas aos ho- mens e as mulheres em geral. As empresas tém pol ticas para realizarem determinadas metas no rela cionamento com outras empresas, ou com 08 seus empregados. As pessoas, no seu relacionamento co- tidiano, desenvolvem politicas para alcangar seus objetivos nas relagies de trabalho, de amor ou de lazer; dizer “Voc8 precisa ser mais politico” & completamente distinto de dizer “Voe8 precisa’se politizar mais”, isto 6, “precisa ocupar-se mais da cesfera politica institucional”. que é Politica Da mesma maneira, um misico que exclam: “eu sou um artista, nao entendo de politica”, po- sicionando-se frente & arte engajada, refere-se'8 po- Iitica institucional. E pode muito bem, sem incor- rer em nenhuma incoeréncia, continuar: “mas tudo que fago tem profundo sentido politico”. Ele esté fazendo uma distingZo entre o valor politico ime- diato de um comicio pelas eleigées diretas para Pre- sidente da Repdblica, que pretende interferir na -estrutura do Poder institucional, e o valor politico no diretamente institucional do movimento sindi- cal, das comunidades de base da igreja, de uma pas- seata de estudantes, do movimento gay, de uma in- vasio de terras, ou de um manifesto cultural. Nao resta ddvida, porém, de que este segundo significado 6 muito mais vago e impreciso do que 0 primeiro. A evolucdo histérica em dirego ao gigan- tismo das Instituigées Politicas — o Estado onipre- sente — 6 acompanhada de uma politizaggo geral da sociedade em seus minimos detalhes, por exigir um posicionamento didrio frente ao Poder. Mas ao mesmo tempo traz consigo a imposiciio de normas ‘com que balizar a prépria aplicagdo da palavra pol tica; procurando determinar 0 que é ¢ 0 que nfo é “politica”. Desta forma, oculta-se ao eleitor o seu ser politi- co, atribuindo'se esta qualidade apenas ao eleito. Ou entao atribui-se pessoa um espago e um tem- po determinado para que exerga uma atividade politica, na hora das eleigBes, quando esté na tri- buna da Camara dos Deputados depois de ter sido eleita, quando senta no palécio para despachar com 2 Wolfgang Leo Maar O que ¢ Politica seus secretérios mesmo sem ter sido eleita. A pré- pria delimitagdo rigida da politica constitui, por- tanto, um produto da histéria; e este é, sem’ davi- da, 0 principal motivo pelo qual no basta ater-se a um significado geral da politica, que apagaria todas as figuras com que se apresentou em sua génese. Esta delimitago operada pelo nfvel institucional ‘raz consigo alteragdes profundas na esfera de valo- res associados 8 politica. Uma conjuntura institu- ional insatisfatoria, pela corrupgao ou pela violén- cia, jamais dissociadas, reflete-se numa desmoraliza- ‘980 da atividade pol tica — politicagem — que pode Teverter em apatia ou na procura de alternativas extra-institucionais como a luta armada. Ao mesmo tempo, processa-se uma inverséo na valorizagao da atividade politica na propria esfera institucional, fem que ela deixa de ser um direito, passando a ser ‘apenas um dever e uma responsabilidade. Em ou- tras palavras, & Instituigdo passa despercebido que a sua 6 também uma pol tica, assentada na sociedade com uma proposta de participagio, representacdo @ diregdo. Por esta caréncia de visio de relatividade, instaura-se_um normativismo absoluto, ocultan- dose assim sua natureza histérica, Interessa perceber que, apesar de haver um signi ficado predominante, que se impbe em determ nnadas situagbes, e que aparece como sendo "a" politica, 0 que existe na verdade sio politicas. E apenes aparente a incoeréneia de um lider sin- | afirmando que a aco do movimento social de inegdvel expresso politica que representa “no tem sentido politico”. Ele resguarda seus flancos em relago 20 Estado que Ihe nega o direito de fazer politica fora dos espacos especificamente de- limitados para tanto — 05 partidos oficiais legais. Mas, simulteneamente, procura recuperar o signifi cado amplo de uma politica forte fora do ambito fem que ela se desacreditou, por no ser represen- tativa, por no permitir a participagdo e nao