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José Guilherme Cantor Magnani DA PERIFERIA AO CENTRO trajet6érias de pesquisa em Antropologia Urbana TERCEIRO NOME TT MT Tt Colegio Antropologia Hoje Concelho Editorial José Guilherme Cansor Magnani (diretor) — NAU/USP Lutz Henrique de Toledo — UI Renata Menezes ~ MN/UFRI Ronaldo de Almeida — Unicamp/Cebrap Luis Felipe Kojima Hirano (Coosd,) - NAU-USP Editora Terceiro Nome Dinepdo Mary Lou Paris Edigéo Ama Litma Cecilio Estevio Azevedo Adménistrecda Dominique Ruprecht Searavaglioni Guilherme Dias Gare Vendar Joie Paulo Pinheiro Sandra Frota Preparagdo de tere Fabio Bonillo Revisde Luciana Araujo Projets griffce Antonio Kehl IMustrigio de caps Nrishinro Mahe Diagramcapio Bianca Mimiea Nesta edicio, respeitou-se o novo Acorde Ortogsificy da Lingua Portuguesa, Dados Intermacionals de Caralogacio na Publicarao (CIP) ea do Liveo, SP. Breil Mago José Guilherme Da perifera a0 centro tajetdiciss de pesquisa em antropelogia uehana / Jose Guilherme Cantor Magnani; preficin Pecet By : posficie Marcio Silva, Sto Paulo Ecdioora Tereeire Nome, trapologls hefe) Bibllografia ISBN 978-85-7816.096-8 1. Antpologia urbana 2, Culture 4. Espase c rempa « Aspectos sochais4, Bina logia ~ Memsdologa 5. Poder (Ciénclas sociais) 6, Sociologia urbana L. Fry, Peer I Siva, Marcio Ill, Tilo, IV; Sétie 1211387 DD.207.76 rme Magnani 2012 tos desta edigio reservadlos & EDITORA TERCEIRO NOME Ruz Beliito Braga 70 05432.020 — Sto Paulo—S? ‘wwavterceinonome,com,br fene $5.11 3816 0333 SUMARIO Prefaicio = /bter Apresentaca Primeira part Linhagens ¢ trajetérias 1 — Os europeus, os norie-americanos ¢ os paulistanos 1 —Uina lishagem — Ruth Cardoso ¢ Euniee Durham I = Outra trajetria: da periferia ao centro Segunda Parte ‘Trés pesquisas IV = Neoesoterismo na metrépole V= Circuits de jovens VI-Nor ido dos surdos ‘Tereeira Parte Etmografia urbana VII — De perto e de dentro VII — As IX — Antropologia dé eidade/ne cidade lacles cle T es Irépicos Posfacio — Marcto Site Bibliogratia Lb 17: 19 43 113. 115 lol 205 Il Outra trajetéria: da periferia ao centro meu caso, 0 tema eseolhido foi cultura popular ¢ 0 abjero de pesquisa, 1 forma de entretenimento na periferia da cidade de Sao Paulo, o o-teatro. De longa tradicio tanto na drea rural brasileira como em ttenas cidades interioranas ¢ até nos grandes centros urbanos, 0 cireo, e fins do sécule XVIII, percortia o pais levande novidades aos mais yyinquos rinedes: exibicdo de animais exdticos, performances de artes porais como apresentagdes de musica, danga e teatro, termos gerais, o circo pode ser deserito como uma forma tradicional pular de entretenimento que se caracteriza pela apresentacio, no co ou picadeiro geralmente sob toldo de lona, de uma série de nui- os que incluem, entre outros, exibigao de destreza fisica (acrabacia barisme, contorcionismo etc.), animais amestrados, representacaes iirais (gags a cargo da dupla palhago-clown, dramas e comédias). Po- n ser clasificados como “de atragdes” ~ si os maiores ¢ mais bem ipados -, “de variedades” ¢ “circos-teatro”, conforme o elemento tral de seu espetdculo, ja como empreendimento de tradicionais familias dedicadas as artes enses, de origem europeia, seja no formato de pequenas companhias —33— Da periferia ao entre Outra t centro ria: da pecifei de variedades, esta forma de espericulo desperrava ao mesmo temp cu Ato. Os primeiras encenavam temas religiosos coma “A cangio de josidade e receio — néo eram raros e nada fantasiosos as relatos d Rernadette”, “Qs milagres de Nossa Senhora Aparecida”, “A Paixao mocinhas que fugiam com a froupe, enamaradas do domador, do tra ie Cristo” = este iltimo, bem apropriado se a temporada caisse justo “na Semana Santa. Havia também os temas de fundo moral ou ro- jminticos: “Maconha, o