ofere- cer uma diregdo socialmente valorizeda, Naquele movimento social, sem divida, pode-se no fazer a politica, mas certamente se'faz uma ica, De modo andlogo, a Igreja, mesmo nfo sendo uma instituigdo politica — prerrogativa do Estado secularizado —, sempre sustenta a proposta de fazer politica, oferecendo um nfvel de atuagdo em que procura’ traduzir ansoios e interesses socials. Ela nfo pretende o poder institucional — 0 governo —, ‘mas um poder politico, Existem, portanto, em um mesmo instante, varias politicas, ou a0 menos varias “propostas politicas”” na sociedade. Em decorréncia, hé uma situago dinfmica em que as diversas propostas relacionam-se entre si @ com a trama social a que procuram conferir uma expresso politica. Situagdo dindmica essa que implica dois tipos de questdes basicas. Em primeiro lugar, a focali- zag50. do movimento hist6rico de inter-relaciona- mento das diversas politicas, em que se determina a preponderancia de uma deles — a chamada “poli- tica hegeménica’’ — ou a situagio delicada — que 6 0 que se denomina de “crise politica” — em que 4 Wolfgang Leo Maar O que é Politica nenhuma consegue impor-se. Qu entéo em que uma jd perdeu a sua sustentacdo, mas nenhuma outra possul, fundamentos suficientes para se tornar luma alternativa, Em segundo luger, cabe dedicar-se com especial carinho & prépria conjuntura em que se desenvolve uma politica como expresso de certas situagdes em sociedade. Em outras palavras, come algo que ndo tem, passe @ ter significado politico, Estas duas questdes se encontram, Basta exami- nar estes agentes politicos por exceléncia da socie- dade moderna que so 05 partidos. £ certo que fazem parte do nivel polftico institucional, e como tais so inserem na disputa pela primazia no contro- le do governo ¢ na ocupagiio do aparelho estatal Porém, também so partidos de alguma coisa, de determinados interesses em relagdo aos quais tém ‘compromissos. Sao esses. compromissos justamente que lhes conferem significado, e em relagSo a estes deve traduzir uma importineia no jogo parla- mentar. A politica dos partidos, portanto, tem dduas faces: uma em relagiio 8 sociedade e seus in- teresses; outre como politica de disputa do go- verno. As palavras inglesas policy © politics, embora no traduzam precisamente os dots niveis em ques ‘Bo, so elucidatives. Um partido a testa do gover- no ‘executa uma policy nas relagdes com os Outros pafses, ou no que diz respeito & sade, aos trans- portes, & educagio; a palavra tem mais a ver com 2 administragdo dos neg6cios pablicos, com realiza: ‘¢80 de interesses sociais. Enquanto participa do do debate parlamentar, ou da disputa pelo gover- ‘no institucional, um partido esté no terreno da politics. ‘A questo 6 complexa, Néo resta a menor dit vida, porém, de que na esquina da vertente institu- cional com’ a vertente social encontrase telvez © maior dos desefios politicos. Dois exemplos poderdo servir para situar o problema. Como explicar — ¢ isto vale sobretudo para os paises chamados capitalistas — que nas sociedades contemporéneas mais estéveis e portanto nao ameagadas em sua institucionalizagao politica, em seu governo, néo se eliminem os bolsdes de pobreza apesar de hd muito se ter atingido um nivel de riqueza que objetivamente permitiria fazé-lo? Rompem-se desta forma os compromis- sos das instituigdes com a representacdo social, a ‘cujos interesses nfo atendem, embora pudessem fazé-lo. Como explicar — e isto vale sobretudo para os paises chamados de socialistas — que em luger algum onde se tenham firmado politicas de cunho social — educagio, emprego, sade, alimentacao, transporte para todos — tenha sido possivel insti- tucionalizar formas de governo que nao se sintam sempre ameagadas, e que por isso mesmo limiter a participagao social? Se os interesses sociais s80 atendidos, por que temer a mais ampla partici- ago nas instituigdes que deveriam representar @ sociedade? 