veneno verde”, “A marca da ferradura”, “O “mundo nado me quis”, “O céu uniu dois coragées”, Ja as comédias ¢ chanchadas como “O casamento do Chiquinho”, “Chico Birura, 0 harbeiro de Vila Ipojuca”, * “Quando o divércio vier”, “Dona Frouxa e seus trés marido: perista ou do gal Em fungao dessa ambigui cere lade, a chegada do circo a uma cidade en da de cuidados: a primeira apresentagao, antes mesmo da instala dos equipamentos, era o desfile pelas ruas principais com as acragé mais chamativas — os animais, os palhacos, as bailarinas, uma ban uta, o macumbeiro da Vila Aurora”, versa- de miisica — 0 que desperrava 0 entusiasmo da molecada ¢ chamava: : i yam sobre 0 coti no ou faziam satira com autoridades, instic atencio dos adultos. Ie temas em destaque na midia, tal coma os folhetos de cordel, que — “Hoje tem espetaculo? ‘Tem, sim senhor, ~ As oito da noite? E, sim difundiam informagées ¢ comentayam acontecimentos, geralmente hor, — Hoje tem marmelada? Tem, sim senhor” — Hoje tem goiabadal e he e ‘ Pon 1 « genlion Hoje tem mermelad i o}e vem polabas ob forma de sétira, Havia também um repettério mais autoral — *O ‘Tem, sim senhor, ~ Ea moga na jancla? Tem cara de panela, Eancgra nd ae ‘ ont A a thrio”, “Coragao materno” (Vicente Celestino), “Coragio de luto” partio? ‘Tem cara de tigio. — Eo palhaco, 0 que & F ladrio de muié, ~ 6 (Teixcirinha), “Tua mae honrards” ¢ “A vinganga de Chico Mineiro” ‘{Tonico, da dupla Tonico ¢ Tinoco). rai, 6 sol, suspende a lua! Viva o palhago que esti na tual” Era a primeira demonstragao do.seu carater irreverente, mas ao mesma ‘i id “ ili m disputa com as meios de comunicagao desde os tempos dureos tempo cioso de legitimacao —“o trabalho de uma familia para as respeitde F P 5 fe si LS toe Souci B rdillé esempre sob a amensu de deseparselmehta au virnide daisy vels familias desta localidade”, tal eta o bordéo mpetido no inicio de ca “ P : P es ~ eel 1 influéncia (para alguns analistas, descaracterizadora), 0 circo usava a espeticulo, Conseguir o terreno para instalar 0 toldo, a arquibancada cas batracas ou mailers cxigia tato na negociagdo com as autoridades loca a quem se retribufa com as “permanentes’, entradas que davam direita estratégia de estabelecer aliangas com os concorrentes. Era em seus alcas que cantores, duplas sertanejas ¢ apresentadores de programas iofanicos populares entravam em conrato com os fas, como Sérgio Reis, Sidney Magal, Tonico e Tinoco, Cascatinha ¢ Inhana, Leo Ca- Hhoto ¢ Robertinho, Eli Corréa, Gil Gomes, Assim continuou na era da TV como ji o fora nos primérdios do teatro: é sabido que muitos a ingress em todas as Fungdes durante a temporada © repertétia, se se tratava de um cireo-teatro, era composto pot dramas, comédias ¢ sketches — pequenas representagdes de um s6 artistas famosos de uma decerminada geragéo como Lima Duarte, Paulo Gracindo, Dercy Gongalves, Vie Militello e Bibi - ‘erreira tive- * Alids, nao sé jocinhas: Benjamim de Oliveiz, famoso palhaco negro no Rio de Jae neito da década de 1910, aos doze anos fugiu cam o circo quando este passou por sua cidadezinha no interior de Minas Gerais (Silva, 2007). Esse era um tema clissiea: na filme Tico-t Fram o inicio de suas carteiras ligadas aos palcas circenses, ¢ alguns, como as duas tiltimas, eram de tradicionais familias civcences, assim co no fubs, realizado no inicio dos anos 1950 pela Cia, Cinematogedfiea Vera Cur, uma personagem chamada Branca (interpretada por Tania Camera) @ uma amazona de um citce mambembe que chega d cidade paulista de Santa Rita da Passa Quatro, terra de Zequinha de Abreu, Este, caside, (ineerpretado por Anselma Duarte) apaixona-se por Branca, a quem dedics a famosa -valsa que leva scu nome, como os cémicos Dedé e Didi, dos Trapalhoes. Atualmente, as artes enses voltam a ter prestigio