16 Wolfgang Leo Maar O que é Politica ” O poeta e o libertador ‘Ainda uma pequena digress. Que soja apenas pela tradicgo das proprias anélises do tema, as uestdes pol ticas tém sido quase sempre enfocadas mente o coletivo . Nao hd por que divergir da concepgio se- gundo @ qual o homem é um ser social — razdo de ser, aliés, da propria atividade politica — e que a existéncia individual apresenta-se como conse- iiéncia desta especificidade dos homens, © que néo basta, porém, para explicar a fre- qilente sensagiio de camisa-de-forga com que a politica € encarada pelas pessoas em suas ativi- dades individuais, quer na vida do. artista, do profissional competente ou do apaixonado no banco de jardim, quer na do proprio sindicalista ou na do “politico”, que encerram seu expediente diario como se se despissem de um pesado fardo. ‘A atividade politica passa a ser uma espécie de mal necessério, uma atividade social transforma- dora pela gual se visa a realizar cortos fins utili zando-se de determinados.meios. Enfim, um instrumento de que hd preciso na vida em socie dade, Isto_me parece correto, embora parcial. Trans- ira um certo objetivismo de realizagao de metas maiores, relativas a interesses sociais. Estes podem it do bem-estar comum & capacidade de oferecer seguranga externa e cone6rdia interna a sociedade, associadas 8 organizagSo e controle das atividades do conjunto da vida social, como fung6es atribut das comumente ao Estado’ e a vida politica, para justificar @ explicar a sua existéncia, Ou entéo a erspectiva de operar mudancas através do assalto a0 poder politico seria um fim que justificaria qualquer melo, submetendo hierarquicamente to- ddas as atividades envolvides & nobreza da sua lidade. Por oposigio a esta “objetividade” das tarefas politicas, sugere-se a existéncia de insténcias e valores “‘subjetivos” devidamente enclausurados & parte e subordinados & politica, cuja satisfago eve aguardar a realizagfo da utopia, ante 0 risco que significa abandono das prioridades sociais efetivas. atividade politica caberia privilegiar 0 estudo © a transformago das condigBes objetivas na socie- dade que permitissem renové-la estruturalmente, com novas relagies sociais @ polfticas, de modo ‘8 permitir entéo a plenitude da vide individual. ‘Mas, com a dgua com que se pretende lavar os interesses sublimes das suas impurezas profanas, joga-se a crianga, A esta, por mera referéncia & pretenséo da objetividade, acima assinalada, pode- “se chamar de condig8es Subjetivas. Como realizar lum sentido social-politico, se hé um fosso a separé- lo do sentido individual-humano, cuja travessia requer esforcos nem sempre radicados na vida real 1no sou desenrolar cotidiano? Como conciliar, diria alguém, as minhas escolhas individuais com as minhas escolhas pol ticas? E isto ‘no vale s6 para a relago entre os amigos e os com- 18 Wolfgang Leo Maar O que é Politica » panheiros de militancia; serve também para o traba- Thador que quer melhorar o seu salério e precisa ser mobilizado para uma lute politica mais ampla, cujas metas muitas vezes pouco significam ao seu dia-a-dia, Como assentar as possibilidades da luta de classes nas necessidades ofetivas dos homens? ‘Como casar a necessidade de canalizar esforcos em conjunto, com a diversidade das possibilidades individuais? Em nome de qué sustentar uma vontade que Pode implicar no sac do. desajo? Talvez mostrando a falsidade deste desejo, e acenando com @ realizag#o futura em maior profundidade. ‘Com © que claramente no se consegue apegar 0 esforgo consciente que faz do engajamento na atividade politica uma op¢éo voluntaria, acompa- nhada do abandono de uma faceta substantiva da individualidade. Certamente as condicdes objetivas determinam as condigées subjetivas. Marx mostra como 0 modo de produgao capitalista submete de um modo téo universal a sociedade, que as proprias relacBes entre (0 homens surgem ‘como relagées “coisificadas” entre o capital e a forga de trabalho. Em vez de as “coisas” servirem &s pessoas, estas acabam achando que servem &s coisas. O homem distancia- -se, alhela-se em relacdo ao significado, a0 valor que a8 coisas, 