em virtude da sucesso de companhias plobalizadas com seus glamorosos espetdculos, como o Cirque du — a4 — Da perigeria wa ceritra Soleil ¢ o Circo da China, ou de frepes nacionais como Parlapatées, 05 Doutores da Alegria e as escolas de circos. a teia de relagées ¢ de trocas nao é de hoje. Em 1910, dois artistas circenses negras, Eduardo das Neves ¢ Benjamim de Oliveira, adaptaram aopereta A vitiva alegre, de Franz Lehar para o elenco do Circo Spinelli, no Rio de Janeiro, dois meses depois de sua apresentagao nos teatros de clite, Deram-lhe o titulo deA sentenga dat vitiva alegre, ea instrumentagio das misicas para a banda do citco ficou a cargo de Paulino Sacramento, maestro de orquestra de teatros de revista, Pois foi justamente essa rede encre diferentes agéncias — populares, de mercado, oft que levantou a prim: ca como manifestagio de cultura popular nao estaria contaminada pela ideologia dominante, pela agio da midia? Qu, com seu tom satirico, nao seria uma legitima forma de critica social aos costumes ¢ autori- dades estabelecidos? Poderia, ainda, servir de veiculo a contetidos mais at os problemas do cotidiano as ra questio para a pesquisa: o explicitan lutas das classes subalternas, na linha do movimento dos CPC (Centros Populares de Cultura) da UNE? ente politicos ao tema Aetnogratia O método escolhido para'a pesquisa, a etnografia, ¢ a estratégia do trabalho de campo, acompanhando os cireos nos meandros da periferia paulistana desde sua instalagao até o levantamenco da lona no fim da rem porada, fizeram-me mergulhar no dia a dia nao sé dos artistas, mas, também do bairro escolhido, ¢ isto abriu pistas novas para a pesquisa, Por ser uma forma de entretenimento, 0 periodo privilegiado para as observaedes etam os fins de semana, e 0 circo terminou sendo visto como uma das opgées de uso do tempo dedicado ao descanso semanal: deste moda, a periferia ja nao se ajustava & amplamente difundida imagem que a identificava como uma paisagem mondtona e cinzenta e nem sutgia como um bloco homogéneo, em oposigao ao centro, —80— Outra trajetéria: da petiferia ao centro Deparei com um variado leque de formas através das quais as pessoas passavam esse tempo, ainda que na fossem exatamente como aque- las que compunham a agenda de lazer (teatro, cinema, exposigdes, shows) do lado de cé da avenida Marginal: excursoes “de farofeiro”, festas de anivers tio, batizado ou casamento, campeonatos de furebol varzea, saidas de iad ¢ festas de ibeji em terreiros de umbanda ou candomblé — tanto quanto o circo, cram valorizados como ocasides € bilidade, espacas de encontro € so; Fssas modalidades tampouce constitufam um todo indiferenciado, ivel & desfrura igsen el por todos de forma aleatdria: havia uma or- dem. Era possivel distinguir, por exemplo, formas de entretenimento caracteristicas dos homens, por oposigao as das mulheres; de criangas versus de adultos; de rapazes ede mogas, ¢ assim por diante, Tomando icadas, fol possivel como ponto de partida o espago onde eram pra distinguir um sistema de oposigdes cujos primeiros termos era m “em casa” versus “fora de casa’. No primeiro deles, estavam aquelas come- das a ritos que celebram as mudancas significative moracdes associ no ciclo vital ¢ tinham como teferéncia a familia, ow seja, festas de hatizado, aniversirio, casamento etc. O segundo termo da oposi¢ao, “fora de casa”, subdividia-se, por sia vez, em “na vizinhanga” e “fora da vizinhang: bares, lanchonetes, salées de baile, espagos comunitirios em paréquia terreiros de candomblé ou umbanda, campos de futebol — ¢ também © circa, que se situavam nos lir hanga. O primeiro englobava locais de encontra ¢ lazer como da viz Escavam, portant, sujeitos a uma deretminada forma de controle, do tipo exercido por gente que se conhece de alguma