08 outros homens e ele proprio tém para si mesmo, Sua prpria vontade e seu desejo sub- metem-se ao mecanismo inexorével da reprodugso capitalista. Tornando-se um homem. “alienado”, inconsciente do fato de ser ele mesmo, homem, O alienado: inconseiente do fato de ser ele mesmo, homem, (que produz as coisas, as relapdes entre os homens, que rodus a si mesmo, 20 Wolfgang Leo Maar 0 que é Politica ue produz as coisas e as relardes entre os homens, Que produz a si mesmo. Oculta-se 0 seu papel de rineipal, de produtor da his- toria, A propria atividade politica aparece como relacdo entre eleitor @ eleito, entre Estado e cida- dio, e seu aspecto préprio de relagéo humana se perde, Embora o sujeito da politica seja o homem, 2 politica € a politica da luta de classes. A moral ‘que rege a vida individual acaba submetendo-se 20 cepital — & preciso ganhar mais — ou as regras do governo ~ isto é censurado, aquilo ¢ proibido. Para restaurar a verdade ‘seria preciso uma trans- formagio pratica, uma anélise ciontifica que revele estes fatos como conseqiéncias de determinades politicas que também servem 20 copital e néo aos homens. Se 0 problema ¢ politico, a politica pode mudé-lo, Mas as condigdes subjetives nfo sfo apenas Geterminades pelas condi¢des objetivas. Elas tém um componente real, que’ndo desaparece simples- mente 20 jogé-lo mais adiante. E, por este sou Componente real, influenciam também as propries, situagdes “objetivas”, que deste modo passa também a ter uma existéncia apenas relativa. A social-democracia, com 0 sou sindicalismo apenas reivindicativo, realizava interesses efetivamente existentes, cuja satisfagdo delegaria a um segundo plano © mundo das promessas. O liberalismo ca talista satisfaz de fato a muitas aspiragies indivi duais, que no so apenas enganos ou desejos, impossiveis. Qualquer proposta politica transfor- madora que negasse 2 valorizaggo do sentido human da existéncia individual, ou a submetesse 2 uma valorizagdo exclusiva do coletivo, que significasse umn fardo para o individu, s6 conse- guiria como adeptos os fanéticos. Para estes a leitura dos manuais substituiria a felicidade real. solugo politica deve associar-se_necessaria: mente uma solugdo civilizat6ria voltada & realiza- fo de interesses humanos. Seria isto utépico? Ou haveria a possibilidade -de associar os meios politicos — coletivos — a obje- tivos que valorizem no homem a sua individua- lidade ea sua especificidade? Para Marcuse, na relago dos meios com os fins é possivel encon- ‘rar uma nova ética, em que 0s valores no sio descartados apenas como meros habitos impostos por um modo de produséo e sua politica, nem submetem 0 individuo ao isolamento das quali dades meramente pessoais. Plato, no Banquet, poe na boca de Sécrates @ realizegio do futuro’ etemo no amor presente pela paternidade. Sartre lembra que, para a bur- guesia do século XVIII, 0 sentido da vida estava em legar um capital a Seus filhos. Para Sartre, 0 sentido estaria em saber que as causas pelas quais lutava continuariam a motivar os homens, que valorizariam o seu papel como contribuigSo. Servir para nada no futuro tornaria sem sentido huma- no o presente. Deve também haver realizacées jé no cotidiano imperfeito do presente, em uma politica voltada a realizagao do para(so’ futuro. Hé uma mediagio entre 0 privilégio ora atribufdo & experiéncia da Wolfgang Leo Maar O que é Politica 2B azo — que diz: néo é posstvel —, ora a imaginacéo do desejo — que diz: é possivel. “Sonhar é preciso, desde que realizemos 0 sonho meticulosamente eo confrontemos paso a passo com a realidade”, disse Lénin, Para Max Weber ‘a politica consiste hum esforco tenaz ¢ enérgico de furar tébuas duras de_madeira. Este esforgo exige simultaneamente paixdo e precisio. .. no se poderia jamais esperar © possivel se no mundo nfio houvesse sempre a esperanga no impossivel. . . € preciso que as pessoas se armem sempre da forca da alma que Ihes per tird ultrapassar todos os naufrégios das esperancas, mas que o fagam desde o presente, senéo