maneira — seja pot morar perto ou por utilizar os mesmos equipamentos, coma pontos de dnibus, telefone piiblica, armazém, farmacia, centro de satide ¢ quadra de esportes, quando disponiveis. Quando o espago — ou um segmento dele — assim demarcado tornava-se ponto de referéncia para distinguir determinado grupo de frequentadores como pertencentes auma rede de relagées, recebia o nome de “pedaco”: — i — Da periferia an errtro ‘O terme, na realidade, designa aquele cspago intermedidrio entre o privado. (a casa) ¢ © publico, onde se desenvelve uma sociabilidade basica, mais ampla que a fundada nos lagos familiares, porém mais densa, significativa cestivel qu relagdes formais e individualizadas impostas pela sociedade, Pessoas de pedaros diferentes, om alguém em erinsita por um pedaco que nao o seu, 9 muito cautelosas: 0 conffito, a hostilidade estio sempre las rentes, pais taco lugar fora do pedapo é aquela parte desconhecida do mapa ¢, portanto, do perigo, Para além da soleira da casa, portanto, nao surge repentinamente © resto do mundo. Entre uma e outro situa-se um espago de mediagio cujos simbolos, notmas ¢ vivéncias permitem reconhecer as} pessoas diferenciando-as, o que tetmina por atribuir-lhes uma identidade que pouco tem a ver com a produzida pela incerpelagiio da sociedade mais igoes (Magnani, 1998; 116-117 ampla e suas inst Uma primeira andlise mostrou que essa nogio era formada por dois ele- mentos basicos: um de ordem espacial, fisica — configuranda um territoria claramente demarcado ou constitufdo por certos equipamentos —, ¢ outro, social, na forma de uma rede de relagdes que se estendia por sobre esse rerritério, As caracteristicas desses equipamentos definidores de fron- reiras mostravam que o espago assim delimitado constituia um lugar de passagem ¢, principalmente, de encontro, Entretanto, nao bastava passar por esse lugar ou mesma frequencé-lo com alguma regulatidade para ser do pedago; era preciso estar situado (¢ ser reconhecido como tal) numa peculiar rede de relagdes que combina lagas de parentesco, vizinhanga, procedéncia, vincules definidos por participagao em atividades comunitdrias ¢ desportivas etc. Assim, era 0 segundo elemento —a rede de relagées - que instaurava um cédigo capaz de separar, ordenar ¢ classificar; em iiltima anilise, era por referéncia a esse codigo que se podia dizer quem era ¢ quem nio era “do pedago” € em que grau (“colega’, “chegado”, “xara” etc.) Essa categoria, nativa, acabou transcendenda o facus de sua aplicagao origi- naria ¢, a partir de um didlogo com oucras propostas, como a representada pela oposicgao ruc venus casa de Roberto DaMatra, passei a emprega-la para designar um tipo particular de sociabilidade ¢ apropriagao do espago —88— Chara teajetdrin: cha periferia ao centro urbano, Segundo a conhecida formula damattiana, cém-se dois planos, cada qual enfeixando de forma paradigmética uma série de atitudes, valores ¢ comportamentos, uma delas referida ao publico ¢ a outta, ao privado. O peelico, porém, apontava para um terceiro dominio, intermediirio enere arua ca casa: enquanto esta tiltima ¢ o lugar da familia, 4 qual tem acesso bs parentes, ¢ a rua € dos estrenhos (onde, em momentos de tensdo € am- falando?” para biguidade, recorre-se 4 formula “voce sabe com quem esti delimitar posigées ¢ marcar direitos), 0 pedago € o lugar dos colegas, dos chegados. Aqui nao é preciso nenhuma interpelacio: rados sabem quem sao, de onde vém, do que gostam ¢ o que se pode ou nia fazer, N troca de informagGes ¢ pequenos favores, explicitagao e resolugio de con- flicos) ¢ estabelecem-se lacos que terminam distinguindo e aglutinando tuma rede de frequentadores. Desta farma, o pedlapo € a0 mesmo tempo is as de lazer) e condigao para

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