no sero capazes de fazer 0 que € possivel ser feito hoje. ‘Aquele que esté convencido disto (...) possui 4 vocagao da politica!” ‘A prépria atividade politica, longe de ser apenas voltada a uma transformagio do “mundo objetivo” com vistas ao futuro, significa, também, 0 exerct- cio de uma atividade’transformadora da conscién- cia e das suas relagdes com o mundo, Assim as pré- prias propostas politices so repensadas em cima do que elas tem a oferecer jé, aqui e agora. Em ‘termos que thes conferem um significado humna- no imediato real, sem que isto signifique o aban- dono de perspéctivas mediatas para o futuro como metas necessérias. “A politica do corpo”, por exemplo, ao exigir a valorizagao de algo tao individual como 0 corpo humano enquanto fonte © condigéo de bem-estar e prazer, puxa para o cotidiano finalidades freqientemente jogadas ao além, Para ser feliz n&o € preciso antes construir 0 socialismo, A meta por enquanto irrealizével jé tem componentes possiveis, que deve ser condi- es, e no resultados. A medida com que estas Soequenas coisas” sfo praticéveis, no deve mais ser estranha aos critérios de avaliagzo de polfticas menos imediatistas. Manifestagées como as de mio de 1968 em Pa- ris — que ocorreram também em praticamente todo ‘© mundo — tinham como razo de ser no a oposi- gio pura a determinadas instituigdes, nem a realiza- Go de projetos alternativos futuros. Expressando o descontentamento profundo e a imobilidade geral @ que a maioria dos homens foi condenada em face das amarras de um determinado tipo de par- tivipaggo politica institucionalizada, os manifes- tantes procuravam um papel, no presente, que no limitasse apenas ao futuro distante qualquer reali- zagdo de significados humanos, j4 to espoliados pelas imposigbes do esforgo exigido pelas “condi- (Ges objetivas”. Que pode alguém fazer hoje, Como pode realizar elgum significado humano ‘na sua atividade, num pais onde 0s politicos se reve- zam num poder aparentemente imével e inacesst- vel, onde o préprio emprego, quando acontece ‘consegui-lo, significa uma amarra para toda a vida, onde a ciéncia apenes banaliza e castra a imagina- eo criativa e transformadore, onde os valores morais submeterse a uma ética consumista, alie- nando as relages humanas em seu conteddo mai profundo? Por isto, nos movimentos sociais emergentes no |, muitas vezes nfo se procura s6 canalizar Br Wolfgang Leo Maar O que é Politica 28 esforgos comuns para obter objetivos ainda ndo exis tentes — por exemplo: alteragées na politica traba- Ihista do governo através do movimento sindical. Na prética cotidiana, a atividade politica assume a perspectiva de realizar dimensdes humanas mais profundas no relacionamento pessoal, com o res- peito & diversidade individual e a critica a formas predeterminadas de conduta. Sem isto, desvincula- “se a realidade do dia-a-dia do espaco de atuagio ica, ‘A democracia, longe de se esgotar nos fins, j6 precisa se apresentar nos meios. A tio difundida idgia de que hé necessidade de juntar esforcos, apagando diferengas, para realizar metas em que a diversidace possa, enfim, se desfraldar, no res- eito aos interesses da individualidade,” adquire uma nova conformago. A reunigo num coletivo de individualidades “diferentes precisa assentar no respeito a diversidade dos interesses isolados. Crise assim uma nova dimenséo social, em que a diversidade apresentase numa prética politica que relativiza as arestas mais ésperas do confronto de interesses, na medida em que as consciéncias, se transformam, e com elas 0s préprios objetivos individuals, A democracia passa a se interiorizar como uma conduta pessoal, de modo que as escolhas pessoals possam encontrar-se com as escolhas politicas. Isto pode parecer um novo ardil do Estado. A oxperiéncia do poder totalitério de propostas polfticas assentadas na mobiliza¢go popular tam- bem sugere a necessidade de uma transformagéo das consciéncias individuais. Sob o nazismo, Hitler facilmente conseguia apoio majoritério, porque acrescentava & sua proposta politica uma proposta cultural em que se interiorizavem na propria cons. ciéncia individual os moldes autoritérios. Por outro lado, sabe-se que muitas alternativas demo: craticas io se firmaram —e muitas ainda tém dificuldade em so firmer —, transformando-se em apéndices de instituig6es coercitives, por no con- ‘soguirem revelar_o encontro de seu significado politico com 0 seu sentido humano. As garantias politicas coletivas _ndo. se expressam com igual abrangéncia no cotidiano em que se desenvolvem 68 interesses pessoais. Isto revela o encontro profundo existente entre propostas politicas e propostas cultursis, para que se possa reunir a histéria das transformagées no “mundo objetivo” com a histéria das transforma- ges da consciéncia. Uma cultura pode tornar-se predominante, institucionalizando-se e refluindo sobre a sociedade com as viseiras impostas pelo poder que se considera legal. Mas pode, também, ‘encontrar-se na sociedade, expressando seus signi- icados humanos, para condicionar as alternativas politicas. Aqui o papel dos intelectuais é de grande relevancia: em suas mios pode adquirir forca polf- tica de direrdo para a sociedade 0 complexo con- junto de manifestagdes culturais. Preso as determinagées do aparelho institucional politico, ou porta-voz das manifestagdes cultui sociais, ‘cabe a figura do intelectual a importante ‘arefa ‘de ser mediador entre interesses individuais Wolfgang Leo Maar 0 que é Politica 27 e coletivos. Ele pode formular propostas que per: sm, j8, confluéncia de uma politica voltada a objetivos culturals no futuro e de uma cultura que cconfira um sentido humano atual a esta politica, Os intelectuais s0 personagens a um termo pol/- ticos e culturais, conferindo representaco cultural & politica, e diregdo politica & cultura. Talvez, como sugeriu Gramsci muitas vezes, facam no futuro um papel. semethante ao desempenhado pelos Partidos Politicos, os agentes da mediagao entre a expressdo politica ¢ a sua demanda social. Falando sobre a critica literdria e seus eritérios, Gramsci formula com preciso este espaco de atuacio “0 politico que pressiona para que a arte con- ‘temporanea expresse explicitamente 0 mundo cultural, realiza atividade politica, nfo de critica artistica; se @ sociedade cultural pela qual se lute & algo latente e necessério, sua expansio serd irresistivel e encontraré seus prOprios artistas... por outro lado, & necessério néo esquecer que... © literato deve necessariamente ter perspectivas menos precisas e definidas do que 0 politico, deve ser menos ‘sectério’, e ser mesmo o ‘contrario’ disso. Para o politico, toda imagem ‘fixada’ a priori & reacionéria, pois considera todo movimento em seu devenir. O artista, em troca, deve ter imagens ‘fixes’ e situadas de forma definitiva. O politico considera o homem como & em seu momento e como deve ser para alcancar determinado fim. Seu trabalho consiste em fazer os homens mar- ccharem em frente para sair da sue existéncia atual ¢ poremse em condicéo de alcancar coletivamente 0s fins propostos; ou seja, ‘adaptarem-se’ a estes fins. artista representa necesséria ¢ realistic mente ‘0 que existe’ de individual, néo confor- mista, ete., em certo momento. Por isto, do seu ponto de vista, o politico sempre acharé o artis- ta... & mero dos tempos, anacrénico, superado peio devenir real” Gramsci interroga_no homem, a um s6 tempo Jlibertador e poeta, a ambigiiidade profunda com que se defronta em seu cotidiano. Sem propor uma conciliarao, formal e abstrata, provoca o tema gerado por uma fragmentaggo concreta e real. Como encarar nosso "'tempo de partidos, tempo de homens partidos", nas palavras de’ Carlos Drummond? A historia oferece algumas pistas que enrique- cem 0 presente. Portas abertas que ndo precisam mais ser arrombadas. Cada leito trilhado & uma azo a mais para desafiar a imaginagdo, como um novo leque de possibilidades abertas que, se néo conduz a linha a ser tragada, ao menos ihe ilumina © pano de fundo.

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